Introdução
Em 1818 Joseph Jacotot, um consciencioso professor e leitor de literatura francesa na Universidade de Louvain, experimentou uma aventura intelectual que se tornara a base fundamental de seu método de ensino, descoberto pelo acaso. Esse texto tem como propósito apresentar a vida e obra do fundador do Ensino Universal; bem como analisar os aspectos históricos e filosóficos de seu método.
O Ensino Universal, também chamado por Rancière (2013) de método da vontade, método da emancipação, método universal ou método do acaso, tem por objetivo promover a emancipação intelectual e defender a hipótese de que qualquer um pode aprender o que quiser sem a necessidade de um mestre explicador. É um método fundamentado na filosofia Panecástica, criada pelo próprio Jacotot, e busca o todo da inteligência humana em cada manifestação intelectual, afirmando que todas as inteligências são iguais.
O método de Jacotot conviveu com uma profusão de diferentes métodos, no momento crucial em que a sociedade francesa firmava suas instituições e leis com o fim de garantir a instrução pública, transformar a condição do homem ignorante e incivilizado em cidadão esclarecido. O Ensino Universal seguia na contramão desse pensamento ao defender que não se consegue um povo livre e igual com leis e constituições (CASTILLO, 2013, p.75) e isso o faria destoar dentre os outros métodos. Tanto que quando perguntado pelo ministro da Instrução Pública francês sobre como o governo deveria organizar a instrução, Jacotot lhe respondeu que o governo nada devia quanto à instrução, já não se deve ao povo o que este pode fazer por si mesmo (Ibid.,).
Apesar de esquecido no museu das novidades pedagógicas, sendo resgatado somente a partir de 1987 pelo filósofo político, Jacques Rancière (TONIATTI, 2015, p. 45), o método do Ensino Universal teve amplo alcance no século XIX, estendendo-se a diversas regiões. Erigiram-se muitos adeptos do método, mas também, como é de se esperar, constatam-se duras críticas por parte de acadêmicos, jornalistas e sociedades de sábios da época.
Justifica-se a importância de tentar compreender a relação da vida e obra de Joseph Jacotot para que se perceba de que lugar se está falando. Da mesma forma, analisar os principais aspectos históricos e filosóficos do método por ele descoberto nos fará recompor o pensamento desse personagem que se colocou firmemente contra a crença educativa de sua época; baseada, segundo ele, em métodos da desrazão, obra de uma razão superior que determina o sacrifício de uma razão, supostamente inferior, em nome de uma igualdade futura entre ambas (RANCIÈRE, 2013).
Para cumprir nosso intento nos basearemos teoricamente nas produções acadêmicas que trazem em si reflexões pedagógicas/filosóficas sobre o método do Ensino Universal de Jacotot, tais como: RANCIÈRE (2013); CASTILLO (2013); JÓDAR E GÓMEZ (2003); CERLETTI (2003); TONIATTI (2015) entre outros autores. Essas produções dão conta da profundidade que o método do Ensino Universal carrega por tocar no ponto fundamental da educação: a igualdade. Será ela um objetivo a ser alcançado pela instrução? Ou, como defendeu Jacotot, a menos que se a tome como ponto de partida jamais a atingiremos?
Queremos aqui pensar juntamente com os teóricos, os pontos categóricos levantados pelo método de Jacotot, como: emancipação, igualdade, explicação, ignorância, saber, etc. Nesse sentido, procuramos responder a dupla questão: Quem foi Joseph Jacotot e quais os principais aspectos históricos e filosóficos de seu método?
Foram estabelecidos como procedimentos metodológicos, a princípio, sondagem das investigações científicas já realizadas sobre o objeto em questão, disponíveis nos periódicos da Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior). Buscamos ainda, fazer uma análise crítica das leituras, intercruzando informações relevantes contidas nas produções. Também foi realizada pesquisa sobre o contexto Sócio Histórico da época, considerando que nos diferentes períodos da história da sociedade, encontramos também, diferentes ideias e teorias sociais, assim como, diferentes opiniões e instituições políticas. Tornando primordial compreender que esse fato se explica pelas diversas condições de vida material da sociedade, nos diferentes períodos do desenvolvimento social (STALIN, 1979, p. 29).
Compreender as ideias de Jacotot, tão destoantes de sua época histórica, só é possível integrando-as a sua vida e comportamento, sabendo que este comportamento não é determinado somente pelo indivíduo, mas, sobretudo, pelo grupo social e pelas contingências dos acontecimentos político-sociais a que está submetido o sujeito. Jacotot pretendia romper com uma crença educativa que aos olhos de seus contemporâneos era inquebrantável.
A fim de compreender sua especificidade como intelectual nos baseamos no estudo de Sirinelli (2003), para caracterizar Jacotot enquanto um mediador cultural, pertencente ao grupo dos “despertadores” que, “sem serem obrigatoriamente conhecidos ou sem terem sempre adquirido uma reputação relacionada com seu papel real, acabam por representar um fermento para as gerações intelectuais seguintes, exercendo uma influência cultural e mesmo política” (SIRINELLI, 2003, p. 246).
Vida e obra de Joseph Jacotot
Nascido em março de 1770 na cidade francesa de Dijon e falecido em 1840 na cidade de Paris; Jean-Joseph Jacotot atuou como professor em diversas áreas do conhecimento. Foi advogado, militar a serviço da Revolução francesa e pedagogo (TONIATTI, 2015, p. 45).
Jacotot frequentou o colégio de Dijon e já aos dezenove anos foi nomeado professor de humanidades, mais tarde estudou Direito e Matemática por conta própria. Organizou também a federação da juventude de Dijon, em 1788, unindo-a com as de outras províncias em defesa da Revolução. Foi ainda eleito capitão de uma companhia de artilharia do batalhão da Côte d’Or, departamento francês onde se localizava sua cidade. Tempos depois foi diretor substituto da Escola Politécnica em 1794 e, ocupou em Dijon a cadeira de Método das Ciências. Segundo Toniatti: “Jacotot desde então já inovava em sua pedagogia [mesmo que sem o saber], motivando os alunos a se posicionar e argumentar livremente em debates que ele se limitava a enunciar”. (Ibid., 2015, p. 48)
Toniatti, citando a biografia de Jacotot, escrita por Achille Guillard (1799-7876) em 1860, elucida que durante sua vida, o criador do Ensino Universal, publicou várias obras, que foram reeditadas repetidas vezes e polemizadas em diferentes países. Em 1818 publicou Enseignement universel - Langue maternelle [Ensino universal - Língua materna], dedicada ao ensino de Francês e onde lança as bases de seu método; essa obra foi traduzida duas vezes para o alemão. Em 1824 publica Langue étrangère [Língua estrangeira] em que trata do ensino do latim, no mesmo ano, publica Musique, dessin et peinture [Música, desenho e pintura]. Em 1828 é a vez de Mathématiques [Matemática]. Depois, em 1835 Jacotot publicou em Paris Droit et philosophie panécastique [Direito e filosofia panecástica]. Ainda após a sua morte, seus dois filhos publicaram Mélanges posthumes [Misturas póstumas] em 1841. Além disso, foram publicados diversos artigos no Journal de l’Émancipation intellectuelle [Jornal da Emancipação intelectual], (...) de 1829 a 1842” e também no Journal de philosophie panécastique [Jornal de filosofia panecástica]. (TONIATTI, 2015, p. 50-51).
Para Sirinelli (2003), reconstituir itinerários de intelectuais apresenta-se problemático, uma vez que as trajetórias exigem naturalmente, esclarecimento, balizamento e interpretação, sem cair na generalização. Vislumbrar aspectos do itinerário de Joseph Jacotot, ainda que preliminarmente, nos permite perceber as estruturas de sociabilidade nas quais o intelectual estivera envolvido.
Os anos de Revolução
Jacotot viveu entre os países de França, Holanda e Bélgica. Foi contemporâneo da Revolução Francesa, um processo social e político ocorrido na França entre 1789 e 1799, cujas principais implicações foram: a queda de Luís XVI, a abolição da monarquia e a proclamação da República. Mais que isso, através da Revolução:
A França forneceu o vocabulário e os temas da política liberal e radical-democrática para a maior parte do mundo. A França deu o primeiro grande exemplo, o conceito e o vocabulário do nacionalismo. A França forneceu os códigos legais, o modelo de organização técnica e científica e o sistema métrico de medidas para a maioria dos países. A ideologia do mundo moderno atingiu as antigas civilizações que tinham até então resistido as ideias europeias inicialmente através da influência francesa. Esta foi a obra da Revolução Francesa [...] (HOBSBAWN, 1981, p. 71-72).
O século XIX ficou conhecido como a “era da revolução democrática”, mas segundo o historiador Hobsbawn, a Revolução Francesa apresentou as mais profundas consequências de todos os fenômenos contemporâneos a ela, isso por três motivos: 1) ela ocorreu no Estado mais populoso e poderoso da Europa; 2) Ela foi uma revolução social de massa, diferentemente das revoluções antecessoras e até sucessoras a ela; 3) Ela foi, entre todas as revoluções contemporâneas, a única ecuménica. Por esses motivos suas ideias conseguiram revolucionar o mundo, tanto que repercutiram em vários países, ocasionaram os levantes que trouxeram à libertação da América Latina depois de 1808. Sua influência ganhou proporção universal, uma vez que forneceu o padrão para todos os movimentos revolucionários subsequentes, sendo suas ideias incorporadas ao socialismo e ao comunismo modernos. (Ibid., 1981, p. 72-73).
É claro que a Revolução não foi um movimento unitário e organizado em defesa de interesses iguais, a massa de trabalhadores pobres, estava nela por conta da fome e da opressão, eram motivos práticos e urgentes. Não conseguiam atuar de forma independente, por isso, seguiam os líderes da Revolução, e estes pertenciam à outra classe: eram os burgueses, um grupo coeso, com ideias gerais bem formuladas, as do liberalismo clássico; herdadas dos filósofos e economistas do século XVIII, que para Hobsbawn: “podem ser, com justiça, considerados responsáveis pela Revolução. Ela teria ocorrido sem eles; mas eles provavelmente constituíram a diferença entre um simples colapso de um velho regime e a sua substituição rápida e efetiva por um novo”. (Ibid., p. 77).
Boto, em seu A escola do homem novo (1996), também destaca que o Movimento Iluminista predominou na Europa do século XVIII ao defender a superioridade da razão sobre a fé e, representar a visão de mundo da burguesia, apoiando valores liberais, tanto na política quanto na economia.
A Revolução, baseada nas ideias defendidas pelo liberalismo clássico, acreditava-se como um novo começo, em que o poder absoluto do rei se transferiria para o poder absoluto do povo. Era tempo de renegar um passado de antigas ideias de tradição, de hierarquia de monarcas, aristocratas e da Igreja Católica e de fazer o futuro baseado em novos princípios de liberdade, igualdade e fraternidade. A tão afamada Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 é a mais tácita demonstração do pensamento revolucionário burguês, pois:
Este documento é um manifesto contra a sociedade hierárquica de privilégios nobres, mas não um manifesto a favor de uma sociedade democrática e igualitária. “Os homens nascem e vivem livres e iguais perante as leis”, dizia seu primeiro artigo; mas ela também prevê a existência de distinções sociais, ainda que “somente no terreno da utilidade comum”. A propriedade privada era um direito natural, sagrado, inalienável e inviolável. Os homens eram iguais perante a lei e as profissões estavam igualmente abertas ao talento; mas, se a corrida começasse sem handicaps, era igualmente entendido como fato consumado que os corredores não terminariam juntos. A declaração afirmava (como contrário à hierarquia nobre ou absolutismo) que “todos os cidadãos têm o direito de colaborar na elaboração das leis”; mas “pessoalmente através de seus representantes”. E a assembleia representativa que ela vislumbrava como o órgão fundamental de governo não era necessariamente uma assembleia democraticamente eleita, nem o regime nela implícito pretendia eliminar os reis. Uma monarquia constitucional baseada em uma oligarquia possuidora de terras era mais adequada à maioria dos liberais burgueses do que a república democrática que poderia ter parecido uma expressão mais lógica de suas aspirações teóricas, embora alguns também advogassem esta causa. Mas no geral, o burguês liberal clássico de 1789 (e o liberal de 1789-1848) não era um democrata mas sim um devoto do constitucionalismo, um Estado secular com liberdades civis e garantias para a empresa privada e um governo de contribuintes e proprietários. (HOBSBAWN, 1981, p. 77).
Portanto, este era o documento que expressava os desejos de um determinado grupo social, embora se travestisse como vontade geral da recém-criada nação francesa. Os objetivos da burguesia moderada1 eram o de racionalizar e transformar a França. Mas, mesmos entre os burgueses havia distinção, e os Jacobinos que se destacaram por seu ímpeto revolucionário que mobilizava o povo e fazia parecer mais palpável o sonho da justiça social, ganharam notoriedade entre a massa de franceses. Embora esse grupo tenha ficado conhecido pelo terror relacionado guilhotina, e de fato, desde o início os protagonistas da Revolução defenderam o primado da violência como instrumento momentâneo de consolidação da liberdade (BOTO, 1996, p. 75). Os ideais (Abolição da escravidão nas colônias francesas; Educação para todos; Fim de todos os privilégios do clero e da nobreza na França; Ajuda aos necessitados; etc.) defendidos por esse grupo afinava-se, muito mais que os do primeiro, ao desejo do povo.
O combatente Jacotot
Nosso personagem, Jacotot, estava envolto em meio ao clima revolucionário. Chegou até a ser eleito deputado na Câmara dos Representantes pelo departamento da Côte d’Or, embora à sua revelia, em 1815, durante o governo dos Cem Dias. Período da Revolução que marca a volta de Napoleão Bonaparte ao poder após sua fuga do exílio na ilha de Elba. Jacotot fez parte de um pequeno grupo que apoiava abertamente o então Imperador constitucional. (TONIATTI, 2015, p. 49).
Pouco tempo depois, a monarquia Bourbon foi restaurada, embora sob uma nova regência, como uma monarquia constitucional diferente do Antigo Regime absolutista, tendo limites em seu poder. Jacotot, contudo, “[...] depois de expressar sua hostilidade aos bourbons teve de se exilar na Bélgica até que, depois dos acontecimentos de 18302, voltou à França e se pôs a difundir sua grande descoberta de 1818: o Ensino Universal” (CASTILLO, 2013, p. 68)3.
O exílio
Como salienta Sirinelli (2003, p. 252), atração e hostilidade desempenham igualmente, um papel, por vezes decisivo na trajetória dos intelectuais. Foi justamente, a hostilidade expressada por Jacotot que o distanciou do clima político do seu país e o empurrou para uma realidade adversa em um ambiente desconhecido, fazendo com que houvesse assim, uma ruptura na sua trajetória intelectual.
No tempo em que estivera exilado nos distantes Países Baixos, Jacotot obteve do rei o posto de professor em meio período, e dentre os primeiros estudantes que a ele acorreram para aprender, nenhum conhecia o francês, o mestre por sua vez ignorava o holandês, o que fez Jacotot foi pôr nas mãos dos alunos um livro, Telêmaco de Fénelon, em edição bilíngue (francês/holandês). Ele solicitou-lhes, com ajuda de um intérprete, que aprendessem o francês, amparados pela tradução. Quando os alunos tinham lido até a metade do livro primeiro, Jacotot pediu-lhes que repetissem sem parar o que haviam aprendido, e quanto ao restante que se dignassem ler para poder narrar como pudessem (RANCIÈRE, 2013, p. 18). Foi uma situação de improviso, mas Jacotot ficou estarrecido com o resultado daquela simples ação:
Eu havia sido explicador por toda a minha vida, por conseguinte, cria como todos os meus colegas que as explicações, e sobretudo minhas explicações, eram necessárias: qual foi minha surpresa quando vi que se podia prescindir delas! O feito estava diante dos meus olhos, não me era possível pô-lo em dúvida. Tomei meu partido, e me decidi a não explicar nada para assegurar-me até onde podia ir o aluno deste modo, sem explicações. Sucedeu que os alunos situavam a ortografia e seguiam as regras da gramática à medida que os vinte quatro livros se lhes tornavam familiares através da repetição. Porém um resultado que me surpreendeu além de toda a expressão foi ver a alguns pequenos estrangeiros escrevendo como os escritores franceses, e por conseguinte, melhor que eu e meus colegas explicadores. (JACOTOT, 2008, p. 290)4.
Tal foi a revelação dessa experiência, que Jacotot não pôde ignora-la, passou então a defender o método que havia descoberto por acaso. A ideia de que as explicações, em que se sustenta a educação são desnecessárias, se fez tão nítida ao espírito daquele professor, que ele passou a negá-las por completo. E para comprovar até onde essa opinião poderia chegar, pôs-se a ensinar o que ignorava. Ensinou pintura e piano, duas matérias em que era incompetente, ensinou também alunos de Direito a pleitear em holandês, enquanto ele mesmo continuava ignorando essa língua (RANCIÈRE, 2013, p. 33-34). E essas experiências bastaram a Jacotot para que pudesse estabelecer os princípios de seu método: 1) Todos os homens têm inteligência igual; 2) Todo homem recebeu de Deus a faculdade de ser capaz de se instruir; 3) Podemos ensinar o que não sabemos; 4) Tudo está em tudo. Aliás, para Jacotot não se tratava de um método, mas de um caminho, uma opinião, uma experiência que começava justamente por suspeitar que “Todos os homens tem uma inteligência igual” (JACOTOT, 2008, p. 26) e a fazer dessa hipótese o princípio do Ensino Universal.
Aspectos histórico-filosóficos do ensino universal
O pedagogo Jacotot foi participante de um período onde se via surgir experiências e reformas pedagógicas que prepararam o campo da instituição da escola pública obrigatória francesa, a ideia de instrução do povo como meio necessário para qualquer emancipação possível era amplamente compartilhada em sua época, assim como, a intervenção necessária das instituições para o alcance desse objetivo (CASTILLO, 2013, p. 67). O movimento revolucionário de 1789 dispensou especial atenção ao ensino popular e elementar, a luta era também em defesa de uma formação gratuita, leiga, universal, obrigatória, pública e estatal, princípios que foram inscritos progressivamente na legislação revolucionária desde a Constituição de 1791, como destaca Hilsdorf:
a Constituição de 1791 aprovou o ensino elementar gratuito oferecido pelo Estado; em abril de 1792, por projeto de Condorcet, foram criadas escolas elementares gratuitas, leigas e iguais para ambos os sexos, com o objetivo explícito de “formar-lhes a razão”; em julho de 1793, a partir de um projeto de Lepeletier, apresentado por Robespierre, os lugares onde ela ocorreria, ou seja, internatos para os jovens revolucionários, nos quais meninos e meninas dos cinco aos doze anos de idade seriam educados por um currículo comum, com ênfase em exercícios físicos e práticas de formação cívica; e, em dezembro de 1793, por projeto dos deputados Bouquier, Barère e Lakanal - este um antigo aluno dos lassalistas convertido à Revolução - definiu-se essa educação como obrigatória e nacional, baseada no ensino da leitura, da escrita, da aritmética, de noções de gramática, da prática das medidas, da lição de coisas, e da moral republicana, dado por professores contratados pelo Estado. (HILSDORF, 2006, p.188-189).
De fato, a Revolução pretendia criar um novo tipo de homem, emancipado, livre e igual, era necessário libertar a consciência popular das marcas e costumes herdados de um passado de opressão. A instrução do povo pela via da escola era urgente e necessária, só ela seria capaz de “imprimir na alma dos novos cidadãos o registro da sociabilidade inédita que recriaria os costumes, os hábitos, os valores e a própria tradição” (BOTO, 1996, p. 99). A escola ganhava a partir desse momento o status de instituição, já que o povo deveria ser instruído não pela família, mas pela pátria e para a nação.
O Estado, representado pela instituição escolar, passa a ser então, o grande pedagogo, e o povo, o permanente educando. A instrução de um povo incapaz, guiado pela experiência, passa a ser tarefa dos representantes do conceito soberano de povo, no qual o primeiro deve converter-se. “[...] quer dizer, a direção do ignorante por aqueles que sabem, de indivíduos encerrados em seu particularismo pelo universal da razão, de uma multidão estúpida por uma raça inteligente [...]”5 (JÓDAR E GÓMEZ, 2003, p. 247). A própria ideia de educação pública toma como princípio a desigualdade das inteligências.
Mesmo a igualdade enunciada na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, não passa de uma profecia que carrega um propósito de pedagogia política ao declarar que “ao conhecer seus direitos, o povo veria sentido em amá-los e defendê-los” (BOTO, 1996, p. 71). E não é novidade que a emancipação popular pela via da instrução ainda estar para se cumprir, assim como, sua soberania. Essa soberania que se mostra como um ideal a se realizar nunca será palpável, por que sociedade lhe impõe suas leis e corporações explicadoras. Por isso, Jacotot se rebelou contra essa visão, a emancipação, segundo ele, se dá entre indivíduos, que se descobrem iguais, nunca por meio de instituições; os homens são iguais e soberanos enquanto indivíduos, mas nunca o serão enquanto cidadãos:
O povo se aliena em seu chefe exatamente da mesma forma como o chefe se aliena em seu povo. Essa sujeição recíproca é o próprio princípio da ficção política como alienação original da razão em relação à paixão da desigualdade. O paralogismo dos filósofos consiste em imaginar um povo de homens. Mas esta é uma expressão contraditória, um ser impossível. Não há senão povos de cidadãos, de homens que alienaram sua razão à ficção desigualitária. (RANCIÈRE, 2013, p. 129).
Por isso, para Jacotot, não se conseguiria um povo livre e igual com leis e consnstituições, por que a igualdade entre homens não pode ser decretada por lei ou pela força, nem tão pouco pode ser recebida passivamente. Ela deve tão somente ser verificada por cada pessoa que em sua constante atenção a si mesmo encontra frases próprias para se fazer compreender por seus iguais (RANCIÈRE, 2013, p. 106). De acordo com o Ensino Universal, nem a educação, nem a política deveria partir da desigualdade e tentar anula-la com ações corretivas, afim de fazer iguais a desiguais (CERLETTI, 2003, p. 305). Mas ao contrário, deveriam sim, reconhecer a igualdade entre as inteligências, que horizontaliza as relações de poder e suscita em cada um o protagonismo intelectual.
Houve, durante o século XIX, a discussão sobre a quem deveria se delegar a instrução do povo e se cogitou se a ele caberia à tarefa de instruir-se sem esperar do governo ou do clero. Porém, com o fortalecimento do Estado coube a esse a missão de compensar o atraso geral da maioria da população, uma vez que os pais de família eram analfabetos, o que tornava impensável a ideia de que pudesse instruir a si mesmo. E a eficiência dos métodos era medida por sua capacidade de ensinar mais, ao maior número de ignorantes possível. O problema é que todo o ensino clássico se apoia na ideia supostamente neutra da explicação-transmissão, cuja a matriz sustenta que há um conhecimento que o mestre detém e o transmite ao aluno que, por sua vez não detém, nem pode vir a deter sem a explicação do mestre:
Porém o reconhecimento desta distinção entre os que sabem e os que não, que é inerente a existência mesma de qualquer magistério, não só define a relação que cada um tem com os conhecimentos, como, e isto é o mais importante, demarca uma série de estamentos. Com efeito, tomar consciência da segmentação que produz o domínio de certos saberes faz com que cada um internalize o lugar que ocupa e veja que a possibilidade de ascender vem ligada a subordinação - a princípio, intelectual - a um explicador. (CERLETTI, 2003, p. 301-302)6.
Cria-se a necessidade de mediadores sociais em nome de uma incapacidade técnica ou operacional da maioria. Não só os pedagogos, mas também economistas, tecnocratas, políticos, etc. (CERLETTI, 2003, p. 304). Assim a sociedade faz a segmentação de corpos e lugares, o que, para Jacotot é embrutecer, porque hierarquiza as inteligências e as divide em inferiores e superiores.
O pensamento geral da época
Jacotot passou a declarar que qualquer um pode ser um mestre emancipador, até mesmo um pai analfabeto pode ensinar seu filho se for emancipado, e para tanto, basta que reflita, sem explicações mediantes, sobre a semelhança moral e intelectual que existe entre todos os homens (CASTILLO, 2013, p. 73). Essa posição não poderia vingar no imaginário da época, pois colocava em questão as bases do sistema educativo que se fortalecia naquele momento. Mas Jacotot continuará a defender que existem duas formas de instruir, uma que embrutece, quando se confirma uma incapacidade do ignorante pretendendo reduzir a distância do não saber ao saber; a outra que emancipa, quando se força uma capacidade que se ignora ou se nega que se tem, para extrair dela todas as possibilidades de que é capaz (CERLETTI, 2003, p. 306).
Jacotot considerava que a ideia iluminista de estender o saber a população ignorante como medida emancipadora resultava em um círculo da impotência, por conta da filosofia social que esse tão nobre intento escondia (CASTILLO, 2013, p. 73). A ideia de que o povo careceria da tutela do Estado para se tornar emancipado, daria a quem ensina o que sabe poder sobre o que supostamente não sabe. A emancipação, assim, no campo da abstração, torna-se algo que jamais será alcançado, pois se posterga até o infinito.
Esse sistema artificioso foca-se no que há de pior no povo, toma como ponto de partida a sua suposta ignorância e incapacidade, com o propósito de atingir uma igualdade que nunca se efetua. Ele despreza no homem do povo sua potência e o mantém em posição cativa, humilhado. Contrário a esse sistema, Jacotot defende que cada homem possa conceber sua dignidade humana, tomando a medida de sua capacidade intelectual e decidindo o uso que fará dela. Por isso, Jacotot propunha:
através da ação sobre o jogo de relações existente “fazer circular a energia elétrica da emancipação” (idem, ibid., p. 180) no corpo social, de modo que se desborde o pressuposto que sustenta o processo de instrução: a desigualdade das inteligências. Práticas e relações que não são um meio para obter a igualdade, para um fim situado em outro lugar, mas que tem efeitos reais em si mesmas, constituem a verificação da igualdade. (JÒDAR e GÒMEZ, 2003, p. 249)7.
O povo emancipado colocaria em questão a visão embrutecedora do mundo que defende a desigualdade de inteligências, e compreenderia do mesmo modo que toda a racionalidade que mantém a ordem social, em suas classificações e estratificações não passa de uma convenção. Jacotot, percebeu que as explicações, base da pedagogia, e que é a condução dos alunos por etapas da ignorância até o saber, antes de ser um veículo indispensável ao magistério é uma arma sutil de imposição e dominação. Se essa relação vertical entre mestre e aluno, não é natural, como pensara a pedagogia, então a construção de uma relação oposta a esta, é também possível. E Jacotot usou de todos os seus esforços para levar até as últimas consequências a novidade que vislumbrara (CERLETTI, 2003, p. 301).
O Método Jacotot
Analisado tecnicamente, o método do Ensino Universal, proposto por Jacotot, se divide em três partes: “mnemónica, analítica y sintética” (CASTILLO, 2013, p. 70), que consistem respectivamente em: 1) entregar a memória do aluno ao texto; 2) obrigar o aluno a refletir e distinguir por ele mesmo, as vozes e as relações que unem as ideias; 3) fazer o aluno compor redações sobre os distintos temas com os materiais que encontrou nas duas primeiras etapas. É imprescindível para o método desenvolvido por Jacotot que a inteligência do mestre, assim como a do aluno, estivesse num mesmo plano de ignorância com relação ao conteúdo. Embora o método também admita a possibilidade de o aluno aprender sozinho e sem a necessidade de mestre, confrontando-se somente com a inteligência do autor do livro ao qual dedica sua atenção. Isso porque a pedagogia da emancipação proposta por Jacotot se assenta na opinião da igualdade entre as inteligências.
Nesse sentido, Castillo (2013) adverte que não se deve confundir o Ensino Universal com outras tantas propostas pedagógicas que circularam no século XIX, pois não há por sua singularidade, a possibilidade de que seja uma opção entre tantos outros métodos, não se trata de aprender mais ou menos bem ou mais ou menos rápido. É outra coisa, é a mais extrema radicalidade de pensar e fazer educação em relação à pedagogia instituída no ensino clássico. E para se medir a efetividade do Ensino Universal há que se considerar não o que ele realiza, mas o que dar lugar a ser realizado por cada homem em sua aventura intelectual. (JÒDAR E GÓMEZ, 2003 p. 245).
O Ensino Universal se afasta até mesmo dos chamados métodos naturais que se inspiram na mesma base que a sua, como o naturalismo pedagógico, baseado na teoria de Rousseau (CASTILLO, 2013, p. 74). O descobrimento de Jacotot não se tratava de uma cadeia de procedimentos fechados e ordenados a serem reproduzidos, se tratava de acreditar que a natureza humana é capaz de instruir-se sozinha. No entanto, o livro assumia um papel fundamental no Ensino Universal, pois ele era o meio mais fácil para que um pai de família pudesse emancipar a seu filho. Mas não somente o livro, qualquer objeto criado pela mente humana podia ser causa de conhecimento para um ignorante, esse elemento formaria junto com o mestre e o aluno o círculo da potência.
O livro, [ou uma obra de arte, uma partitura, ou qualquer objeto criado pela mente humana] quanto a ele, está pronto e acabado. É um todo que o aluno tem em mãos, que ele pode percorrer inteiramente com o olhar. Não há nada que o mestre lhe subtraia, e nada que ele possa subtrair ao olhar do mestre. O círculo abole a trapaça. E, antes de mais nada, essa grande trapaça, que é a incapacidade: eu não posso, eu não compreendo... Não há nada a compreender. Tudo está no livro. Basta relatar - a forma de cada signo, as aventuras de cada frase, a lição de cada livro. É preciso começar a falar. Não digas que não podes. Tu sabes dizer eu não posso. Diga em seu lugar, Calipso não podia... E terás começado. Terás começado por um caminho que já conhecias e que deverás, daqui por diante, seguir sem dele te afastares. Não digas: eu não posso dizer. Ou, então, aprende a dizê-lo a maneira de Calipso, ou de Telêmaco, de Narval ou de Idomeneia. O outro círculo já foi começado, o da potência. Não cessarás de encontrar maneiras de dizer eu não posso e cedo, poderás dizer tudo (RANCIÈRE, 2013, p. 44-45).
Por sua crença na potência intelectual de cada homem Jacotot pedia que se abrissem os livros, os anfiteatros, os laboratórios de física (CASTILLO, 2013, p. 74), e todos os templos de conhecimento, que a sociedade insiste em deixar em secreto, ou dificultar seu acesso através de suas normatizações. O aluno emancipado não necessita de mestres ou instituições de ensino para conduzi-lo no labirinto do conhecimento que ele pode percorrer sozinho se mantendo atento, ele sabe que tudo está em tudo, ele não cessará de conhecer e de se conhecer nesse percurso.
Apesar de todo empenho pessoal de Jacotot, seu método não escapou das adaptações neutralizadoras que se espalharam pela Europa, e que desvirtuaram o verdadeiro potencial emancipador do Ensino Universal. Castillo (2013), destaca a adaptação de Miguel Rovira na Espanha, que editou em 1835 o primeiro manual em espanhol do método Jacotot (Ibid., p. 71/72). Nele, seu autor utilizava o Telêmaco, detalhava cada passo da sua versão do método e chega ao ponto de especificar as respostas que devem ser dadas pelos alunos. Assim, como tantas outras adaptações da época, o dirigismo de Rovira acarretava a esterilidade do método, não compreendendo sua radicalidade em relação aos demais.
Para Jacotot seu método tratava-se de uma descoberta muito simples: cada homem vivencia situações de emancipação desde o seu nascimento, ao aprender sem explicações. Basta que cada um se dê conta desse fato, e o Ensino Universal servirá para aprender as mais distintas disciplinas: matemática, geografia, física, história... utilizando o mesmo procedimento que é, ler, reler, aprender de memória, relatar e verificar um texto qualquer sobre o que se quer aprender (Ibid., p. 73). Só dois requisitos são indispensáveis para tanto: primeiro, conhecer a boa nova da emancipação, ou seja, saber-se emancipado e com poder emancipador; segundo, ter força de vontade, que é a potência de agir segundo movimento próprio (RANCIÈRE, 2013, p. 83).
A questão da emancipação
Em Jacotot, a emancipação começa quando se questiona a oposição entre ensinar e aprender, já para os seus contemporâneos, ela, era um ideal, que só viria através da superioridade do ensinar. O mestre emancipador é causa de conhecimento para o aluno sem lhe transmitir qualquer conhecimento, quando o obriga a buscar e verificar sua própria busca. Diferente do mestre explicador que é detentor do conhecimento que o aluno só poderá absorver dele.
Dentro da lógica emancipatória de Jacotot aluno e professor estabelecem uma relação de vontades, quando o indivíduo não é ainda emancipado será a vontade do professor que o obrigará a manter-se atento em sua busca pelo conhecimento. A vontade do aluno obedece à vontade do professor, porém sua inteligência está livre para agir como queira. Já a inteligência do professor está de fora, é somente a sua vontade que dirige o aluno por um caminho que o mestre não percorreu, a rota é própria do aluno. Como destaca CERLETTI (2003, p. 303) o único imperativo admitido no Ensino Universal é este: Você pode!
Conclusão
Concluímos este artigo defendendo que Joseph Jacotot, mais que um professor, soldado e revolucionário na França do século XIX, foi um homem que experimentou a cada passo de sua trajetória a veracidade da opinião que proclamava. Foi sensível e atendo a ponto de não deixar passar em desmazelo um acontecimento que colocava em perigo sua própria cátedra de professor. Mais que isso, ousou a anunciar em todas as direções possíveis a constatação de que fora testemunha no momento crucial em que toda a preocupação dos intelectuais da época era a descoberta de métodos mais eficientes para retirar o povo da ignorância, e a edificação de instituições e leis que pudessem progressivamente garantir a ascensão de todos os homens a um estágio de igualdade.
Ao anunciar que a explicação não era necessária e que todo o aperfeiçoamento nessa direção era falaz, Jacotot proclamava que era preciso abandonar tudo o que se tinha construído até ali em nome de uma sociedade livre, igual e fraternal, era preciso mudar de rota e estabelecer um novo começo. A direção estava errada por que errou-se o ponto de partida, não é da desigualdade que se deve seguir a diante, é justamente da igualdade que é preciso partir, pois ela já existe, sempre existiu, só precisa ser verificada.
Jacotot anunciou a partilha comum a toda humanidade, a potência intelectual de todo ser humano de aventurar-se confiando cada um na sua capacidade intelectual de poder adivinhar aquilo que seu semelhante disse ou escreveu e, experimentar todas as consequências educacionais, políticas e sociais que essa aventura pode oferecer. De certo, a sociedade contemporânea a Jacotot não o levou a sério, não abriria mão de seus mestres, instituições e legislações. Porém, nos refastelamos com a radicalidade do pensamento de Jacotot, mais do que um método a ser adotado entre tantos outros, sua descoberta pressupõe a confiança integral na potência humana. Nada mais digno do conhecido, mas não concretizado, slogan de igualdade, liberdade, fraternidade que animou a Revolução Francesa.