A organização do ensino (aqui nos ateremos ao ensino primário) e sua expansão foram acompanhadas por um conjunto de dispositivos capazes de lhes dar forma;3 revelam-se, entre outros elementos (com destaque para a formação de professores), através de sua base material. Trata-se, neste sentido e em linhas gerais, de prescrições e orientações para a organização do espaço físico, de recomendações sobre materiais para o ensino e da paulatina organização de um aparato burocrático, ou, como prefere Pimentel Filho (1932), de uma pedagogia administrativa, responsável por formar os professores para as lides e produção da escrituração escolar.
No Manual Pedagógico “Lições de Pedagogia Geral e de História da Educação”, o autor citado descreve a pedagogia administrativa como a que se ocupa “da organização do ensino num dado país, das leis e regulamentos da instrução” (PIMENTEL FILHO, 1932, p. 93). Anos antes, José Maria da Graça Affreixo e Henrique Freire já indicavam algo similar, descrevendo o que consideravam necessário para a adequada “escripturação das escolas”. Alertavam que “o professor cuidadoso deverá ter sempre em dia a sua escripturação. Forma Ella uma parte importante da sua profissão, pois alli se hão de colher dados estatísticos por onde se avalie o estado de adiantamento litterario de qualquer nação” (AFFREIXO; FREIRE, 1870, p. 17). Entendendo os manuais pedagógicos ou manuais do ensino como importantes difusores de ideias pedagógicas, localizamos nestes argumentos e na presença de orientações desta ordem um importante núcleo de atuação do professorado e de organização de uma memória material da escola e da vida escolar, a prática escriturística, que, nesta reflexão, se ancora em Michel de Certeau (1994)4 e na perspectiva apontada por Diana Vidal:
[...] possui como alvo uma eficácia social. Transforma a página em branco em um lugar de produção para o sujeito, cujas marcas podem subsistir ao tempo. Constrói um texto, que articula simbolicamente práticas heterogêneas de uma sociedade, exibindo-se como linearidade, sistema e homogeneidade. E permite acumular o passado, fabricando o presente (VIDAL, 2008, p. 47).
É em peças de escrituração escolar que vamos nos deter para refletir sobre a construção e o registro de medidas do aluno e para um desenho ou perfil do aluno ideal (o que atende aos parâmetros estabelecidos como “unidades de medida”), expressos no registro de seu aproveitamento escolar. Para fazê-lo, utilizamos parte do acervo de um grupo escolar catarinense, escolhido pela riqueza da documentação e pela exemplaridade que este tipo de escola ocupa na construção do projeto de escolarização da infância, bem como pela possibilidade de acesso5. Se, por um lado, a literatura da área já acumula informações que dão conta da insuficiência deste tipo de escola no atendimento à infância6, não podemos, por outro, desconsiderar sua força modelar (retórica e prática) na organização do projeto de escolarização da infância brasileira7.
Quando prestamos atenção ao cotidiano das escolas, localizamos um conjunto de documentos administrativos que fazem parte de seu dia a dia, como: portarias, livros de ponto, registros de frequência e notas, quadro de funcionários, relatórios, atas de reuniões, etc. Interessadas no valor comprobatório dos registros da vida escolar e por força de lei, as escolas frequentemente mantêm esses diferentes documentos resguardados nas secretarias. Com o tempo, muitos “encontram na lixeira seu destino”, mas, “por uma espécie de seleção natural, uns e outros sobrevivem, testemunhando matizes do trabalho na escola” (VIDAL, 2005, p. 22). Alguns exemplares que “sobreviveram” ao tempo e ao processo de descarte serão mobilizados ao longo deste artigo. Com ele buscamos, através de múltiplas leituras, indicativos sobre modos de mensurar e registar o aproveitamento escolar do alunado.
Este investimento foi motivado por se entender que estas fontes são portadoras de um conjunto de informações que permitem analisar e compreender diferentes aspectos da cultura escolar, especialmente os que apontam para “[...] prácticas y conductas, modos de vida, hábitos y ritos - la historia cotidiana del hacer escolar8 (VIÑAO FRAGO, 1995, p. 68), constituídos a partir de “[...] un conjunto de ideas, princípios, critérios, normas y prácticas sedimentadas a lo largo del tiempo”9 (VIÑAO FRAGO, 1995, p. 100).
A análise documental evidenciou alguns aspectos que passaram a servir de baliza à reflexão aqui registrada: ao longo do tempo, a escola adota diferentes formas de registro para atestar o resultado do aproveitamento dos alunos; através da materialidade dos suportes de registro, podem-se localizar modificações no tocante à mensuração da vida escolar. A estrutura dos instrumentos de registro indica práticas de avaliação que vão recebendo influências de um discurso pedagógico em circulação.
Para estruturar este texto, entre um conjunto de possibilidades, optamos por separar os documentos que nos servem como fontes em dois grupos: registros que falam de exames (de 1934 a 1963) e registros que tratam de rendimento (de 1964 a 1971). Este agrupamento se apóia em uma das evidências apontadas pelas fontes: até os anos 60, a linguagem escolar registra o resultado dos exames; a partir de então, aparecem os registros da avaliação do rendimento escolar, um indício importante que denota alterações no discurso pedagógico e nas formas de “medida” do desempenho escolar.
Passamos agora a apresentar o conjunto documental mobilizado, bem como as análises feitas a partir do contato com a empiria. Nosso intuito é construir um caminho que ajude a visualizar formas de registro de medida escolar acionadas em diferentes décadas do século XX e que evidenciam discursos e práticas de avaliação.
1. O que dizem os registros de exames...
A realização de exames para verificação do conhecimento dos alunos sobre determinados conteúdos já era uma prática utilizada em espaços de escolarização antes mesmo da criação dos primeiros grupos escolares no Brasil, no final do século XIX. No entanto, as diversas reformas da instrução pública que legislaram sobre a implantação desse modelo de escola em diferentes estados do País, ao longo da Primeira República, instituíram o exame, nos dispositivos legais, como prática sistemática e contínua. Em Santa Catarina não foi diferente. A reforma do ensino público, autorizada em 1910 e levada a efeito em 1911 durante o governo do coronel Vidal José de Oliveira Ramos, também contou com dispositivos de normatização10 dos exames. A partir daí, eles integram cada vez mais intensamente a vida escolar, instalando-se uma lógica de aprovação anual daqueles que obtinham boas notas quando examinados e de reprovação daqueles que não alcançavam a nota mínima para fins de promoção. Note-se que este formato reorganiza um modelo escolar anterior, no qual era possível o aluno ser aprovado numa disciplina e seguir adiante, apesar de reprovado em outra, que deveria repetir. Esta alteração, um dos elementos característicos da escola graduada, tem sido apontada como um dos aspectos da cultura escolar desta modalidade de ensino. Além de cumprir com uma série de exigências para realizar os exames finais, as escolas, normalmente através dos diretores, também tinham a incumbência de registrar tais informações em livros próprios. Considerando o acervo consultado, localizamos dois formatos diferentes de registro de exames: as atas de promoção (de 1934 a 1940) e os quadros gerais de resultados (de 1941 a 1963). Apesar de ambos terem como principal função a inscrição das notas obtidas pelos alunos nos exames finais, as informações neles contidas e a estrutura que apresentam se diferenciam; entendemos estas modificações como indícios de alterações no “cenário educacional” e repercussão de debates emergentes. Atemo-nos, a seguir, à identificação de algumas destas alterações.
1.1 Livro de atas de promoções (1934 a 1940)
O manuseio do livro de atas de promoções, com registros que vão de 1934 a 1940, nos permitiu identificar alguns traços da cultura escolar do G. E. Lauro Müller11, seja pelo cumprimento das prescrições, seja pelo desejo de se autorregistrar, construindo uma memória sobre seus próprios modos de fazer. Logo na primeira página, encontramos o termo de abertura assinado pelo diretor da instituição. Isto ocorria em cumprimento à norma estabelecida no Regimento Interno dos Grupos Escolares de 1914: todos os livros de escrituração deveriam conter termos de abertura e encerramento assinados pelo diretor. Estes diretores assumiam um papel administrativo fundamental e a eles era atribuído, em boa parte, o fracasso ou o sucesso das atividades desenvolvidas nas instituições pelas quais eram responsáveis.
O sucesso era a senha para a ascensão na emergente burocracia estatal. Mais do que escrever os termos de abertura e encerramento dos livros de escrituração (neste caso, do livro de atas de promoções), os diretores tinham como tarefa manter os livros em ordem, devidamente escriturados, para facilitar o controle do Estado sobre o trabalho desenvolvido. O correto preenchimento legitimava sua competência em administrar os estabelecimentos que dirigiam, assim como a falta de preenchimento adequado era vista como um atestado de deficiência administrativa, podendo gerar admoestações por parte do Estado pelo não-cumprimento dos deveres prescritos.
Fonte: Livro de Atas de Promoções do Grupo Escolar Lauro Müller (1934-1940). Acervo: E. E. B. Lauro Müller.
Fonte: Livro de Atas de Promoções do Grupo Escolar Lauro Müller (1934-1940). Acervo: E. E. B. Lauro Müller.
Para fiscalizar se os livros estavam sendo devidamente escriturados, entravam em cena os inspetores escolares. Estes agentes públicos tinham como função visitar as escolas periodicamente para inspecionar se as normas estavam sendo cumpridas, entre elas, o preenchimento correto dos livros. Além disso, no que diz respeito às atas de exames ou de promoções, esses “profissionais” também deveriam verificar, para fins de estatística, a porcentagem de alunos aprovados, reprovados e promovidos.12 A verificação destes documentos pode ser atestada, no caso do livro de atas de promoções do G. E. Lauro Müller, pela localização, em todas as páginas, de marcas de carimbo e/ou a rubrica do inspetor, neste caso, Adriano Mossimann.13
O livro ainda nos permite identificar a composição das classes. O curso primário nos grupos escolares era organizado em torno de quatro séries correspondentes ao ano civil. Para ser promovida de uma série para outra, a criança era submetida a exame final; se aprovada, ganhava o direito de matricular-se na série seguinte; se reprovada, repetia a mesma série no ano subsequente, até ser aprovada. Resulta deste tipo de condução da prática de aferição do conhecimento que vários alunos permaneciam na instituição por período superior a quatro anos para concluir a escola primária, embora muitos14 não chegassem a concluí-la. A movimentação da população escolar através das médias alcançadas é um trabalho a ser feito e que pode ajudar a compreender cenários de fracasso e abandono da escola.
Além da divisão dos alunos em classes por série, de acordo com a idade e grau de adiantamento, os estudantes eram separados em duas seções: masculina e feminina. Encontramos, por isso, até o final da década de 1930, as atas de exames do G. E. Lauro Müller separadas por série e seção, como é possível perceber na imagem apresentada na figuras 1 e 2, correspondente à ata de exames do 4º ano masculino de 1934. Em 1937, a instituição ainda conta com uma sala para cada série e seção, mas, pela primeira vez, localizamos a presença de duas turmas mistas, compostas por meninos e meninas.
Falemos agora das características dos exames evidenciadas no livro de atas, iniciando pela análise da formação de bancas examinadoras. Conforme Regimento de 1914, para as provas mensais ou exames de verificação realizados ao longo do ano letivo, os alunos poderiam ser examinados por apenas um ou dois professores e/ou pelo diretor, mas, para os exames finais, a recomendação do regimento era que o diretor organizasse diversas bancas ou uma só, desde que se dispusesse a “servir” a instituição durante os dias destinados aos exames. Para isso, deveria convidar com antecedência as pessoas que iriam compor a comissão examinadora. Fariam parte das bancas o diretor, o professor da classe examinada, o professor que seria responsável por aqueles alunos no ano seguinte e mais dois examinadores “extranhos ao estabelecimento”, que representassem “pessoas idôneas da comunidade”15.
A média geral, igual ou superior à nota 3, conferiria ao aluno a promoção para a série seguinte. E, para efeito de classificação por “merecimento”, no último ano do curso, o diretor deveria lavrar no livro de ata das promoções os resultados da média geral de acordo com os seguintes graus: média 3 - aprovação simples; média 4 - aprovação plena; média 5 - aprovação com distinção. A presença de autoridades e demais convidados para compor as bancas, ainda que não houvessem participado ativamente do trabalho pedagógico realizado durante o ano, serviria como uma espécie de atestado de veracidade dos exames, evidenciando o peso desse componente avaliativo na promoção dos alunos. Além disso, entendemos que a estratégia visava a dar visibilidade ao trabalho escolar, embora, com a obrigatoriedade já instituída por lei, ainda lutasse para se firmar socialmente, particularmente junto às famílias.
A prescrição de formação de bancas examinadoras se prolongou pela década de 1930, mas poucas comissões eram compostas por cinco pessoas, como prescrito no Regimento de 1914. Se nas bancas formadas nos primeiros anos se registram padres, doutores e inspetores como “pessoas idôneas” e “extranhas ao estabelecimento”, nas bancas das décadas de 30 e 40 se encontra o registro da presença de outros profissionais: um engenheiro agrônomo, um bacharel e o secretário da Junta Comercial do Estado (em geral, como examinadores da seção masculina). Na grande maioria dos casos, no entanto, os registros apontam apenas para a presença de docentes do próprio estabelecimento. Os graus de aprovação também se modificam. Se até 1935 há registros dos graus associados aos números 3, 4 e 5 (seguindo indicação do regimento de 1914), a partir de 1936 eles já aparecem associados aos números 6, 7, 8, 9 e 10. Os alunos que não atingissem esses graus eram considerados reprovados.
As atas ainda apresentam a data de realização dos exames - que geralmente aconteciam nos últimos dias do mês de novembro, marcando o fim do ano letivo - e o movimento da classe, composto por:
matrícula máxima: maior número de alunos matriculados na classe durante o ano (geralmente entre 45 e 60 alunos);
matrícula final: número de alunos matriculados no final do ano (sempre menor que a matrícula máxima, já que algumas crianças abandonavam o curso, mudavam de escola ou eram eliminadas antes mesmo dos exames finais);
eliminados: número de estudantes eliminados ao longo do ano por não atingirem a nota necessária nos exames mensais ou por motivos não identificados nos documentos;
entraram em exame: quantidade de crianças presentes no exame final;
aprovados: número de alunos aprovados no exame final;
reprovados: número de alunos reprovados no exame final;
percentual de aprovação: relação entre quantidade de alunos que haviam entrado em exame e os que haviam sido aprovados nele;
percentual de reprovação: relação entre matrícula final e reprovação no exame;
percentual de promoção: relação entre matrícula final e aprovação no exame.
Após a apresentação do movimento da classe, as professoras registravam na ata o nome dos aprovados no exame final, separados pelo grau de aprovação (para as turmas de 4º ano), o nome dos que haviam deixado de fazer o exame por não terem alcançado média nas sabatinas de maio e agosto e, por fim, a data e assinatura da comissão examinadora. Um dado importante é que nessas atas não são apresentadas as disciplinas nas quais os alunos eram examinados; apenas a média geral dos exames.
Em 1939, o doutor Nereu Ramos, que ocupava o cargo de interventor federal no estado de Santa Catarina, assina um regulamento para os grupos escolares (Decreto n. 174), destinando um dos capítulos à apresentação dos critérios de promoção com base em provas mensais e exames finais. De acordo com esse regulamento, o ano letivo deveria iniciar-se em 1º de fevereiro e encerrar-se em 30 de novembro, sendo os últimos dias do mês de novembro reservados aos exames finais, o que já era feito no G. E. Lauro Müller. Ainda conforme esse documento, os alunos das classes de 2º, 3º e 4º ano precisavam ser submetidos a exames de linguagem, aritmética, geografia, história, noções comuns e leitura, enquanto os de 1º ano deveriam ser submetidos apenas a exames de aritmética, linguagem escrita e leitura. A apropriação desta prescrição já aparece evidenciada no segundo formato de registro que nos propomos analisar: o quadro geral dos resultados dos exames.
1.2 Quadro geral do resultado dos exames (1941 a 1963)
Os quadros de resultados dos exames assumem um formato bastante diferenciado do observado nas atas de promoções. Enquanto estas eram registradas num livro com folhas pautadas que permitiam uma escrita mais “livre”, os quadros especificam espaços para o registro das informações, indiciando um aprimoramento da racionalidade estatística. Neste período, esses materiais eram produzidos pela Imprensa Oficial do Estado e enviados às escolas, possivelmente com o objetivo de padronizar as informações referentes aos exames, já que, na década de 1940, o número de instituições espalhadas pelo estado havia crescido consideravelmente, exigindo estratégias mais eficientes de controle e uniformização de procedimentos. Contudo, embora tendo seus espaços claramente esquadrinhados, observamos as margens invadidas por registros descritivos, conforme figura 3, na qual se observa que a quantidade de informações é ampliada e cada quadro passa a ocupar duas páginas do livro.
Observe-se que as primeiras informações do quadro se referem à identificação da instituição, como o nome da escola e do município-sede. Na sequência, há espaço para preenchimento da data dos exames, realizados nos últimos dias do mês de novembro. Em seguida, aparecem os campos para preenchimento de dados sobre a professora da classe examinada: nome, data em que começou a trabalhar na instituição, data em que iniciou o trabalho naquele ano, dias em que esteve de licença durante o ano e nome da professora substituta durante o período de licença.
Fonte: Livro com quadros dos exames do 4º ano do Grupo Escolar Lauro Müller (1941-1945). Acervo: E.E. B. Lauro Müller.
Estas informações não faziam parte do conteúdo das atas de promoção dos anos anteriores, nas quais constavam apenas o nome e a assinatura da professora regente. Isto indica que tais quadros passavam a assumir uma função administrativa de controle dos docentes e não apenas de registro do resultado dos alunos nos exames. Associar o nome da professora aos resultados da classe também indica, em certa medida, uma fiscalização do Estado sobre o trabalho docente, pois o “sucesso” ou o “fracasso” da turma nos exames finais poderia ser atribuído à competência da professora.16 Além disso, este formato facilitaria a composição das estatísticas que teriam a possibilidade de computar os dados registrados em campos comuns por diferentes unidades escolares.
O próximo conjunto de informações se refere aos alunos e permite perceber, na década de 40 do século XX, um período de significativas mudanças na organização dos estudantes no G. E. Lauro Müller. A primeira delas é que não encontramos mais referências à separação das classes por sexo. Agora, meninas e meninos passam a estudar juntos, em sistema de coeducação, aliás, uma das indicações registradas no Manifesto dos Pioneiros da Escola Nova, publicado em 193217.
Outra mudança consiste na ampliação do número de classes por série. Se até o final da década de 1930 havia uma classe para cada série, no início do ano letivo de 1940 as matrículas aparecem distribuídas da seguinte forma: três classes de 1º ano, quatro classes de 2º ano, quatro classes de 3º ano e duas classes de 4º ano, sendo as classes de mesma série/ano diferenciadas pelas letras A, B, C ou D. Para ampliar a quantidade de salas, o prédio da escola precisou passar por reforma, aumentando o número de vagas. Se em 1937 eram 443 os alunos matriculados, em 1940, esse número sobe para 530.
Novas mudanças acompanham o ano de 1941. A matrícula de 453 alunos (um número reduzido, se comparado ao da matrícula do ano anterior) foi distribuída da seguinte forma: 3 classes de 1º ano, 3 classes de 2º ano, 4 classes de 3º ano e 3 classes de 4º ano, sendo as de mesma série diferenciadas pelas letras V, X, Z ou T e não mais pelas letras A, B, C e D, como em 1940. A transformação mais significativa é que, a partir de agora, os alunos passam a ser classificados em F (considerados fortes), M (os de conhecimento médio) e T (os chamados “tardos” ou fracos). Por isso, no quadro de resultados de exames, além de espaço para preenchimento do nome dos estudantes e número de ordem, encontra-se, pela primeira vez, um campo de classificação, evidenciando alterações embaladas por um debate educacional em ebulição no período.
A separação dos alunos em fortes, médios e fracos já vinha sendo indicada por educadores como Lourenço Filho18 desde a década de 1930, visando à organização do alunado em classes seletivas, sob o discurso de que a homogeneização dos grupos proporcionaria resultados mais eficientes. Em 1939, o regulamento para os grupos escolares catarinenses previa a classificação de todos os alunos em fortes, médios e fracos, devendo- se considerar fortes os que atingissem nas provas mensais nota de 75 a 100; médios, os que obtivessem de 50 a 70 e fracos, aqueles com nota inferior a 50. O documento não previa, no entanto, a formação de classes separadas em função da classificação, mas, no caso do G. E. Lauro Müller, a instituição se apropriou da recomendação do regulamento, classificando os alunos e separando-os em classes seletivas, conforme indicado por Lourenço Filho.
As classes de 1º, 2º e 3º ano passavam a ser classificadas em fortes, médias e tardas, enquanto as do 4º ano aparecem como “não selecionadas”, já que a classificação dos estudantes do último ano do curso primário se dava dentro de uma mesma turma, não se separando o alunado em classes próprias (médias, fortes e tardas).
Para organizar as classes seletivas, a direção da escola, juntamente com as professoras, realizava uma seleção prévia do alunado logo no início do ano letivo. No caso do 1º ano, nossa hipótese é de que a seleção era feita por meio da aplicação dos testes ABC de Lourenço Filho desde a década de 40, pois, apesar de se encontrar referência direta ao uso deles apenas em 195019 , a instituição era ressaltada pelos inspetores como modelar na utilização de modernas técnicas de ensino. Já nas outras séries, a classificação inicial era realizada com base na última classificação feita de cada aluno, por ocasião dos exames finais20. A seleção dos alunos por meio do uso de testes psicológicos, como os testes ABC, evidencia a presença de elementos da psicologia no discurso e na prática educacional e a defesa de uma base científica para a condução do trabalho escolar21. A prática de separar os alunos com base na classificação em fortes, médios e fracos teve como objetivo formar grupos o mais homogêneos possível, de acordo com a “capacidade intelectual” e/ou a “maturidade” dos escolares, com ênfase nas capacidades ou aptidões individuais como explicação para as diferenças de rendimento. A seleção no interior da escola era tamanha ainda na década de 1940 que, apesar do número de crianças matriculadas nas primeiras séries do curso, poucas chegavam até o final22. Ao longo dos anos seguintes, a situação se repetia: muitas turmas de 1º ano e poucas de 4º ano23.
Outra característica observada nos quadros gerais de exames, que os diferenciam das atas da década de 30, é que estes apresentam colunas para preenchimento de notas. Na coluna Provas Escritas, há espaço para notas correspondentes às disciplinas de linguagem e aritmética, seguida da média de notas dessas duas disciplinas, e geografia, história e noções comuns, também seguidas de média de nota dessas três disciplinas. Já na coluna linguagem comentada, há espaço para apenas uma nota. Por fim, a coluna para registro da média de promoção, obtida após a soma das duas médias de provas escritas, mais a nota de leitura comentada, divididas por três.
Além do espaço para preenchimento da classificação dos alunos, encontramos campo para registro da data de matrícula no curso, se era aluno da professora regente ou auxiliar, e espaço para preenchimento da data de possíveis eliminações (isto porque os alunos poderiam ser eliminados do curso antes mesmo de chegar ao exame final, aliás, esta é uma importante estratégia para a produção de resultados mais positivos no tocante ao número de aprovações).
Interessante perceber também que, segundo consta no Regulamento de 1939, o programa para os grupos escolares compreendia as matérias de leitura, aritmética, geografia, geometria, história do Brasil, instrução cívica, ciências físicas e naturais, trabalhos manuais, desenho, canto e ginástica. No entanto, conforme o mesmo regulamento (e como é possível perceber na Figura 3), nem todas as matérias eram objeto de avaliação nos exames finais. Este fato permite perceber uma diferença entre saberes a serem ensinados e saberes a serem avaliados para fins de promoção. Além disso, o peso conferido às disciplinas também apresentava variações, pois, segundo o Art. 44º do regulamento, “para obtenção da média geral das provas escritas às notas de linguagem, aritmética, geografia, história e noções comuns, dar-se-ão, respectivamente, os pesos 3, 3, 2, 2, e 1 e o produto será dividido por 10” (SANTA CATHARINA, 1939, p. 7).
O último espaço do quadro corresponde ao campo destinado às observações; era onde se registrava o parecer final sobre o aluno: aprovado ou reprovado (não mais separado por graus de aprovação). Caso o estudante tivesse sofrido uma eliminação antes mesmo de chegar ao final do ano letivo, este campo deveria ser preenchido com o parecer eliminado, sem registro das causas. O não-comparecimento na data dos exames também aparece registrado neste documento, assim como informações referentes à banca examinadora (quase sempre no verso dos quadros, conforme figura 3).
Ao se comparar os quadros de exames de 1941 a 1945 com os quadros de 1946 a 1963, encontra-se uma estrutura idêntica no que diz respeito à materialidade do registro, sofrendo apenas modificação na nomenclatura de duas disciplinas: noções comuns passa a se chamar conhecimentos gerais e linguagem comentada transforma-se em leitura comentada, de acordo com a figura 4.
Fonte: Quadro Geral de Exames do Grupo Escolar Lauro Müller (1946-1963). Acervo: E. E. B. Lauro Müller.
No caso do G. E. Lauro Müller, especialmente entre o final da década de 40 e primeiros anos da década de 60, não encontramos mais referências a “pessoas extranhas” compondo as bancas examinadoras, mas o exame final continua a ser feito por mais de uma professora do estabelecimento. Menções a bancas examinadoras nesse grupo podem ser encontradas nos documentos de registro de notas até 1963.
Pode-se dizer, portanto, que a prática de formação de bancas e de realização de exames como forma de aferição do aproveitamento escolar, instauradas desde os primeiros anos de funcionamento dos grupos escolares em Santa Catarina, constituíam componentes da cultura escolar durante pelo menos cinco décadas, não apenas no G. E. Lauro Müller, como em outros grupos escolares deste estado e quiçá do Brasil.
2. O que dizem os registros de rendimento...
Após 1964 não mais se encontram referências à palavra exame nos documentos de registro da instituição, nem tampouco informações sobre bancas examinadoras, indicando mudanças nas práticas avaliativas e educacionais. A noção de exame passa a ser substituída (ao menos nos registros) pela ideia de avaliação do rendimento, indicando que o que estava sendo avaliado era o quanto o aluno “rendeu” em termos de aprendizagem de determinados conteúdos. Tal alteração não é nada desprezível, na medida em que aponta para transformações (ainda que sutis) na prática de aferição do aprendizado.
Entre os anos de 1963 e 1971, são encontrados dois formatos diferentes de registro: o resultado de avaliação do rendimento e as fichas de rendimento escolar, documentos que passaremos a analisar a partir de agora.
2.1 Resultado da avaliação do rendimento escolar
A partir de 1964, a materialidade do documento de registro de notas muda significativamente, se comparada aos quadros gerais de resultado dos exames. O quadro geral passa a chamar-se resultado da avaliação do rendimento escolar, tendo sua estrutura modificada para atender às novas orientações. Mas a palavra avaliação, utilizada pela primeira vez no documento de registro, indica a permanência da atribuição de um determinado valor ao conhecimento dos estudantes, legitimando o binômio aprovação- reprovação. (Figura 5)
Este documento, produzido pela Secretaria de Estado da Educação e Cultura, já não apresenta mais espaço para preenchimento de dados sobre o histórico da professora no grupo, como nos quadros anteriores, o que possivelmente era registrado em outro tipo de documento. Também não se encontram mais espaço para classificação dos alunos em fortes, médios ou fracos ou registros de formação de bancas examinadoras. Ao que tudo indica, agora a própria professora avaliava seus alunos, sem depender do julgamento de outra docente ou mesmo do diretor do estabelecimento.
A dimensão do suporte de registro é ampliada para comportar as notas dadas nos meses de abril, maio, junho, setembro, outubro e dezembro, em cada disciplina. Estas também sofreram modificações, se comparadas às apresentadas nos quadros: linguagem é substituída por língua nacional (dividida entre gramática e redação e leitura e int. oral); aritmética recebe a nomenclatura de iniciação matemática; geografia, história e conhecimentos gerais dão lugar à cultura geral; sai de cena noções comuns substituída por atitudes, hábitos e práticas educativas (um “novo” formato de avaliação em tempos de ditadura militar).
Quase mensalmente, os alunos deveriam ser avaliados em cada uma dessas disciplinas. No final do ano, as notas obtidas eram somadas e divididas por 5 (referente à média anual de cada uma das cinco disciplinas avaliadas) e o resultado configurava a média geral. Sobre esta média, parece relevante atentar para o fato de que, assim como já acontecia nos quadros de exame, uma única nota que compreendia o resultado de todas as disciplinas é que conferia aos alunos a aprovação ou reprovação na série. Isso permite perceber que, apesar de os estudantes serem avaliados em cada disciplina, a distinção entre elas, para fins de aprovação ou reprovação, tinha pouco peso, pois a baixa média em uma (iniciação matemática, por exemplo), poderia ser compensada por uma mais alta em outra (como atitudes, hábitos e práticas educativas); aqui o rendimento poderia ser aferido por um desempenho mais global. No entanto, já é possível perceber a preocupação com os conhecimentos adquiridos pelos alunos nas diversas disciplinas, pois precisavam ser examinados periodicamente e dar respostas sobre o que haviam assimilado de cada uma delas.
No canto inferior esquerdo do verso do documento acima apresentado, observa-se um espaço intitulado Resumo das atividades do ano, para registro da data de encerramento das atividades, matrícula inicial, matrícula no ano e matrícula final, quantidade de alunos eliminados, quantidade e percentual de aprovação e número de alunos que não houvessem comparecido às atividades finais. Estes dados eram de grande importância para as estatísticas escolares, que objetivavam construir um panorama da qualidade da educação no País, tão apregoada no discurso político como fator indispensável ao desenvolvimento econômico. No canto inferior direito, um espaço reservado para registro do nome de alunos “arrolados para posterior execução de atividades” (não se encontram maiores informações sobre que atividades seriam estas). Por fim, data e assinatura da professora regente e da diretora. Este formato de registro da avaliação foi utilizado no G. E. Lauro Müller até 1970, quando sofreu novas modificações.
2.2 Ficha do Rendimento Escolar
Em virtude da Lei 5.692, de 11 de agosto de 1971, o G. E. Lauro Müller passa a se chamar Escola Básica Lauro Müller, atendendo a alunos da 1ª à 8ª série do 1º grau. Em função das mudanças que acompanhavam a nova lei, mais uma vez o registro de avaliação sofre consideráveis transformações. Ao escrever sobre a educação primária brasileira neste período, Rosa Fátima de Souza considerou:
A Lei n. 5.692/71 instituiu medidas visando flexibilizar as exigências do sistema de avaliação e, no limite, diminuir a seletividade do ensino em nome da democratização das oportunidades educacionais. Nesse sentido, introduziu a avaliação expressa em conceitos, a sistemática de recuperação e a aferição da frequência. Assim, alterando os padrões de estruturação do ensino, do currículo e da avaliação, pretendia-se instituir um novo modelo de educação da infância e da juventude no país (SOUZA, 2008, p. 274).
Esta “flexibilização”, destacada pela autora, aparece materializada no novo formato de registro do G. E. Lauro Müller: as fichas de rendimento escolar. A palavra avaliação é retirada do título do documento, já que agora a aprendizagem não deveria mais ser registrada em notas, como vinha acontecendo desde os primeiros anos de funcionamento do grupo. As tradicionais notas eram agora substituídas por pareceres descritivos. Não se atribuiria mais um valor, mas um juízo de valor ao aproveitamento escolar.
Para tanto, as dimensões do documento são ampliadas, já que os espaços, antes reservados para inscrição de um número, necessitavam ser alargados para comportar as impressões das professoras sobre o rendimento do alunado.
Outra mudança percebida é a divisão do ano letivo em quatro bimestres, marcando o período em que os registros deveriam ser feitos: se o documento anterior indicava que as notas eram atribuídas mensalmente, agora o rendimento passava a ser registrado a cada dois meses.
O quadro de disciplinas era agora separado em sete áreas de estudo: estudos sociais, matemática, ciências, língua nacional, educação artística, educação física e educação religiosa. Para cada área, uma ficha de rendimento escolar, ocupada frente e verso (totalizando sete fichas por turma), com dois espaços para o registro descritivo da aferição feita no final de cada bimestre: um referente ao “progresso alcançado” e outro, à “dificuldade encontrada”. (Figuras 6 e 7)
A última coluna da ficha era destinada ao preenchimento da “conclusão das avaliações”, o que se fazia ao final do ano letivo. Apesar de constar o parecer final das professoras, não se encontram nesses espaços referências à aprovação ou reprovação, sendo apresentadas apenas frases como “dominou o programa”, “não dominou o programa por apresentar dificuldades mentais”, “assimilou a matéria dada” ou palavras/conceitos como “fraco”, “ótimo”, “regular”, etc. Não é possível saber, com base nesse documento, se havia alunos retidos nesse período, já que não há mais como identificar a informação de aprovados e reprovados, o que demonstra a necessidade do cruzamento de fontes para a realização de análises mais aprofundadas. Diversas fichas de rendimento foram encontradas na secretaria da escola; contudo, optou-se aqui apenas pelo levantamento de dados em fontes que registrassem a vida escolar dos alunos nesta instituição até 1971. Esta escolha foi importante para viabilizar o trabalho, já que em 1971 se aprova uma importante reforma nacional do ensino, a qual vai configurar a vida escolar com novos e diferentes contornos.
Considerações finais
Neste artigo, a preocupação foi evidenciar como os elementos que compõem a materialidade de documentos escolares podem se constituir em importantes fontes de análise da cultura escolar; ou seja, a materialidade revela elementos valiosos da cultura escolar tanto no formato de seus suportes quanto no das informações registradas.
Organizar o tempo de modo a destinar momentos para os exames, institucionalizar atividades de verificação de desempenho, definir os conteúdos “mais importantes” a ser avaliados, selecionar os alunos por grau de adiantamento são exemplos de aspectos diretamente ligados à prática de avaliação que vão sendo imbricados no cotidiano escolar e registrados em documentos próprios.
O contato com este acervo evidenciou o caráter regulador da escrituração escolar, já que a construção destes registros não constituía produção espontânea da escola, mas adequação às normatizações do Estado. Além dos documentos de cunho administrativo, que evidenciavam a necessidade de escrituração regular e periódica (relatórios, portarias, livros de inspeção, etc.), a aproximação com o acervo possibilitou localizar instrumentos de registro do aproveitamento dos estudantes, como livro de atas de promoções, quadro geral de exames, resultado da avaliação do rendimento escolar e fichas de rendimento.
O volume de documentos dessa natureza ainda preservados na escola deixa evidente uma das marcas da cultura escolar da escola primária: a necessidade de registro sistemático do aproveitamento dos alunos para fins de promoção ou retenção nas séries cursadas e o desenvolvimento de instrumentos de medida. Além disso, tais documentos funcionavam como uma espécie de “atestado” do trabalho desenvolvido ao longo do ano letivo e serviam como mecanismo de controle do Estado sobre a escola. A preservação de uma longa série de registros desta natureza tornou possível o acompanhamento e a identificação de um conjunto de alterações que atestam a forma de ver e registrar o desempenho dos alunos, o que, por exclusão, vai dando pistas acerca da “composição do aluno ideal”. Além disso, ao colocar em evidência esses registros como fonte de análise da cultura escolar, o objetivo era contribuir na defesa da importância de políticas de preservação de documentos escolares e da criação/manutenção de espaços de guarda desses materiais para efeito de preservação da memória das instituições e da possibilidade de novas leituras acerca do passado (e do presente) da história da escola.