Da concepção, que presentemente se adopta, das aptidões para o magistério, não se exclue, está claro, o requesito fundamental da moralidade; quer-se, porém, que à excellencia das qualidades moraes e das tendências nativas se associe o concurso do saber, de uma inteligência disciplinada e da pratica experimental do ensino
Câmara dos Deputados. Parecer e projeto da Comissão de Instrução pública, 1883.
Usamos uma epígrafe de 1883 para anunciar os caminhos republicanos para a formação de professores primários por motivos bastante plausíveis para a compreensão da educação baiana nas primeiras décadas republicanas. O parecer em questão teve como relator o senador baiano Rui Barbosa (1849-1923), filho de João José Barbosa de Oliveira (1818-1874), Diretor Geral de Estudos da Província da Bahia em 1858 e 1860 e membro do Partido Liberal. As ideias postas no referido documento, além de demonstrarem a erudição e rigor intelectual do autor, esboçam o pensamento de setores da elite política sobre o problema da instrução pública.
As diretrizes apresentadas e incansavelmente debatidas, à luz de experiências em diversos países na época, encontraram ressonância em toda a Primeira República na Bahia. Suas concepções se materializaram em normas legais, em leis editadas nos governos republicanos. A escolha dos administradores republicanos em usá-las como referência demonstrou que os homens do poder político permaneceram fiéis aos ideais liberais do Império brasileiro, afinal, foram os membros da monarquia que assumiram o executivo baiano após o 15 de novembro2.
Importante ressaltar que a década de 1880 foi o período da produção dos Pareceres das principais propostas de Reformas que definiram os cursos políticos em jogo no país, que era uma das últimas nações da América que mantinha a escravidão3 em suas bases de produção e a única monarquia do continente. Rui Barbosa redigiu o parecer sobre a reforma eleitoral, a Lei Saraiva de 1881; os pareceres sobre a Reforma do Ensino Primário e a Reforma sobre o Ensino Secundário e Superior, em 1882 e 1883; e o parecer sobre o Projeto de Emancipação dos Escravos, em 1884. Foi sobre esse tripé de proposições que a República se erigiu.
Segundo o pesquisador Leonardo da Costa Ferreira (2015), na segunda metade do século XIX as classes dirigentes do Império se movimentaram no sentido de reconfigurar a sociedade para uma economia de mercado e a questão do fim da escravidão, de novas bases para o disciplinamento social sob a ideia de cidadania, centralizavam os debates da elite.
Situamos, dessa forma, o Parecer e Projeto de Reforma do Ensino Primário de 1883 em um momento de transição, em que a educação assumiu nos discursos dos dirigentes lugar destacado por representar a possibilidade de “melhorar”, de “civilizar” uma população pobre e ignorante, composta inclusive por libertos e ingênuos, que formariam a nação brasileira e, ao mesmo tempo, sua mão-de-obra.
Cabe pensar que para assumir essa condição de elevação nacional, a educação deveria ser conduzida por mãos e mentes que compartilhassem, ao menos, alguns dos ideais de ensino e civilização projetados. A fôrma que preparava os professores primários precisou de ajustes diante de tempos outros, que exigiram uma concepção de magistério, como afirma a epígrafe, em que às suas tendências naturais e qualidades morais se associasse a “inteligência disciplinada” e “prática experimental”.
Nossa proposta nesse artigo incide em discutir como a profissão de professor primário na Bahia, sob alguns elementos constitutivos da profissão, se configurou na legislação educacional após a instalação da República. Buscamos compreender como as normas legais portavam concepções que delineavam uma ideia de professor e de conduta para esse profissional.
Para este texto utilizamos o Ato de 18 de agosto de 1890 - Regulamento da instrução primária e secundária do Estado da Bahia; o Ato de 07 de março de 1891 - Regimento interno para as escolas públicas primárias; a Lei n. 117, de 24 de agosto de 1895; o Ato de 4 de outubro de 1895 - Regulamento do ensino primário do Estado da Bahia; a Lei n. 579, de 03 de outubro de 1904; o Decreto n. 281, de 5 de dezembro de 1904 - Regulamento à Lei 579; a Lei n. 1006, de 6 de dezembro de 1913 - Reforma o Ensino Primário do Estado; o Decreto n. 1354, de 20 de janeiro de 1914 - Regulamento da Lei n. 1006; Lei n. 1.293, de 09 de novembro de 1918 - Reforma o ensino público do Estado da Bahia; e o Decreto n. 1994, de 26 de maio de 1919 - Regulamenta a Lei 1.293. Documentação que foi organizada e publicada, compondo a Coleção Memória da Educação na Bahia, organizado por um grupo de pesquisadores baianos e publicado pela editora da Universidade Federal da Bahia.
Após leitura e exame das peças jurídicas, pontuamos os elementos definidos como constitutivos da profissão de professor primário na Bahia, distribuídos, por conseguinte, em tabelas elaboradas para visualização em perspectiva temporal.
O recorte para análise foi estabelecido entre 1890 e 1919, sendo que a Reforma de 1889 e a Reforma de 1925 foram desconsideradas. A primeira, com duração de 4 meses, foi desprezada pelo governo republicano, preferindo as referências legais do Império; a segunda, enaltecida pela historiografia da Educação, requer apreciação minuciosa e comparativa, objeto para outro estudo. Ambas representam situações específicas que postulam exames com maior acuidade e tempo de pesquisa.
Ao apreciarmos o conjunto das reformas de ensino, miramos em entender a dinâmica que a profissão de professor primário foi assumindo em sua constituição legal ao longo da Primeira República. Vários aspectos presentes na legislação aludem ao estatuto profissional docente, mas para esse artigo elencamos alguns aspectos que implicaram na ideia de professor e nas formas de recrutamento para a profissão. As questões investigadas como marcadores que definiram a forma/fôrma da ideia de magistério e de professor gestados durante a Primeira República na Bahia foram: a) acesso/recrutamento à carreira do magistério; b) tipologia de professores; c) formação profissional.
As leis, atos e decretos estabelecidos para expressar os princípios gerais norteadores da educação e, ao mesmo tempo, organizá-la em seu cotidiano por meio dos Regulamentos e Regimentos, apesar de textos oficiais, foram tratados como possibilidades de escuta dos sujeitos envolvidos no processo de ensino, não apenas a partir do que não estava posto, mas por entrever a dinâmica que a legislação apresenta no tempo. Entendemos os textos legais como eivados de porosidades dos grupos sociais, como parte integrante de processos de pressão social, permitindo que a interpretação histórica alcançasse camadas mais profundas da realidade. Segundo Ragazzini (2001), os documentos nascem e se produzem nas relações entre os homens e mulheres em sociedade, dessa forma os textos oficiais de expressão jurídica não podem ser entendidos como um elemento hermético, veículo exclusivo da elite para normatizar a sociedade.
Por outro lado, há que se ponderar a advertência da pesquisadora Elizabete Santana (2011) que chama a atenção sobre o fato de que “nem sempre as proposições legais se transformam em ações concretas” (p. 08). Como escutamos em nosso cotidiano que às vezes a lei “não pega”, ou seja, que ocorre uma rejeição social daquela norma jurídica por não atender às necessidades da realidade; por vezes, acontecem formas de resistência política de grupos derrotados; outras vezes ainda, como ocorreu no século XIX, o próprio governo cria leis “para inglês ver”4.
Uma norma legal produzida por sujeitos do executivo e do legislativo, representantes do centro de poder de uma sociedade, constitui um documento monumento (Le Goff, 1990), ou seja, um sinal do passado que foi (e é) intencionalmente preservado como forma de perpetuação de uma imagem sobre si e sobre uma época. O processo de interrogação do historiador da educação, nesse sentido, requer uma operação teórica capaz de “decifrar” (Ginzburg, 1989) o que não está evidente em primeiro plano, ultrapassar o seu significado, o que ele apresenta, e reconhecer os seus sentidos, o que está implícito (Ragazzini, 2001).
Foi com esse norte que buscamos caminhos de interpretação da legislação educacional que compõem as Reformas do Ensino no Estado da Bahia.
A legislação como documento de pesquisa para a História da educação
A legislação educacional constitui fonte primordial neste trabalho, visto que as reformas de ensino foram o principal recurso usado pelo poder público para implantar mudanças que consideravam decisivas no processo de gênese de novas condições sócio-político-econômicas da sociedade, em particular para que uma ideia de educação se constituísse como aceita socialmente. Por outro lado, as leis também podem ser “vistas como uma forma de mediação e solução de conflitos já materializados no cotidiano” (Ferreira, 2015, p. 26). Dessa forma, tomamos a legislação como espaço de conflito, de pressão social e de disputas entre diferentes grupos e ideias.
O conjunto de normas jurídicas que compõe o que denominamos de Reformas do Ensino no Estado da Bahia corresponde a diversos instrumentos jurídicos que, de modo geral, objetivavam normatizar a educação baiana em seus vários e diferentes aspectos. No caso da legislação em questão, encontramos as seguintes manifestações legais:
INTERVENÇÕES LEGAIS NA EDUCAÇÃO | ANO | INSTRUMENTOS JURÍDICOS | GOVERNO |
---|---|---|---|
1ª | 1890 | Ato (Regulamentos da instrução primária e secundária) | Hermes da Fonseca |
1891 | Ato (Regimento interno para as escolas públicas primárias) | José Gonçalves da Silva | |
2ª | 1895 | Lei n. 117 | Rodrigues Lima |
Ato (Regulamento do ensino primário) | |||
3ª | 1904 | Lei n. 579 (Alteração da lei anterior) | Marcelino de Sousa |
Decreto n. 281 (Regulamento) | |||
4ª | 1913 | Lei n. 1006 (Reforma o ensino primário) | J. J. Seabra |
1914 | Decreto n. 1354 (Regulamento da instrução pública) | ||
5ª | 1918 | Lei n. 1.293 (Reforma o ensino) | Antônio Aragão |
1919 | Decreto n. 1994 (Regulamenta a Lei de 1918) |
Fonte: Leis de reforma e Regulamentos da Instrução 1890-1919 (Coleção Memória da Educação da Bahia)
Em 20 anos, cinco intervenções legais implementaram alterações na educação baiana. Desse conjunto, o Ato de 1891, o Regulamento de 1895, a Lei 1.006 de 1913 e o Decreto n. 1.354 de 1914 legislaram sobre a Instrução Primária. O restante versou, além da educação primária, sobre o ensino secundário, o ensino profissional, o ensino normal e o ensino superior. Cada governo ao assumir o executivo submetia novas alterações para a sociedade quanto à Educação. De fato, para a maioria dos políticos na república baiana a educação era a força libertadora da sociedade, de sua ação emanava o progresso e a grandeza da nação (Tavares, 1968; Luz, 2013), ao menos nos discursos que acompanhavam as falas dos governadores e dos parlamentares. Para boa parte da sociedade, no entanto, essa afirmação representava possibilidade de alcançar melhoria concreta na condição de vida, além de ser requisito de acesso à cidadania política ao permitir compor um rol muito restrito de pessoas que sabiam ler e escrever.
Mas por que tantas intervenções legais? Houve necessidade de inovações? Cada governo propôs um projeto diferente que rompeu com o anterior ou a dinâmica social conferiu situações que necessitaram de acomodações? O lembrete do professor Luiz Henrique Dias Tavares, na introdução de seu livro Duas Reformas na Educação na Bahia 1895-1925, ao afirmar que “o Brasil republicano não começa com o episódio do 15 de novembro, desde quando é muito mais do após primeira guerra mundial” (1968, p. 10) talvez nos obrigue a mirar para a política baiana como uma das peças que compõe o mosaico educacional da república em suas primeiras décadas.
Educação e política, no governo republicano, aconteceram de forma imbricadas. Podemos recorrer à obra de Montesquieu (2000), O Espírito das Leis, de 1747, que versa sobre as formas dos governos e os meios a que recorrem para sua efetivação através da prática cotidiana do poder sobre a sociedade, para entender a força que a educação assumiu na República. Para esse autor, o tipo de governo republicano se realizava, “adquiria vida” pelo princípio da virtude, alcançada, por sua vez, através da educação do povo5. Sem um sentimento virtuoso, não se poderia construir uma nação e uma pátria.
A legislação, como uma forma de “educar” o povo através de normas sociais (e no caso deste estudo normas profissionais), se relaciona de maneira ativa com a sociedade.
Esse aspecto relacional das leis, presente desde os primórdios do Estado Moderno como expresso no pensamento de Montesquieu (2000), manifesta sua condição original. Proveniente do verbo latino ligare, conecta as necessidades humanas e o sistema jurídico, por isso são “produto da cultura humana e são adaptáveis ao momento histórico” (Schmieguel, 2010, p. 129). Esse caráter impõe ao historiador da educação a ampliação das questões a serem postas diante desse tipo de documentação.
A atrasada República baiana: conservar para governar
Na Bahia, a proclamação da república, inicialmente, foi recebida por uma parte da elite política com um movimento de resistência aos acontecimentos do dia 15 de novembro na Côrte. Autoridades e parte da imprensa reforçaram sua fidelidade à família real e rechaçaram o “movimento militar”6 ocorrido na capital do país.
A parca historiografia que trata da temática corrobora a ideia de que o movimento republicano tinha pequeno fôlego em terras baianas (Araújo, 1992; Sampaio, 1975; Santos, 1973; Leite, 2005). O grupo social (classe média) que integrou o movimento republicano baiano “não reuniu determinadas condições sociais e ideológicas (...) para assumir postos decisórios no novo Estado que se organizava” (Araújo, 1992, p. 04). Ou como afirmou Sampaio (1975), a monarquia permanecia viva na república “através da ação e do comportamento de seus homens” (p. 17). Homens que pertenciam a uma oligarquia agrária, comercial, política e intelectual, em sua maioria brancos que “tinham o letramento como substrato comum” (Leite, 2005).
Os ideais republicanos em terras baianas foram deglutidos de forma que as “inovações se articularam a pontos herdados da tradição imperial, como o apego à ordem, ao senso de hierarquia e a uma visão da política como território do debate entre ‘chefes’, entre os senhores-cidadãos, aos quais o restante da população deveria se vincular por relações de dependência” (Fernandez, 2002 apudSarmento, 2009, p. 26).
O conservadorismo político da elite baiana retardou ao máximo os avanços defendidos pela modernidade, costurando acordos com grupos oligárquicos do interior e produzindo discursos que não encontravam lastro com a realidade, por isso as inúmeras reclamações e lamentos sobre o constante estado de atraso da educação pública baiana e, ao mesmo tempo, o lerdeio em agregar a população mais pobre ao sistema educacional.
A professora Jaci Maria Ferraz de Menezes, em sua tese (1997), afirma que os discursos em prol da educação/expansão da instrução pública vinham de dois setores bem diferentes: os ligados a uma burguesia vinculada aos bancos que desejavam limitar e diminuir o poder das elites agrárias e o das “classes trabalhadoras” que reivindicavam acesso à escola para combater as desigualdades. Os interesses de todos esses grupos sociais se confrontaram na Primeira República configurando um quadro de disputas em que a educação (considerando o aparato que a define: currículo, professores, prédios, legislação) se colocou como dispositivo de controle social; de uso político; de ascensão e prestígio social; e de legitimação política.
Os professores tornaram-se sujeitos significantes no contexto por integrarem um grupo de mulheres e homens letrados, com a função de instruir diferentes gerações. Segundo Denise Catani, António Nóvoa em sua tese afirma que os professores “situam-se no espaço contraditório do entrecruzamento de interesses e aspirações socioeconômicas”. Ao mesmo tempo que eram os agentes políticos do Estado, encarnavam a esperança de mobilidade social das classes populares (Catani, 2015, p. 585). Foi nessa conjuntura que os professores atuaram no sentido de apontar caminhos para a educação baiana e para sua constituição enquanto categoria profissional.
A Escola Normal e a formação do professor primário
A Escola Normal foi criada na Bahia em 1836. Em 1842 começou a funcionar. Data desse momento a intervenção estatal na organização e formação dos professores baianos. A existência da Escola Normal não significou, no entanto, a extinção de outros modos de formação, como o de aprender o ofício com um professor mais experiente em sua prática cotidiana. Como embrião da formação docente, sua invenção se ligou ao movimento de estatização e controle dos processos educacionais, em especial da formação de especialistas com autoridade pedagógica (Nóvoa, 1999).
Apesar de sua origem situar-se no Império, as Escolas Normais nesse período, além de conviverem com “formas não escolares de educação intelectual”, eram alvo de inúmeras críticas quanto à qualidade de sua formação, principalmente no que se refere à ausência de métodos eficazes às necessidades da sociedade. No já citado Parecer de 1883, as palavras do relator avaliaram as Escolas Normais de maneira contundente. Dizia:
quando não se queria que a cabeça do mestre-escola contivesse mais que uma pouca cinza de grammatica; quando toda a sciencia da psycologia pedagógica se reduzia à noção de que a inteligência da creança consiste exclusivamente na memoria, e o látego aplicado ao tegumeno muscular do alumno constitue o seu systema natural de cultura - o ensino profissional da sciencia da escola podia ser um luxo e as escolas normaes uma superficialidade”7 (Câmara do Deputados, 1883, p. 261).
As constatações do relator sugerem que, até o momento da escrita da proposta de reforma, essas instituições pouco contribuíam para a sistematização e disseminação social da ciência pedagógica. Para a Bahia, Débora Magali Vieira (2013) apontou que, durante o Império, a Escola Normal apresentou um corpo de disciplinas voltadas para o ensino mútuo8 e de formação geral para leitura, escrita e rudimentos da aritmética. Sendo que em 1873 uma nova reformulação curricular introduziu Pedagogia e Metodologia ao programa de ensino.
O perfil da Escola Normal no oitocentos nos adverte que a “mutação sociológica”9, em que o mestre-escola é substituído pelo professor de instrução primária, que caracterizou a formação profissional, não aconteceu plenamente. Foi necessário estar sob a égide do governo republicano para que se organizassem “estruturas burocráticas de controle estatal” (Vicentini; Lugli, 2009, p. 37) e que a necessidade de uma instituição formadora da competência técnica dos professores fosse sentida.
O governo republicano possibilitou a consolidação de um espaço público específico para a formação do professor, o ordenamento de conteúdos, normas e práticas e a estruturação de um corpus profissional. Dominique Juliá (2001) situou historicamente a invenção desses elementos para a Europa. Segundo esse autor, a partir do século XVI foi possível perceber a existência de um espaço escolar, com mobiliário e material específicos. A esse locus se agregaram uma lógica de funcionamento em classes que atingiam níveis de progressão e um conjunto de profissionais especializados em forma de corporação ou congregação.
No Brasil, a obrigatoriedade da oferta de escolas de primeiras letras ocorreu na década de 20 do século XIX10, assim como as primeiras escolas normais nas duas décadas posteriores, iniciando movimento de formatação desses elementos no país. No caso da Bahia, a construção de prédios escolares e a formação de um corpo mínimo de professores para assumir as classes encontraram maior vigor no início do século XX. Até então temos a condição de aluno-mestre que aprende a arte de ensinar com um professor em sua classe. Um processo lento de constituição formal dos professores primários baianos.
Muitos foram os embates, os discursos, as reformas para “moldar” um modus operandi que expressasse e definisse o professor. Para Portugal, Nóvoa aponta que as Escolas Normais por um lado constituíram lugares de controle dos profissionais; por outro, esse mesmo espaço tornou-se campo de afirmação profissional de professores solidários (Nóvoa, 1992, p. 15).
Esse duplo e por vezes conflituoso movimento de formação docente, na Bahia, ganha tintas mais fortes com a atuação política que os professores assumiram ao longo da história republicana. No início do século XX temos um grupo de professores atuantes na política, proferindo palestras, produzindo livros, escrevendo em jornais e revistas, assumindo cargos de confiança, tinham assento no Conselho Superior de Educação, além de deflagrarem uma longa greve em 1918 (professores primários da capital).
Afora os que entravam para a vida política, foi possível perceber professores que atuavam nos bastidores do executivo assessorando na elaboração de leis e na gestão escolar. No livro escrito por Alípio Franca para o centenário da Escola Normal, o autor se refere a alguns professores como Cassiano França que ajudou na elaboração do Regulamento de 1890, sob a condução de Satyro Dias (Franca, 1936) e Antonio Bahia da Silva Araújo, professor primário da cidade de Salvador que se elegeu deputado duas vezes, membro do Conselho Superior de Ensino e inspetor geral de ensino da capital.11
Essa característica intelectual de uma parte do corpo docente foi importante na república baiana e na construção da carreira de professor. Da parte dos professores, o campo de disputa aberto foi fundamental para que reivindicações se tornassem direitos e também compusessem o conjunto de leis.
A legislação e a condição docente
Nos textos legais das Reformas do Ensino no Estado da Bahia - 1890/1919 analisados, percebemos como certos aspectos definidores da condição docente foram passando por alterações lentas que preservavam as regulamentações do Império. Trataremos agora de alguns desses pontos.
O acesso/recrutamento à função de professor primário apresentou na legislação uma dinâmica lenta de conquista da autonomia profissional e de preservação do campo de trabalho para a categoria. Vagarosamente as normas jurídicas foram estreitando, sem fechar, o acesso à função na rede pública, por um lado permitindo que apenas os especialistas, portadores de diplomas das Escolas Normais, fossem considerados aptos e; por outro, reduzindo a interferência do governo na escolha desses profissionais via indicações políticas.
Se no início do regime republicano pós 1889 a legislação estabelecia o controle de entrada no serviço público ao governo com a simples nomeação para as cadeiras de 1ª classe12 “e as de 2ª, 3ª e 4ª, por acesso sobre a antiguidade absoluta ou merecimento distincto” (Regulamento da Instrução Primária e Secundária da Bahia - 1890, Art. 74), em 1919 o acesso se restringiu ao concurso como única forma de provimento. Para o leitor acompanhar a evolução desse quesito, o quadro abaixo mostra como o acesso/recrutamento à profissão de professor primário foi se configurando por meio da legislação entre 1890 e 1919.
ANO | 1890 | 1895 | 1904 | 1913/1914 | 1918/1919 | |
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LEGISLAÇÃO QUESTÕES CONSIDERADAS |
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REQUESITOS PARA EXERCÍCIO DA FUNÇÃO |
- Ter idade mínima de 18 para mulheres e 20 para homens; - Portar carta de aluno-mestre; - Apresentar folha corrida de isenção de crimes para homens e para as mulheres certidão de atestado civil, sendo que no caso de separação judicial certidão verbum ad verbum que comprove motivação não desonrosa; - Apresentar atestado de moralidade; - Atestado médico de não sofrer moléstia ou defeito incompatível com o magistério; - Atestado de vacinação; - Não ter sido condenado por crimes ou condenado a pena de galés ou prisão com trabalho. |
- Ter carta de aluno-mestre conferido pelas escolas normais; - Idoneidade moral com atestado de pais de família ou autoridades; - Não sofrer moléstia ou ter defeitos; - Para as mulheres certidão de atestado civil; - Não ter perdido o emprego federal, estadual ou municipal por sentença judicial; - Não ter sofrido condenação por crime contra a propriedade, moralidade e bons costumes; - Não ter perdido a cadeira por processo disciplinar. |
- Ter carta de aluno-mestre do Instituto Normal do Estado; - Prova de capacidade moral, atestada por autoridades judiciais; - Atestado médico de vacinação; - Para as senhoras, comprovação do estado civil, sendo que no caso de separação judicial certidão verbum ad verbum que comprove motivação não desonrosa. - Não ter sentença judicial com perda de emprego; - Não ter condenação por crime; - Não ter sofrido processo administrativo. |
- Requerimento com documentos probatórios; - Carta de aluno-mestre dada pelo Instituto Normal ou outras instituições normais do Estado equiparadas. |
- Carta de Professor Primário pela Escola Normal do estado, ou outro Instituto congênere equiparado; - Prova de idoneidade moral, atestada pelas autoridades judiciárias da comarca de seu domicílio ou por pais de família bem reputados; - Atestado médico e vacinação ou revacinação praticada dentro dos prazos legais e de que sofra de moléstia contagiosa ou defeitos incompatíveis com o exercício do magistério; - As senhoras casadas, mas separadas judicialmente, deverão provar mediante certidão ‘verbum ad verbum’ das respectivas sentenças, que o motivo da separação não lhes é desonroso; - Não ter perdido emprego federal, estadual ou municipal, inclusive cadeira de ensino, ou tiverem outra nota que os desabone, verificada em processo regular. |
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ACESSO À FUNÇÃO | 1ª classe (1ª investidura) - por nomeação, apresentando o aluno-mestre requerimento com provas de capacidade moral e intelectual; 2ª, 3ª e 4ª classe - o Diretor Geral apresenta uma lista com o nome de dois professores mais antigos e de um de mérito notório, comprovado por publicação de obras didáticas e ausência de faltas em serviço; - A legislação permite que pessoas sem diplomação (aluno-mestre) concorram a vagas. |
Adjunto13 - Será nomeado pelo governo para primeira investidura. O adjunto ascende à condição de professor efetivo com a criação ou vacância de cadeira e apresente melhores notas, assiduidade, zelo e vocação; O provimento para professor de Escola Complementar14 e Escola Superior acontece por concurso de provas (escrita, oral e prática da regência); - A legislação permite que pessoas sem diplomação (aluno-mestre) concorram a vagas. |
4ª classe/adjunto - primeira investidura por meio de concurso com prova escrita e oral-prática diante de mesa examinadora; 1ª, 2ª e 3ª classes - o Inspetor Geral apresenta lista com seis nomes de professores para escolha do governo; Para acesso às escolas complementares era necessário novo concurso; - A legislação permite que pessoas sem diplomação (aluno-mestre) concorram a vagas. |
3ª classe/escola infantil/adjunto - primeira investidura com apresentação de carta de aluno-mestre dada pelo Instituto Normal/Caetité/ Barra ou educandário do Coração de Jesus e requerimento; 2ª classe - entrega de documentos que comprovem antiguidade ou merecimento15 e exercício em escolas de 3ª classe por um ano; 1ª classe/grupo escolar - concurso público de provas (escrita, oral e prática), no Instituto Normal entre professores com 3 anos de exercício no magistério. |
3ª classe - primeira investidura por concurso público de títulos e documentos (atestados de capacidade moral, intelectual e científica) para escola Elementar; 2ª classe - concurso público de títulos e 1 ano de efetivo exercício do magistério; 1ª classe/Grupo Escolar - concurso e 3 anos de efetivo exercício do magistério; - Após julgamento e classificação16 dos documentos a Inspetoria de Ensino emite parecer. Adjuntos - diplomados, nomeados em comissão, sendo dispensados quando do interesse do governo. Para o interior se admite não diplomados. Para a Escola Infantil concurso, sob condução de comissão examinadora e realização de uma prova escrita e uma prova prática. Para as Escolas Complementares concurso sob condução de comissão animadora e realização de três provas: uma escrita, uma oral e uma prática.17 - A lei permite que bacharéis em ciências e letras diplomados no Ginásio e aprovados na matéria de pedagogia façam concurso. |
Fonte: Leis de reforma e Regulamentos da Instrução 1890-1919 (Coleção Memória da Educação da Bahia)
Nota-se que o ingresso na carreira docente no setor público foi adquirindo maior complexidade ao longo dos anos, alcançando em 1919 maior rigor e detalhamento nos processos seletivos. Em 1904 o acesso inicial era por concurso para o nível inferior da carreira; depois as vagas das cadeiras dos níveis superiores obedecem a critérios (merecimento e antiguidade) que podem sugerir preferências políticas; para o ensino complementar e superior o concurso era necessário. Uma década depois, o acesso inicial passou a ser realizado por simples requerimento e a ascensão na carreira por concurso. Em ambos os casos a categoria ficava refém do uso político dos governos vigentes, pois os critérios eram pouco objetivos e a entrada de não diplomados facilitada.
Em 1913/1914, mesmo com parte do acesso ainda sob controle do governo, os critérios ficam mais claros com o estabelecimento dos documentos que serviriam de prova de “antiguidade e merecimento”. Interessante notar como a legislação foi definindo aos poucos o “currículo formativo” necessário ao professor para ascensão na carreira, sendo que a experiência, a participação em comissões e a produção intelectual passam a ser incorporados aos procedimentos da profissão.
Ficou tácito, no entanto, que os governos republicanos nunca abriram mão de meios legais para nomear adjuntos/professores para as classes. O uso político de cargos para pessoas de confiança e que se tornariam “agradecidas” pelo favor concedido ocorreu em toda a Primeira República. Apesar de não abordado nesse texto, o cargo de diretor sempre foi colocado nas normas jurídicas analisadas como “de confiança” e prerrogativa de indicação dos chefes do executivo.
Por outro lado, a legislação desse início de governo republicano segue a tendência das normas vigentes no império e, de certa forma, espelha uma concepção sobre o professor e sua constituição. O Regulamento de 05 de janeiro de 1881 sobre a instrução, que será a base da legislação de 1890 e 1895, estabelecia como forma de acesso para as cadeiras primárias a contratação por 3 anos para a 1ª classe, através da apresentação de requerimento e de provas de capacidade moral e capacidade intelectual (exame de habilitação/ carta de aluno-mestre/ título literário ou científico/ estrangeiro reconhecido pelo governo) e o concurso para a 2ª e 3ª classes.
Essa resistência ao concurso público por parte do governo estava presente em outro importante documento, que citamos como referência para a legislação republicana, apesar de produzido no Império, o Parecer e Projeto da Comissão de Instrução Pública para a Reforma do Ensino Primário nº 224, de 1883. Tendo como relator o senador Rui Barbosa, o texto defende o merecimento como fator principal para admissão ao magistério. Para os pareceristas, o concurso “afasta os sábios” e não avalia a vocação pois admite apenas bons oradores, além de propiciar ao aprovado a ideia de que ele tem o direito àquele lugar e não precisa de maiores esforços (Câmara dos Deputados, 1883, p. 291).
Os argumentos usados no parecer dos parlamentares apontam para uma tendência do governo em conduzir a composição do professorado público, ao buscar candidatos com o perfil mais próximo ao que se desejava para um professor/uma professora, revelado por sua “vocação” ao magistério. Apenas o conhecimento intelectual não bastava para o exercício da função, pois a docência requisitava um dom nato que seria lapidado nas Escolas Normais, responsáveis “em habilitar para a prática real da educação” (p. 276).
Ao atentarmos para os autores citados no Parecer que ampararam as ideias do texto da proposta de reforma de 1883, em sua maioria, foram de intelectuais franceses18. Rui Barbosa e seus colegas buscaram em membros da administração do governo e do parlamento francês apoio para reforçar uma posição contra o concurso como forma de recrutamento, entendido como “falso liberalismo”, como ineficaz e desmoralizante (p. 289). As opiniões arregimentadas foram unânimes na defesa da vocação superar os conhecimentos específicos da profissão como critério de seleção do professor e, por isso, a nomeação direta do governo/rei ou da corporação de professores produziria resultados positivos ao ensino.
Mas como se definiria essa vocação e quais os predicados que a manifestam? Um professor precisaria ter aptidões de espírito, morais e intelectuais que consistiam em “rectidão de juízo, (...) inclinação do coração, propriedades da alma, qualidades moraes, em summa, [talentos] de que depende a bondade e a eficácia de todo o ensino” (p. 291). Sendo exigido ainda entusiasmo pela profissão, “extremos de paciência”, “de generosidade e de compleição affectuosa. Do conjunto de todos esses predicados moraes e intelectuaes resulta a vocação” (p. 292).
Os requisitos para ingresso no magistério apresentados no conjunto de textos das Reformas de Ensino 1890-1919 exprimem as ideias discutidas no Parecer de 1883. A solicitação de atestado moral emitido por autoridade dos candidatos prevaleceu durante todo o período; junta-se ainda a folha corrida, a ausência de condenação de qualquer crime cometido e processo disciplinar em serviço público. Almeja-se a “retidão do juízo”, a imagem de uma pessoa que por agir com respeito às leis e à Pátria pode ser modelo para outras pessoas, no caso crianças que estavam em formação.
Quanto à adoção do concurso como instrumento de verificação da habilidade para o exercício do magistério, a legislação não seguiu diretamente as orientações do Parecer, mas podemos perceber mecanismos de controle do processo seletivo compatíveis com a concepção de magistério correspondente aos intelectuais da época, principalmente os franceses citados.
O ingresso na carreira de professor primário ocorria de maneira gradual e sua ascensão requeria tempo. Em todos os textos legais analisados, a primeira investidura ocorria para o nível mais baixo da profissão, às vezes como adjunto e em lugar distante da capital. Para promoção deveria se submeter a novos concursos ou ser nomeado por autoridade, chegando à condição de professor e elevando o salário. Nos primeiros anos, a prerrogativa de escolha dos professores para ascender era do governo através de uma lista de nomes elaborada pelo diretor/inspetor de ensino e enviada para o governador. Posteriormente, se introduz o concurso de títulos em que o candidato/a deveria provar seu merecimento, aptidão, capacidade de ensinar, bom desempenho das funções, entre outras qualidades.
Outro aspecto importante a considerar, consiste no papel que a Escola Normal teve nesse processo. A elaboração dos pontos, a avaliação das provas, o exame e a classificação dos candidatos caberiam à Congregação da Escola Normal da Capital. Era a corporação profissional que julgava os atributos dos aspirantes ao serviço público de professor primário.
Se a legislação validava a ideia de que os próprios docentes conduzissem a seleção profissional; por outro lado, não compreendia que aquele espaço de formação fosse imprescindível para o exercício do magistério. Se a vocação predomina sobre os conhecimentos primários, qualquer pessoa poderia ter esse chamado e reunir condições para a docência. Dessa forma, a legislação sempre possibilitou que pessoas sem diplomação pudessem participar de concursos para professores, sendo que em 1913/14 não houve especificação sobre a matéria e em 1918/19 se permite que bacharéis que cursaram a matéria de Pedagogia possam concorrer ao magistério primário.
A própria denominação de professor obedece a uma hierarquia na legislação. Os diversos termos estabelecidos no texto legal expõem as divisões na composição da categoria profissional.
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ANO | 1890/1891 | 1895 | 1904 | 1913/1914 | 1918/1919 |
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LEGISLAÇÃO QUESTÕES CONSIDERADAS |
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TIPOLOGIA DE PROFESSORES |
Professores; Adjunctos; Professores avulsos; Alunos-mestres. |
Compõe os Professores Primários: Professores; Adjuntos; Alunos-mestres. |
Não há uma seção que especifique a tipologia de professores. O capítulo II se denomina “PROFESSORES PRIMÁRIOS” e fala em Magistério público primário. Professores; Adjuntos; Alunos- mestres. |
Os professores primários são classificados: Professores de escolas isoladas; Professores de grupos; Professores adjuntos (Efetivos ou substitutos). |
O magistério primário será composto de: Professores; Adjunctos; Substitutos. |
Fonte: Leis de reforma e Regulamentos da Instrução 1890-1919 (Coleção Memória da Educação da Bahia)
O magistério primário, nas Reformas tratadas, apresentou uma composição plural a partir de funções e situações distintas no serviço público. Os professores eram nomeados e assumiam as responsabilidades de uma classe; os adjuntos eram auxiliares dos professores em classes que fossem desdobradas (divididas em duas ou mais); os professores avulsos eram os que tiveram suas escolas extintas e ficaram à disposição; os alunos-mestres eram os que acabavam de sair do curso de magistério ou que recebiam carta de um professor experiente afirmando sua condição de exercer a profissão; e substitutos os que substituíam os professores ou adjuntos em situações de impedimento ou falta e não precisavam, muitas vezes, ter diploma.
A legislação de 1913/14 destoa um pouco das outras ao considerar como professores todos os que atuam em classes, diferenciando o local da classe que atua (grupo escolar, escola isolada ou classe desdobrada).
Atuar em sala de aula não garantia o status legal de professor. Em sua condição de iniciante era denominado de aluno-mestre (nem estudante, nem professor), depois na função de adjunto como auxiliar de professor e, por fim, sua nomeação como professor. A essa divisão correspondia vencimentos diferenciados e, por vezes, apenas gratificações.
De acordo com o corpo da lei das legislações analisadas, a formação na Escola Normal e a aquisição de certificado/diploma não eram suficientes para afiançar o acesso ao grau de professor no magistério primário público. Subjaz a essa constatação uma concepção de formação de professor em que aos conhecimentos formalmente adquiridos deveriam ser agregados outros elementos que completariam a profissão. Retomemos o Parecer de 1883 para buscar as raízes desse entendimento/projeto que pautou as normas legais nos primeiros anos da República.
Segundo o relator Rui Barbosa, as disposições legais da proposta seguiram o direito prussiano, considerado o melhor modelo. Em suas palavras,
Não basta a escola normal para averiguar, e firmar a vocação. Para que essa verificação seja completa, a experiência tem ensinado os povos, como a Alemanha, cujas qualidades pedagógicas são mais acentuadas, a procurarem a segurança numa série de precauções ulteriores” (Câmara dos Deputados, 1883, p. 292).
A ideia de vocação como elemento primordial para a formação do magistério acompanha a lógica da carreira. Se havia o entendimento de que o diploma de professor não bastava para se verificar a vocação, e como os instrumentos de acesso como o concurso também não abonavam completamente o talento, precauções legais precisariam ser estabelecidas para combater “o pendor para a indolência”, próprios de uma “carreira de perspectivas modestas como o professorado, onde o trabalho não encontra os incitamentos da ambição, é imprescindível (...) [aplicar] preservativos contra a inércia” (Câmara, 1883, p. 292).
No discurso do parlamentar-relator, o magistério de primeiras letras constituía uma profissão sem perspectivas de crescimento social e de remuneração, por isso cabia ao governo criar dispositivos19 de fiscalização sobre a atuação do professor, uma “aferição completa das disposições profissionais” e regras de ascensão profissional, em que o professorado passasse a ser dividido em classes. O texto afirma que por meio desses estímulos, de apuração vocacional e estabelecimento de uma “elevação gradual em dignidade e vantagens” poder-se-ia afastar o professorado da “ferrugem da preguiça e da indiferença”.
A elite política da Bahia republicana considerou o alvitre do parlamentar baiano, mesmo sendo oriundo do Império e voltado para a educação na Côrte. A promoção na carreira de professor foi construída pela legislação republicana tendo como norte a ideia de que a vocação, entendida como amor às leis, à pátria e devotamento ao ensino, fosse o pilar da profissão; e que seu desenvolvimento e afirmação aconteceriam ao longo de seus anos de estudos e de sua atuação no magistério.
Cabia ao legislador criar normas que facilitassem a verificação dos dons de professor e que, ainda, mantivessem o interesse pelo estudo e pelo crescimento na carreira através de várias promoções. Competia ao administrador fiscalizar o cumprimento e convencer a classe do professorado que sua função na sociedade era a mais nobre e imprescindível para a grandeza da nação republicana, uma virtude.
Resulta desse processo uma permanente luta para constituir um sistema de inspeção e fiscalização escolar que atuasse em todo o estado. Questões de recursos financeiros, disponibilidade de profissionais qualificados e a extensão do território resultaram na adoção de diferentes modelos e em fracassos que se refletiam na qualidade do ensino e na dificuldade de reunir dados e documentação que retratassem a história da implantação e consolidação de nosso ensino primário.
Essas ideias estiveram presentes em outro ponto importante para se entender o desenvolvimento da legislação quanto à construção da carreira de professor primário: a formação profissional. Como os diferentes governos baianos pensaram o acompanhamento da vocação dos professores? Se havia uma concepção de formação de professores, em que prevalecia a ideia de “cultura da vocação” voltada para a “compleição moral e tino profissional” (Câmara, 1883, p. 278), buscamos entender como ela foi expressa através da normatização legal.
Na leitura dos Atos, Leis e Decretos que formam o conjunto de Reformas do Ensino de 1890 a 1919 percebemos que os artigos que remetiam a alguma forma de contato do professor com conhecimentos específicos da profissão durante sua atuação estavam diluídos no corpo da lei. As normas encontradas, que tratavam do aperfeiçoamento do professor, estavam dispostas nas seções de fiscalização do ensino, quase sempre sob a responsabilidade de um inspetor ou delegado escolar.
O alinhamento das ações de aperfeiçoamento à fiscalização do ensino mantinha consonância com o pensamento de que para se tornar professor/professora seria necessário vocação e educação, não apenas instrução. A educação do espírito e a firmeza da vocação ocorreriam de maneira gradual, no exercício da função e sob a orientação de outros mais experientes. De outra forma, na concepção da elite dirigente da época, a estagnação e a lassidão se instalariam entre o professorado e, consequentemente, na educação.
Por um lado, o magistério primário era entendido como uma profissão oriunda de um talento interno, de um chamado para o ensino; por outro, essa vocação só poderia ser avivada através da educação do espírito. A ausência de um ou outro aspecto na formação do professor resultaria na deficiência do ensino, por isso a necessidade de uma fiscalização rigorosa e direta sobre o professorado.
A legislação apresentou algumas variações no modo como aconteceria essa formação profissional. O acompanhamento individual acontecia através do contato direto com o professor: i) ministrado pelo inspetor/delegado escolar ao visitar as escolas; ii) por meio do professor que orientava pedagogicamente o adjunto; iii) do diretor do grupo escolar guiando na arte de ensinar; e iv) através de viagens para estudos na Europa ou América do Norte. A exceção dessa última, a formação ocorreria no próprio local de trabalho de atuação do professor/da professora e seria realizada por quem estava em posição de fiscalização e controle.
Outro dispositivo indicado na legislação, as conferências ofereciam uma configuração coletiva e poderiam envolver pessoas da sociedade em geral. Esse modelo de formação esteve presente em todas as legislações durante o período estudado, sendo que seu desenho se alterou nas normas legais de 1913/1914 ao reeditarem a conferência dos professores presente na Reforma de 1873/1875, em que os professores se reuniram na capital para discutirem sobre métodos de ensino (Brandão, 2012).
Vale ressaltar que as Conferências Pedagógicas do período republicano se realizaram no âmbito da Intendência Municipal de Salvador20 e dela participavam apenas professores primários que atuavam na capital. Não foram uma iniciativa do Governo Estadual e não tinham reflexo no Estado como um todo. E foi sob a chancela da Intendência Municipal que também aconteceram as conferências em 189621, seguindo o formato de apresentação de teses pelos professores.
No texto legal, os governos republicanos retomaram a ideia das conferências e apresentaram formatos diferenciados, aconteceriam nas localidades e seriam ministradas e/ou organizadas pelos inspetores/delegados escolares. O professor seria ouvinte e tomaria conhecimento, principalmente, do ensino intuitivo. Outra particularidade assumida por esse modelo de conferência seria seu aspecto disseminador dos ideais republicanos de educação. As conferências assumiram o objetivo de vulgarização dos conhecimentos pedagógicos, em especial do método intuitivo22, para a população.
As leis educacionais não esboçaram uma política ampliada de formação/atualização; se rompeu em parte com a tradição das conferências do Império, mas não apresentou outra alternativa ao manter sob a responsabilidade do inspetor escolar ministrar “os meios de aprenderem ou se aperfeiçoarem no ensino de novas matérias” (Santana; Menezes, et al, 2011).
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ANO | 1890/1891 | 1895 | 1904 | 1913/1914 | 1918/1919 |
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LEGISLAÇÃO QUESTÕES CONSIDERADAS |
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CAPÍTULO/ SEÇÃO DA LEI QUE FOI ENCONTRADO O ARTIGO |
Inspeção do Ensino - Dos Inspetores do Distrito | Da Administração e Fiscalização do Ensino Disposições Gerais |
Da Fiscalização do Ensino dos Delegados Escolares | Da Direção e Fiscalização do Ensino - Dos Delegados Itinerantes Do Magistério Do Diretor do Grupo Escolar |
Do Ensino Primário - Dos Delegados Itinerantes Do Magistério Primário Dos Grupos Escolares Do Regime Pedagógico |
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FORMAÇÃO EM SERVIÇO (referência a situações ou atividades que remetem para o contato do professor/da professora com conhecimentos específicos da profissão) | Art. 20 e 21 Os inspetores serão os responsáveis por ministrar aos professores “os meios de aprenderem ou se aperfeiçoarem no ensino das novas matérias”. Bianualmente, os inspetores assistirão cursos das escolas anexas aos Externatos Normais conhecer os novos métodos para transmissão aos professores. |
Art. 93 Os delegados de districto escolar “promoverão nas localidades conferencias pedagógicas populares, com o fim de vulgarizar os methodos e meios proveitosos de ensino”. Art. 97. “De quatro em quatro anos será enviado à Europa ou à América do Norte um lente dos estabelecimentos de ensino publico, com a missão de estudar as instituições e praticas do ensino. O lente enviado demorar-se-á até um anno, excluindo o tempo de ida e volta, e lhe serão abonados por trimestres adeantados, durante o tempo de sua ausência, em ouro ou par, seus vencimentos augmentados de 50%, assim como as despesas de transporte. |
Art. 19 “Promover, auxiliados pelo delegado residente, na sede de cada termo por onde passarem, uma conferência a que asssistirão os professores primários da localidade e da vizinhança e na qual explicarão em linguagem simples e clara, sem floreios e ornatos inúteis, inteligível para todas as pessoas do povo, os processos e as vantagens do ensino intuitivo, as regras elementares da hygiene escolar e infantil e os principaes preceitos e condições para dar aos meninos uma educação physica, intelectual, moral e cívica, própria a fazel-os fortes, perseverantes, honestos, trabalhadores e bons patriotas;” Art. 445. Os adjuntos executarão as determinações dos respectivos professores, em tudo quanto se referir ao ensino e à disciplina. |
Art. 52 - 54 Os professores adjuntos, como auxiliares dos efetivos, seguiam a orientação pedagógica destes últimos; De 2 em 2 anos acontece as Conferências Pedagógicas, em sessões públicas, com temas do ensino primário. Prevê a criação de um Museu-escola para “retemperar a prática de methodos modernos de ensino” Art. 42 Atribuição do Delegado Itinerante “Promover, auxiliados pelo delegado residente, na sede de cada termo por onde passarem, uma conferência a que asssistirão os professores primários da localidade e da vizinhança e na qual explicarão em linguagem simples e clara, sem floreios e ornatos inúteis, inteligível para todas as pessoas do povo, os processos e as vantagens do ensino intuitivo, as regras elementares da hygiene escolar e infantil e os principaes preceitos e condições para dar aos meninos uma educação physica, intelectual, moral e cívica, própria a fazel-os fortes, perseverantes, honestos, trabalhadores e bons patriotas;” Art. 121 - 122 - O diretor percorrerá, durante a sessão escolar, as diversas classes, impulsionando o ensino, guiando os professores na execução dos melhores methodos e processos da arte de ensinar. |
Art. 40 “Realizar auxiliados pelo delegado residente, na sede de cada termo por onde passarem, uma conferência a que assistirão os professores primários da localidade e da vizinhança e na qual explicarão em linguagem simples e clara, sem floreios e ornatos inúteis, inteligível para todas as pessoas do povo, os processos e as vantagens do ensino intuitivo, as regras elementares da hygiene escolar e infantil e os principaes preceitos e condições para dar aos meninos uma educação physica, intelectual, moral e cívica, própria a fazel-os fortes, perseverantes, honestos, trabalhadores e bons patriotas;” Art. 82 Os adjuntos serão orientados pedagogicamente pelo professor. Art. 132 O diretor do Grupo Escolar “percorrerá, durante a sessão, as diversas classes, impulsionando o ensino e guiando os professores na execução dos melhores methodos e processos na arte de ensinar.” Art. 201 “Cada obra para o ensino primário deverá ter como introdução a notícia do methodo e dos processos que o autor aconselhará para o melhor êxito de seu livro, e o texto ilustrado por imagens que symbolizem as suas partes essenciais.” |
Fonte: Leis de reforma e Regulamentos da Instrução 1890-1919 (Coleção Memória da Educação da Bahia)
Mesmo oriundas da política do Império, as Conferências Pedagógicas de 1896 e de 1913/1914 esboçaram pela primeira vez na República baiana um esforço, mesmo que restrito à capital, em organizar ações direcionadas à formação profissional do magistério. Professores e professoras apresentando suas teses sobre temáticas relacionadas aos seus desafios cotidianos nas classes/escolas, discutindo os reais problemas da educação e apontando possibilidades de resoluções. Deixam de ser meros ouvintes e passam a protagonistas. Em conjunto com a referência para criação de um Museu-escola, com o objetivo de “retemperar a prática dos methodos modernos de ensino” reforçava a intenção do governo em criar políticas específicas para a formação profissional do magistério primário. Essa iniciativa se encerrou rapidamente.
Em 1918/1919, retorna-se ao processo formativo em que o delegado itinerante se responsabiliza por conferências nas localidades. O formato de grandes encontros dos professores, autores de teses sobre o ensino, se esvai. O Governo retroagiu na ideia de uma política direcionada à formação e autonomia intelectual do professor primário que retomou sua condição de ouvinte.
Consideramos sintomático dessa condição de receptor de conhecimento a edição do Art. 201 (que se refere ao formato da obra didática) do Regulamento de 1919 como uma espécie de contato do professor com conhecimentos específicos e, de certa forma, atuante em sua formação. Ao introduzir a obrigatoriedade nos livros didáticos de “conselhos” do autor sobre o melhor método e processo para aplicação do conteúdo do livro, transformou-se a obra didática em manual com recomendações para atuação em sala de aula.
Considerações finais
A república instalada na Bahia dois dias após o 15 de novembro expôs a conveniência política de seguir as decisões do novo regime sem maiores alterações nas relações de poder. Monarquistas incorporam em seus discursos os apelos republicanos, mas as práticas liberais do Império se efetivam no trato com a realidade. As propostas do governo para a educação acompanharam esse fluxo; quatro meses depois de acomodado o novo regime se anula a Reforma do governo Manoel Victorino e se determina o Regulamento de 1881 como legislação vigente.
A permanência de normatizações do antigo regime anunciava a permanência de ideais liberais que ressoaram por toda a Primeira República. No caso da educação, as concepções expressas no Parecer e Reforma da Educação Primária de 1883, cujo relator era Rui Barbosa, ícone da política baiana, repercutiram nas normas legais produzidas nos primeiros governos republicanos.
Neste artigo procuramos entender algumas das concepções que permaneceram presentes no conjunto de leis editadas pela república baiana e que representavam uma ideia de professor e de recrutamento para a profissão a partir de três marcadores legais: o acesso à função, a tipologia de professor e a formação profissional.
A visão que prevaleceu nos diferentes governos e que predominou nos textos legais entendia que o perfil do professor era resultante de um chamado interno, de retidão de espírito, predicados morais e intelectuais, ou seja, da vocação, associado aos conhecimentos específicos da profissão. Foi esta lógica que regeu a criação de dispositivos de acesso e de acompanhamento do professor na carreira pública.
Nas três primeiras décadas republicanas, o governo não abriu mão de nomear sem concurso ou exames pessoas para o exercício em sala de aula ou para assumir funções de direção e supervisão da instrução primária. A chamada “licença legal” que tornava a profissão lugar exclusivo de atuação de especialista não se efetivou na Bahia republicana.
Como o magistério foi compreendido pela elite republicana como uma profissão sem perspectiva de crescimento material e social, o que tenderia à indolência, os governos criaram mecanismos de fiscalização de desempenho e regras de ascensão para estimular entre os professores a busca por melhoria salarial através de novas nomeações, inclusive para cargos de confiança como diretores e delegados/inspetores de ensino.
Por entender que a professora e o professor precisavam ser tutelados (controlados) para “avivar” sua vocação, a condução do Estado Republicano foi por uma formação mais difusa e quase individual, nos próprios termos/localidades e sob a responsabilidade do delegado/supervisor que conhecia o local. Também uma co-formação entre os professores e os adjuntos sem maiores acompanhamentos.
Entendemos que outros aspectos não trabalhados neste artigo precisam avançar na pesquisa para entendermos a constituição da profissão do professor primário na Bahia republicana, principalmente quanto à atuação dos professores, às concepções formativas no currículo da Escola Normal e na relação da categoria com o jogo político das oligarquias. Aguardemos os próximos capítulos.