No dia 8 de setembro de 1926, uma quarta-feira, a Diretoria Geral de Instrução Pública do Rio de Janeiro realizou uma homenagem a João Amos Comenius na então Escola de Aplicação, atual Escola Gonçalves Dias, situada no Campo de São Cristovão. Além das autoridades presentes, professores e professoras, o evento contou com a ativa e numerosa participação dos alunos do jardim de infância, do ensino primário e das alunas da Escola Normal que lá realizavam seus estágios. Juntando os nacionalismos do sete-de-setembro brasileiro e da ainda fresca independência da Tchecoslováquia, liberta com o desmoronamento do Império Austro-húngaro ao final da Primeira Guerra Mundial, as solenidades incluíram extensa programação cívica, com direito a trajes típicos, recitativos, alegorias e canto dos hinos nacionais. Comenius, além da inauguração do seu retrato, foi apresentado por uma professora da Escola através de uma “Lição sobre Comenius”, além de ter sido amplamente contemplado nos discursos proferidos.
Os levantamentos até aqui realizados sobre a presença de Comenius na educação brasileira encontraram pouca referência direta ao educador nos anos de 1920. Assim, tanto Kulesza (1992, p. 64), como Araújo (1996, p. 120), relacionam apenas o ensaio de Fernando de Azevedo que acompanha sua biografia (publicada em 1924 por um compatriota para exaltar o papel do educador na constituição da nacionalidade tcheca), enquanto o artigo posterior de Streck (1999) analisando a recepção do educador morávio no Brasil nada acrescenta sobre esse período. Tradicionalmente, o nome de Comenius vem sendo associado ao chamado ensino ou método intuitivo, fato reforçado desde a menção explícita ao seu nome no prefácio do livro de Allison Norman Calkins, Lições de Coisas, traduzido por Rui Barbosa e publicado no Brasil em 1886. Já no seu famoso Parecer do Ensino Primário, o deputado baiano havia reconhecido Comenius “como o primitivo criador do método intuitivo”, fazendo pela primeira vez na educação brasileira a transcrição de dois longos trechos pretensamente atribuídos ao grande educador morávio (BARBOSA, 1946, p. 202-3).
A divulgação entre nós do nome de Comenius como teórico da educação foi consequência do seu “renascimento” na segunda metade do século XIX na Europa que, por sua vez, está inextricavelmente associado à demanda por uma escolarização universal perseguida então pelos Estados nacionais. Esse processo de reconhecimento de seu trabalho teve um impulso extraordinário por ocasião das rememorações do tricentenário de sua morte em 1870 (algumas vezes 1871, dada a imprecisão que se tinha então sobre sua biografia), quando a Didactica Magna começou a ser vertida para diversas línguas nacionais, ao mesmo tempo em que se produziam resenhas e compilações sobre sua obra. Foi de uma dessas recensões que Rui Barbosa, sem citar a fonte, retirou suas citações de Comenius pensando estar reproduzindo o original2. Esse intenso movimento intelectual em torno do seu nome iria se repetir em 1892, ano em que se comemoraram os trezentos anos de seu nascimento, instaurando daí em diante uma prática de celebrações jubilares que continua até hoje e cuja oportunidade e dimensão estão intimamente associadas ao momento histórico em que ocorrem. Assim, no ano de 1920, 250 anos depois de sua morte, as comemorações comenianas na Tchecoslováquia se confundiram com o regozijo pelo fim de 300 anos de dominação dos Habsburgos iniciada após derrota dos tchecos na batalha da Montanha Branca em 1620.
O desconhecimento de sua obra no Brasil até meados da década de 1930 talvez resida no fato da menção a Comenius ter chegado até nós mormente como repercussão desses momentos festivos, sem que houvesse uma concomitante circulação de suas obras. Esse conhecimento “por ouvir falar” é bem ilustrado pelo caso do deputado republicano paulista Rangel Pestana que, em 1879, costumava usar como pseudônimo o nome de Comenius para assinar suas matérias jornalísticas que tinham como tema assuntos educacionais (apudPESTANA, 2011, p. 38). Que esse estado de coisas se manteve até a década de 1920 é corroborado pelo artigo citado de Azevedo (1924, p. 93-4) no qual, depois de afirmar ser raro quem conheça, “de primeira mão e de raiz”, o pensamento “do grande Comenius, um dos luminares da educação moderna”, ele caracteriza assim a situação: “O que geralmente, entre nós, se sabe desse escritor de visão profética, que empreendeu a reforma do ensino em seu tempo, é um pecúlio minguado de citações colhidas por alto em suas obras e, à força de passarem de mão em mão, desfiguradas no caminho”3.
É nesse contexto que acontece a homenagem a Comenius no Rio de Janeiro, parecendo ser apenas mais uma louvação jubilar, cheia de discursos enaltecedores, sem maior aprofundamento de sua obra. No entanto, como veremos, graças a um número especial da revista A Escola Normal, cuja capa inserimos na Figura 1, neste caso foi-se um pouco além, principalmente por se publicar também nessa revista a tradução de um autêntico texto comeniano4. Esse exemplar do periódico, que traz na portada uma reprodução do tradicional retrato de Comenius5 que supomos ser idêntico àquele afixado na Escola durante a cerimônia, é uma espécie de resenha da homenagem, documentando os textos dos pronunciamentos, fotos, letras e músicas das peças interpretadas e mais escritas alusivas, dentre as quais a versão de um capítulo de A escola da infância, obra cuja tradução integral para o português só apareceria 85 anos depois.
Um magazine escolar
A revista mensal A Escola Normal, Revista de Educação, era um “Órgão dos Corpos docente e discente da Escola Normal do Distrito Federal e suas congêneres nos Estados” publicado no Rio de Janeiro por Mendonça, Machado & Cia6. A procura de integração das diversas Escolas Normais dos Estados era uma preocupação de Antonio Carneiro Leão, então diretor de Instrução Pública do Distrito Federal, que defendia uma centralização maior do ensino primário e normal pelo Estado brasileiro, se empenhando na época pela concretização de um Conselho Nacional de Educação com poderes efetivos de intervenção nos Estados (SILVA, 2006), o que nos faz supor que ele utilizava a revista como veículo de divulgação de suas propostas. Na contracapa estão relacionados os nomes dos representantes da revista junto às Escolas Normais dos estados de São Paulo (Capital, Braz, Pirassununga, Piracicaba, São Carlos), Rio de Janeiro, Espírito Santo, Bahia e Pernambuco, geralmente professores dessas instituições. A ausência de uma relação institucional entre a revista - ela não era oficial - e essas escolas certamente contribuiu para que ela não fosse incorporada às suas bibliotecas, o que ajudaria a explicar sua ausência nos respectivos acervos7.
O número dedicado a Comenius contém 64 páginas das quais 11, não numeradas (provavelmente porque utilizadas em outros números da revista), veiculam anúncios diversos ocupando toda a página. A numeração desse exemplar começa no número 545, denunciando a intenção de encadernar todos os números do ano de 1926 num volume único. As publicidades de página inteira divulgavam produtos supostamente de interesse das normalistas, elixires, produtos de beleza, livrarias, etc. Três desses anúncios chamam a atenção por revelarem certo caráter familiar e de compadrio do periódico: um curso que “prepara alunas para os exames da Escola Normal”, dirigido por Zenaide Guerreiro, Professora da Escola Normal e secretária da revista; a clínica de cirurgia e ortopedia infantil de Barboza Vianna, Professor Catedrático da Faculdade de Medicina e da Escola Normal e diretor da revista; um curso de declamação dirigido por Angela Vargas Barboza Vianna, esposa do diretor da revista8. Demonstrando o caráter de revista ilustrada do periódico, treze páginas desse número são preenchidas por fotografias. Seis delas referentes à Tchecoslováquia, a começar por uma estampa de página inteira do presidente Masaryk, seguidas de fotos de paisagens típicas do país, com seus castelos e jardins. As restantes retratam momentos da comemoração com destaque para a participação dos alunos que eram explicitamente nomeados nas legendas das fotos.
Os espaços vazios deixados pelos textos também eram aproveitados para divulgar anúncios, especialmente aqueles de interesse da própria revista e que nos ajudam a conhecer as pretensões dos editores como, por exemplo, “A revista ‘A Escola Normal’ é o verdadeiro ‘manual da normalista’” (p. 570) ou “O verdadeiro tesouro da mulher já foi descoberto: ‘A Escola Normal - Revista de Educação’” (p. 578). Demonstrando sua sintonia com o movimento de emancipação feminina então em curso na Capital Federal, foram também colocadas nos espaços vagos vinhetas alusivas ao movimento: “‘A Escola Normal’ é a revista da Mulher. Feministas, lede ‘A Escola Normal’” (p. 554) e “O verdadeiro feminismo consiste em instruir a mulher. Lede ‘A Escola Normal’” (p. 558). Comenius como “precursor da educação feminina” é exatamente o mote com que se abre a revista com o editorial, não assinado, intitulado “O grande precursor” (p. 545). Depois de apresentar uma verdadeira hagiografia do educador, justificativa mais que suficiente para que “rendamos homenagem ao grande precursor da instrução generalizada, do ensino popular a ambos os sexos”, termina-se por exaltá-lo com os tradicionais antonomásticos “Galileu da Educação” e “Mestre das Nações”.
Na sequência é apresentada a “Lição sobre Comenius” dada durante a homenagem pela professora da Escola de Aplicação, Maria Coutinho de Amorim (p. 547-9). O texto é uma versão condensada do livro “Um Apóstolo do Progresso” com algumas passagens entre aspas, mas sem citar a fonte e, inclusive, termina do mesmo modo que o ensaio de Fernando de Azevedo nesse livro: “como um facho de luz passou pela Europa por espaço de mais de meio século, espalhando clarões por entre sombras” (com aspas no original). A leitura que a professora faz do ensaio de Azevedo é radical: foi Comenius quem lançou a semente da escola moderna no século XVII, que “germinou e frutificou através dos tempos”. Assumindo claramente as posições dos pioneiros da escola nova, a professora desqualifica totalmente o ensino tradicional. Dirigida diretamente aos alunos, a lição da professora louva o ensino ministrado na Escola de Aplicação:
aqui neste templo, sob o influxo da moderna pedagogia, se escoam as vossas horas de trabalho e de estudo; aqui, o vosso espírito se expande livre, como livres voam as aves no espaço e livre germina a semente ao calor do seio da terra; sabei entretanto que esta não era a feição da escola três séculos atrás. Enquanto hoje correis pressurosos e satisfeitos à escola, onde desfrutais talvez os melhores dias de vossas vidas, os estudantes de outrora sucumbiam ao peso da austeridade, do ensino dogmático, decorativo e quase inquisitorial!
Graças ao combate de Comenius ao “ensino passivo e verbalístico de seu tempo”, a escola “que a todos se vos abre franca e risonha” pode agora desfrutar desse “ensino intuitivo, fácil e atraente, que recebeis de vossos mestres”. Reitera-se assim, citando passagens de sua obra muito semelhantes àquelas usadas por Rui Barbosa no seu parecer, a representação de Comenius como paladino da escola moderna, libertando-a dos “moldes seculares em que se enquadrava a pedagogia clássica” e propugnando “o método ativo e intuitivo, opondo-o tenazmente ao velho ensino”. No “agradecimento à memória de Comenius” (p. 550), poema de Heitor Lima recitado por uma aluna do quarto ano, a essa representação pedagógica do educador se associaram suas virtudes morais e cívicas, como demandava a celebração9. A primeira parte da cerimônia foi encerrada com uma homenagem a Comenius pelas crianças do jardim de infância, “de quem Comenius não esqueceu”, simbolicamente vestidas com as cores da Tchecoslováquia e do Brasil.
Em continuação é transcrita a “Lição sobre a Tchecoslováquia” dada pela professora Mathilde Cirne Bruno, com uma exposição delineada da geografia e história dessa nação e que foi seguida de “projeções relativas a esse país” cedidas pelo embaixador Vlastimil Kybal. Aluno de Masaryk, Kybal era professor de história na Universidade de Praga quando foi recrutado em 1920 para o serviço diplomático em Roma, servindo de 1925 a 1927 como embaixador no Rio de Janeiro e em Buenos Aires10. Como pesquisador do movimento hussita, Kybal estava bem familiarizado com a problemática comeniana e seu discurso já enfatiza a interpretação do educador tcheco - mais como reformador social do que propriamente pedagogo - que seria dominante no século XX. Assim, Comenius “trabalhou pela educação científica da humanidade, convencido de que o maior conhecimento reforçaria o desejo de paz e de que quando os homens se soubessem entender não mais haverá razões de conflitos” (p. 556), ansiando por “uma humanidade pacífica e uma nação nobilitada e elevada em todas suas classes” (p. 557)11. Com o país em estado de sítio desde o levante do Forte de Copacabana em 1922, o diplomata não poderia ter escolhido melhor representação para Comenius que a de paladino da paz mundial.
Fecha essa primeira parte da revista um pronunciamento radiofônico do jurista e diplomata Rodrigo Octávio, presidente da Sociedade Brasileira Tchecoslovaca, saudando o embaixador tchecoslovaco pelo sucesso da participação do Brasil na Feira de Praga. Reprodução de uma fala feita em outra ocasião (é a única matéria da revista que não se refere explicitamente a Comenius), o discurso é um panegírico do embaixador Kybal “que está mostrando, de modo prático e eloquente, a nova orientação da diplomacia de nosso tempo que não pode deixar de ter como principal escopo a intensificação das relações de todo gênero entre os povos” (p. 563). Claro que são destacadas no texto as “questões de aspecto econômico, sob cuja inspiração uma mais eficaz solidariedade se produz e entretem”, que motivaram a criação dessa Sociedade pelo embaixador Kybal. Vemos assim como os interesses pedagógicos se entrelaçam com as motivações econômicas sobre o fundo comum da homenagem a Comenius. Certamente, essa iniciativa de Carneiro Leão contribuiu para que ele recebesse a Ordem do Leão Branco, a maior condecoração destinada a estrangeiros concedida pela Tchecoslováquia na época e que, aliás, também foi outorgada a Rodrigo Octávio.
As representações de Comenius em A Escola Normal
A lição da professora apresentando Comenius como precursor da escola moderna e o discurso do embaixador revelando sua obra de reformador social serão matizadas e aprofundadas pelas três matérias seguintes da revista. A primeira traz um capítulo inédito de A Escola da Infância traduzido do inglês sem indicação de autoria, versão, de maneira geral, bastante completa e fiel ao original (p. 566-70)12. A matéria seguinte intitulada “Palavras de Ramiz Galvão” reproduz o discurso de inauguração do Asilo Gonçalves de Araújo em 1900, “estabelecimento que hoje honra o ensino profissional do Distrito Federal”, pronunciado pelo seu diretor (p. 573-4)13. Finalmente, essa série de artigos se encerra com as “palavras do Dr. C. Leão” pronunciadas durante a homenagem em setembro presidida por ele na condição de diretor geral de Instrução Pública e que tem por título “Comenius: homenagem ao precursor da pedagogia moderna (p. 575-6)14. Tomando essas matérias como práticas que marcam uma posição na acepção de Chartier (1991), procuraremos articular o trabalho de classificação e recorte da obra de Comenius presente nesses textos com a veiculação de uma determinada concepção de educação por parte da Diretoria de Instrução Pública do Distrito Federal na gestão de Carneiro Leão.
A forma de apropriação da obra de Comenius pela revista fica bastante evidente na tradução publicada, a começar pelo título dado ao capítulo de A Escola da Infância: “Estudos da Natureza”. O título original do capítulo VI dessa obra, “Como educar as crianças para o conhecimento das coisas”, segundo a versão brasileira (2011, p. 35), é assim reduzido ao conhecimento das coisas naturais15. Essa orientação também transparece no trecho escolhido para localizar o capítulo “no conjunto da obra”, extraído do capítulo IV, parágrafo oitavo (2011, p. 18-9) e que reduz a educação ao “conhecimento das coisas”16. Já no parágrafo segundo do capítulo a interpretação de “coisas” como sendo as “coisas naturais” é evidente, a tradução substituindo o conhecimento das “coisas ao seu redor e outros objetos”, pelo “ensino das coisas naturais e de outras matérias”, reiterando essa interpretação também nos parágrafos restantes. Essa representação empirista de Comenius contribuiu para que as “lições de coisas” e o próprio método intuitivo fossem considerados como sendo talhados apenas para o ensino de ciências naturais, não se aplicando às outras disciplinas do currículo17.
Para afirmar a concepção republicana de uma educação pública laica, a tradução omite duas referências bíblicas existentes logo no primeiro parágrafo do capítulo e também outra no parágrafo nono, mantendo-se porém a orientação geral do “temor a Deus” e o calendário cristão de celebrações, aliás, sem fazer a adaptação para nosso hemisfério, situando o dia de Natal no inverno e Corpus Christi no verão. Também no parágrafo décimo, que trata do que chamaríamos hoje vida social, deixa-se de explicitar os “momentos graves”, nos quais devem cessar qualquer tipo de brincadeira, isto é, durante as “orações, exortações e admoestações”. Talvez para não prejudicar a representação comeniana de um ensino liberal, alegre e feliz, a tradução também suprimiu desse parágrafo o trecho seguinte:
Assim, a criança deve aprender a se voltar para quem a chama, atendê-la e ouvir o que lhe dizem. Responder educadamente a todas as perguntas, por mais jocosas que sejam (uma vez que nessa tenra idade as crianças lidam tranquilamente com os gracejos dos outros, que devem ser feitos para estimular seu entendimento das coisas) (COMENIUS, 2011, p. 40)18.
O discurso de Ramiz Galvão na inauguração do Asilo refere-se exatamente à “necessidade de uma atmosfera de alegria e de doçura em que se desenvolvam natural e progressivamente as faculdades da criança” dentre as propostas avançadas por Comenius, “prodígio de lucidez e clarividência”, no século XVII (p. 573). Não havendo sido compreendidos em seu tempo os princípios de Comenius, só no século XIX que então findava, “puderam eles encontrar aplicação generalizada e feliz, revivendo debaixo de vestes mais sedutoras talvez” os mesmo princípios preconizados pelo “grande apóstolo morávio”. Graças à aplicação desses princípios, “a escola do nosso tempo não é e nem pode ser mais a rotineira e fastidiosa mestra do abc e das quatro operações, aprendidas materialmente, sob o regime do terror e na penumbra malsã de um antro falho de tudo, até de luz, de ar e de alegria”, discorria Galvão, trecho que seguramente inspirou a professora Coutinho para compor a sua “Lição sobre Comenius”. “A nova escola é um templo, a cuja construção presidem rigorosos preceitos de psicologia e higiene”, continua o médico Galvão, “o novo internato, sem feições de quartel nem de convento, é uma grande casa de família, ruidosa, ativa, alegre”.
Reitera-se assim a representação de Comenius, “cujo nome anda injustamente esquecido, mas que se deveria gravar em letras de ouro no frontão de todas as escolas”, como precursor da escola moderna. Todavia, considerando que o Asilo se destinava à formação profissional dos “desvalidos da fortuna” nos mais variados ofícios, Galvão conclui o seu discurso afirmando que a “nova escola”, “cheia de trabalho sim”, era “antes de tudo uma casa de educação, em que se trata com máximo empenho de formar cidadãos úteis e mulheres prestimosas, cultores da honra e de todas as virtudes” (p. 574). Ressurge assim a representação de Comenius, que já havia sido utilizada por Rui ao enfatizar o papel do desenho e dos trabalhos manuais em seu parecer, como patrono de uma educação prática, instrumental, vocacional e até profissionalizante. Com efeito, a essa representação do “Galileu da Pedagogia” já havia sido dado destaque em nossa historiografia educacional: “É, portanto, como teórico de uma educação para o trabalho que Comenius surge em nossa modernidade” (KULESZA, 1992, p. 58).
A conferência de Carneiro Leão que fecha essa série de artigos na Escola de Aplicação anexa à Escola Normal não era o lugar apropriado para se fazer proselitismo do ensino técnico-profissional. Todavia, o diretor de Instrução Pública aproveitou o momento para apregoar a reforma que então promovia no Distrito Federal neste setor e que incluía como um componente importante e inovador a educação para o trabalho das camadas populares (PAULILO, 2003). Trazendo como subtítulo a expressão, “homenagem ao precursor da pedagogia moderna”, a matéria exalta Comenius como pioneiro das reformas que então se promoviam no Rio de Janeiro: “nós que aqui pugnamos pela renovação educativa, que buscamos marchar na vanguarda do movimento pedagógico contemporâneo”, não poderíamos deixar de festejar “o precursor sábio e generoso de todas as conquistas que nesse campo desfrutamos” (p. 575). Desta forma, Carneiro Leão alinhava o “clarividente” Comenius, “o primeiro a defender a educação para todos”, nas fileiras dos que empreendiam a modernização do ensino no Rio de Janeiro sob seu comando.
Simbolicamente, demarcando o lugar de onde falava, local “em que não apenas as crianças aprendem e os mestres ensinam, mas os jovens professores de amanhã se vêm integrar, com a profissão sagrada de formar o homem”, Carneiro Leão, afirmando que Comenius “viverá para sempre no coração dos pensadores e na gratidão dos humildes”, profetizava: “esta escola, que se orgulha de possuir o seu retrato, será de hoje em diante o templo brasileiro de sua glorificação”(idem). Deixando claro que as boas ideias por si só não são suficientes para efetivar as mudanças educativas, o diretor termina por exaltar a figura do presidente Masaryk que, empreendendo “uma das mais extraordinárias aventuras militares da história”, presidiu “a ressurreição da pátria de Comenius” (p. 576). Desta forma, o discurso de Carneiro Leão enfeixava todas as representações presentes na celebração acerca do educador tcheco, representações que ele pretendia assumir para si a fim de ser como tal reconhecido.
Conclusão
O recado dado aos políticos no discurso de Carneiro Leão constava regularmente dos relatórios por ele enviados ao prefeito Alaor Prata Leme Soares e ao Conselho Municipal solicitando ações e recursos, sem produzir aparentemente maior efeito. Assim, em seu relatório anual referente ao ano 1925, reclamando dos políticos que “deixam que as verbas cresçam em toda parte e se restrinjam para a educação”, ele ponderava:
Não compreendo como os homens de governo possam ter receios do futuro do seu povo quando eles têm à sua mão a escola, onde podem organizar uma educação de energia construtora, de trabalho e de ordem (apud PAULILO, 2011, p. 50).
Se Masaryk, como Comenius, “ama o povo e não quer apenas lhe melhorar as condições materiais de vida, mas ampliar-lhe o campo de compreensão e elevar-lhe o nível moral”, porque o prefeito não podia comungar desse mesmo credo com o diretor de Instrução Pública, parecia insinuar Carneiro Leão em sua peroração.
Vemos assim que a apropriação que Carneiro Leão faz de Comenius não se restringe à sua consideração como teórico do “método intuitivo”, mero elo da cadeia empirista formada por “Bacon, Locke, Hume, Comênio, Rousseau, Pestalozzi, Fröebel e Spencer” (VALDEMARIN, 2004, p. 35), mas abarca sua proposta mais ampla da educação como fator de transformação social, como “emendatione rerum humanarum”. Tomando ao pé da letra o mote de uma “educação para todos”, essa representação da pedagogia comeniana, aplicada à questão da educação popular, conduz infalivelmente a uma proposta de educação prática, utilitária, ativa, de “aprender fazendo”. Todavia, gestada no interior de uma sociedade estamental no século XVII, o projeto comeniano, transportado para a modernidade, favorecia amplamente a interpretação dualista de uma educação para as elites (aristocracia) e outra para as classes populares (plebe), tema candente nos meios educacionais da sociedade brasileira em processo de modernização nas primeiras décadas do século XX.
Desse modo, tendo identificado essa representação de Comenius nessa fonte inédita aqui analisada, fomos procurar na literatura pedagógica da época leituras semelhantes da obra de Comenius. Esse breve levantamento corroborou nossa hipótese de que a representação de Comenius partidário de uma educação técnico-profissional não era exclusividade de Carneiro Leão no Brasil. Assim, já em 1919, João Toledo, no artigo intitulado “Aprendizado Activo” publicado na Revista da Escola Normal de São Carlos, vale-se de Comenius, “a criança só aprende por meio de uma obra realizada por si”, para sustentar sua argumentação de que “só se aprende a fazer, fazendo” (apud ARCE, VAROTTO e CANDIAN, 2011, p. 138, grifo no original). Em 1926, na Revista Escolar, órgão da Diretoria Geral de Instrução Pública do Estado de São Paulo, que mantinha na época uma extensa seção dedicada às “Lições de Coisas”, encontramos um artigo que considera Comenius, “o célebre pedagogista”, introdutor do “trabalho manual” na escola, que ele reputava “como elemento de grande alcance educativo”, sendo por isso “adepto fervoroso do ensino das artes, da prática de profissões e do exercício de ocupações manuais” (VIZIOLI, 1926, p. 53). Na tese que o reformador paulista do ensino catarinense, Orestes Guimarães apresentou na I Conferência Nacional de Educação, realizada em Curitiba em 1927, dedicada ao ensino da disciplina “Trabalhos Manuais”, também é feita referência ao omnes, omnia, omnino (ensinar tudo a todos totalmente) comeniano, registrando-se significativamente que foi ele quem “traçou, pela primeira vez, um plano educativo popular” (GUIMARÃES, 1997, p. 357). Também em Minas Gerais, no auge da reforma da educação primária empreendida na década de 1920, Comenius é associado ao ensino ativo: “Disse Comenio: a atividade é a lei da meninice”, é a frase que abre a palestra intitulada “A atividade infantil e suas consequências pedagógicas”, feita por José de Almeida, professor de metodologia da Escola Normal de Ouro Fino e publicada na Revista de Ensino (ALMEIDA, 1930, p.27). Por sua vez, o livro A Escola Decroly (OLIVEIRA, 1930), que tem como sub-título “e a aplicação dos seus processos no Estado de Minas” tem como epígrafes iniciais, uma frase de Decroly, “Temos que reduzir a jogos infantis todos os processos de ensino elementar” e outra de Comenius, “Porque não abrir em lugar dos livros mortos o livro vivo da Natureza?”, novamente reiterando a importância da atividade da criança para o planejamento do ensino.
Assim, parece ter havido um interesse amplo na obra de Comenius como reformador social pelos educadores que pensavam a educação popular na Primeira República19, interesse que se desvaneceu na década de 1930 juntamente com o “método intuitivo”, deslocado que foi pelas diversas teorias da aprendizagem formuladas pela moderna psicologia da educação. Cumpre aqui assinalar a concomitância desse movimento com o que Paulilo (2011) chamou de “esmaecimento” da reforma Carneiro Leão no Distrito Federal. De fato, desde o clássico trabalho de Nagle (1974), a reforma do ensino realizada por Carneiro Leão no Rio de Janeiro não é considerada uma obra do escolanovismo, uma reforma dos “pioneiros da educação nova”20. Certamente, não por Carneiro Leão não ter sido signatário do “Manifesto dos Pioneiros”, pois a reforma realizada por ele na educação de Pernambuco a partir de 1928 é reconhecida por todos como escolanovista.
O evento promovido por Carneiro Leão e a publicação da revista aqui analisada seriam certamente argumentos valiosos para sustentar a sugestão de Paulilo (2011, p. 55) de considerá-lo pioneiro honoris causa da educação nova. Parece-nos, entretanto, que a depreciação do conteúdo moderno da reforma empreendida por Carneiro Leão no Distrito Federal e do concomitante silenciamento da representação de Comenius como reformador social nos obriga a problematizar o próprio conceito de “educação nova” propalado pelos pioneiros. Ou seja, ao invés de caracterizar primeiro o escolanovismo para somente depois verificar que ações e representações devam como tal ser reconhecidas, sugerimos a sua dissolução historiográfica e a reconsideração dessas ações e representações no âmbito de uma “escola moderna”. A celebração de Comenius aqui rememorada pode ser considerada como um pequeno passo nesse programa de pesquisa, inspirado no título que o poeta Drummond deu a um de seus livros de memórias: Esquecer para Lembrar.