Considerações Iniciais
As migrações daqueles saídos da Itália e estabelecidos em diferentes lugares do Brasil entre os fins do século XIX e primeiras décadas do século XX produziram condições para a constituição de escolas com marcas étnicas pelo idioma, saberes e modo como operavam. Escolas que se proliferaram no contexto brasileiro, em áreas urbanas e rurais, mas com nuances e características singulares. Operando de modos distintos, as chamadas escolas italianas em terras brasileiras foram inspecionadas por cônsules e agentes consulares ligados ao Ministério das Relações Exteriores da Itália, desde 1870. No Rio Grande do Sul, diversas dessas escolas estiveram vinculadas às associações de mútuo socorro, ou à professores particulares, ou ainda, à um pároco local, na condição de escola italiana paroquial. Ou simplesmente, como iniciativa de um grupo de famílias para oferecer condições de ler, escrever e contar (e rezar) para seus filhos, então como escola étnico-comunitária. A maioria das iniciativas escolares de cunho étnico italiano foi efêmera (LUCHESE, 2015), mas é certo que algumas escolas se mantiveram abertas por décadas, mesmo com instabilidades e mudanças significativas, como constatou Rech (2016) com relação à capital gaúcha.
A atuação da diplomacia italiana como elo entre os que migraram e a Itália foi papel importante, exercido sob as cores patrióticas é certo, mas que ganhou contornos bem específicos a partir de meados da década de 1920, quando Mussolini estabeleceu todo um conjunto de políticas voltadas para os emigrados e os descendentes, que ressoou também nas questões culturais e educacionais. Os emigrados passaram a ser ‘italianos no exterior’ e as políticas de acompanhamento e de tutela passam por mudanças. A remessa e a distribuição de livros, o envio de subvenções escolares, a inspeção e mesmo o encaminhamento de professores tinham sido experiências já realizadas desde o final do século XIX, mesmo que com certa inconstância, por parte das autoridades italianas com relação à escola. Mas as políticas constituídas pelo fascismo foram distintas e repercutiram no contexto brasileiro e gaúcho.
Considerando as políticas fascistas da Itália entre as décadas de 1920 e 1930 e as relações com o Brasil, o objetivo é compreender políticas, produção, circulação e distribuição de livros escolares fabricados durante o fascismo para as escolas italianas no exterior, atentando para aqueles que circularam no Brasil entre 1922 até 1938 quando da nacionalização e fechamento das escolas étnicas. Como foco da análise, o livro ‘Quando il Mondo era Roma’, obra de “breves notícias sobre um pequeno povo que soube dar ao mundo uma grande civilização” (FASCI ITALIANI, 1932, p. II). Ao perscrutar a produção deste livro, pensando-o como bem cultural, procuro perceber na materialidade, no suporte, os atravessamentos discursivos que o constituem por meio de textos, imagens e mapas que são analisados. Pequenos indícios de sua distribuição e circulação foram identificados e são apresentados.
Embasada na História da Educação e História Cultural e mobilizando os conceitos de representação e produção (CHARTIER, 2002, 2009, 2010, 2014 e 2017), em especial, foi realizada a análise documental histórica de leis, correspondências, relatórios de cônsules, fotografias, livros escolares e jornais que entrecruzados, permitem perceber algumas nuances históricas. Como referiu Choppin (2000), os livros escolares são objetos complexos, que assumem várias funções. Como suportes de verdades, apresentam noções de distintas ordens. Os manuais transmitem valores, resultam de contextos culturais específicos, no caso o fascista na Itália e o Varguista (anos 1930) no Brasil. Além disso, podem ser pensados como ferramentas pedagógicas, destinados a facilitar a aprendizagem, a difundir modos de pensar e significar o mundo.
Ao narrar essa história, o conjunto de representações evocadas nas páginas do livro foram sendo pensadas à luz das políticas educacionais e culturais produzidas na Itália fascista e que ecoaram no Brasil e, também, no Rio Grande do Sul. Num primeiro movimento analítico, narro os traços das políticas fascistas e como operaram no contexto gaúcho, com especial atenção para a escola e as iniciativas culturais. Num segundo momento, ajusto o foco para pensar a produção de um dos livros, ‘Quando il Mondo era Roma’ e ao analisar essa obra, entrelaço as representações evocadas, sua relação com as políticas e os discursos que disseminava, buscando conformar e educar para a fascistização.
Políticas culturais e educacionais fascistas italianas e suas ressonâncias no Rio Grande do Sul nas décadas de 1920 e 1930
A escola, enquanto espaço de difusão da italianidade e acompanhamento dos emigrados, desde muitos anos foi pensada pelo governo italiano. Como mencionado, desde 1870 estava no âmbito do Ministério das Relações Exteriores a função de acompanhamento, inspeção e disseminação de escolas italianas no exterior. Cônsules, agentes diplomáticos e mesmo algumas leis italianas, como as promulgadas no governo Crispi (1889) buscaram aproximar e apoiar financeiramente, especialmente com o envio de livros didáticos e algumas subvenções, os emigrados e seus filhos com a Itália, desde o final do século XIX (FLORIANI, 1974). No entanto, como mencionei em outro escrito, “a política externa italiana oscilou e a grande massa de emigrados, espalhada por diferentes países no mundo, defrontou-se com práticas diferenciadas para a promoção e a manutenção dos laços de italianidade, para a difusão da língua italiana, que tantos emigrantes desconheciam, pois faziam uso de dialetos regionais” (LUCHESE, 2017, p. 129). Há de se mencionar que ao raiar da década de 1920 eram as poucas escolas italianas que se mantinham no contexto do Rio Grande do Sul, pois a crescente oferta de escolas públicas gratuitas ou confessionais católicas, oferecia opções aos imigrados e seus descendentes (LUCHESE, 2015). A tentativa de retomada e os esforços empreendidos para fazê-lo com a constituição de uma rede de escolas como refere Rech (2016) foi crescente ao final da década de 1920.
Além da atuação dos cônsules, são importantes a Società Dante Alighieri como sociedade laica1, a Federação Italica Gens (católica)2 e as Associações de Mútuo Socorro, além da formação dos fascio all’estero3 e Doppolavoro4 que marcaram presença no Rio Grande do Sul. Apesar de toda a mobilização das políticas fascistas para os ‘italianos no exterior’ há um descompasso de alguns anos e isso resulta em diferenças significativas.
A constituição da ‘Opera Nazionale Maternità ed Infanzia’ (1925) para a assistência das classes populares e desfavorecidos, a ‘Opera Nazionale de Dopolavoro’ (1926) para a promoção de atividades físicas e de saúde para operários, a Opera Nazionale Balilla (1926) depois substituída pela Gioventù Italiana del Littorio (1937) responsável pelas atividades junto à infância e juventude são ações do contexto italiano que repercutem também em solo gaúcho.
Os jovens e as crianças surgiram como o alvo principal da política educacional e de propaganda do Fascismo, pois através deles poderiam entrar na vida privada e pública da população italiana. As escolas, as universidades, as associações de trabalhadores (Dopolavoro), o cinema e as organizações da juventude assumiram a função de educar o ‘novo homem’ e de divulgar a cultura política do novo regime. Nas instituições do Fascismo, meninos e meninas recebiam uma educação voltada para a vida fascista, onde aprendiam que valores internalizar, como se comportar no dia a dia, a quem idolatrar e que papéis sociais assumir. Os meninos eram educados para serem bons pais de família, bons trabalhadores e bons soldados, enquanto as meninas aprendiam que a função da mulher era cuidar do lar, do marido, da prole, além de reproduzir o maior número de filhos para que compusessem os exércitos de trabalhadores e soldados do Fascismo. (ROSA, 2009, p. 622)
O fascismo marca os discursos com divisões de sexo, representando o homem como o soldado responsável, com sua virilidade e virtude romana, de multiplicar a estirpe, combater o inimigo, enquanto às mulheres, vistas como naturalmente mães, refugiadas no âmbito da casa, reproduziam os valores sagrados da família, assumindo sua vocação maternal, aceitas como professora nas escolas da infância. É relevante situar o fascismo num quadro em que se considere o conjunto propostas ideológicas, a mobilização de ferramentas de controle social, as estratégias políticas internacionais para a difusão e propaganda cultural.
Outra iniciativa fascista para os italianos no exterior foi a criação de um Comitê Interministerial para a expansão da cultura italiana nos países receptores. Ainda, em Salvetti (2009) destaca que a principal ação fascista com relação às escolas italianas subsidiadas foi o envio de novos livros de texto permeados com a ideologia fascista. O fascismo, desde os primeiros anos, buscou nas associações, jornais e escolas mantidas por italianos ou descendentes, no exterior, apoio, meio de difusão e conquista de adeptos. Para Bertonha (2001) “o governo fascista iniciou a conquista do sistema escolar italiano no exterior já em 1923/1924, quando várias leis centralizaram as escolas e acentuaram seu papel de educar italianamente os jovens italianos do exterior” (p. 48).
A constituição da Direção Geral das Escolas Italianas no Exterior (DGSIE), dirigida em Ciro Trabalza e de uma comissão voltada para a reorganização e a inspeção das escolas italianas na América promoveram uma reorganização das escolas agora nominadas ‘escolas italianas no exterior’ (BARAUSSE, 2016). A ofensiva mais sistemática ocorreu com a nomeação para a Direção Geral das Escolas e Italianos no Exterior e de Ministro Plenipotenciário de Piero Parini que colocou ênfase na propaganda e em uma educação com nuances totalitários, fascistizantes. Parini assumiu ainda a função de secretário dos Fasci italiani all'estero e sua visita5 ao RS, em 1931, foi marcante para a renovação de um conjunto de práticas culturais que foram ampliadas e ganharam força na disseminação do sentimento de pertencimento e de fomento da propaganda fascista no RS, também concretizadas por meio dos livros vindos da Itália para as recém-criadas bibliotecas e salas de leitura. Soma-se na ampliação destas políticas a presença de cônsules alinhados ao fascismo e instalados no Consulado Geral da Itália no Rio Grande do Sul. Foram eles: Manfredo Chiostri, Mario Carli, Guglielmo Barbarisi e Santovincenzo Magno. Além disso, importante lembrar dos diversos cursos de italiano gratuitos oferecidos, por exemplo, na sede da Dante Alighieri, em Porto Alegre. Além da intensa agenda social com teatros, apresentações musicais e rituais cívicos. Como escreveu Beneduzi (2011, p. 95) “no projeto de propaganda do regime, muitos foram os intelectuais, artistas, representantes que em alguma maneira deram carne a essa construção imagética da Itália enquanto expoente máximo da cultura ocidental”.
No quadro 1 apresento, sob forma de síntese, algumas políticas importantes para a difusão e organização das ‘escolas italianas no exterior’.
Legislação | Prescrição |
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Decreto régio n. 932, de 19 de abril de 1923 | Estabeleceu que os professores das escolas italianas no exterior deveriam pronunciar solene voto profissional no qual prometiam educar seus alunos para amarem a pátria e terem maior devoção ao rei e às suas instituições. |
Decreto régio n. 933, de 19 de abril de 1923 | Criação do Consiglio Centrale delle Scuole all’ Estero. |
16/04/1924 | É instituído o ensino religioso nas ‘escolas elementares italianas do exterior’. |
Ordinanza 01/10/1924 | Estabelecidos os programas e fixadas diretrizes para as escolas italianas no exterior. Por meio da difusão da língua e da cultura italiana, do sentimento nacional, nas mais diversas colônias dispersas pelo mundo, das grandes realizações fascistas, buscavam estreitar relações, influências e, desse modo, também os ganhos para a pátria-mãe Itália com os italianos do exterior e os países receptores. |
Decreto nº 177 de 21/01/1926 | Estabelece normas para a escolha de professores e direção das ‘escolas elementares italianas do exterior’. |
Decreto de 10/12/1926 | Criação de Institutos de Cultura Italiana no Exterior. |
Decreto nº 628, de 28/04/1927 | Aboliu a Comissão Geral de Emigração e instituiu a Direção Geral dos Italianos no Exterior. No interior dessa Direção foi criado o Escritório de Propaganda para o Exterior. |
Decreto nº 1575 de 12/08/1927 | Aprovação de modificações nos horários e programas das escolas. |
Decreto nº 18 de 12/12/1929 | Instituída a Direção Geral dos Italianos no Exterior e Escolas, sob a administração de Piero Parini, secretário geral dos Fasci italianos no exterior. |
1929 | Instituição do texto único para as escolas no reino e para as do exterior. |
Em 1932 | Obrigatoriedade de adesão dos professores ao Partido Nacional Fascista. |
Ordem de serviço nº 24 de 25/09/1932 | Unificou a Direção Geral dos Italianos no Exterior e Escolas com a Direção Geral do Trabalho Italiano no Exterior. |
Fonte: organização da autora a partir de Floriani (1974).
A ampliação da ação de fascistização das escolas por parte do aparelhamento por meio de fornecimento de subsídios, livros e materiais didáticos, bem como o envio de professores e diretores didáticos ganhou maior evidência ao longo dos anos 1930. O livro como “un producto fabricado, difundido y consumido” (CHOPIN, 2000, p. 110) ganhou contornos claramente fascistizantes. Como analisou Giron (1998, p. 100) “Os textos didáticos antes das reformas fascistas eram pouco interessantes: longos e tediosos. Poucas imagens são apresentadas para ilustrar os intermináveis textos descritivos.” De outro lado, a mesma autora quando analisa os livros enviados pelo governo italiano no período do fascismo, indica:
Sob o ponto de vista formal os livros fascistas são de melhor qualidade gráfica. Apresentam mais gravuras do que textos, muitas das ilustrações são coloridas. Possuem os mapas, impressos com as cores necessárias para o entendimento das legendas. Os livros didáticos fascistas são interessantes. Cada pequeno texto é acompanhado de exemplos e de gravuras adequadas ao tema abordado (GIRON, 1998, p. 100).
As políticas de fascistização ressoaram em vários países da América, mas também da própria Europa, África e Ásia, como sinalizam os estudos de Pretelli (2009, 2010), Salvetti (1995, 2009). Zago (2020) por exemplo, trata das estratégias de fascistização transnacional do regime italiano no contexto mexicano, analisando com maior atenção a atuação de uma escola salesiana feminina no período.
No entanto, no contexto brasileiro, o período coincide com o governo de Getúlio Vargas e a pauta de nacionalização, acentuada com o Estado Novo em 1937. E no caso do Rio Grande do Sul, com a presença de Flores da Cunha como governador, que promove uma ampliação das políticas educacionais estaduais com uma ampla reforma das escolas gaúchas. Vale lembrar que em 935 criou a Secretaria de Estado dos Negócios da Educação e Saúde Pública (Sesp), regulamentou a carreira do magistério, adotou novos critérios para provimento e remoção de professores. Ele ampliou a rede de escolas e suas estruturas físicas, bem como o atendimento de alunos e a nomeação de professores. Conforme Bastos e Tambara (2014, p. 86-87) “[...] em 1930, eram 718 professores, com 2.131 escolas municipais e 1.320 particulares, em 1937, o número de unidades escolares subiu para 5.346, com 902 estaduais, 2.807 municipais e 1.637 particulares”. Um aumento substantivo que somado à atuação da Secção Técnica da Diretoria Geral da Instrução Pública e do Centro de Pesquisas e Orientações Educacionais (CPOE/RS) modernizou e buscou nacionalizar a educação gaúcha6.
As políticas educacionais e culturais produzidas no âmbito da Itália fascista se defrontam, no contexto brasileiro, com os acontecimentos e tentativas de expansão da brasilidade, de confrontação com discursos que inicialmente se acomodam, dividem espaço, mas que aos poucos repelem e passam a proibir e coibir a existência. Caso das escolas étnicas italianas, todas fechadas em 1938 no Rio Grande do Sul. Assim, mesmo mapeando o conjunto diversificado de práticas culturais, constituição de bibliotecas e analisando alguns dos livros de leitura, reconheço que uma pequena minoria de membros da burguesia e das classes médias italianas locais tiveram contato mais direto com a propaganda fascista.
‘Quando il Mondo era Roma’: a obra e sua produção
A produção e distribuição dos livros didáticos e de leitura no contexto da Itália fascista ganha contornos, como já mencionado, a partir do final da década de 1920, mais claros exaltando as obras e realizações do regime, disseminando representações de valores e de modelos sobre a pátria, o respeito às autoridades, a centralidade do trabalho, o sentimento de família e de virtudes do ‘novo homem’ como afirmam Ascenzi e Sani (2009) para o ‘italiano no exterior’. O livro, como bem cultural, foi atravessado por tais discursividades. E os investimentos realizados pelo regime para a produção foram elevados. Sabemos que “su produción material y consecuetemente su aspecto evolucionan con el progresso tecnológico y con el concurso de otros suportes de la información” (CHOPIN, 2000, p. 110), mas no caso da Itália fascista houve um projeto de seleção e produção de tais obras. Mediante um número considerável de títulos enviados para o Brasil, selecionei um particularmente significativo para a análise.
O livro ‘Quando il Mondo era Roma’ foi uma obra direcionada para a juventude italiana no exterior. É um livro com 32 páginas com mapas acrescidos ao final. Tem 17 cm de largura e 24 de altura. Não constam dados sobre um autor, apenas a menção de que era propriedade dos Fasci Italiani all’ Estero na época dirigido pelo já referido Piero Parini. E o registro da editora: Istituto Geografico Giovanni De Agostini7. Conforme Morandini (2001, p. 260) Giovani De Agostini nasceu em Pollone, região do Piemonte, em 23 de agosto de 1863 e realizou estudos universitários em Turim e Berlim, publicando ainda bem jovem alguns estudos cartográficos e outros escritos. A editora que esteve ligado foi beneficiada com o fascismo pela capacidade estratégica dos dirigentes de convergir com os objetivos do regime ao valorizar o território nacional e o cuidado com a produção, sempre atenta aos avanços tecnológicos para qualificar as imagens e os mapas, por exemplo. A nomeação de Arnaldo Mussolini para presidente honorário, nos anos 1920, tinha o intuito de aproximar a editora com o regime. Passaram a publicar obras voltadas às bibliotecas italianas no exterior e o regime fascista financiou publicações enviadas para a França e a América. Mesmo com a Segunda Guerra obras foram produzidas e enviadas para Alemanha e Japão. O Istituto De Agostini permaneceu atuando por quase um século, publicando atlas, cartas murais para uso escolar, a chamada enciclopédia geográfica divertida do final dos anos 1930, diversos livros de texto para uso escolar e para leitura foram produzidos. Além de publicarem obras com temas na área de Artes e Turismo. Se “os textos não existem fora dos suportes materiais (sejam eles quais forem) de que são os veículos” (CHARTIER, 2002, p. 61 e 62) a mediação do editor é central para a forma e a feitura da obra e a escolha do Istituto De Agostini fica clara na medida em que avançamos na análise.
A qualidade da obra, considerando a época em que foi impressa, o uso de cores, a seleção e papel, de fotografias e mapas permite compreender a relação com o Istituto e a proposta do regime, como aspectos que se coadunaram. O livro apresenta escritos em latim em alguns trechos, rememorando a herança dos antigos romanos. Com relação à estrutura da obra, apresento o quadro a seguir:
Capa | Consta o título “Quando il Mondo era Roma”, uma imagem representando o símbolo do fascio assinada por A. Della Torre e abaixo “Alla Gioventù Italiana all’estero”. |
Lombada | Sem imagem ou escritas. |
Folha de rosto | Consta o título “Quando il Mondo era Roma” seguido de “Brevi Notizie su um piccolo popolo che seppe dare al mondo uma grande civiltà”8 e local Roma e data, MCMXXXII - X ou seja1932, 10 anos do fascismo. A marcação da contagem da ‘era fascista’ tem cunho celebratório e passou a ser feita por ordem legal de 1926. |
Verso da folha de rosto | “Dedicato agli italiani che vivono all’Estero e che di fronte agli stranieri devono sostenere l’onore e l’onore di essere gli eredi dell’antica Roma”9. Logo abaixo a informação “La riproduzione del texto e delle illustrazione rimane di exclusiva proprietà dei Fasci all’ Estero”10. Ao final da página “Istituto Geografico De Agostini S. A. - Novara, Sezione Calcocromia, Printed in Italy”. |
Contracapa | Com o símbolo do Fasci Italiani All’Estero. |
Fonte: organização da autora.
Pelo conjunto de indícios apresentados no quadro 2 já podemos situar o claro endereçamento da obra, seu objetivo e algumas representações: a honra de ser descendente dos antigos romanos, honra a ser sustentada por aqueles que ‘vivem no exterior’. Sabe-se que a produção de efeitos de sentidos, usos e significados impostos pelas formas de sua publicação e circulação são importantes, mas é certo que de outra parte, como escreve Chartier (2010, p. 43) é preciso “compreender como as apropriações concretas e as invenções dos leitores” significam a obra no contexto de sua cultura escrita. Ou seja, de um lado as restrições e convenções e de outro a “maneira como os atores sociais dão sentido a suas práticas e seus enunciados [...] as capacidades inventivas dos indivíduos ou das comunidades” (CHARTIER, 2010, p. 49). Como constatou Galfré (2005, p. 27) “é propósito do governo-conforme o comunicado oficial - dar ao livro não apenas as vestes, mas também a alma fascista”.
A capa é relativamente simples, mas com uma mensagem clara. O desenho, apresentado no canto esquerdo, é o símbolo do fascio e consta a assinatura do ilustrador: Angelo Della Torre. No interior da obra constam outros desenhos, como reproduções de construções ou, por exemplo, das colinas nas margens do Tibre onde foi fundada Roma. Não constam novas assinaturas, fica a dúvida se Della Torre também foi o responsável. Conforme estudo de Colin (2012) Angelo Della Torre foi pintor, escultor e ilustrador. Nascido em 1903 e falecido em 2000, licenciou-se em pintura pelas Belas Artes de Roma. Conforme Colin (2012, p. 475), Della Torre estava
ainda ativo nos anos oitenta, foi particularmente feliz na representação das crianças, de quem exprimiu sem esforço as mais diversas sensações e os mais diversificados sentimentos com seus desenhos sóbrios, discretos, sempre claros, às vezes duros, bem apoiado por uso delicado de cores suaves [...].
O estilo descrito por Colin é diverso do que é possível analisar da estética da capa e das cores utilizadas na representação do fascio. A simbologia do fascio11 foi adotada conforme explica Tarquini (2011) para exprimir a união compacta de um grupo e de início o programa fascista (1919) não fez menção à valores do mundo romano, mas em 1921 a romanidade passa a ser o principal instrumento simbólico do fascismo. Na contracapa, centralizado, o símbolo e a identificação do proprietário dos direitos da obra: Fasci italiani all’Estero.
Os efeitos produzidos pelas técnicas tipográficas (Chartier, 2009) que buscam regular a ação da leitura são bem estruturados na obra analisada, mediando texto e imagens. Todas as imagens são legendadas, algumas são fotografias, outras desenhos/ilustrações de temas que se quer chamar atenção. Há uma cadência na composição das páginas, já que acompanhando o texto escrito, que é relativamente pouco e é apresentado com uma fonte grande, com bom espaçamento, o convite ao leitor a ler o texto escrito e as imagens que o acompanham. Tudo disposto e correlacionado, buscando constituir o sentido que se quer produzir, os protocolos de leitura.
A obra inicia recordando os tempos longínquos da fundação de Roma, anuncia os povos que vivendo às margens do Tibre como latinos e sabinos, povos guerreiros põe assento a narrativa, compuseram Roma. “Città dal petto forte” [cidade de peito forte] teriam intuído os etruscos, segundo apresentado no livro. Os sabinos teriam dito que Roma era a “città del fiume” [a cidade do rio] e assim a descrição passa a incluir uma série de representações de quem foram os romanos e de como conquistaram um a um os povos e terras longínquas. A narrativa é acompanhada de imagens - tanto fotografias como desenhos. Para uma análise mais completa do conteúdo da obra e seu jogo de representações, a partir do olhar atento ao texto, apresento duas categorias analíticas, conforme quadro a seguir:
Categorias de análise | Trechos da obra | Tradução livre da autora |
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Representações do Romano | “Un po’pastori e um po’ agricoltori” (p.4). | “Um pouco pastores e um pouco agricultores” (p. 4). |
“Avvevano l’ ardimento dei marinai grechi, la robustezza e a tenacia dei montanari della Sabina, la intelligenza viva degli Etruschi. Modesti e frugali nell’appagare i propi bisogni, ostianti nel raggiugere uno scopo prefisso, abili nel trattare un negozio, sereni nel giudicare, pronti a qualsiasi fatica, coraggiosi nell’ affrontare il pericolo anche se ignoto” (p. 4 e 5). | “Eles tinham a ousadia dos marinheiros gregos, a robustez e tenacidade dos montanhistas de Sabina, a inteligência viva dos Etruscos. Modesto e frugal na satisfação das próprias necessidades, ostentosos na concretização de uma meta, hábeis no trato com os negócios, serenos no julgamento, prontos para qualquer penúria, corajosos em enfrentar o perigo mesmo que este fosse desconhecido” (p. 4 e 5). | |
“il senso de vincolo comune” (p. 5). | “o senso de vínculo comum” (p. 5) | |
“segnato sulla fronte dei rozzi romani l’impronta dei dominatori” (p. 5). | “marcados na testa dos rudes romanos com a marca dos governantes/ dominadores” (p.5). | |
“il romano [...] non vacila” (p.6). | “o romano [...] não vacila” (p. 6). | |
“Signori delle terre e dei mari” (p. 18). | “Senhores das terras e dos mares” (p.18). | |
“sua fiducia e nel suo coraggio há trovato la capacità di regere il timone del mondo” (p. 21). | “sua confiança e coragem encontraram a habilidade de governar o leme do mundo” (p. 21). | |
“prova materiale e tangibile di quello che è stato lo spirito civile che i Romani seppero diffondere, ognuno resta muto, smaritto” (p. 31). | “prova material e tangível de qual foi o espírito civil que os romanos conseguiram difundir, todos ficam mudos, perdidos” (p. 31). | |
“Se è vero che ‘la Storia insegni’, le vicende dell’antica Roma devono insegnare a tutti gli Italiani, anche a quelli que sono fuori dei confini, ad aver fiducia nei destini della Patria comi i Romani” (p. 31 e 32). | “Se é verdade que a 'história ensina', os acontecimentos da Roma antiga devem ensinar todos os italianos, mesmo aqueles que vivem fora das fronteiras, a ter fé nos destinos de sua Pátria como os romanos” (p. 31 e 32). | |
Representação de Roma, a pátria | “Roma vince e dopo ogni vittoria, con l’espansione della conquista tocca confini di altri popoli, intacca nuovi interessi, si crea nuovi nemici” (p.5). | “Roma vence e a cada vitória, com a expansão da conquista, atinge as fronteiras de outros povos, atinge novos interesses, cria novos inimigos” (p.5). |
“Roma combatte” (p. 5). | "Roma luta" (p. 5). | |
“la bela storia di conquista non si interrompe” (p. 5). | “a bela história da conquista não pára” (p. 5). | |
“giusta legge, con la saggia amministrazione, com la tolleranza delle costumanze e delle religioni, irradiare quella luce di civiltà che illuminò i primi passi di molti popoli e di molti paesi” (p. 15 e 16). | “lei justa, com administração sábia, com tolerância de costumes e religiões, para irradiar aquela luz de civilização que iluminou os primeiros passos de muitos povos e países” (p. 15 e 16). | |
“gloria della Città dominatrice, del Capo del Mondo” (p. 18). | “glória da cidade governante, da cabeça do mundo” (p. 18). | |
“Il Romano ha sempre avuto un'enorme fiducia in sè stesso e nei destini della propria pátria” (p. 21). | “O Romano sempre teve enorme confiança em si mesmo e nos destinos de sua pátria” (p. 21). | |
“testemoniare lo splendore di Roma perfino in quelle località ove oggi è tornata la solitudine” (p.31). | “testemunhai o esplendor de Roma também nos lugares onde hoje voltou a solidão” (p.31). |
Fonte: Organização da autora a partir da obra.
No jogo das representações o apelo às relações entre a exaltação de Roma antiga e a nova Itália e o ‘novo homem’ que o regime fascista buscava instituir ficam evidentes. Sentidos da grandeza, do domínio e superioridade com relação aos demais povos, a recorrente ideia de luta, de conquista... são diversos os sentidos que se desejava intuir entre o passado ‘esplendoroso’ e o futuro que se construía pela ação fascista. Como ensina Chartier “as disposições da paginação, o modo de dividir o texto, as convenções que regem sua apresentação tipográfica” (CHARTIER, 2017, p. 35) são formas pelas quais os autores e ou editores exercem formas pelas quais podem “exprimir uma intenção, de governar a recepção, reprimir a interpretação” (CHARTIER, 2017, p. 35). E no caso de ‘Il Mondo era Roma’ direcionar um conjunto de representações que não se bastam pela narrativa escrita, mas acompanhada por imagens - ilustrações e fotografias - distribuídas ao longo da obra. Assim, reconhecendo o quanto o livro foi ricamente ilustrado, apresento a catalogação no quadro a seguir, para dar maior precisão argumentativa da dimensão e o tom de sua presença na obra:
Pág. | Imagem |
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1 | Desenho da ‘Colina sobre a qual se ergue a cidade de Romulo”. |
2 | Bustos de Scipione, o Africano e de Mario. |
3 | Bustos de Silla (com a descrição de primeiro ditador de Roma) e Pompeo, o Grande. |
4 | Busto de Giulio Cesare e imagem da trirreme romana. |
5 | Busto de Cesare Ottaviano Augusto. |
6 | Fotografia da Tunísia, antigo porto de Cartago. |
7 | Fascio - “sono il símbolo della unità, della maestà, della forza dello Stato. Ricordiamo l’origine agricola di Roma e la fusione di vari popoli, nella nuova città”12. |
8 | Fotografias de Espanha, Sevilha - muro romano e Espanha - Sagunto - o teatro romano. |
9 | Ausente no exemplar. |
10 | Ausente no exemplar. |
11 | Fotografias de França - Orange - arco do triunfo; França - St. Rhemy - Mausoléu dos Giulli e França - Nimes - Templo de Diana. |
12 | Fotografias de França - Nimes - aqueduto romano; desenho da muralha e posto de guarda dos limites do Danúbio. |
13 | Desenho da muralha de Adriano na Grã-Bretanha; Fotografia de Alemanha - Colonia - torre romana e desenho de Iugoslávia - Spalato - reconstrução do Mausoléu de Diocleciano. |
14 | Fotografias de Iugoslávia - Spalato - Palácio de Diocleciano, o portão dourado e Iugoslávia - Spalato - peristilo do palácio de Diocleciano. |
15 | Fotografia de maquete - Romênia - Adamaclisi - troféu de Trajano e fotografia Grécia - Atenas - biblioteca de Adriano. |
16 | Desenho da muralha na Dácia e fotografia Grécia - Atenas - arco de Adriano. |
17 | Fotografias de Grécia - Tessalônica - Pilar do arco de Valério e África - Cirene - templo de Apolo. |
18 | África - Tunísia - Susa - mosaico de Virgílio e fotografia de Africa - Cirene- basílica de Apolônia. |
19 | Fotografias da África - Tunísia - o anfiteatro (interno) e África - Tunísia - o anfiteatro de El Gem vista externa. |
20 | Fotografias da África - Tripoli - Sábrata - a capital e o teatro. |
21 | Fotografias da África - Tripoli - a basílica em duas vistas. |
22 | Fotografias da África - Tripoli - cisterna do aqueduto e arco de Marco Aurélio. |
23 | Fotografias da África - Tripoli - as termas e Argélia - o arco do triunfo |
24 | Fotografias da África - Argélia - o foro e as colunas do teatro |
25 | Fotografias da África - Argélia - colunas do fórum e o teatro. |
26 | Fotografias da Ásia - Éfesos - cena do teatro e África - Argélia - Arco de Trajano. |
27 | Fotografias da Turquia - Constantinopla - Aqueduto de Justiniano em Pírgos e Obelisco de Teodósio. |
28 | Fotografias da Ásia - Turquia - Ancara - templo de Augusto e Roma; Síria - Templo de Trajano. |
29 | Fotografia da Ásia - Síria (hoje Jordânia) - Gerasa - panorama das ruínas e colunas do fórum. |
30 | Fotografia da Ásia - Panfília (Turquia) - Arco de Adriano e Aspendo - teatro romano. |
31 | Fotografias da Ásia - Arábia - Petra - o muro e Síria - o grande templo de Heliópolis. |
32 | Fotografias da Ásia - Síria - Damasco - a cidadela e desenho do castelo na ponte de Deutz, Alemanha. |
Fonte: Organização da autora a partir da análise da obra.
Em várias páginas, duas imagens e suas legendas ocupam todo o espaço. No meio da obra, um desenho colorido - como encarte - apresenta ao leitor um panorama de Roma Imperial, conforme pode ser visto na figura 2:
Fonte: Reproduzido pela autora de FASCI ALL’ ESTERO, 1932, encarte de ilustração colorida no meio da obra.
A riqueza de detalhes, as cores, o modo de apresentar Roma como um modelo do imperialismo antigo, a lembrança de um passado memorável que era preciso recuperar. Na visualidade apresentada pela sucessão de imagens, “o processo pelo qual os leitores, os espectadores ou os ouvintes dão sentido aos textos (ou às imagens) das quais se apropriam (CHARTIER, 2010, p. 35 e 36) foi sendo conduzido também pelo texto.
Cabe destacar que além das imagens, o Istituto Geografico de Agostini produziu os mapas que estão colocados na obra. Os mapas coloridos que acompanham a publicação estão dispostos ao final das páginas numeradas e contemplam: (1) o ninho da águia com a representação das dimensões de Roma, da sua fundação e as ampliações ocorridas na Monarquia, República e Império; (2) Roma e os povos fronteiriços no século V a. C.; (3) Roma e seus aliados na confederação Samnita em 298 a. C.; (4) Expansão do território romano na Itália durante a guerra social; (5) Progressivas ampliações do Império de Roma de 264 a. C. até III século d. C. e (6) O Império Romano na sua máxima extensão. Os mapas são coloridos, apresentados de modo claro, visível e em papel de boa qualidade. Na figura 3, apresento um dos mapas:
O Istituto Geográfico De Agostini foi reconhecido pela qualidade dos mapas elaborados e como já mencionado produziu diversos materiais que deram suporte para as escolas na Itália e fora dela. No caso da obra ‘Quando il Mondo era Roma’ é relevante reconhecer que mesmo sendo uma obra de poucas páginas, sua destinação - para a juventude italiana no exterior - deixa evidente a busca pela fascistização. É cero que as apropriações são ponto sensível que não foi possível ainda identificar no processo investigativo pela ausência de documentos. Mas a circulação do livro foi ampla, sua distribuição foi feita por meio dos consulados e deles para agentes consulares que repassaram para escolas, bibliotecas e salas de leitura existentes em associações e centros culturais. Analisando aspectos da mesma obra, Giron (1998, p. 101) conclui: “não parece haver dúvidas nem quanto aos destinatários da obra e nem a quem pertencem os direitos autorais. O fascismo sabe a quem dirige suas obras e qual mensagem que deve ser enviada. Os vínculos com a Itália são assegurados nas obras destinadas aos jovens "italianos no exterior".” E sua circulação foi considerável, não apenas no Brasil, mas na América e para além dela.
Considerações finais
O desafio de compreender as políticas educacionais e culturais da Itália e sua vinculação com o contexto brasileiro e gaúcho durante os anos 1920 e 1930, em especial atentando para políticas, produção, circulação e distribuição de livros escolares fabricados durante o fascismo para as ‘escolas italianas no exterior’ permite seguir diversos caminhos analíticos. Neste artigo, a escolha foi por dois movimentos, um mais amplo buscando compreender as políticas italianas e suas relações/ressonâncias em terras brasileiras, em especial as gaúchas e, um segundo, com a delimitação na análise de uma obra significativa pela relação que a constitui: (a) publicada sob a direção do fasci all’estero; (b) vinculada ao mito da romanidade e tomada como tão caro pelos fascistas; e (c) por ter sido direcionada para a ‘juventude italiana no exterior’.
É certo que a expansão das escolas públicas e a presença significativa de instituições educativas confessionais no contexto gaúcho, em especial na área colonial italiana, de certo modo frustrou o avanço e as tentativas do fascismo de instituir ‘novas escolas’. Não houve espaço para o que se propunham - a propaganda do fascismo e a constituição de um sentimento de pertença dos pequenos ‘italianos no exterior’, mesmo que já numa segunda geração nascida no Brasil. A ‘política da boa vizinhança’ tão forte entre autoridades brasileiras e italianas não impediu o fechamento, em 1938 de todas as 5 escolas italianas que ainda existiam no Rio Grande do Sul. A imposição de legislações de nacionalização e a entrada do Brasil na Segunda Guerra contra os países do Eixo, em 1942, fez com que muitos dos materiais, livros, associações, os fasci all’estero e todo um conjunto de práticas culturais subsumisse do horizonte público.
A modo de conclusão, relembro Chartier (2014, p.30) que, em sentido provisório, pensa a cultura como o processo que “articula produções simbólicas e experiências estéticas, removidas das urgências da vida cotidiana, com as linguagens, os rituais e as condutas, graças às quais a comunidade revive e reflete sua relação com o mundo, com os outros e consigo mesma”. Assim cabe pensar que práticas culturais articuladas pelo fascismo foram mobilizadas no contexto gaúcho entre imigrantes e descendentes, transformados em ‘italianos no exterior’? Se por alguns anos a celebração do 20 de setembro foi data comum entre gaúchos e italianos, se o ‘herói dos dois mundos’ representado por Garibaldi aproximou e gerou consensos, muitas disputas e tensionamentos também estiveram presentes nessa história. Que sentido foi atribuído e que efeitos foram possíveis, quando décadas já distanciavam boa parte dos descendentes da longínqua Pátria? Ao ler obras como ‘Quando il Mondo era Roma’ e dezenas de outras enviadas e distribuídas, houve identificação com a italianidade? Concordo com Bertonha que “[...] apenas uma pequena minoria de emigrantes foi convertida em militantes dos Fasci italiani all'estero e, que, desses, a maioria era constituída de membros da burguesia e das classes médias italianas locais” (BERTONHA, 2001, p. 43). Muitos outros eram declaradamente antifascistas e, tantos mais, em especial os das áreas rurais, lutavam no cotidiano para sobreviver e as cores políticas pouco preocupavam.
Por fim, retomo o desafio proposto por Chartier (2010, p. 52) para a continuidade da investigação ao considerar a importância de “vincular o poder dos escritos ao das imagens que permitem lê-los, escutá-los ou vê-los, com as categorias mentais socialmente diferenciadas, que são as matrizes das classificações e dos julgamentos” para pensar que um “um texto só existe se houver um leitor para lhe dar um significado” (CHARTIER, 2017, p. 11). Continuo na busca por registros de usos, de apropriações por parte dos imigrantes e descendentes das muitas obras que circularam, dessas materialidades repletas de sentidos guardadas em acervos pessoais e institucionais que nos instigam, para conhecer as singularidades da história da educação brasileira, mas para além das fronteiras nacionais.