Nas ‘Disputas Metafísicas’, Francisco Suarez (1548-1617) pretende apresentar um tratado sistemático de Metafísica. Com esta intenção, ele ordena os temas da seguinte maneira: objeto, abrangência, unidade, finalidade e utilidade desta ciência; a unidade de seu objeto; suas propriedades; suas causas e suas diferentes espécies. Assim, depois de ter definido que a Metafísica trata do ‘ente real enquanto tal’ (Disp. 1) e de ter mostrado qual tipo de unidade cabe a este conceito (Disp. 2), passa a discutir as ‘propriedades’ do ente real enquanto tal, ou seja, passa a discutir os chamados ‘atributos transcendentais’, que cabem a todo e qualquer ente real (Disp. 3-11). Seriam três os atributos transcendentais: uno, verdadeiro e bom. Todo ente, se é real, é uno, é verdadeiro e é bom. Para Suarez, portanto, cabe primeiramente à Metafísica, a ciência que trata do ente real enquanto tal, esclarecer o significado do termo ‘bom’ assim como o do termo contrário ‘mau’. Como veremos, sem este esclarecimento da Metafísica, o uso dos termos ‘bom’ e ‘mau’ no discurso moral parecerá arbitrário e sem fundamento, pois o significado deles no discurso moral é derivado e dependente do significado primário, cuja explicação se encontra na Metafísica.
Este artigo pretende apresentar qual é, segundo o Doutor Exímio, este significado primário dos termos ‘bom’ e ‘mau’. Falarei rapidamente em primeiro lugar dos chamados ‘entes de razão’ (disp. 54) e, em seguida, dos chamados atributos transcendentais em geral (Disp. 3). Depois tratarei do atributo transcendental ‘bom’ (disp. 10) para, por fim, falar do seu contrário ‘mau’ (disp. 11)1.
I
Para Suarez, o ser humano é capaz de pensar em entes que não existem e que nem mesmo podem existir, como se existissem. Pensamos, por ex., ‘este homem é cego’ como se o ‘ser cego’ existisse realmente no homem e não fosse, pelo contrário, uma não-existência. Pensamos ‘uma coisa é igual a si mesma’, como se existissem duas coisas, as quais seriam comparadas uma com a outra, e não se tratasse de fato de uma única e mesma coisa. Pensamos na ‘quimera’, como se existisse um animal, cuja existência é impossível, na medida em que suas partes são incompatíveis umas com as outras. Estes entes são os chamados ‘entes de razão’, pois só existem enquanto projeções da mente humana. Propriamente não são ‘entes’, pois propriamente falando só é ‘ente’ o ‘ente real’, isto é, aquilo que existe ou é capaz de existir, o que não acontece com estes ‘entes de razão’2.
Isto ocorre porque tudo o que o intelecto concebe, ele o concebe como um ente e não é capaz de conceber nada a não ser como ente. Assim, ao tentar conhecer aquilo que não é nem pode ser - a cegueira, o vazio, o próprio nada, etc. - ele vai concebê-lo como um ente. Também, ao tentar conhecer uma coisa simples, muitas vezes o ser humano não é capaz de concebê-la tal como ela é em si mesma e começa a estabelecer distinções e relações que não existem na própria coisa. Ao fazer isto, o ser humano vai conceber estas distinções e relações como entes. Por fim, ao juntar coisas que não existem juntas e que não podem existir juntas, ele vai conceber tal união inexistente e impossível como um ente. Pois, o nada enquanto nada é inconcebível pelo intelecto humano e tudo o que ele concebe, o concebe como ente.3
Não se deve, portanto, considerar como real tudo que é concebido pela mente humana. Os ‘entes de razão’, mesmo sendo concebidos como entes, não são entes reais e não possuem nem podem possuir nenhuma existência além daquela projetada pela mente humana.
II
Isto se aplica aos chamados ‘atributos transcendentais’, isto é, àqueles predicados que podem ser atribuídos a todo e qualquer ente e que, portanto, são convertíveis com o ente: uno, verdadeiro e bom.
O problema destes predicados é o seguinte: Por um lado, não podem ter exatamente o mesmo significado que ‘ente’, pois, ao dizer, por ex., ‘todo ente é uno’ não estamos querendo pura e simplesmente dizer ‘todo ente é ente’, mas estamos querendo dizer algo diferente. Por outro lado, se estamos querendo dizer algo ao dizer ‘todo ente é uno’, então o termo ‘uno’ significa algo; logo, significa um ente, pois se não significasse um ente, não significaria nada. O termo ‘uno’ não pode, portanto, ter o mesmo significado que o termo ‘ente’, mas também não pode ter um significado totalmente diferente4. Assim surge a questão: o que estamos dizendo quando se diz ‘todo ente é uno’?
Para Suarez, a resposta é a seguinte: há predicados que indicam uma propriedade realmente distinta da coisa à qual é atribuída, isto é, indicam uma distinção real. Por ex. no juízo ‘uma parede é branca’ atribuímos um predicado a um sujeito e o ‘ser parede’ é realmente distinto do ‘ser branco’. Mas há predicados que indicam uma propriedade que só é distinta no modo como nossa mente considera a coisa, isto é, só indicam uma distinção de razão. Por ex. duas paredes são iguais pois têm dois metros de altura; no juízo ‘estas quantidades são o fundamento da igualdade entre as paredes’ também atribuímos um predicado a um sujeito, mas o ‘ser esta quantidade’ não é realmente distinto do ‘ser fundamento da igualdade’; só são distintos pelo modo diferente através do qual a mente considera aquilo que na coisa é o mesmo5.
A presença de uma distinção de razão não significa, portanto, que os predicados usados estejam descrevendo coisas realmente distintas. Mas isto não significa que estejam descrevendo algo totalmente fictício e sem nenhum fundamento real6. Este é o caso dos atributos transcendentais. Quando se diz ‘todo ente é uno’, não se está atribuindo ao ente uma propriedade realmente distinta dele, pois ‘unidade’ e ‘entidade’ só são distintas pelo modo diferente através do qual a mente considera a mesma coisa. Isto, porém, não significa que o termo ‘uno’ seja uma pura ficção da mente, sem nenhum fundamento real. O ente continuaria a ser uno nele mesmo, ainda que nenhuma mente pense em tal unidade7.
Tal é o caso também dos atributos ‘verdadeiro’ e ‘bom’. Quando se diz ‘todo ente é verdadeiro’ e ‘todo ente é bom’, não se está atribuindo ao ente uma propriedade realmente distinta dele, pois ‘verdade’ e ‘bem’ só são distintos da ‘entidade’ pelo modo diferente através do qual a mente considera a mesma coisa. Tais ‘propriedades’ não são no real diferentes do ente. Mas elas também não são puras ficções da mente. Elas explicam algo que está realmente presente no ente. Ainda que nenhuma mente cogite tais propriedades, o ente continuaria a ser verdadeiro e bom8.
O atributo ‘uno’ indica uma negação, a saber, que todo ente é não-dividido; os atributos ‘verdadeiro’ e ‘bom’ parecem indicar uma relação - pelo menos possível - com algo exterior, a saber, que todo ente pode ser conhecido e que todo ente pode ser amado, o que supõe algo exterior ao ente que poderia conhecê-lo ou amá-lo. Ora, como vimos acima, muitas vezes concebemos como entes privações e negações, que não indicam nada real, ou relações, que não existem nas próprias coisas, mas só no modo como as concebemos. Assim, ‘uno’, ‘verdadeiro’ e ‘bom’ não indicam algo real distinto do próprio ente. Mas isto não significa que o que eles descrevem seja uma pura ficção. Eles descrevem algo real, o próprio ente. A distinção entre eles não é real e só existe em nossa mente, mas tem uma base na coisa. É aquilo que ele chama de ‘distinctio rationis raciocinatae’.9
III
Suarez, na Disputa 10, pretende explicar em detalhe o atributo transcendental ‘bom’. Segundo ele, não é preciso mostrar que ‘Todo ente é bom’. Isto já é suficientemente atestado tanto pela fé cristã, pois as Escrituras Sagradas dizem no livro do Gênesis que Deus viu a bondade em todas criaturas, quanto pela filosofia racional, pois Aristóteles disse que bom é aquilo para o que uma coisa tende e a experiência nos mostra que todas as coisas tendem para algo, de modo que haveria um bem em todas as coisas. O que é preciso explicar é o significado do termo ‘bom’ para que se possa entender como ele pode ser atribuído a todos os entes10.
Depois de expor e rejeitar várias opiniões sobre o significado da palavra ou do termo ‘bom’11, Suarez apresenta sua primeira solução: quando dizemos que um ente é ‘bom’, estamos dizendo que aquele ente possui uma perfeição e que há em outro ente uma inclinação ou capacidade para esta perfeição; em outras palavras, ‘bom’ significa duas coisas concomitantemente: a perfeição do ente e a conveniência desta perfeição para outro12.
Por um lado, ‘bom’ é sinônimo de ente, pois significa a perfeição do ente. Não há como conceber um ente sem conceber sua perfeição, pois não só a essência do ente é uma perfeição, mas também o próprio ‘ser’ (a existência) do ente é uma perfeição. Assim, ao se conceber um ente, se concebe sua perfeição e ao se conceber uma perfeição, se concebe um ente. Com efeito, o termo ‘perfeito’ significa ‘aquilo a que não falta algo’ e o termo ‘ente’ ‘aquilo que é’; ora, não é possível que algo seja o que é e que lhe falte algo para que seja o que é e não é possível que não falte nada para que algo seja o que é e que ele não seja o que é. Conceber ‘ente’ e conceber ‘perfeito’ é, portanto, conceber exatamente a mesma coisa. Por um lado, portanto, ao dizer ‘este ente é bom’, só estamos dizendo ‘este ente é um ente’, pois ‘bom’, por um lado, significa a perfeição do ente. E neste sentido, quanto maior for a entidade do ente, quanto maior for a perfeição do ente, tanto maior será sua bondade.13
Por outro lado, ‘bom’ significa a conveniência de um ente, isto é, que há outro ente que possui a capacidade e a inclinação para este ente. Neste sentido, dizer que ‘este ente é bom’ significa que outro ente tende de algum modo para ele ou que outro ente é de algum modo capaz dele. Neste sentido, o termo ‘bom’ não é totalmente sinônimo do termo ‘ente’ e se distingue dele de algum modo.14
Estas duas significações, entretanto, não podem ser separadas. O termo ‘bom’ não pode significar somente a perfeição do ente sem nenhuma referência à conveniência dele. Pois quando dizemos ‘este ente é bom’, não estamos dizendo somente ‘este ente é um ente’, o que seria o caso, se ‘bom’ significasse somente a perfeição do ente. O termo ‘bom’ precisa, portanto, significar, além da perfeição do ente, a conveniência dele, se ele não é um termo vão e se o princípio ‘todo ente é bom’ não é uma tautologia vazia. Mas também não é possível que o termo ‘bom’ signifique somente a conveniência do ente sem uma referência à perfeição dele, pois a conveniência não é algo realmente distinto do ente, é a própria perfeição do ente concebida como aquilo para o qual outro ente tende ou do qual outro ente é capaz. Quando dizemos, por ex., que saúde é algo ‘bom’ para o animal, estamos dizendo que o animal é capaz dela e tende de algum modo para ela, mas é capaz dela mesma e não de algo distinto dela; ele tende para ela mesma e não para algo distinto dela. Assim, a conveniência de um ente não é algo realmente distinto dele. A distinção que fazemos entre a perfeição do ente e sua conveniência só aparece porque nossa mente concebe a mesma coisa de modos diferentes, isto é, a perfeição do ente nele mesmo e a perfeição do ente enquanto algo para o que outro ente tende ou do qual outro ente é capaz. Assim, não faz sentido dizer que um ente é conveniente sem pensar simultaneamente na perfeição dele, pois a conveniência é a perfeição concebida sob certo aspecto15. O termo ‘bom’, portanto, significa concomitantemente a perfeição do ente e sua conveniência e as duas significações não podem ser separadas uma da outra.
Mas, se o termo ‘bom’ tem esta significação inseparável, como podemos dizer ‘todo ente é bom’? Com efeito, é evidente que todo ente possua uma perfeição própria, mas não é evidente que todo ente seja conveniente para outro. Suarez responde: todos os entes são bons em si mesmos, pois possuem em si mesmos uma perfeição própria; esta perfeição torna o ente conveniente em primeiro lugar para si mesmo, pois todo ente tem uma tendência para si mesmo. Assim ao dizer ‘todo ente é bom’ estamos em primeiro lugar dizendo que todo ente possui sua perfeição própria e concomitantemente que ele tem uma inclinação para sua própria perfeição16.
Podemos explicar esta ideia com um exemplo: dizemos que o saber é algo ‘bom’ para o ser humano, pois é um ente, uma perfeição, para a qual o ser humano tem uma inclinação; ora, se podemos falar que o ser humano tem uma inclinação para a ciência, que é uma perfeição acidental, com maior razão ainda podemos dizer que ele tem uma inclinação para sua forma substancial ‘ser humano’. A forma substancial ‘ser humano’ é tão ou mais conveniente para o ser humano do que a forma acidental ‘ciência’ e ele tem uma inclinação igual ou maior para ela. O fato de que ela não pode ser separada dele não torna a conveniência dela menor. Assim, quando se diz ‘todo ente é bom’, estamos dizendo primeiramente que ele é perfeito a seu modo e que ele convém a si mesmo, isto é, que ele tem uma inclinação a ser o que ele é. Sem esta perfeição própria e sem esta inclinação para ela, nenhum ente seria o que ele é.
Assim vemos que os termos ‘ente’ e ‘bom’ não significam coisas realmente distintas. No real, estes termos significam a mesma coisa concebida de modos distintos pela mente. O termo ‘bom’ significa o ente e significa concomitantemente a conveniência do ente consigo mesmo. Tal conveniência não é algo realmente distinto do ente, pois o ente tende para ele mesmo. Mas ela é concebida como se fosse algo distinto. Neste sentido, o termo ‘bom’ é um ente de razão, mas isto não significa que ele esteja descrevendo algo totalmente fictício. Assim como o termo ‘uno’, o termo ‘bom’ descreve algo real no ente, mas que não é realmente distinto dele.
IV
Tendo explicado o significado geral do termo ‘bom’ e em que sentido se pode dizer que ‘todo ente é bom’, Suarez passa a esclarecer a relação deste termo com os termos que costumam estar associados a ele.
Em primeiro lugar, ‘apetecível’: assim como ‘bom’ e ‘ente‘ são a mesma coisa no real, assim também ‘bom’ e o ‘apetecível’ são na coisa o mesmo, pois o nada apreendido como nada não pode mover um apetite; é sempre um ente que o move, ou seja, sua perfeição e sua conveniência para com aquele apetite. Mas o termo ‘bom’ significa o ente concebido pela mente como perfeito e conveniente e o termo ‘apetecível’ significa o mesmo ente concebido como algo que pode mover um apetite. ‘Bom’ e ‘apetecível’ são, portanto, distintos só pelo modo como a mente concebe. Assim sendo, uma coisa só é apetecível, porque ela é boa e não o contrário. Não há como um ente ser apetecível sem supor sua entidade e sua bondade, mesmo que o ‘ser apetecível’ sempre acompanhe o ‘ser bom’.17
Mesmo quando o intelecto humano se engana e mostra ao apetite algo que não é verdadeiramente bom, mas só aparentemente bom, o que move o apetite é a aparência de bem. Aqui também não se pode dizer que algo é bom, porque é apetecido, pois aquilo só foi apetecido porque foi apreendido como bom18.
Em segundo lugar, ‘fim’: também ‘bom’ e ‘fim’ significam na coisa o mesmo, pois ‘fim’ é aquilo para o que uma coisa tende. Sempre se tende para algo, isto é, para um ente perfeito e conveniente a seu modo, isto é, para algo ‘bom’. Mas enquanto ‘bom’ significa o ente concebido pela mente como perfeito e conveniente, o termo ‘fim’ significa o mesmo ente concebido como aquilo para o qual se tende como causa final. Assim também, algo só é um fim porque é bom e não o contrário. Ser um fim supõe entidade e bondade, mesmo que ‘ser fim’ sempre acompanhe o ‘ser bom’ 19
Mas quando se estabelece entre os entes uma relação de meio e fim, o meio é dito ‘bom’, mas não é dito ‘fim’, havendo aqui uma distinção entre meio e fim. Isto pode ser explicado do seguinte modo: um meio pode ser chamado ‘bom’, pois é um ente conveniente para um fim, mas não deve neste contexto ser chamado de ‘fim’, pois a tendência que existe para o meio não é absoluta. Ela dependente da tendência para o ente que é o fim último do movimento, por assim dizer. Neste contexto, portanto, geraria confusão chamar o meio de ‘fim’.20
Resumindo: todo ente é bom, pois não há como algo ser sem alguma perfeição própria e sem que ele seja conveniente, sem que ele seja um fim, pelo menos para si mesmo, e sem que ele seja apetecido pelo menos por si mesmo. Evidentemente, quando se fala de ‘apetite’, não se está projetando sobre os entes inanimados (como o ar, a água) ‘desejos’ presentes nos entes animados (como os gatos), nem atos de vontade presentes somente nos entes racionais, mas se está falando de ‘tendências’. Com efeito, todo ente, mesmo os inanimados, tem tendências, no mínimo para ser aquilo que eles são. Se eles não tivessem nenhuma tendência, não seriam aquilo que são. Se a água, por ex., não tivesse a tendência a ser líquida sob determinadas condições de temperatura e pressão, ela não seria água21.
Neste sentido, podemos falar de um ‘bem natural’, que é comum a todos os entes e de um ‘bem moral’, presente somente nos entes racionais. Mas para entender isto, devemos antes esclarecer outra distinção entre ‘pura e simplesmente bom’ e ‘bom sob certo aspecto’.
Um ente pode ser ‘pura e simplesmente bom’ e pode ser ‘bom sob certo aspecto’. Cabe lembrar que ‘bom’ significa perfeito e ‘perfeito’ significa aquilo ao que não falta nada. Portanto, num primeiro sentido, ‘pura e simplesmente bom’ seria só Deus, o ente máximo, que possui toda entidade e perfeição possível e, portanto, só a ele propriamente falando não falta nada. Os entes criados, neste sentido são bons só ‘sob certo aspecto’, na medida em que ‘participam’ da entidade e da perfeição de Deus. Mas em outro sentido, podemos também chamar os entes criados de ‘pura e simplesmente bons’, na medida em que eles possuírem toda a perfeição possível de que são capazes de acordo com sua espécie. Há, com efeito, entes, que são capazes de adquirir perfeições acidentais além daquela que possuem por serem tal substância. Se estes entes possuem estas perfeições acidentais, então eles podem ser chamados ‘pura e simplesmente bons’, pois são perfeitos segundo sua espécie, isto é, são tudo o que são capazes de ser e não lhes falta nada, segundo sua espécie. Quando estes entes não possuem todas as perfeições acidentais de que são capazes, então eles devem ser chamados bons só ‘sob certo aspecto’, isto é, na medida em que possuem só a perfeição de serem tal forma substancial. Com efeito, estes não são perfeitos segundo sua espécie, pois lhes falta algo22.
Um cavalo, por ex., que está doente e não corre, não é ‘pura e simplesmente’ um bom cavalo, pois ele não possui todas as perfeições acidentais que um cavalo é capaz de possuir segundo sua espécie. Mas continua sendo bom ‘sob certo aspecto’, na medida em que continua sendo um cavalo.
No caso do ser humano, ele sempre será bom ‘sob certo aspecto’, enquanto for um ser humano, pois sempre possuirá sua perfeição substancial, mas ele só será ‘pura e simplesmente bom’ se ele possuir as perfeições - seja qual for o motivo disto- não é ‘pura e simplesmente’ bom, pois, segundo sua espécie, lhe falta algo.
Chegamos então à distinção entre bem natural e bem moral. Um ente é um bem ‘natural’, se ele é conveniente a uma determinada natureza. Ora, o ser humano possui uma natureza racional. Assim, para ele haverá bens que lhe são convenientes enquanto uma natureza racional. Estes bens poderão ser chamados de ‘morais’. Bem moral é, portanto, o bem natural do ser humano enquanto natureza racional23. Mas o que serão estes bens morais? Só pode se tratar daquelas e perfeições acidentais, tais como ações, hábitos ou virtudes, que forem convenientes para a perfeita existência racional do ser humano. Mas como uma operação não-livre não é uma operação do ente racional enquanto tal, só aquelas perfeições adquiridas através de uma ação livre são convenientes à natureza racional enquanto tal e só elas podem ser chamadas ‘bem moral’. Uma perfeição adquirida pelo ser humano de modo não-livre pode até ser um bem para o ser humano, mas será bem limitado diante do bem adquirido através de uma ação livre, isto é, diante de um bem moral. O modo de operar livre é superior ao modo de operar não-livre de modo que as perfeições adquiridas livremente são superiores àquelas adquiridas não-livremente24.
Isto não significa que um ser humano pode tornar algo bom só por seu ato de vontade. Há nas operações humanas uma bondade dada pelo próprio objeto da operação, a chamada ‘bondade objetiva’ e que não é dada de modo algum pela própria vontade.25 Mas, mesmo possuindo bondade objetiva, uma operação humana só é boa ‘sob certo aspecto’, enquanto ela for produzida de modo não-racional e não-livre. O ser humano só será ‘pura e simplesmente’ bom, quando ele adquirir suas perfeições do modo que lhe é possível segundo sua espécie, isto é, de maneira racional e livre. Pois só então ele será perfeito segundo sua espécie.
Cabe, portanto, ressaltar que o bem moral é um caso específico do bem natural. Para Suarez, seria absurdo falar do bem moral, causado por uma ação livre e racional, como se ele fosse o único tipo verdadeiro de bem. Há bem em todos os entes, racionais ou não, há perfeições, tendências e fins em todos os entes, racionais ou não. Pois se nos entes não-racionais não houvesse nenhum bem, nenhuma perfeição, nenhuma tendência e nenhum fim, eles pura e simplesmente não seriam nada. Pois como vimos acima, não há ser sem perfeição, sem conveniência, sem tendência e sem fim e tudo isto são só modos distintos pelos quais nossa mente concebe o ente, que na coisa é sempre o mesmo. Inclusive o bem moral humano não seria nada, se ele não fosse um bem natural. Pois todas as perfeições adquiridas livre e racionalmente pelo ser humano só são boas, porque através delas este ente - que é o ser humano - adquire toda a entidade de que é naturalmente capaz. Também no ser humano, ‘ser bom’ é em última instância ‘ser’.
O bem moral é em última instância sempre um bem ‘honesto’. Com efeito, os bens podem ser distinguidos em ‘honesto’, ‘deleitável’ e ‘útil’.
Bem honesto é aquele que é conveniente para o ente e o torna perfeito. É para ele que tende todo ente, mesmo os inanimados, pois todo ente tende pelo menos ao próprio ser e à conservação do próprio ser. No caso do ser humano, é aquilo que torna sua natureza racional perfeita; neste caso, portanto, só pode ser honesto aquilo que é ditado pela razão reta; algo contrário à razão reta é contrário à natureza racional do ser humano e não contribui para a perfeição dele; entretanto, a razão reta dita algo, porque é honesto e não vice-versa.26
O bem deleitável, por sua vez, só existe nos entes dotados de conhecimento, sensível ou racional. Ele consiste numa ‘suavidade’ ou numa ‘quietude’ que surge nestes entes diante de um objeto conveniente a um determinado apetite. Assim, sob certo aspecto, todo bem deleitável é um bem honesto, pois ele é conveniente e aperfeiçoa um apetite. Mas ele não é pura e simplesmente honesto, na medida em que isolado ele pode ser prejudicial ao ente como um todo. No caso do ser humano, um bem deleitável deixa de ser honesto, quando ele é contrário ao ditado da razão reta e se torna contrário à natureza racional do ser humano27.
O bem útil, por fim, é aquilo que é conveniente só na medida em que conduz ao bem honesto ou ao bem deleitável. Ele não tem uma conveniência própria para o ente. Um remédio, por ex., só é conveniente se ele conduz à saúde. Mesmo o movimento de um ente inanimado para sua perfeição pode ser considerado um bem útil28. Evidentemente, é um erro buscar um bem útil por si mesmo, deixando de lado o fim para o qual ele conduz. Ora, o bem deleitável, sob certo aspecto, é um bem útil, pois, se há uma ordem na natureza, ele existe como incentivo, por assim dizer, para o bem honesto; assim também é um erro buscar um bem deleitável por si mesmo, deixando de lado o bem honesto para o qual ele conduz, que em última instância é a perfeição do ente como um todo29.
Tanto o bem útil quanto o bem deleitável supõe, portanto, o bem honesto. Assim, o bem moral é em última instância um bem honesto. O que não impede que uma mesma coisa seja ao mesmo tempo um bem honesto, deleitável e útil, só que sob aspectos distintos30.
V
Suarez, entretanto, não se contenta em mostrar que ‘todo ente é bom’ na medida em que é perfeito e conveniente para si mesmo. Ele busca mostrar indutivamente que ‘todo ente é bom’ também para outro31.
Todo ente criado é conveniente para outro. Ou pode ser algo útil para a perfeição de outro ente, como a água para os seres vivos. Ou pode ser comunicativo de suas perfeições para outro ente, como uma cadela que comunica sua perfeição substancial - a forma canina - a seus filhotes, ou como a água quente que comunica sua perfeição acidental - o calor - a outros corpos. Ou, no mínimo, um ente contribui para a perfeição e bondade do universo como um todo; com efeito, o universo como um todo é um ente e, portanto, como um todo possui perfeição e bondade; ora, não faz sentido dizer que um todo é perfeito e bom, mas que suas partes não contribuem de nenhuma forma para isto, pois o todo é constituído pelas partes. Todo ente criado, portanto, é conveniente para outro, no mínimo, pois contribui para a perfeição e beleza do universo como um todo32.
Mesmo o universo como um todo é um ente conveniente para outro. Pois ele é conveniente para Deus, não no sentido de que o universo criado contribuísse para a perfeição de Deus, mas no sentido de que ele é uma obra digna de tal criador, assim como uma obra de arte é digna de um grande artista33.
Deus, por sua vez, é sumamente conveniente para outro. Primeiro, como causa eficiente última, pois dele flui todo ser dos entes criados. Toda perfeição e bondade destes depende, portanto, Dele. Mas também como causa final última, pois todo ente criado imita Deus do modo que é capaz, isto é, todo ente criado tende para o máximo de perfeição que é capaz segundo sua espécie. Até uma pedra, por ex., imita Deus, pois tende a conservar seu ser, que é o modo como ela é capaz de imitar a eternidade de Deus. Assim, Deus é sumamente conveniente para os entes criados. Seja como causa eficiente, seja como causa final, é Ele quem fornece toda entidade e perfeição que possuem. Sem Ele estes não possuiriam entidade e perfeição nenhuma34.
Também a matéria prima é conveniente para outro. Nos entes compostos de forma e matéria é evidente que a forma é conveniente para a matéria, pois a forma fornece uma perfeição que a matéria, enquanto matéria, não possui. Neste sentido, se pode dizer que a matéria tende para a forma. Mas a matéria também é conveniente para a forma, pois, se a união da forma com a matéria faz surgir um ente mais perfeito do que sem esta união, então a matéria também fornece alguma perfeição à forma. Tanto isto é verdade que também a forma tende para a matéria. Tanto a forma quanto a matéria são, portanto, bens para outro35.
Os entes acidentais são bons para outro. Eles são bons para a substância na qual estão, pois esta substância seria menos perfeita sem eles do que com eles. Mesmo quando um acidente não é totalmente adequado a uma substância, como um juízo errôneo num intelecto, ele é bom para ela enquanto ato de uma potência. Um juízo errôneo não é um bem para o intelecto enquanto errôneo, mas é um bem enquanto juízo. O intelecto seria menos perfeito se permanecesse sempre como potência e nunca se atualizasse36.
Assim: ‘Todo ente é bom’ não só porque é perfeito e conveniente para si mesmo, como também para outro.
As essências de entes que não são em ato, as relações e os entes matemáticos não são exceção a este princípio. As essências, mesmo não sendo entes em ato, são entes em potência; logo, mesmo não sendo boas em ato, são boas em potência. As relações, se são reais, possuem uma entidade e perfeição própria. Se a relação não é real, mas só um ente de razão, então não possui nem entidade nem perfeição real. A matemática, por sua vez, considera somente a grandeza dos entes e deixa de lado os movimentos, tendências e fins deles. Assim, não se fala de bem na matemática, não porque existam entes que não são bons, mas porque nela a mente humana não considera este aspecto dos entes reais37.
Só o que não é real, não é bom. E assim chegamos ao último ponto.
VI
Para entender melhor o que é o bem, convém tratar do seu oposto, o mal, pois é comparando opostos que se compreende melhor cada um deles38.
Costuma-se chamar ‘mau’ o ente, no qual falta a perfeição devida. Os maniqueístas explicaram esta ausência da perfeição devida num ente pela presença de um mal positivo, um ente real oposto à perfeição devida. Mas é absurda a existência de um ente real que seja totalmente mau por sua própria natureza, isto é, que sempre se oponha às perfeições próprias de cada ente, pois este ente seria mau justamente por possuir a perfeição devida à sua natureza, ou seja, ele seria mau justamente por ser bom segundo sua natureza. Além disso, como vimos acima, todo ente real possui alguma bondade própria, do contrário, não seria nada. O mal, portanto, só pode ser a privação de uma perfeição devida. Assim como a cegueira não é um ente real, mas ausência de um ente real que é a visão, assim também o mal é a ausência de alguma entidade real positiva. É ‘privação’, pois não é uma ausência pura e simples, mas a ausência de algo que deveria estar presente num ente segundo sua natureza39.
Há, entretanto, uma dificuldade nesta solução. Há entes positivos reais que costumeiramente são chamados ‘maus’. Um ato da vontade que escolhe algo contrário à razão reta é um ato ‘mau’, mas enquanto ato de uma potência é um ente real; um sentimento de dor é algo ‘mau’ e é um ente real e não só uma ausência de prazer. Há entes reais que são chamados ‘bons’ e ‘maus’ ao mesmo tempo: uma ação humana pode ser chamada ‘boa’ na medida é conforme a razão reta e ‘má’ na medida em que é dolorosa. Parece, portanto, que nem sempre o mal é pura privação, que há também algum tipo de mal que é positivo, mesmo que todo ente real seja bom sob certo aspecto.40
Para Suarez o que ocorre é justamente o contrário: todo ente real é pura e simplesmente bom e não há nada positivo que possa ser pura e simplesmente mau, mas um ente real pode ser considerado mau sob certo aspecto. Com efeito, podemos distinguir o mal em si, que é pura privação do ser, do mal para outro, que é uma oposição ao ser de outro. Enquanto é impossível que um ente positivo seja mau em sentido absoluto, é possível que ele seja mau para outro: neste caso, o termo ‘mau’ significa a perfeição de um ente real e significa concomitantemente a inconveniência dela em relação a outro ente.41 Assim, quando dizemos que a dor, por ex., é algo mau, não estamos dizendo que ela é pura e simplesmente má, pois ela é um ente positivo real, mas que ela é má ‘sob certo aspecto’, na medida em que é inconveniente para outro, a saber, para um determinado apetite. Neste sentido, até mesmo Deus, que é pura e simplesmente o bem máximo, pode ser concebido como ‘mau’. Na medida em que Ele é fonte de todo ser, Ele também é fonte das coisas que são más ‘sob certo aspecto’, isto é, das coisas que são inconvenientes para outras. Sob este aspecto, portanto, Ele pode ser concebido como ‘mau’ e pode até mesmo ser odiado, mesmo não havendo Nele verdadeira maldade, isto é, verdadeira ausência de ser 42.
Se é possível falar que um ente real é mau ‘sob certo aspecto’, pois ele pode ser considerado como inconveniente para outro, não é possível falar que um ente real é mau ‘pura e simplesmente’, pois, como vimos acima, todo ente real não só é perfeito e conveniente para si mesmo, mas também é conveniente para outro, pelo menos sob certo aspecto. Mesmo o mal ‘sob certo aspecto’ significa a carência de alguma perfeição devida. Um ato de vontade é chamado ‘mau’, não por ser um ato de vontade, mas por carecer da devida retidão, o lobo é dito ‘mau’ em relação ao cordeiro, não por ser um lobo, mas por carecer de conveniência em relação ao cordeiro43.
Sendo o mal sempre algum tipo de carência, nenhum ente real tende para o mal enquanto tal. Os entes reais sempre tendem para um bem e se deste movimento surge algum mal, isto ocorre de modo acidental. O fogo tende ao calor, que é sua perfeição. Se ele acaba destruindo a água, isto é algo acidental à tendência natural do calor. O lobo, ao caçar o cordeiro, tende para sua perfeição que é a conservação da própria vida e não para a morte do cordeiro. Isto também é algo acidental. A vontade humana, por sua vez, ao fazer uma escolha, pretende em última instância sempre um bem. Se disto surge um mal, isto se dá não porque ela tendesse em si mesma para o mal, mas porque tal mal é de algum modo necessário ao bem visado, como quando alguém escolhe uma dor corporal necessária para a saúde corporal44.
Assim também, não há como uma causa eficiente ser por si mesma causa do mal enquanto tal. Uma causa eficiente sempre causa por si mesma um ente positivo e se disto surge um mal, isto lhe é acidental. Isto pode ocorrer de três modos: primeiro, uma causa eficiente comunica uma forma e ao fazer isto destrói outra, como o fogo queimando a madeira; o mal, que é a destruição da madeira, é algo acidental ao movimento do fogo, que em si tende para algo positivo, que é um novo fogo ou a permanência dele. Segundo, uma causa eficiente comunica uma forma de modo imperfeito, como a cadela que gera um filhote cego; aqui também não foi a causa eficiente enquanto tal que fez surgir esta imperfeição, mas sim alguma deficiência nela; a causa eficiente enquanto tal só causa algo positivo; a imperfeição foi, portanto, causada por algo que lhe é acidental. Terceiro, a causa eficiente perde sua capacidade eficiente ou porque surge uma outra causa que a impede, como o fogo que não comunica seu calor pela presença de um isolante térmico, ou porque a vontade livre deixa de produzir seu ato. Mas tanto o impedimento quanto a omissão da vontade são acidentais a estas causas eficientes, que por si mesmas sempre tendem a causar algum um bem positivo.45
Mesmo a causa eficiente última, isto é, Deus, só causa o bem. Sendo Ele a fonte de toda entidade dos entes, ele é a fonte de toda perfeição, de toda conveniência, em suma de todo bem e sem Ele não haveria nenhum bem. O mal derivado da limitação dos entes criados não tem Deus como causa, pois Deus causa o que há de positivo nos entes e em suas operações e não pode ser causa de uma ausência. A vontade, por ex., quando age buscando um bem, tem em última instância Deus como causa, pois esta ação é um ente real, cujo ser é derivado em última instância de Deus; mas quando ela deixa de buscar um bem (o chamado mal de culpa), esta omissão não tem Deus como causa, pois esta omissão, enquanto omissão, não é um ente real, mas uma ausência da ação devida. Por outro lado, o mal que surge quando um ente criado destrói outro tem ‘sob certo aspecto’ Deus como causa última, pois foi Deus quem criou este ente com o poder de destruir outro, mas falando absolutamente isto não é um mal, pois Deus desta maneira está criando um bem maior que é o bem do universo como um todo, o qual não seria tão bom sem tal variedade e contrariedade entre os entes. Do mesmo modo, quando algo como o sofrimento em uma cidade (o chamado mal de pena) é diretamente criado por Deus, também isto é ordenado para algum bem maior (a justiça que surge da punição do pecador ou a prevenção de pecados maiores, etc.). Em suma, Deus só causa o bem. Se ele parece ser causa do mal, isto ocorre porque a mente humana não considera o bem no universo como um todo e se atém aos males presentes nas partes46.
Em suma, o mal enquanto privação, a ausência de uma perfeição devida, é um ente de razão, uma projeção da mente humana, que concebe como ‘ente’ aquilo que de fato não é real. Entretanto o termo concreto ‘mau’ pode indicar não uma pura privação, mas um ente com sua perfeição e concomitantemente a inconveniência dele para outro ente. Esta dupla significação também é obra da mente humana. O mal visto em Deus é, portanto, na coisa algo absurdo, pois Nele não há privação nem ausência e Dele decorre todo ser, toda perfeição e todo bem de todos entes existentes. Mesmo assim a mente humana é capaz de concebê-Lo como ‘mau’, se O concebe como causa última de coisas que são inconvenientes outras47.
VII
Concluindo: ‘bem’ é um termo que significa pura e simplesmente a perfeição e a conveniência de um ente com outro; ‘mal’, por sua vez, significa pura e simplesmente a ausência de uma perfeição devida. Um ente qualquer, mesmo sendo em si mesmo perfeito, pode ser considerado ‘mau’, quando ele é considerado como inconveniente para outro, isto é, quando se concebe nele a ausência de uma conveniência com outro. Mas mesmo neste caso o ente não é ‘absolutamente’ mau’; ele é mau ‘sob certo aspecto’. O bem e o mal morais, aqueles que supõem racionalidade e liberdade, são só um caso do bem e o mal em geral. Evidentemente trata-se de um caso que nos interessa muito, pois são o bem e o mal do ser humano enquanto tal. Eles, entretanto, não teriam significado, se não tivessem nenhuma referência à perfeição e à conveniência dos entes em geral.
A importância desta concepção metafísica de Suarez pode ser percebida quando voltamos nossa atenção para sua doutrina sobre a lei natural. No ‘De Legibus’ ele discute duas doutrinas opostas sobre a moral antes de propor a sua. Uma seria a de Gregório de Rimini (1300-1358), segundo a qual a lei moral não precisa de um ato legislativo de Deus. As ações humanas são moralmente boas ou más em si mesmas. Mesmo que Deus não as ordene, mesmo que Ele não as proíba, elas continuariam a ser boas ou más. Até mesmo se Deus não existisse, elas seriam boas ou más em si mesmas48. A outra seria de Guilherme de Occam (ca. 1280-1349), segundo a qual as ações humanas não são moralmente boas ou más em si mesmas. Somente o livre decreto divino, ordenando ou proibindo, as torna moralmente boas ou más. Se Deus nos ordenasse odiá-lo, até isto seria moralmente bom49. Suarez, como de costume, tenta mediar as duas posições. A lei natural, como toda lei, precisa da sanção de um legislador com autoridade para se tornar obrigatória. Portanto, como disse Occam, ela precisa do decreto divino para se tornar obrigatória. Mas, e este é o ponto, Deus só ordena o que é naturalmente bom e só proíbe o que é naturalmente mau50. Logo, como disse Gregório de Rimini, há um bem intrínseco a certas ações humanas e um mal intrínseco a outras, que sob certo aspecto independem de um decreto divino. Mas o que seria este bem intrínseco senão aquele bem transcendental acima exposto e o que seria um mal extrínseco senão a privação deste bem?
Suarez fornece, portanto, um fundamento metafísico para uma doutrina da lei natural. Com efeito, se considerarmos que a doutrina da lei natural pode ser identificada através de algumas teses fundamentais - há uma lei natural dada por Deus; ela é válida para todos os seres humanos; ela é naturalmente cognoscível por todos os seres humanos; a correção de uma ação humana é derivada do bem natural51. O problema em relação a ela está em justificar tais teses, tendo em vista o fato de que os seres humanos são diferentes uns dos outros em seus costumes, gostos e desejos. Ora, podemos encontrar no mestre de Coimbra uma justificativa bastante plausível para esta doutrina. Ele desenvolve a grande linha traçada por Aristóteles, segundo a qual o bem é a perfeição de um ente segundo sua natureza específica. A doutrina da lei natural, retomada e desenvolvida, entre outros, por Hugo Grotius (1583-1645), por Samuel Puffendorf (1632-1694), e Tomás Hobbes (1588-1679) vai se distanciando dos parâmetros aristotélicos e de uma fundamentação metafísica. Hobbes defende uma lei natural não baseada na perfeição, mas no desejo, num desejo que é natural a todos os seres humanos, a saber, a autopreservação. Deste desejo poderiam ser deduzidas regras para a ação válidas, para todos os seres humanos, as quais podem ser facilmente reconhecidas pela razão natural, na medida em que não requerem nenhuma explicação metafísica prolixa para serem compreendidas. Este tipo de justificação da lei natural, entretanto, mesmo que seja mais facilmente compreendido, acaba conduzindo a uma visão muito reduzida das possibilidades do ser humano. Talvez por isso autores contemporâneos como A.C. MacIntyre busquem inspiração em Tomás de Aquino, ou seja, na grande linha aristotélica52. Neste sentido, podemos dizer que não é vão o esforço despendido na compreensão de uma doutrina metafísica sobre o bem e o mal, como a apresentada acima, pois nela é possível encontrar uma justificação racional da lei natural, que leva em conta as possibilidades do ser humano de um modo mais amplo do que outras doutrinas.