O período regencial durante muito tempo foi representado na historiografia como período turbulento e instável, marcado pelo caos, pela desordem, pela anarquia, dentre outros adjetivos que guardam uma relação de sinonímia com os citados. Atualmente, o interesse por essa fase da história do Brasil tem crescido e os trabalhos demonstram, ao contrário do que se pensava, que as Regências não podem ser definidas como tempo de indefinição e instabilidade política. Os anos decorridos entre a abdicação de D. Pedro I e a declaração da maioridade de D. Pedro II têm sido considerados como cruciais na construção do Estado brasileiro, caracterizado pelos intensos debates/embates entre os diversos projetos4 de construção do Estado e por lutas pela participação nas decisões políticas. Nessa fase de debates/embates, os liberais moderados, os liberais exaltados e os conservadores esgrimiramse na disputa pelo poder, que não raras vezes comportou atos de violência física. Contudo, o que demarca bem essa fase é a luta simbólica em que cada grupo buscou tornar hegemônico seu projeto de Brasil. Tal luta não constituía uma novidade do período; ela vinha se desenrolando desde que o Brasil rompera os laços com Portugal. Das lutas travadas entre as décadas de 1820 e 1830 os liberais moderados saíram vencedores e assumiram o poder após a saída do nosso primeiro Imperador.
Não é sem razão que os primeiros anos do período regencial são conhecidos como a fase liberal das regências. Está amplamente demonstrado pela historiografia que os anos compreendidos entre a abdicação de D. Pedro I e o ano de 18375 caracterizam-se pela hegemonia do liberalismo moderado (CARVALHO, 1999; SILVA, 2002; MOREL, 2003a; JANCSÓ, 2003; CASTRO, 2004; DOLHNIKOFF, 2005). Um dos maiores desafios dos adeptos desse posicionamento político foi fortalecer as instituições regenciais, manter a ordem e a tranquilidade públicas, ameaçadas tanto pelos embates políticos quanto pelas possibilidades de levantes populares. Nessa empreitada, as associações públicas e a rede de periódicos a elas vinculada constituíram-se em instrumentos/armas de luta mobilizadas não apenas pelo grupo que havia chegado ao poder, mas também pelos exaltados e restauradores.
Não obstante, parece-nos, que para além de estratégias de fortalecimento das instituições regenciais, de manutenção da ordem e da tranquilidade, as associações públicas, pelo uso de seus periódicos, foram, para os seus membros, espaço de aprendizado das dinâmicas de funcionamento do Estado, ou seja, de aprendizado da arte de governar. Constituíram-se, também, como espaço de elaboração de diagnósticos sociais tanto quanto de formulação e execução de projetos individuais e coletivos que mantiveram uma relação muito próxima com a constituição do Estado da nação brasileira.
Com base na afirmação de Velho (1997, p. 23) de que “tem-se um projeto quando há ação com algum objetivo predeterminado”, podemos definir, grosso modo, como projeto individual a projeção política e como projeto coletivo a formação do povo. Dito de outra forma, o prestígio político alcançado pelos políticos e letrados congregados nas associações deveu-se não exclusivamente, mas em grande medida, ao aprendizado político efetivado nas agremiações. Por seu turno, o projeto coletivo se consubstanciou na formulação e execução de projetos político-culturais entendidos como projetos educativos, que tinham como uma de suas metas a construção de um consenso com relação ao caminho a ser seguido na construção do Estado e da Nação brasileira. A partir dessas premissas sobre o movimento associativo das Regências, elegemos como objetivo desse artigo evidenciar, a partir de jornais, o uso do espaço público pelas associações mineiras do período regencial na configuração de um plano de educação, tendo em vista a pedagogia cívica de disciplinar, instruir, civilizar e moralizar.
Para tanto, demonstramos que a instalação das Regências abriu espaço para a participação política dos membros do setor abastecedor mineiro e, dessa forma, funcionou para aquele grupo como uma estrutura de oportunidades políticas. Examinamos, assim, os projetos político-culturais entendidos como projetos educativos, formulados e executados pelas agremiações, mediante a análise de seus objetivos, previstos nos estatutos. Focalizamos o caráter multidimensional das agremiações mineiras demonstrando que seus projetos político-culturais, cuja dimensão política deixa-se notar pelo esforço de difusão da cultura política liberal, e a dimensão cultural, observada no empenho em levar as Luzes do saber a que não as possuía, foram capazes de amalgamar valores religiosos e seculares dando ao associativismo mineiro uma nuança específica.
1. “Debaixo das vistas de uma illustrada Regência”: a estrutura de oportunidades políticas
Uma característica do período regencial salientada por Lenharo (1979) é a ascensão social dos produtores mineiros, que atingiu seu cume nos primeiros anos da Regência, quando eles alcançaram significativo destaque no cenário político. Após cotejarmos os nomes citados pelo referido autor com aqueles envolvidos com o movimento associativo das Regências, encontramos nomes coincidentes, como José Bento Ferreira de Mello, Evaristo Ferreira da Veiga, Bernardo Jacinto da Veiga, Bernardo Pereira de Vasconcellos e Antônio Paulino Limpo de Abreu.
A hegemonia política alcançada pelo grupo da década de 1830 foi sendo forjada aos poucos. Segundo Lenharo (1979) iniciou-se com a transferência da família real para o Brasil em 1808. Após sua instalação no Rio de Janeiro, iniciou-se uma política de integração do centro sul do Brasil por meio do comércio de abastecimento, viabilizado por medidas de incentivo e financiamento da produção, pela abertura de estradas e distribuição de terras. No primeiro Reinado, o grupo de produtores mineiros ascendeu socialmente e penetrou na praça de comércio do Rio de Janeiro. Nesse momento definiram-se seus interesses políticos regionais, com o surto da imprensa, especialmente do sul de Minas, e com o aparecimento de seus primeiros líderes políticos. Quanto ao período regencial Lenharo (1979) afirma:
A deposição [abdicação] do imperador abalou o poder concentrado do Estado imperial, abrindo espaço para a projeção do setor abastecedor da classe proprietária que passou a ser coresponsável pela administração regencial. Associando-se principalmente a políticos egressos da pequena burguesia urbana e do segmento militar, compuseram um grupo relativamente coeso, mas sem aprofundamento político partidário, designado genericamente de liberais moderados (LENHARO, 1979, p. 122, grifos nossos).
A assertiva do autor, em especial o trecho que destacamos, no qual afirma que a abdicação de D. Pedro I abriu espaço para a participação política dos membros do setor abastecedor mineiro, leva-nos a concluir que a Regência funcionou para aquele grupo como uma estrutura de oportunidades políticas, nos termos postos por Alonso (2002). Segundo a pesquisadora, as estruturas de oportunidades políticas são
[...] dimensões consistentes, mas não formais e permanentes, do ambiente político que fornece incentivo para as pessoas se engajarem em ações coletivas, por afetarem suas expectativas de sucesso ou de fracasso (ALONSO, 2002, p. 42).
Alonso, após investigar o movimento intelectual6 de 1870, estabeleceu uma relação entre a ampliação das estruturas de oportunidades políticas e o referido movimento, entendido como movimento social. Tais reflexões nos permitem pensar que a abdicação de D. Pedro I e, consequentemente, a instalação das Regências, constituíram-se como estruturas de oportunidades políticas para grupo de produtores mineiros. Tais estruturas são propícias à criação de associações públicas, entendidas como movimento social, que por sua vez são uma forma de expressar demandas específicas do grupo com ele envolvido.
É importante notar que a projeção dos sujeitos ligados ao setor abastecedor coincide com a multiplicação das associações. Diante disso, a noção de estrutura de oportunidades políticas viabiliza a abordagem do movimento associativo das Regências como um movimento intelectual e social. Apreender esse movimento em sua complexidade significa dar inteligibilidade aos elementos aos quais eles recorreram para compreender a situação que vivenciam e para definir as linhas de ação mais eficazes.
2. “Nestas pequenas reuniôes o homem aprende a desenvolver sua razâo, a conhecer e defender os interesses do seu Paiz”: os objetivos das associações
A arregimentação de votos e o aprendizado político, viabilizado pela participação no movimento associativo, sozinhos não asseguraram a vitória do projeto de Brasil moderado. Um projeto coletivo de formação do povo, que vinha sendo posto em prática desde o início da década de 1820 e que, no âmbito das associações do período regencial, assumiu contornos nítidos de projetos político-culturais, ou projetos educativos, foi um elemento fundamental nesse processo. Tanto a elaboração desse projeto de formação quanto a sua execução tinha como um de seus objetivos a construção de um consenso com relação ao caminho a ser seguido na construção do Estado e da Nação brasileira, qual seja, o do liberalismo moderado.
Em Minas Gerais tal projeto de formação do povo assumiu contornos específicos que deram certas nuanças ao associativismo mineiro. Os objetivos das associações, tais quais estão previstos nos estatutos, nos permitem acessar parcialmente tais projetos, que são multifacetados. Isso porque eles comportam uma dimensão política, visto que as sociedades e os jornais a elas vinculados foram mobilizados pelos grupos que disputavam o poder como importantes instrumentos-armas de luta, cuja eficácia pode ser percebida, sobretudo, pelo doutrinamento político que promoveram por meio da difusão da cultura política liberal. Entretanto, não se reduzem a isso.
As associações mineiras do período regencial possuem caráter multidimensional, que pode ser apreendido, inicialmente, pela identificação dos fins a que elas se destinavam. Os objetivos das agremiações constituíam um item fundamental dos seus estatutos. A Sociedade Defensora da Liberdade e Independência Nacional de São João del Rei tinha como principal finalidade:
Sustentar por todos os meios legaes, a liberdade e Independência Nacional:
1º Desenvolvendo o auxílio da ação das autoridades públicas todas as vezes, que se faça preciso a bem da ordem e tranqüilidade pública. 2º Usando do direito de petição para as medidas, que não estiverem ao seu alcance, e ainda quando se julguem indispensáveis medidas maiores, reclamando as somente pelos meios legais (ESTATUTO da Sociedade Defensora da Liberdade e Independência Nacional de São João del Rei apudCAMPOS, 1998, p. 156-157).
O objetivo da Defensora de São João del Rei definiu no artigo 10 de seus estatutos sua finalidade: auxiliar as autoridades na manutenção da ordem e da tranquilidade pública, necessidade premente nos primeiros anos das Regências. Enquanto isso, a Sociedade Pacificadora, Philantropica, e Defensora da Liberdade e Constituição de Sabará definiu como fins:
Art. 14º Os fins da Sociedade são:
§ 1º Promover estabelecimentos de caridade, e Instrucção Publica.
§ 2º Velar sobre a economia interior destes, e da Sociedade.
§ 3º Coadjurar a Segurança Nacional, e individual por conselhos, persuazoens, e representaçoens as Authoridades, ao Poder Executivo, e Legislativo, e pelas armas nas scilaçoens Políticas, insurreição intestina, e invasão inimiga (SP PP 1/7, cx. 01, pac. 03).
Assim sendo, o conteúdo do § 3º do citado artigo é bastante similar ao dos artigos que definem os objetivos da de São João del Rei, com uma diferença: a Pacificadora, contrariamente ao que sugere esse primeiro termo de seu nome, propunha-se pegar nas armas, se preciso fosse, para “Coadjurar a Segurança Nacional”.
Outra nuança do associativismo mineiro pode ser identificada nos parágrafos antecedentes ao citado. A proposta de promover e velar pela economia interior dos estabelecimentos de caridade e de instrução pública nos permite notar a imbricação do princípio da caridade, assente em valores religiosos, expressos pela doação material e espiritual, com o da filantropia, caracterizada pela laicização do mandamento do amor ao próximo, banhada no caldo de cultura das Luzes, que tinha na instrução pública uma de suas vias de realização. Desse modo, os fins da Pacificadora dão um matiz próprio ao associativismo mineiro, por comportar uma dimensão política, caritativa e filantrópica, amalgamando elementos e valores laicos e religiosos.
Ao contrário dos sabarenses, os campanhenses não somente deixaram de inspirar-se em valores, elementos e princípios religiosos, como no âmbito dos seculares, separaram de forma quase didática a dimensão política da filantrópica. Isso porque os sujeitos envolvidos com o movimento associativo em Campanha criaram a um só tempo uma sucursal da Defensora do Rio e uma Sociedade Philantrópica. Os fins da primeira já foram problematizados linhas acima; quanto à segunda, eles são os seguintes:
1º Adiantar a instrucção do Paiz por meio de estabelecimento de aulas, emissão gratuita de periódicos e por todos os outros, que para o futuro estiverem ao alcance da Sociedade.
2º Socorrer a miséria e a indigência (Fins da sociedade, artigo 1; SP PP 1/7, cx 01, pac. 05).
O objetivo definido no artigo 1º é expressão da dimensão pedagógica da Philantrópica e aquele definido no artigo 2º expressa a dimensão beneficente, ambas definidas a partir do princípio da filantropia. Segundo Falcon (1986, p. 76), “beneficência significa fazer bem aos outros. É um dever dos favorecidos por Deus contribuir para aliviar a miséria dos desfavorecidos”. Para os filantropos campanhenses, a beneficência consubstanciou-se em alimentar os presos pobres da vila (SP PP1/7, cx. 02, pac. 20).
A pedagogia, vetor de difusão das Luzes, portanto elemento-chave do progresso da razão, tem na difusão das instituições educacionais uma de suas formas de realização (FALCON, 1986, p. 62-64), que se concretizaria pelo estabelecimento de aulas e distribuição gratuita de jornais. Da distribuição de periódicos não temos notícia. Quanto à expansão da instrução, a Sociedade elaborou um plano que previa o estabelecimento de aulas de Latim e Francês e a Instrução Feminina, visto que às mulheres era confiada a primeira educação (VALADÃO, 1942, p. 44).
Essa dimensão pedagógica identificada na Philantrópica de Campanha e na Pacificadora de Sabará esteve presente na Promotora de Ouro Preto, mas adquiriu contornos mais amplos o que nos permitem falar em dimensão cultural e não apenas pedagógica. Vejamos abaixo.
Art.7. Esta Sociedade se encarrega:
1º De ter huma Biblioteca Publica, na qual poderão ler gratuitamente todas as pessoas, que quizerem, huma vez que guardem as regras policiaes estabelecidas pela Administração. A Biblioteca estará aberta todos os dia cinco horas pelo menos.
2º De promover o augmento da Biblioteca, e de quanto possa contribuir para a difusão das luzes, e consolidação da Monarchia Hereditária – Constitucional – Representativa7.
3º De fazer publicar um Jornal denominado = Jornal da Sociedade Promotora da Instrucção Publica =, que contenha noticias verídicas de todas as Províncias do Império, e principalmente o estado, e progresso da Instrucçao Publica de Minas, as Estrangeiras, e as doutrinas mais adaptadas á conservação da Monarchia Constituicional (SP PP 1/42, cx. 01, pac. 41. O UNIVERSAL, n. 634, 1831).
Como se pode notar, a dimensão política se expressa na intenção de promover e consolidar o sistema constitucional. Contudo é difícil separá-la da dimensão cultural, relacionada à apropriação, pelos políticos e letrados reunidos na Promotora, do conceito de cultura difundida pelo Iluminismo. De acordo com Cuche (2002), no contexto histórico do Iluminismo o termo cultura progressivamente passou a designar a formação e a educação, um estado de espírito cultivado pela instrução. Os pensadores do Iluminismo concebiam a cultura como um caráter distintivo da espécie humana.
A cultura, para eles, é a soma de saberes acumulados e transmitidos pela humanidade, considerada como totalidade ao longo da história [...] Cultura se inscrever então plenamente na ideologia do Iluminismo: a palavra é associada às ideias de progresso, evolução, de educação, de razão que estão no centro do pensamento da época (CUCHE, 2002, p. 21).
Diante disso parece-nos que na criação da Biblioteca Pública de Ouro Preto, em 1831, e do Jornal da Sociedade Promotora da Instrucção Pública, em 1832 estão imbricadas a dimensão política e cultural do projeto educativo da Promotora. Os contornos desse projeto tornam-se mais nítidos quando a Promotora se comprometeu a “imprimir a Constituição do Imperio, e os Actos Legislativos mais importantes á Provincia, para os fazeres distribuir gratuitamente pela mocidade pobre, que frequentar as Escollas de primeiras Letras, e de Gramatica Latina” (artigo 28) e criou e sustentou às próprias expensas aulas públicas, de Geografia, História e Francês, ministradas na Biblioteca Pública de Ouro Preto.
As agremiações, como a Sociedade Promotora do Bem Público, organizada na Vila do Príncipe (Serro) em 2 de fevereiro de 1832, a qual, conforme as palavras do próprio fundador, Theóphilo Ottoni, foi instalada com o objetivo de garantir a aprovação, pelo Senado, do projeto de reforma da Constituição de 1824 que já havia sido aprovada pela Câmara dos Deputados não comportavam somente uma dimensão política. Assim, podemos afirmar que o movimento associativo mineiro das Regências é multifacetado, e no âmbito das motivações políticas e filantrópicas encontram-se justapostas funções culturais, pedagógicas e beneficentes. A análise dos fins das sociedades dá um tom diferente ao movimento associativo mineiro, que se deixa ver, dentre outros aspectos, por amalgamar valores religiosos e seculares, produzindo um hibridismo na contextura do espaço público em Minas Gerais.
3. “O jornalismo vai ser augmentado na nossa Província”: a expansão da imprensa periódica
A expansão da imprensa periódica deriva tanto da constituição da esfera pública de poder quanto da difusão das Luzes. No Brasil, a multiplicação de folhas públicas acompanha e vincula-se às transformações dos espaços públicos, à modernização política e cultural das instituições, ao processo de Independência e de construção do Estado Nacional. A revolução liberal portuguesa e a lei de liberdade de imprensa impulsionaram fortemente, aqui e em Portugal, o desenvolvimento da imprensa periódica. A abdicação de Dom Pedro I significou uma explosão da palavra pública. Pela primeira vez desde a Independência, a discussão política exasperava-se. Os debates e embates entre moderados, exaltados e conservadores se desenrolaram, sobretudo por meio dos periódicos, que se ampliaram numericamente.
A publicação de jornais é um dos mais ou, talvez, o mais importante elemento da dinâmica de funcionamento das associações. Além disso, eles são também um instrumento eficiente para a divulgação e execução dos projetos educativos, entendidos como projetos político-culturais. Segundo Veiga (1898), numa estatística publicada pelo jornal a Aurora Fluminense, em 1828, contavam-se
32 jornaes e periódicos políticos no Brazil (poucas eram nesse tempo as folhas neutras ou exclusivamente litterarias), numero que em dezembro de 1835, conforme outra notícia da mesma Aurora, subia a 54, além de diversos periódicos ou diários simplismente de annuncios e notícias, ou litterarios (VEIGA, 1898, p. 173).
Esse fenômeno de explosão da palavra pública também ocorreu em Minas, conforme se observa no Gráfico a seguir:
Essa expansão da imprensa periódica guarda relações muito estreitas com a multiplicação das sociedades públicas. Várias associações criaram o próprio periódico:
O jornalismo vai ser augmentado na nossa Provincia com mais quatro Periodicos. Em Marianna consta que está para sahir a luz um Jornal protegido por uma Sociedade de Patriotas, que se cotisarâo para o fim de comprar uma Tipografia, e alli estabellecerem o seu Periodico. Na Campanha havia de apparecer no dia 25 de Março um novo Jornal politico. No Sabará brevemente se hade publicar o Jornal da Sociedade Filantropica, que a expensas de seus Membros mandou vir uma Tipografia da Corte, e já partio para quelle Villa. Em a nossa Cidade se diz que apparecerá tambem o Jornal da Sociedade Promotora da Instrucçâo Publica em o dia 25 de Março, anniversario da sua installação (O UNIVERSAL, n. 726, 21 mar. 1832).
O redator de O Universal, no trecho acima, refere-se à União Fraternal, periódico da Sociedade Patriótica Marianense, redigido por Antônio José Ribeiro Bhering (O UNIVERSAL, n. 769, 1832); à Opinião Campanhense porta-voz da Sociedade Defensora da Liberdade e da Independência Nacional de Campanha, cujo redator era Bernardo Jacintho da Veiga (VEIGA, 1898, p.193); a O Vigilante, o órgão da Sociedade Pacificadora, Philantrópica e Defensora da Liberdade e da Constituição de Sabará, escrito por Pedro Gomes Nogueira (SANTOS, 2007, p.98); e ao Jornal da Sociedade Promotora da Instrução Pública, vinculado à agremiação a que alude o título, cujo redator principal foi José Antônio Marinho. (JORNAL DA SOCIEDADE PROMOTORA DA INSTRUÇÃO PÚBLICA, n. 27, 1832).
Além das folhas mencionadas acima, foi criada, também, a Sentinela do Serro, de Teófilo Ottoni, vinculada à Sociedade Promotora do Bem Público (OTTONI, 1930, p. 9); em Pouso Alegre, O Pregoeiro Constitucional, publicação ligada à Sociedade Defensora da Liberdade e Independencia Nacional, que ficou a cargo de José Bento Leite Ferreira de Mello (PASCOAL 2007; VEIGA, 1898, p.192); e, em São João del Rei, O Mentor das Brasileiras, sob a responsabilidade de José Alcebíades Carneiro (JINZENJI, 2008, p. 89), o qual, ao que parece, esteve vinculado à Sociedade Defensora da Liberdade e Independência Nacional daquela vila (O MENTOR DAS BRASILEIRAS, p.755, 1831).
Os jornais criados pelas sociedades vieram somar-se aos outros que iniciaram a publicação antes de 1830 e continuavam em circulação. Em Ouro Preto tínhamos O Universal (1825-1842), O Telegrapho (1829-1839), O Novo Argos (1829-1834) e o Semanário Mercantil (1830-1831), em São João del Rei, havia O Astro de Minas (1827-1839) e em Mariana era editada a Estrella Marianense (1830-1832) (VEIGA, 1898, p. 195-210).
O período mais conturbado das Regências, de 1831 a 1834, também coincide com a edição de um grande número de jornais. As publicações foram muito impulsionadas pelas disputas políticas do período. Segundo Silva (2002) há predominância de folhas liberalmoderadas, entre 1830 e 1834, período em que o grupo adepto dessa orientação política dominava a cena pública em Minas Gerais e buscava difundir uma cultura política liberal. Moreira (2004) faz uma afirmativa semelhante, mas em relação à fase liberal das Regências, ou seja, de 1831 a 1837. Segundo ele, para esse período praticamente não encontramos folhas de caráter conservador e as folhas liberais exaltadas são ainda mais raras8.
3.1. Aspectos tipográficos e materiais dos jornais
De maneira geral, os periódicos mineiros criados no período regencial tiveram uma existência efêmera (VEIGA, 1898, p. 169-249), que varia entre alguns meses e três anos. A exceção é a Opinião Campanhense publicado por quase cinco anos. No que se refere aos jornais criados pelas sociedades ou a elas vinculados, o quadro não é muito diferente, como se pode ver abaixo.
Jornal | Início da publicação | Término da publicação |
---|---|---|
Jornal da Sociedade Promotora da Instrucção Pública | 25 de março 1832 | 18349 |
Mentor das Brasileiras | 30 de novembro de 1829 | 1º de junho de 1832 |
Opinião Campanhense | 7 de abril de 1832 | 5 de agosto de 1837 |
O Vigilante | 1832 | 1835 |
Pregoeiro Constitucional | 7 de setembro de 1830 | 1832 |
Sentinela do Serro | 4 de setembro de 1830 | 1832 |
Fonte: O UNIVERSAL, n. 726, 21 mar. 1832; VEIGA, 1898, p. 159-208; JINZENJI, 2008, p. 16; CHAGAS, 1978, p. 28.
A periodicidade das publicações era bastante irregular. A esse respeito dispomos de dados sobre o Jornal da Sociedade Promotora da Instrucção Pública, analisado por nós, e sobre O Mentor das Brasileiras investigado por Mônica Yumi Jinzenji (2008). Nos dois casos, a constatação é de uma significativa irregularidade na publicação dos jornais. Vejamos abaixo o quadro das edições do Jornal da Sociedade Promotora da Instrucção Pública.
Nº da Edição | Data | Nº da Edição | Data |
---|---|---|---|
8 | Sexta-feira, 22/06/1832 | 32 | Quinta-feira, 21/01/1833 |
11 | Quinta-feira, 12/07/1832 | 33 | Quinta-feira, 31/01/1833 |
14 | Sexta-feira, 07/09/1832 | 36 | Quinta-feira, 23/02/1833 |
17 | Quarta-feira, 12/09/1832 | 41 | Sábado, 8/01/1834 |
18 | Terça-feira, 18/09/1832 | 44 | Sexta-feira, 04 ou 14/02/1834 |
19 | Quinta-feira, 21/09/1832 | 46 | Sábado, 5/04/1834 |
21 | Sábado, 13/10/1832 | 17 (???) | Sábado, 12/04/1834 |
22 | Sábado, [?]/10/1832 | 51 | Sábado, 10/05/1834 |
24 | Quinta-feira, 08/11/1832 | 52 | Sábado, 17/05/1834 |
26 | Sexta-feira, 4/12/1832 | 54 | Sexta-feira, 30/05/1834 |
27 | Sábado, 15/12/1832 | 54 | Sexta-feira, 06/06/184 |
28 | Sábado, 22/12/1832 | [sic] | Sábado, 21/06/1834 |
29 | Sábado, 5/01/1833 | 60 | Sábado, 12/07/1834 |
30 | Sexta-feira, 11/01/1833 | 61 | Terça-feira, 22/07/1834 |
31 | Sexta-feira, 18/01/1833 | 62 | Terça-feira, 29/07/1834 |
Fonte: JORNAL DA SOCIEDADE PROMOTORA DA INSTRUCÇÃO PÚBLICA 1832-1834.
Os exemplares remanescentes do Jornal Sociedade Promotora da Instrucção Pública de Ouro Preto nos permitem constatar que ele foi publicado entre 1832 e 1834, um ano a mais do que afirma Veiga (1898). Ao examinarmos os exemplares, percebemos que não há uma regularidade na sua publicação – por exemplo, os nos 17, 18 e 19 foram editados, respectivamente, nos dias 12 de setembro 1832, quarta-feira; 18 de setembro 1832, terça-feira; e 21 de setembro 1832, sexta-feira.
A falta de regularidade ou de pontualidade não era rara numa época em que várias etapas do ofício de produção de um periódico poderiam estar concentradas numa única pessoa. Além disso, faltavam pessoas habilitadas para tal tarefa (JINZENJI, 2008, p. 81). Sem falar nas dificuldades enfrentadas no processo de redação. A maioria das tipografias esteve às voltas com dificuldades advindas do pequeno número de funcionários. Em janeiro de 1842, O Universal não foi publicado pelo fato de um de seus compositores ter adoecido repentinamente. A quantidade reduzida de funcionários impedia, também, o aumento da periodicidade dos jornais. Em 1836, houve uma tentativa de publicar O Universal diariamente, mas a experiência durou apenas quatro dias (MOREIRA, 2004, p. 5). A escassez de mão de obra motivava pedidos de dispensa do serviço militar para os funcionários de tipografias como o que foi feito por Manoel José Barbosa (VEIGA, 1898, p. 183).
A despeito da efemeridade das folhas tanto quanto da irregularidade de sua publicação, as associações, não somente mineiras, mas de todo o Império, se comunicavam por meio dos jornais. As correspondências trocadas entre elas, conforme previsto em estatuto10, eram publicadas nos jornais (JORNAL DA SOCIEDADE PROMOTORA DA INSTRUCÇÃO PUBLICA, n. 21, 13 out. 1832). A publicação de seus atos pela imprensa, também prevista em estatuto11, era uma estratégia importante para dar visibilidade às suas ações. A formação dessa rede de interlocução é perceptível, também, pela indicação dos locais de venda do periódico fora da localidade em que era editado, bem como pela circulação dos jornais. Encontramos uma dessas inscrições no periódico Opinião Campanhense (29 dez. 1832).
Subscreve-se para esta folha nas casas dos Snr João Pedro da Veiga e C. no Rio de Janeiro, Manoel Soares do Couto no Ouro Preto, Martiniano Severo de Barros e C. em São João d’Elrei, Franscisco de Paula Pereira e Mello em Pouso Alegre, Joaquim Antônio Alves Alvim em S. Paulo, Antonio Clemente dos Santos em Guaratinguetá, e nesta villa na de Bernardo Jacinto da Veiga á 1$600 rs por trimestre
[...].
Um circuito da venda do impresso era o seguinte. Na capital da província encontravase Manoel Soares do Couto, membro da Sociedade Promotora da Instrucção Pública. Em São João del Rei estava Martiniano Severo de Barros, juiz de paz e sócio da Defensora da Liberdade e Independência Nacional daquela localidade. No Rio de Janeiro, a Opinião Campanhense poderia ser adquirida na casa de João Pedro da Veiga, irmão de Bernardo Jacintho da Veiga, editor da folha e membro da Sociedade Defensora e da Sociedade Philantrópica de Campanha. Em Pouso Alegre, a folha era encontrada na casa de Paula Pereira e Mello, cuja coincidência de sobrenome e localidade pode indicar relações de parentesco com Jose Bento Leite Ferreira de Mello, editor do Pregoeiro Constitucional e membro da Sociedade Defensora da vila.
Uma inscrição similar consta no jornal O Mentor das Brasileiras, editado em São João del Rei por José Alcebíades Carneiro, sócio fundador da Defensora local. Na capital do Império, O Mentor poderia ser adquirido na casa de Evaristo da Veiga, redator da Aurora Fluminense, membro da matriz da Sociedade Defensora e irmão de João Pedro da Veiga e Bernardo Jacintho da Veiga, mencionados acima. Em Ouro Preto, podia-se subscrever para a folha na Tipografia de O Universal, onde era editado, também, Jornal da Sociedade Promotora da Instrucção Pública. Assim nos parece que se formou, no interior da província e fora dela, uma rede de correspondentes ligados a sociedades e a jornais que denota uma atuação conjunta das sociedades por meio dos jornais.
3.2. O conteúdo e a composição dos jornais12 12
Os Estatutos da Sociedade Promotora da Instrucção Pública apontam-nos os assuntos que seus membros pretendiam que constituíssem o conteúdo do jornal. Estava prevista a publicação de “noticias veridicas de todas as Provincias do Império” sobre “o estado, e progressos da Instrucção Publica de Minas” e também do exterior. Além de notícias sobre tal assunto, seriam publicadas “as doutrinas mais adaptadas á conservação do Sistema Constitucional13”.
É essencial notar o modo de enunciação ao qual recorrem os membros da Sociedade Promotora. No Jornal, eles se propõem a publicar não quaisquer notícias, mas notícias verídicas sobre a instrução pública, bem como aquelas que permitiriam manter o sistema constitucional. Podemos articular essa enunciação a certo lugar social, a Sociedade Promotora da Instrucção Pública, que reunia em sua maioria membros da elite liberal moderada mineira, todos intensamente envolvidos com a organização da instrução pública. Promover a instrução pública significava, dentre outras coisas, informar o público sobre seu estado e seus progressos e nesse processo produzir o lugar da instrução pública no processo de organização do Estado.
O levantamento da variedade dos gêneros textuais encontrados no Jornal tanto quanto seu conteúdo textual nos permite dizer que a Sociedade Promotora foi além do que pretendia. Assim como em outros jornais da época, não é possível perceber uma regularidade em termos de seções. Aliás, utilizar tal nomenclatura é incorrer em anacronismo, é mais adequado falar em esboço de uma “rotina” devido à recorrência de certos gêneros. No sentido de dar inteligibilidade a esse esboço de rotina, optamos por utilizar a nomenclatura “gênero” para designar os títulos dos textos que eram impressos em destaque e em letra maiúscula e figuram com certa assiduidade quando comparados à incidência de outros tantos textos sem títulos ou outros elementos textuais que não se permitem classificar. Após essa análise elaboramos o quadro abaixo na tentativa de explicitar essa rotina que os editores do jornal tentaram estabelecer e um panorama do conteúdo veiculado:
Título | Descrição | Incidência |
---|---|---|
Anedota | História curta, fictícia ou não, de alguma situação do cotidiano com o objetivo de formação moral | 9 |
Anúncios | A Sociedade Promotora da Instrução Pública e a Sociedade Federal de Pernambuco se dirigem aos sócios ou ao público em geral | 4 |
Ao público | Carta do redator Padre Antônio Marinho justificando sua ausência | 1 |
Artigos de ofício | Notícias sobre a atuação da Sociedade Promotora da Instrução Pública, nomeação de membros, reclamações sobre abusos de autoridades. |
21 |
Comunicado | Texto de formação moral em que se defendem questões como o cuidado e valorização dos idosos | |
Correspondência | Cartas de leitores dirigidas à redação | 4 |
Editorial | Sobre agricultura e navegação em Minas | 2 |
Instrução Pública | Notícias, reflexões e ações no sentido de educar e instruir a população sobre os mais diversos assuntos | 27 |
Falas, pronunciamentos, ofícios e decretos |
Ministério da Justiça, de autoridades políticas e eclesiásticas | 5 |
Interior | Discursos políticos sobre os assuntos em debate naquele momento (reforma constitucional, eleição, liberdade e independência do Brasil, liberalismo X conservadorismo, tranquilidade publica, importância dos jornais como meio de instrução, legislatura de 1834 e deveres dos mestres e educadores) | 15 |
Máximas e pensamentos | Conteúdo de formação moral | 5 |
Notícias estrangeiras | Notícias variadas de países estrangeiros em geral de conteúdo político | 9 |
Notícias provinciais | Notícias políticas de diversas províncias do Império | 14 |
Política | Notícias variadas sobre eleições, administração pública, Liberdade de imprensa, Situação política do Brasil etc. | 12 |
Sociedade Promotora da Instrução Pública | Atas de seções da Sociedade Promotora da Instrução Pública de Ouro Preto | 11 |
Variedades | Conteúdo de formação moral e discussões sobre políticas | 12 |
Fonte: JORNAL DA SOCIEDADE PROMOTORA DA INSTRUCÇÃO PÚBLICA, 1832-1834.
Notamos que não somente o Jornal da Promotora, como também aqueles editados por outras sociedades, ou/e a elas vinculados, possuem um conteúdo textual, mas também um conteúdo simbólico. A análise do conteúdo textual/explícito nos textos é importante para recompor tanto a dinâmica de funcionamento das agremiações como os sentidos dos projetos político-culturais formulados e executados. Contudo, não menos importante é o conteúdo simbólico que nos permite desvelar os sentidos e significados por meio dos quais os políticos e letrados congregados nas associações ativamente produziram a realidade daquele tempo.
Podemos começar pelas datas em que as sociedades iniciaram a publicação de seus jornais, que assim como as datas marcadas para algumas das sessões da Sociedade Promotora da Instrucção Pública, põem em circulação um conteúdo simbólico que consegue impor significações e além de legitimá-las. O lançamento do Jornal da Sociedade Promotora da Instrucçâo Pública estava previsto para 25 de março de 1832. (O UNIVERSAL, n. 726, 21 mar. 1832). O Pregoeiro Constitucional iniciou sua publicação no dia 7 de setembro, não se sabe se em 1830 ou 1831. O primeiro número de Opinião Campanhense saiu em 7 de abril de 1832 (VEIGA, 1898, p. 192, 194). As datas escolhidas foram, respectivamente, o aniversário de juramento da Constituição, da Independência do Brasil e da abdicação do imperador D. Pedro I. As datas não são aleatórias, mas vinculavam-se aos acontecimentos políticos importantes cuja representação esses sujeitos buscavam instituir.
Outros elementos, e esses encontrados na própria materialidade dos jornais, portadores de um significativo conteúdo simbólico são os gêneros: epígrafes, máximas, variedades e anedotas. A epígrafe é uma característica tipográfica comum nos jornais da primeira metade do século XIX. É um recurso textual que tem caráter de síntese. Por meio dela, buscava-se antecipar o tema central a ser tratado e, também, explicitar uma postura política mais ampla. Vejamos abaixo as epígrafes dos jornais das associações mineiras.
Jornal da Sociedade Promotora da Instrução Pública
‘Igualdade, Liberdade, Justiça; eis d’ora em diante o nosso Código, e o nosso estandarte’ (VOLNEY, 1832 e 1833).
‘Conhecerão por tanto os Brasileiros A fecunda em prodígios, Igualdade,
E o que são Garantias, e os Direitos,
Que a todos concedeo a Natureza’ (1834).
Opinião Campanhense
‘Hum povo não pode conservar uma forma de governo livre e a felicidade que resulta da liberdade, senão por uma adesão firme e constante ás regras da justiça e da moderação’
Sentinella do Serro
‘O fim de toda associação pratica he a conservação dos direitos naturaes e imprescripteis do homem. Estes direitos são a Liberdade, a segurança, a propriedade e a resistência á oppressão’.
O Vigilante
‘Unis en faisceau vous serez invisibles, pris separement vou serez brisés comme des roseaux’ (VOLNEY, 1833)15.
‘Voilá les effets d’el union: Unis en faisceau vous serez invisibles, pris separement vou serez brisés comme des roseaux’ (VOLNEY, 1833)16
O Mentor das Brasileiras
‘Rendez-vous estimables par votre sagesse, et vos moeur’.17
O Pregoeiro Constitucional
Outrages est d’un fou, flatter est d’un esclare. Il faut bannir l’audace et non la liberté. La balance à la main presser la vérité
(BERNIS – Sur l’Independence)18
Ao analisar a prática dos jornais da primeira metade do século XIX de adotar epígrafes francesas, traduzidas ou não, a historiadora Silva (2007, p. 46) chama atenção para a possibilidade de a língua funcionar como mediadora cultural, como promotora de ideias circulantes e em seu trabalho formula questões instigantes tais como: “Os conteúdos dessas epígrafes, por exemplo, são portadores de que ideias? E, sobretudo, como essas ideias sensibilizam aqueles que se apropriam delas? Em que essas ideias contidas nas epígrafes são consoantes com o momento em que são produzidas e apropriadas?” Tais questões apontam caminhos para pensar a importância das epígrafes nos periódicos. Se considerarmos o momento histórico, o início das Regências e as palavras-chave Liberdade, Igualdade e Justiça, é possível perceber uma tentativa de demarcar os atributos de um novo tempo em relação ao passado que se buscava superar. Mudanças nas epígrafes, como a do Jornal da Sociedade Promotora da Instrucção Pública, em 1834, têm relação, também, com as mudanças políticas que vinham acontecendo. Era aquele o ano de publicação do Ato Adicional, que reformou a Constituição de 1824, outorgada por D. Pedro I, considerado um déspota que beneficiava os portugueses em detrimento dos brasileiros. Vemos, portanto, que as epígrafes têm, também, a função precípua de instaurar os sentidos para os novos tempos.
Além das epígrafes, as máximas publicadas no Jornal da Promotora possuem um conteúdo simbólico, mas também textual que merece ser destacado, visto que nos permite perceber e compreender as maneiras de os sujeitos, congregados na Sociedade, constituírem o mundo, compreendê-lo e falar sobre ele. Vejamos o exemplo: “Nunca devemos ter vergonha de confessar que erramos; é o mesmo que dizer que somos hoje mais prudentes do que hontem eramos” (Da Aurora).19
A máxima acima foi transcrita do periódico Aurora Fluminense, cujo principal redator era Evaristo Ferreira da Veiga. Ele foi um dos mais importantes líderes do grupo liberal moderado, membro dos mais ativos da Sociedade Defensora do Rio e um dos principais responsáveis por substituir a conotação revolucionária do termo “revolução” por outra menos radical. Essa conotação aludia ao sentido que o termo tem na astronomia, ou seja, de volta ao ponto de partida, portanto menos radical, que foi relacionada à adoção de uma postura política moderada. Diante disso, ao afirmar que nunca “devemos ter vergonha de confessar que erramos” porque isso significa que “somos hoje mais prudentes do que hontem”, Evaristo da Veiga revela-nos uma ardilosa operação de legitimação da mudança de sentido do termo revolução. Outro exemplo importante é a variedade abaixo transcrita do jornal Matutina Meiapontense20.
Assim como todas as produções da terra são criadas para uso dos homens, assim os mesmos homens são formados uns para os outros, devendo mutuamente se coadjuvarem. Cada um segundo o impulso da natureza deve entrar com o que poder no cofre da utilidade commum, e por um comercio recíproco de officios, e serviços empregar não só seus trabalhos, e industria, mas ainda seus bens, para que se estreitem cada vez mais os laços da humana Sociedade.
Assim como a máxima, citada acima, transcrita da Aurora Fluminense, essa variedade da Matutina Meiapontense parece-nos legitimar não uma postura política, mas uma concepção hierarquizada de sociedade quando afirma que “cada um segundo o impulso da natureza deve entrar com o que poder no cofre da utilidade commum”. Temos indícios importantes de que os políticos e letrados partilhavam a mesma opinião expressa pelo redator da Matutina, que, por seu turno, é uma ideia cara ao liberalismo. Isso corrobora nossa hipótese, cuja plausibilidade aumenta sobremaneira ao sabermos que a Matutina Meiapontense foi editada na Vila de Meia Ponte (atual Pirenópolis) em Goiás, entre 1830 e 1834, e era vinculada ao grupo liberal moderado da localidade (ASSIS, 2007). Encontramos, no Jornal da Sociedade Promotora, outro gênero textual que, como as epígrafes, as máximas e as variedades, é carregado de conteúdo simbólico, qual seja, a anedota.
Perguntava-se por que signaes um Extrangeiro, chegando a uma cidade reconhece se nela se despreza a educação. Platão respondeo: Se ali se necessita de médicos e de juízes (JORNAL DA SOCIEDADE PROMOTORA DA INSTRUCÇÃO PÚBLICA, n. 17, 1832 ).
O objetivo, tanto com o conteúdo textual da anedota quanto com o simbólico, é reforçar a representação da educação como meio de prevenir as doenças e a criminalidade, que há pelos menos uma década vinha sendo difundida não apenas em Minas, mas no Brasil. O conteúdo textual e simbólico do Jornal da Sociedade revela a habilidade dos políticos e letrados congregado na agremiação em produzir sentidos e significados para a realidade mediante práticas discursivas e colocá-los em circulação por meio da imprensa periódica. Contudo, não menos denotativo de tal habilidade é o processo de composição do jornal, que nos revela complexas práticas de apropriação21.
Encontramos também no Jornal da Sociedade trechos de dois livros: Viagem de Anacharsis, de Jean-Jacques Barthélémy, e Entretenimentos de Phocion [sobre a relação do moral com a política]. Ambos os trechos encontram-se na seção “Variedades”. A obra Viagem de Anacharsis foi publicada na França em 1789. O jovem grego Anacharsis, que viveu 600 anos antes de Cristo, faz relatos dos costumes dos governos e antiguidades do país que supostamente visitou. Segundo Abreu (2008), a Viagem de Anacharsis é um dos títulos de obras ficcionais de Belas Letras que compõem o conjunto das mais remetidas ao Brasil entre 1808 e 1826. A obra Entretenimentos de Phocion sobre a relação do moral com a política foi traduzida do grego para o francês pelo abade de Mably e publicada no Brasil pela primeira vez em 182622. O Extracto das Viagens de Anacharsis encontrado no Jornal é o seguinte:
“Sapho dizia: Tal pessoa é distintta por sua figura; tal outras por suas virtudes. Uma parece bella ao primeiro golpe de vista; a outra parece mais bella ao segundo” (JORNAL DA SOCIEDADE PROMOTORA DA INSTRUCÇÃO PÚBLICA, n. 14, p. 44, 7 set. 1832). Já o trecho extraído da obra Entretenimentos de Phocion é mais longo. Mas o fundamental do trecho citado é a afirmação de que o “objeto da política é facilitar-nos a da justiça, da prudência e da coragem” (JORNAL DA SOCIEDADE PROMOTORA DA INSTRUCÇÃO PÚBLICA, n. 54, 1834).
Portanto, em Minas, desde meados da década de 1820, a imprensa foi mobilizada como estratégia de convencimento da população com o objetivo constituir a representatividade do projeto político liberal moderado e de difusão da cultura política liberal. No âmbito do associativismo do período regencial, a imprensa periódica constituiu uma das estratégias de realização dos projetos político-culturais formulados pelas agremiações, assumindo contornos de um projeto educativo cujo escopo era a formação do povo. Além disso, envolvendo seus jornais e os demais existentes num complexo circuito do impresso, as associações tiveram papel fundamental na configuração de uma esfera pública de poder em Minas Gerais no período regencial.
Finalizando
A investigação sobre a pedagogia cívica dos jornais mineiros no período regencial revelou importantes nuances da complexa relação entre política e educação. Os liberais moderados, implicados no governo do Estado ao longo das regências, se dedicaram fundamentalmente a restaurar e revigorar os fundamentos que serviram de alicerce para o Estado independente, quais sejam, a defesa da propriedade privada, que pressupôs a manutenção do trabalho escravo; a liberdade de comércio; o respeito aos preceitos constitucionais; a representatividade; e a centralização administrativa. Para tanto lançaram mão do associativismo.
Congregados em associações políticas e públicas, espaços de sociabilidades que tendiam à maior laicização se comparados às associações religiosas do século XVIII, os moderados potencializaram as ações que visavam conduzir a formação do Estado imperial na direção que desejavam, evitando que revolução política se convertesse em revolução social. Além disso, buscaram difundir a ideia de que havia um consenso com relação ao caminho a ser seguido na construção do Estado e da Nação brasileira. Era preciso evitar os dois extremos: o liberalismo exaltado de nuances democráticas, cujo risco principal era a subversão das hierarquias sociais estabelecidas; e a restauração, que significava a volta de Dom Pedro I.
Os sujeitos congregados nas associações intensificaram, especialmente por meio da publicação de jornais, a difusão da ideia de que a adequada liberdade era aquela que não feria os princípios consagrados na legislação. A imprensa foi uma importante estratégia de enquadramento das ações dos indivíduos nos limites da legalidade, atributo fundamental no processo de estruturação do Estado Nacional brasileiro.
A pedagogia cívica dos jornais mineiros do período regencial consistiu em uma proposta de formação humana ou de educação em sentido amplo, apoiada na incorporação da disciplina, na difusão da instrução e no desenvolvimento da civilidade e da moralidade, visto que não tinha a escola como sua única estratégia de ação, tampouco exclusivamente as crianças como o alvo dessa ação. Essa formação humana ou educação em sentido amplo foi emanada dos projetos político-culturais formulados e executados pelas associações mineiras do período regencial e/ou pelos políticos e letrados nelas congregados, aqui analisado pelo uso dos jornais, que constituíram espaço publico cujas matérias comportaram ações de disciplinar, instruir, civilizar e moralizar, concepção kantiana de educação cujos quatro pilares são: a disciplina, a instrução, a civilidade e a moralidade.
Por fim, esses projetos político-culturais das associações mineiras materializaram-se em projetos educativos, definidos com base na sua relação com dois fenômenos que estão entrelaçados e são complementares, contudo distintos: a difusão das Luzes e a configuração de uma esfera pública de poder. No âmbito da difusão das Luzes, tratava-se de buscar meios de diminuir o “abismo que separava os espíritos bem-pensantes, moralmente bem formados e socialmente bem-educados, da plebe ignorante, supersticiosa, inclinada aos maus costumes e mal-educada” (FALCON, 1986, p. 62-63), sem colocar em risco as hierarquias sociais. No que se refere à configuração de uma esfera pública de poder, buscou-se incorporar a população à modernidade política e promover sua adesão aos princípios e aos valores em que se apoiava a construção do Estado e da nação brasileira, naquele momento.