INTRODUÇÃO
O ensino de ciências frequentemente se atém apenas aos produtos da ciência ao invés de também explorar suas dimensões filosóficas, reflexo da escassez dessas discussões nas pesquisas em Educação em Ciências (EC) e da indiferença de professores à filosofia, o que diz muito sobre sua formação (Duarte et al., 2021; Matthews, 2014; Schulz, 2014). A ontologia e a epistemologia são os campos da filosofia que têm desempenhado historicamente um papel importante na compreensão que o ser humano tem da natureza da realidade e do conhecimento científico, respectivamente, abrangendo o âmbito da educação (Friedrichsen et al., 2011; Schulz, 2014). Para Bunge (2000, p. 461, tradução nossa), “Sem filosofia, a ciência perde em profundidade”. Definir razões para se confiar na ciência e no ensino de ciências só é possível a partir de uma abordagem aprofundada, isto é, uma abordagem ontológica e epistemológica (Duarte et al., 2021).
De acordo com o filósofo marxista György Lukács (2018), a ciência neopositivista desterrou nominalmente a ontologia para afastar qualquer especulação metafísica/religiosa; dessa ciência passou a interessar a sua utilidade prática e imediata e não o que ela diz sobre o que é o mundo. Assim, a ciência moderna evita questões sobre concepção de mundo e posições éticas e políticas como se isso fosse possível e lhe garantisse objetividade, priorizando a epistemologia e deixando essas lacunas livres para a Igreja (Duarte et al., 2021; Lukács, 2018). Nas concepções pós-positivistas e pós-modernas, a dimensão ontológica é resgatada, porém, relativizada, pois “[...] refutam a possibilidade de dizer algo sobre o mundo e decretam o conhecimento como constructo e a verdade como consenso. [...] as declarações sobre o ser tornam-se declarações sobre o nosso conhecimento sobre o ser” (Della Fonte, 2007, p. 1540). Valero et al. (2022) identificaram esses e outros idealismos das ciências moderna e pós-moderna na concepção de ciência de alguns filósofos abordados na EC, tais como Karl Popper, Gaston Bachelard e Bruno Latour.
Responder à pergunta “a matéria realmente existe ou é apenas uma construção teórica?” implica uma determinada concepção de mundo, como as concepções realista, mecanicista, atomista, animista e determinista, nas quais se expressam as dimensões ontológica e epistemológica (Matthews, 2009, 2014). Em tempos conturbados promovidos pelo neoliberalismo, com a ascensão de movimentos negacionistas e anticiência, é importante que a educação científica estimule uma concepção de ciência mais ampla e como atitude crítica (Reis, 2021). É necessário não apenas resgatar a discussão filosófica na pesquisa e na educação, mas também resgatar a prioridade da dimensão ontológica.
Alguns trabalhos da EC estudaram a relação da concepção de mundo com temas pertinentes para a sociedade e a educação, ambas envolvendo aspectos ontológicos e epistemológicos, ainda que não explicitados pelos autores. Silva e Coutinho (2016) analisaram como as pesquisas sobre hormônios influenciaram no desenvolvimento de uma concepção de mundo determinista que levou a uma concepção de gênero como natural e quimicamente definido. Lopez et al. (2020) mostram como a visão de ciência e o ensino de ciências foram moldados conforme a visão de mundo da Alemanha nazista pautada na guerra e em ideais discriminatórios. Partindo de uma concepção de mundo materialista, histórica e dialética, Pressato e Campos (2022) discutem sobre a importância da consciência filosófica de licenciandos a respeito da docência e das teorias pedagógicas.
Com base na importância da ontologia e da epistemologia para a EC, meu objetivo foi realizar uma revisão bibliográfica sistemática na área a fim de entender, em um primeiro momento, quais focos temáticos os autores têm mobilizado, para, em seguida, realizar uma análise marxista dos principais aspectos ontológicos e epistemológicos da ciência que emergem dos trabalhos. A partir das discussões de 11 artigos sobre a natureza da realidade e a possibilidade de conhecê-la, foram mobilizadas categorias de análise como ser social, estratificação, objetivação, trabalho, reflexo, práxis, entre outras. Essas categorias são abordadas por diferentes autores marxistas e oferecem novos olhares para essa discussão filosófica na EC.
PRESSUPOSTOS METODOLÓGICOS
O método científico do materialismo histórico e dialético implica, “[...] para Marx, uma determinada posição (perspectiva) do sujeito que pesquisa: aquela em que se põe o pesquisador para, na sua relação com o objeto, extrair dele as suas múltiplas determinações” (Paulo Netto, 2011, p. 53, grifo do autor), ou seja, esse método está associado à concepção de mundo da pessoa pesquisadora, alinhada aos fundamentos do marxismo e à lógica dialética. Lefebvre (1991) resume o método dialético em algumas regras práticas, que devem ser assimiladas de forma dialética: deve-se priorizar a análise objetiva do objeto de estudo, apreender suas conexões internas, contradições e o movimento e a tendência dessas inter-relações, sem negligenciar qualquer uma delas.
No âmbito procedimental, o que distingue uma pesquisa conceitual, de natureza bibliográfica, de uma pesquisa empírica é que essa não define seus objetos de estudo a partir do real sensível, mas define “[...] como objetos abstrações do pensamento já sistematizadas em conceitos e teorias que operam como mediadoras na captação deste real” (Martins & Lavoura, 2018, p. 235). Em um momento inicial da pesquisa, as determinações do objeto podem ser alcançadas por meio de um recurso analítico-formal; porém, embora a lógica formal tenha uma função específica e importante, “[...] ela não possibilita captar as relações e as mediações dos múltiplos elementos do real” (Martins & Lavoura, 2018, p. 227).
Assim, esta pesquisa é de natureza teórico-conceitual (Martins & Lavoura, 2018), em que o materialismo histórico e dialético é método que orienta as análises e é referencial teórico. Tem como objeto de estudo os aspectos ontológicos e epistemológicos da ciência identificados em artigos da EC - derivados de uma revisão bibliográfica sistemática - e abordados por autores marxistas (abstrações do pensamento já sistematizadas), e tem como recurso analítico-formal inicial a categorização desses trabalhos.
REVISÃO BIBLIOGRÁFICA SISTEMÁTICA
Para esta etapa, foram utilizadas as recomendações dos Preferred Reporting Items for Systematic reviews and Meta-Analyses (PRISMA), que auxiliam na execução e apresentação de revisões sistemáticas, melhorando a qualidade dessa metodologia (Moher et al., 2009). As buscas da revisão foram realizadas entre março e abril de 2021 em fontes de informação on-line. Os critérios de elegibilidade foram: encontrar artigos e livros/capítulos escritos em língua inglesa ou portuguesa, no período de anos disponíveis nas bases de dados, que são da EC e que apresentam no título e/ou resumo e/ou palavras-chave os termos: “ontologia” ou variações combinado com “epistemologia” ou “gnosiologia”2 ou variações. Quando permitido pela ferramenta de busca, foram utilizados operadores booleanos para as combinações e o asterisco para as variações.
A Web Of Science (WOS) foi a principal fonte de informação internacional por ser uma base de dados com indexação dos principais periódicos. A Education Resources Information Center (ERIC) foi utilizada como complemento do corpus de trabalhos obtido por meio da WOS. Em âmbito nacional, as buscas foram realizadas nos anais do Encontro Nacional de Pesquisa em Educação em Ciências (ENPEC), principal evento da área, e em 12 periódicos de EC mais bem avaliados na área de Ensino com base nas classificações da Plataforma Sucupira do triênio 2013-2016 nos estratos A1 e A2.3 Devido à diferença do escopo e da ferramenta de busca disponível em cada fonte de informação, as estratégias de busca foram ajustadas respeitando-se os critérios de elegibilidade. Nas bases de dados WOS e ERIC, foram utilizadas ferramentas de refinamento a fim de se selecionar trabalhos que são artigos ou livros/capítulos (tipo de documento) e de periódicos voltados para a EC (título da fonte).4 Os arquivos em formato pdf dos anais5 do ENPEC foram salvos e organizados por edição, possibilitando a busca com a ferramenta de localização do leitor de pdf.
Com a leitura dos resumos e trechos dos trabalhos selecionados, foi possível construir uma caracterização em relação à área das ciências naturais na qual cada artigo se enquadra - ciências da natureza (geral); biologia; educação ambiental; física; química - e em relação ao foco - concepção de mundo e de ciência; currículo; ensino e aprendizagem de conceitos; fundamentação e prática pedagógicas; modelagem, representação e simbolismo; pesquisa e metodologia. É importante salientar que todos os trabalhos discutem, em níveis diferenciados, sobre concepção de mundo e de ciência, uma vez que abordam aspectos ontológicos e epistemológicos relacionados à ciência. Entretanto, nem todos tinham essa questão explicitada e centralizada, o que justifica a existência dos demais focos.
A seguir, apresento um panorama da revisão com o objetivo de entender quais discussões e temas são mobilizados nos estudos que envolvem aspectos ontológicos e epistemológicos da ciência.
PANORAMA DO CORPUS DE TRABALHOS SELECIONADOS 6
Após a aplicação das ferramentas de refinamento das bases de dados, foram obtidos 115 trabalhos internacionais e 50 nacionais. Excluindo-se os trabalhos de formato diferente (editorial, entrevista, relato de experiência etc.) que passaram pelas ferramentas e os duplicados, o corpus de trabalhos resultou em 114 artigos, sendo 66 internacionais (58%) e 48 nacionais (42%), ambos caracterizados quanto à área e ao foco. Na Figura 1, o gráfico de barras representa a combinação das duas caracterizações.
Do corpus total, 45 artigos (39%) discutem sobre ontologia e epistemologia em relação às ciências da natureza de forma geral ou de forma interdisciplinar. Desses 45 artigos, nenhum trabalha com modelagem ou currículo. Entre as áreas específicas, a física apresentou o maior número - 31 artigos (27%) - enquanto a educação ambiental apresentou o menor número - quatro artigos (4%). Concepção de mundo e de ciências é um foco presente em trabalhos de todas as áreas, principalmente das ciências da natureza - 11 artigos (24,5%). O ensino e aprendizagem de conceitos não é abordado pela educação ambiental; em relação às demais áreas, é menos abordado em ciências (geral) - 10 artigos (22%) -, possivelmente porque os conceitos estão mais relacionados a disciplinas específicas, como biologia - que teve a maior porcentagem (73%) -, química e física. A seguir, apresento alguns artigos de cada foco, do mais frequente ao menos frequente.
Do corpus total, 45 artigos (40%) investigam o ensino e aprendizagem de conceitos, e a maioria deles - 34 artigos - aborda esse processo a partir da proposta de mudança conceitual e do modelo de perfil conceitual, em que os trabalhos de Michelene T. H. Chi (e.g. Chi, 1992) e de Eduardo Fleury Mortimer (e.g. Mortimer, 1995) são frequentemente citados. Pereira (2017) realizou uma revisão internacional buscando por artigos da EC sobre mudança conceitual, e o resultado evidencia como essas pesquisas compreendem uma agenda bastante diversificada, com diversos significados, falta de precisão e controvérsias, não sendo possível situar os estudos e desdobramentos a partir das abordagens clássicas e seminais. “Mudança conceitual” acabou se tornando um termo vago e uma espécie de rótulo (Pereira, 2017).
Liu (2004), She (2004) e Tyson et al., (1997) discorrem sobre as diferentes teorias propostas por pesquisadores do campo da psicologia cognitiva. A teoria original foi publicada por Posner et al. (1982); nela, os autores propõem a assimilação e a acomodação como dois tipos de mudança conceitual e, centrados nesta última, descrevem condições para que ela ocorra e características da ecologia conceitual (Tyson et al., 1997). Nos anos seguintes, a teoria foi revisitada diversas vezes, uma delas devido à abordagem racionalista/cognitivista que ela vinha recebendo, e os autores ampliaram as condições para a mudança conceitual por acomodação e ampliaram as características e a centralidade da ecologia conceitual, além de reconhecerem a importância de fatores afetivos, sociais e motivacionais (Tyson et al., 1997). A partir desta teoria, estudos foram desenvolvidos, entre eles, o de Chi (1992), que propõe três categorias ontológicas principais que podem descrever as características da maior parte dos conceitos científicos: matéria, processos e estados mentais. Tyson et al. (1997) descrevem uma estrutura multidimensional - ontologia, epistemologia e contexto socioafetivo - para as mudanças conceituais, que integra diferentes perspectivas a partir dos desdobramentos da teoria original.
A noção de perfil conceitual também é um dos desdobramentos da teoria original e tem orientado principalmente a agenda de pesquisa nacional sobre esse tema. Os autores entendem que cada indivíduo possui um perfil sobre um determinado conceito científico e que cada zona do perfil tem uma ontologia própria (forma de interpretação da realidade), distinta das demais; no entanto, esses perfis são semelhantes entre indivíduos de uma mesma cultura, pois estão relacionados a modos de pensar caracterizados/estabilizados por compromissos ontológicos, epistemológicos e axiológicos (Mortimer, 1998; Sepulveda et al., 2013). De modo geral, entende-se que há não apenas obstáculos epistemológicos que podem ocorrer no ensino e aprendizagem de um conceito, mas também obstáculos ontológicos, com base nas três categorias ontológicas de Chi (1992). Nessas pesquisas, também há discussões sobre a relação entre conhecimento cotidiano e conhecimento científico e como as questões socioafetivas e culturais compõem o perfil de um conceito e afetam o seu ensino e aprendizagem.
Os conceitos científicos abordados podem evidenciar que eles possuem uma dimensão ontológica mais complexa ou abstrata para o pensamento humano, o que pode levar a obstáculos epistemológicos e ontológicos mais frequentes e desafiadores no contexto do ensino e, consequentemente, acabam sendo objeto de estudo. Alguns dos conceitos trabalhados sob essa perspectiva são: matéria (Mortimer, 1998); calor (Amaral & Mortimer, 2001); força (Radé & Santos, 2005); morte (Nicolli & Mortimer, 2009); fotossíntese (Dimov et al., 2014); gravidade (Gupta et al., 2014); temperatura (Duca et al., 2017).
Com 21 artigos (18%), o foco em concepção de mundo e de ciência é o segundo mais frequente. Esse grupo de trabalhos discute a relação da concepção de mundo e da natureza da ciência de docentes, alunos ou mesmo de cientistas com o processo de ensino e aprendizagem, em como, por exemplo, uma concepção de ciência do docente acaba afetando o ensino de ciências. Nesse foco, o sentido de concepção de mundo em alguns trabalhos diz respeito à compreensão do ser humano acerca da natureza e sua relação com ela ou ainda sobre suas crenças religiosas e sua relação com a ciência.
Bencze e Elshof (2004) descrevem um estudo de caso de imersão dialética indutiva-dedutiva que teve o intuito de auxiliar docentes a desenvolverem concepções mais realistas da ciência, o que possibilitou construir um continuum ontológico e epistemológico dessas concepções. Westphal e Pinheiro (2004) trabalham com a epistemologia de Mario Bunge - que defende o realismo ontológico - como forma de se oporem às visões relativistas de Thomas Kuhn e Paul Feyerabend, mostrando o seu benefício para o ensino de ciências. Skordoulis (2008), partindo da concepção marxista de ontologia materialista, epistemologia realista e de ciência como uma atividade social, discorre sobre a relação entre marxismo, ciência e visões de mundo. Baily e Finkelstein (2009) sugerem que uma concepção realista, que não apresenta problemas para um sistema físico clássico, pode ser problemática para o ensino introdutório de física quântica, levando a interpretações inadequadas dos sistemas quânticos.
Kind e Osborne (2017) defendem uma concepção de raciocínio científico - que consideram ser um dos principais objetivos do ensino de ciências - com base em seis estilos de raciocínio, os quais mobilizam suas próprias entidades ontológicas e procedimentais e valores e construções epistêmicas. Lin e Tsai (2017) tratam das relações entre as crenças ontológicas e epistêmicas de alunos taiwaneses sobre a ciência a partir de entrevistas, identificando, por meio da análise de conteúdo, duas dimensões ontológicas e duas dimensões epistemológicas, ambas associadas entre si. Com base no realismo crítico de Roy Bhaskar, Yucel (2018) investiga as visões de mundo de cientistas acadêmicos sobre ciência, e concluem que a estrutura desse realismo fornece um meio termo entre o positivismo e o construtivismo social para educadores de ciências, entendendo o conhecimento científico como socialmente construído sem relativizar a realidade.
No trabalho de Mansour (2010), o autor discute sobre as visões que docentes egípcios muçulmanos têm da ciência, da religião e da relação entre elas, mostrando que há uma centralidade da religião no sistema de crenças dos docentes e que esta centralidade norteia seu entendimento sobre a natureza da ciência. Bai (2015) problematiza a ontologia cotidiana e sugere uma ontologia e epistemologia animistas e práticas contemplativas a fim de superar a visão de separação entre o animado e o inanimado (natureza).
Os 16 artigos (14%) com foco em modelagem, representação e simbolismo representam o terceiro foco mais frequente. Esses trabalhos discorrem sobre a modelagem no ensino de ciências, investigando como um modelo ou o simbolismo matemático representam a realidade. Também analisam como entidades, conceitos e leis são representados em livros didáticos. A maioria - 11 artigos - são da física e trabalham principalmente com a física quântica: Brockington e Pietrocola (2005) abordam a modelagem preocupados com a natureza dos objetos quânticos, que pode ser estranha para os alunos e levá-los a se desinteressar por sua aprendizagem; e Freitas e Sinclair (2018) propõem um modelo de raciocínio matemático para conceitos da quântica que envolvem a incerteza partindo da teoria da decisão e da probabilidade quântica.
Poblete et al. (2016) investigam a representação da primeira lei da termodinâmica em livros escolares e universitários. Pietrocola (1999) critica o movimento construtivista e apresenta o realismo científico de Bunge no ensino de física, com enfoque no papel dos modelos na ciência. Para Bunge (Bunge, 1973, 1974; Pietrocola, 1999), a modelagem é essencial para a construção do conhecimento científico, pois a realidade está escondida - inacessível aos sentidos - e pode ser apreendida conceitualmente por meio de modelos, que funcionam como “dublês” da realidade. Os modelos teóricos têm valor ontológico, pois são aproximadamente e provisoriamente a realidade; por ter um status convencional, não faz sentido questionar se um modelo é verdadeiro ou falso (Bunge, 1973, 1974).
Quanto ao foco em fundamentação e prática pedagógicas, 15 artigos (13%) se enquadram nele. Alguns trabalhos defendem uma determinada teoria pedagógica, como o construtivismo e a pedagogia histórico-crítica, discutindo sobre seus princípios filosóficos - como os ontológicos e epistemológicos - e de que forma eles orientam a prática docente. Outros estão mais centrados em metodologias e práticas específicas de ensino visando a uma aprendizagem mais efetiva e/ou transformadora, com abordagens socioculturais, etnográficas etc. Laburú e Carvalho (2001) discorrem sobre as bases ontológicas e epistemológicas do construtivismo radical e as críticas que ele tem recebido e propõem um pluralismo metodológico com base em Feyerabend, enquanto Kelly (1997) mostra algumas similaridades entre o construtivismo radical - entendido como um programa de pesquisa, nos termos do filósofo Lakatos - e o positivismo em relação à ontologia.
Stetsenko (2008) parte das contribuições de Dewey, Piaget e Vigotski - com foco neste último - para discutir abordagens socioculturais do desenvolvimento humano como a ontologia relacional, em que a transformação ativa e colaborativa do mundo - ser e se tornar - está no cerne da natureza humana e na base da aprendizagem, impregnadas de ideologia, ética e valores. A partir de uma combinação teórica de pedagogia crítica, aprendizagem baseada no lugar, educação científica, geografia humana, feminismo e conhecimento indígena, Kress e Lake (2018) trabalham com uma abordagem etnográfica envolvendo narrativas pessoais. No trabalho de Kang e Wallace (2005), os autores destacam que a visão que um professor tem da ciência influencia na sua prática e atividades em laboratório. Peneluc et al. (2018) discutem, com base nos pressupostos do marxismo e da pedagogia histórico-crítica, aspectos ontológicos, epistemológicos e político-pedagógicos da educação ambiental crítica, que pode desenvolver uma práxis educacional desveladora das questões socioambientais.
A fim de nortear os pesquisadores a partir da defesa de posições ontológicas e epistemológicas, os autores de 13 artigos (11%) tratam da pesquisa e metodologia. Esses trabalhos também discutem a necessidade de compreensão e reflexão por parte dos pesquisadores sobre a sua pesquisa e método e como eles se associam com panoramas contextuais, envolvendo raça, identidade, cultura etc. Santos (2007), com base no materialismo histórico e na ontologia do ser social de Lukács, defende a produção de conhecimento na EC com prioridade ontológica e não epistemológica, problematizando a relação entre ciência e religião. Partindo do fato de que muitos métodos atuais ainda partem dos princípios positivistas, Kincheloe e Tobin (2009) encorajam pesquisadores a identificar as ontologias, epistemologias e axiologias de seus métodos por meio da reflexão. Atweh (2011) trata da postura ética associada a construtos usados na pesquisa educacional, como justiça social e raça, e sugere uma abordagem não ontológica e não epistemológica da ética.
Por fim, apenas quatro trabalhos (4%) têm como foco o currículo de ciências. De modo geral, esses estudos investigam a mobilização da história e filosofia da ciência nos currículos, tratando de aspectos sobre compreensão da natureza da ciência, conflitos com crenças e a relação entre currículo e autonomia escolar. Nascimento Júnior et al. (2011) analisam aspectos ontológicos, epistemológicos, histórico-sociais e conceituais de biologia nos Documentos Curriculares Nacionais do Ensino Médio (PCNEM). Long (2012) discute sobre o conflito entre evolucionismo e criacionismo, a minimização do evolucionismo no currículo por parte dos professores e as implicações para a política dos programas de formação de professores de ciências.
A partir desse panorama, pude identificar que a natureza da realidade e a possibilidade de conhecê-la são aspectos ontológicos e epistemológicos comuns a todos os focos, mobilizados por meio de diferentes temáticas e aprofundamentos e que dizem respeito a concepções de mundo e de ciência. Para a análise com base no materialismo histórico e dialético, foram selecionados apenas trabalhos de ciências da natureza (geral), pois não é o meu objetivo aprofundar em temáticas de uma ciência específica. Além disso, os artigos dessas áreas discutem, principalmente, sobre a ontologia e a epistemologia de conceitos científicos no processo de ensino e aprendizagem e sobre a modelagem. Desses trabalhos, um novo recorte foi realizado: foram selecionados apenas os artigos que abordam de forma mais explícita sobre a realidade e a possibilidade de conhecê-la, com discussões mais teóricas e filosóficas no corpo do texto. Assim, 11 artigos compuseram o corpus para a análise, pertencentes a três focos:
Concepção de mundo e de ciência: (Bencze & Elshof, 2004; Kind & Osborne, 2017; Lin & Tsai, 2017; Skordoulis, 2008; Westphal & Pinheiro, 2004; Yucel, 2018).
Fundamentação e prática pedagógicas: (Laburú & Carvalho, 2001; Kang & Wallace, 2005; Kelly, 1997).
Pesquisa e metodologia: (Kincheloe & Tobin, 2009; Santos, 2017).
A seguir, apresento uma análise marxista sobre a natureza da realidade e a possibilidade de conhecê-la por meio de categorias de análise que emergiram dos 11 trabalhos selecionados, procurando entender a concepção dos autores da EC e as categorias a partir da concepção marxista, dialogando com as problemáticas e potencialidades identificadas nesse contexto.
ANÁLISE MARXISTA: A NATUREZA DA REALIDADE E A POSSIBILIDADE DE CONHECÊ-LA
No estudo de Lin e Tsai (2017), os autores partem de entrevistas feitas a alunos sobre a natureza da ciência e definem duas dimensões: uma sobre o status da natureza e outra sobre a estrutura da natureza. Cada dimensão se divide em duas visões, sendo uma realista e outra idealista. As respostas dos alunos foram enquadradas dentro de uma visão de cada dimensão:
Dimensão do status da natureza: a realidade é material e existe independente da experiência e conhecimento humanos e a ciência é capaz de representar a natureza como ela é (realista); não há realidade existente fora da experiência e conhecimento humanos e o que se observa sobre o mundo é construído por meio de discursos e teorizações (idealista) (Lin & Tsai, 2017);
Dimensão da estrutura da realidade: a natureza, em sua essência, tem uma estrutura a priori, isto é, uma estrutura absoluta (realista); a natureza não tem nenhuma suposta estrutura ou ordem (idealista) (Lin & Tsai, 2017).
As duas visões que Lin e Tsai (2017) definem sobre o status da natureza se assemelham com o esquema proposto e utilizado por Bencze e Elshof (2004) para classificar a concepção de professores. O esquema é constituído por dois eixos: um continuum ontológico (eixo vertical) que vai da perspectiva realista à antirrealista, e um continuum epistemológico (eixo horizontal) que vai da racionalista à naturalista, existindo, portanto, quatro possibilidades de cruzamento representadas pelos quatro quadrantes (Bencze & Elshof, 2004). O que Lin e Tsai (2017) chamam de visão realista do status da natureza é o que Bencze e Elshof (2004) chamam de perspectiva realista no continuum ontológico. Enquanto Lin e Tsai (2017) não entendem as visões na forma de um continuum, Bencze e Elshof (2004) entendem que existem diferentes níveis/gradientes das perspectivas. Bencze e Elshof (2004) não discutem sobre a dimensão da estrutura da realidade.
Kang e Wallace (2005) se apoiam na agenda da American Association for the Advancement of Science para justificar seu estudo sobre a relação entre os objetivos instrucionais e crenças dos professores com suas aulas laboratoriais. No artigo, os autores falam de “crenças epistemológicas”, sendo possíveis várias combinações de crenças epistemológicas com aspectos ontológicos, o que lembra os gradientes de Bencze e Elshof (2004).
A possibilidade de que diferentes combinações de aspectos ontológicos e relacionais de crenças epistemológicas produzam várias práticas de ensino sustenta o argumento de que as crenças epistemológicas são multidimensionais (Hofer, 2000). Em particular, aspectos ontológicos e relacionais parecem ser dimensões distintas de crenças epistemológicas que explicam diferentes partes das práticas de ensino (Kang & Wallace, 2005, p. 161, tradução nossa).
Esses trabalhos (Bencze & Elshof, 2004; Kang & Wallace, 2005; Lin & Tsai, 2017) mostram tentativas de compreensão da constituição da concepção de alunos e professores, que envolvem crenças ontológicas e epistemológicas, evidenciando os desdobramentos das concepções para o ensino e que essas concepções são heterogêneas e passíveis de mudança, o que foi evidenciado, por exemplo, na proposta desenvolvida por Bencze e Elshof (2004), em que os professores migraram de uma posição racionalista-realista (moderna) para uma mais naturalista-antirrealista (pós-moderna). Entretanto, essas crenças ontológicas e epistemológicas são trabalhadas a partir da perspectiva do sujeito (abordagem epistemológica), o que secundariza a dimensão ontológica - e, portanto, a realidade -, entendida, por exemplo, como uma dimensão da epistemologia, e a crença ontológica realista é considerada ingênua, tradicional, não sofisticada. Essas concepções remetem tanto ao velamento da ontologia da ciência neopositivista (Lukács, 2018) como ao relativismo ontológico da pós-modernidade (Della Fonte, 2011). Além disso, não existe uma discussão mais ampla e filosófica sobre a natureza da realidade, do ser humano e da ciência, e da relação que estabelecem entre si.
Entender a natureza da realidade e como ela pode ser conhecida exige uma compreensão do que é o ser humano. Para Lukács (2018), compreender a estrutura da realidade é essencial para a compreensão da especificidade ontológica do ser social. A perspectiva ontológica geral para o marxismo é realista, isto é, o movimento da realidade é material e existe independente da consciência e conhecimento humanos, diferente de uma concepção ontológica antirrealista, em que a realidade existe a partir da mente humana (Lênin, 1982). Resgatando os trabalhos de Bencze e Elshof (2004) e de Lin e Tsai (2017), a concepção marxista se enquadra nas classificações realistas propostas por esses autores, mas não assume qualquer possibilidade de relativização e combinação com classificações idealistas.
Para se entender a ontologia do ser social e como o ser humano se distingue dos demais seres, é necessária uma concepção realista estratificada da realidade, em que a caracterização e as categorias de cada estrato dependem da natureza do ser. A partir de Duarte (1998), Lukács (2018) e Marx (2010), pode-se inferir que existem três níveis/esferas - três tipos de ser -, que apresentam uma série de determinações categoriais: o ser inorgânico (inanimado, físico-natural), o ser orgânico (biológico, meio de vida) e o ser social (vida mental). Considerar diferentes níveis de realidade não implica que cada nível seja uma realidade única e independente; ambos pertencem a uma unidade indissolúvel histórica e natural da única realidade material e objetiva. Não implica também que cada tipo de ser não apresente atributos próprios: elementos dos três tipos de ser têm conexão e diferenciação; o ser social emerge da esfera orgânica, que, por sua vez, emerge da inorgânica; logo, o ser humano é social, orgânico e inorgânico, não podendo ser reduzido a nenhuma dessas esferas (Duarte, 1998; Lukács, 2018; Marx, 2010).
[...] a ontologia geral ou, em termos mais concretos, a ontologia da natureza inorgânica como fundamento de todo existente é geral pela seguinte razão: porque não pode haver qualquer existente que não esteja de algum modo ontologicamente fundado na natureza inorgânica. Na vida aparecem novas categorias, mas estas podem operar com eficácia ontológica somente sobre a base das categorias gerais, em interação com elas. [...] A questão marxiana sobre a essência e a constituição do ser social só pode ser formulada racionalmente com base numa fundamentação assim estratificada (Lukács, 2018, p. 27).
O ser humano se distingue dos seres orgânico e inorgânico a partir de categorias específicas, sendo as principais o trabalho e a consciência: “[...] o animal apenas usa a natureza exterior e, por sua simples presença, causa modificações nela; o ser humano a põe a serviço de seus fins por meio das modificações que introduz nela; ele a domina” (Engels, 2020, p. 347, grifo do autor). É o trabalho e, portanto, a consciência, que possibilitaram o salto ontológico ou qualitativo do ser orgânico ao ser social (Tonet, 2013).
Logo, não existe separação entre o ser social e a natureza, mas, como discorre Tonet (2013) sobre o padrão moderno de cientificidade, o intenso dinamismo da sociedade capitalista e a intervenção ativa do ser humano exigiram uma separação idealizada entre sociedade e natureza, pois esta passou a ser entendida como submissa ao ser humano e aos seus interesses, que precisa explorá-la e conhecer suas qualidades mensuráveis a fim de aumentar a base material. Quanto mais universal o ser humano é em relação ao animal, mais universal é a dominação que ele exerce sobre o ser inorgânico (Marx, 2010), mas o ser humano não se liberta da natureza no sentido de se tornar independente e livre das suas leis; ele só se liberta da natureza conforme conhece as suas leis e consegue fazê-las atuarem para determinados fins (Engels, 2020).
Yucel (2018) traz em seu artigo as contribuições do filósofo Roy Bhaskar, que defende um realismo crítico. Trata-se de um realismo científico que se distancia do empirismo, reivindicando a prioridade da ontologia na produção de conhecimento científico sem que ela seja relativizada (Wagner & Silveira, 2019; Yucel, 2018). Assim, Bhaskar critica o realismo empírico - de herança huminiana -, que reduz o real ao empírico, mas não defende o realismo ingênuo de um materialismo mecanicista, para o qual o movimento mental coincide com o movimento do real (Wagner & Silveira, 2019). Nessa concepção, é como se o reflexo ou espelhamento fosse uma fotocópia do real: os objetos e relações aparecem no espelhamento independentemente de serem singulares, particulares ou universais, os diferentes tipos de ser são absolutizados (Lukács, 1966, 2018).
Também partindo de uma concepção de realidade estratificada, Bhaskar (2013) entende a realidade como uma unidade de três estratos ou domínios distintos: o empírico, o atual/factual e o real. O real se manifesta além do que podemos experimentar, e embora o domínio do empírico sempre englobe os outros domínios, não necessariamente percebemos por meio dele todos os entes, mecanismos e propriedades, pois podem estar em um nível estratificado do real ainda não investigado (Bhaskar, 2013; Wagner & Silveira, 2019; Yucel, 2018). Yucel (2018)aborda a fotossíntese para exemplificar os três domínios da realidade e afirma que as teorias científicas podem se referir a qualquer um desses domínios:
Domínio do real/causal: forças reais que podem ou não ser ativadas, mecanismos geradores: estrutura química das moléculas de água e de dióxido de carbono;
Domínio do factual: o que de fato ocorre em decorrência das forças causais e da combinação de tendências: representação da reação química da fotossíntese;
Domínio do empírico: dados coletados: quanto menos luz solar, menor a fotossíntese; quanto mais água, maior a fotossíntese.
Uma molécula de água, por exemplo, tem, devido à sua natureza, um determinado devir, isto é, potencialidades de vir a ser qualitativamente outra coisa após um crescimento quantitativo, o qual decorre por meio de interações (Lefebvre, 1991). A interação da água com outras moléculas e/ou condições/meios faz com que existam reflexos mútuos, os quais refletem sob uma forma específica as particularidades provenientes das interações entre universais (Cheptulin, 1982). “[...] na natureza inanimada, o reflexo toma a forma de uma reação química ou física em retorno, que coincide com a mudança do estado interno da formação material submetida às ações exteriores [...]” (Cheptulin, 1982, p. 83). Por isso, a aparência e o fenômeno são apenas um momento da essência e não ela própria; diferentemente dos empiristas, deve-se ir além e tentar conhecer o que está por trás dessas particularidades refletidas, quais mecanismos estão envolvidos nesse processo de reflexão entre formações materiais, quais são as características das entidades e o seu devir, sem assumir uma entidade como a mais elementar ou fixa, pois cristaliza-se o movimento da natureza (Cheptulin, 1982; Lefebvre, 1991). Tal movimento, de acordo com Engels (2020, p. 170), surge da incidência mútua entre os corpos/entidades que existem dentro de um contexto: “[...] a matéria é inconcebível sem movimento”.
De acordo com Lefebvre (1991), o fato de o universo estar em movimento não implica a inexistência de seres relativamente estáveis e de qualidades relativamente constantes. A espécie humana existe, tem qualidades próprias, mas evolui; a água existe, tem qualidades próprias, mas não com a simplicidade e estabilidade requerida pela pura lógica (Lefebvre, 1991), ou, nos termos de Bhaskar, as moléculas de água não estão em um sistema fechado na natureza (Wagner & Silveira, 2019). Logo, existe a verdade, mas ela não é absoluta, pois sempre há mecanismos não identificados sobre a natureza da água e sua interação/reatividade com outras substâncias. A matéria é inerte apenas na aparência, uma vez que é constituída de ritmos e vibrações diferentes dos nossos; ela não é absolutamente estável: os elementos químicos não podem ser definidos pelo peso atômico constante, pois existem os isótopos, e os prótons e nêutrons não podem ser considerados entidades últimas/elementares do átomo, pois a estrutura é complexa e móvel (Lefebvre, 1991).
Para complementar essa discussão, trago a abordagem de Kind e Osborne (2017) sobre os diferentes tipos de raciocínio científico e as formas de conhecimento das quais esse raciocínio depende: conhecimento do conteúdo, conhecimento procedimental e conhecimento epistêmico. Em nota de rodapé, os autores explicam:
[...] uma entidade ontológica, por exemplo, uma onda, um gene ou um elemento é distinta de uma entidade procedimental como uma variável, um erro de medição, [...] que, por sua vez, é distinta de uma entidade epistêmica, como uma teoria, uma hipótese ou um argumento indutivo” (Kind & Osborne, 2017, p. 10, tradução nossa).
Pode-se entender que a entidade procedimental faz parte do domínio do empírico, o qual não revela aspectos diretos do domínio do real (entidade ontológica), mas que apresenta determinado comportamento e resposta a uma análise porque o real tem determinadas características e mecanismos. A entidade epistêmica, por sua vez, diz respeito à consciência humana e aos métodos científicos. Contudo, ao considerarem a entidade ontológica como conhecimento do conteúdo e ao subordinarem essa entidade às várias formas de raciocínio - por exemplo, a dedução matemática -, a discussão dos autores fica polarizada na dimensão epistemológica. Não há uma discussão mais profunda da dimensão ontológica sobre como uma variável se relaciona com os elementos do real e como as formas de raciocínio - dedução matemática, avaliação experimental, modelagem hipotética, categorização e classificação etc. - refletem o movimento do real, da matéria. Os autores afirmam que
Essas formas de raciocínio existem porque foram, e ainda são, bem-sucedidas em responder às questões ontológicas, causais e epistêmicas que são o foco das ciências. Elas são boas não porque detectam a verdade; em vez disso, elas são boas porque são bem-sucedidas” (Kind & Osborne, 2017, p. 13, tradução nossa).
Tenho identificado em autores marxistas (Cheptulin, 1982; Engels, 2020; Lefebvre, 1991; Lênin, 1982) uma convergência sobre a natureza ter aspectos dialéticos; contudo, trata-se de uma questão polêmica que não está resolvida. Martins e Lavoura (2018) e Oliveira (2005) entendem que a lógica dialética é capaz de apreender as complexas relações e mediações dos múltiplos elementos da realidade em movimento, diferentemente da lógica formal, que os considera estáticos. O ser humano reflete no pensamento o desenvolvimento processual da realidade em sua dinamicidade e concretude por meio de abstrações e categorias (Oliveria, 2005). “[...] o movimento de nossa reflexão pode e deve reproduzir o movimento através do qual a essência se traduz, se trai, se reencontra em si mesma, mais profunda que o fenômeno e, todavia, ‘expressa’ por ele” (Lefebvre, 1991, p. 217). O reflexo científico, embora reflita a realidade objetiva, é um processo complexo, não imediato, não mecânico, e, portanto, não permite a apreensão da realidade em sua totalidade imediata, sendo uma aproximação sempre parcial (Lênin, 2011; Lukács, 1966). É a própria prática, nos termos de Lênin (1982), ou o próprio desenvolvimento histórico das ciências naturais, que atinge graus mais elevados de elaboração, nos termos de Engels (2020), que comprovam os aspectos dialéticos da natureza.
Para Engels (2020), as leis da dialética são deduzidas a partir da história da natureza e da histórica da sociedade humana. Sendo possível captar categorias e movimentos dessas leis no reflexo da realidade, então o movimento do pensamento reflete aspectos do movimento da matéria, contudo, a realidade pode e deve ser mais complexa do que as leis da dialética são capazes de expressar. “[...] por mais atento que seja o pensamento, a realidade é mais complexa que o seu reflexo, desafia previsões e, por isso mesmo, alarga e enriquece a consciência” (Della Fonte, 2011, p. 29). Logo, entender o papel da lógica dialética e do reflexo na produção de conhecimento, no desvelamento da verdade, ainda que transitória, nos permite ir além da compreensão dos tipos de raciocínio como frutos de um sucesso.
Skordoulis (2008) aborda o realismo científico de Marx, que parte de uma concepção ontológica realista e rejeita, assim como Bhaskar, o empirismo, que se detém em sistematizar o que é diretamente observável ao invés de pesquisar as causas implícitas. Para Lukács (2018), o neopositivismo recai no erro do empirismo porque acaba valorizando em demasia e deformando a participação do sujeito no espelhamento do universal no pensamento, não reconhecendo que o espelhamento pode estar refletindo momentos da realidade, pois é ignorada a existência em si do universal, que acaba sendo compreendido sob a manipulação subjetivista. É necessário superar o sensível e imediato para se penetrar no real, o que é negado pelos empiristas; contudo, a abordagem dos racionalistas também é equivocada porque entendem as ideias de forma metafísica, as situam para além do real (Lefebvre, 1991). Penetrar no real “[...] é atingir pelo pensamento um conjunto cada vez mais amplo de relações, de detalhes, de particularidades, captadas numa totalidade. Esse conjunto, essa totalidade, por outro lado, jamais podem coincidir com a totalidade do real, com o mundo” (Lefebvre, 1991, p. 112).
Focados nas ciências humanas/sociais, Kincheloe e Tobin (2009) destacam seis pressupostos epistemológicos (com dimensões ontológicas) que são identificados na pesquisa positivista: formal, intratável, descontextualizada, universalista (tende a fazer generalizações/cristalizações), reducionista e unidimensional (define métodos de pesquisa corretos). Essas percepções ontológicas/epistemológicas estão relacionadas com neutralidade, objetividade, absolutismo e inflexibilidade, e “[...] moldam profundamente a forma como percebemos o mundo, a nós mesmos, nossa relação com o mundo, a educação e a produção de conhecimento” (Kincheloe & Tobin, 2009, p. 522).
De acordo com Kelly (1997), o positivismo é uma das filosofias antirrealistas mais fortes porque prioriza a verificabilidade e a demarcação e ignora questões relacionadas à realidade por considerá-las metafísicas. Os construtivistas radicais apresentam semelhança com os positivistas no que diz respeito à viabilidade de teorias: “[...] o conhecimento consiste em construções cognitivas e é viável na medida em que é consistente com a experiência e permite que os humanos façam previsões”, sendo essa viabilidade entendida como ontologicamente neutra (Kelly, 1997, p. 361). Embora o construtivismo radical seja interpretado como uma forma de realismo, por se articular com uma multiplicidade de posições ontológicas, trata-se de um falso realismo, pois entende que “Existe uma realidade independente de nossos pensamentos e compromissos teóricos, mas essas aparências disponíveis ao conhecimento humano são aprendidas de maneira dependente da teoria [...]”, ou seja, essas aparências são construções humanas (Kelly, 1997, p. 362, tradução nossa). Laburú e Carvalho (2001), que discorrem sobre controvérsias construtivistas, apontam que o construtivismo radical parte do pressuposto de que a realidade é constituída por processos e fatores individuais e que, portanto, o conhecimento científico não tem relação com a verdade. Trata-se de uma postura ontológica idealista e epistemológica empirista por entender que “[...] não podemos conhecer qualquer realidade além da experiência. Portanto, a verdade torna-se relativa às estruturas conceituais que cada um de nós constrói, tendo cada pessoa acesso apenas às suas próprias experiências” (Laburú & Carvalho, 2001, p. 2).
A fim de dialogar com essas concepções construtivistas e positivistas sobre a natureza da realidade e a possibilidade de conhecê-la, trago uma discussão sobre a práxis. Lukács (2018, p. 28, grifo do autor) afirma que conhecimento da ontologia do ser social só é possível pela compreensão da práxis no seu sentido objetivo e subjetivo: “[...] objetivamente o ser social é a única esfera da realidade na qual a práxis cumpre o papel de condido sine qua non[7] na conservação e no movimento das objetividades, em sua reprodução e em seu desenvolvimento”. A práxis nasce como resposta a perguntas de cunho ontológico sobre quem é o ser humano e o que é e como é criada a sociedade humano-social (Kosik, 1969). Nos seus estudos econômicos, Marx prioriza a ontologia na unidade ontoepistemológica ao partir de uma concepção ontológica do ser como ser social (Tonet, 2013). A práxis não deve ser entendida como mera prática (pragmatismo, utilitarismo), ela é a revelação da ontologia do ser social como ser ontocriativo - o que o diferencia da animalidade -, que cria a realidade humano-social e que, portanto, é capaz de compreender a realidade na sua totalidade, seja ela humana ou não-humana; práxis é unidade de teoria e prática, é ativa e histórica (Kosik, 1969). Ela também remete a uma concepção epistemológica objetivista, ou seja, o ser humano é capaz, por meio da sua práxis e do reflexo científico - desantropomorfizador - de reproduzir mentalmente e conceitualmente a realidade objetiva; a verdade, portanto, não é apenas uma forma organizadora da experiência humana, ela é objetiva (Lênin, 1982; Lukács, 1966).
O ser humano cria/objetiva, por meio do trabalho, algo que não é natural, que dependeu da sua práxis para existir. Aquilo que foi objetivado existe materialmente e independente de como o humano o nomeia, o entende e o categoriza. Nesse processo histórico, as objetivações geram novas necessidades e novas objetivações, que precisam ser apropriadas pelo ser humano (Duarte, 1998). A teleologia (intencionalidades/objetivos conscientes) e a causalidade (leis naturais, séries/princípios causais) são momentos heterogêneos desse processo de objetivação e compõem uma unidade indissolúvel: o trabalho (Lukács, 2018; Santos, 2017; Tonet, 2013). A causalidade existe de forma natural e espontânea, mas também existe como produto da ação humana, que gera novas séries causais (Santos, 2017). Os fins surgem das necessidades humanas e precisam ser objetivados pelo sujeito, já que não podem ser obtidos imediatamente na natureza; para se atingir os fins desejados, é necessário conhecer a causalidade, isto é, a realidade que será transformada (Lukács, 2018; Tonet, 2013). Essa é a importância da ciência como atividade teórica capaz de aproximar o conhecimento da causalidade à verdade: quanto mais verdadeiro for esse conhecimento, maior será a probabilidade de se atingir os fins (Lukács, 2018; Tonet, 2013). Portanto, é do trabalho que se origina a atividade prática objetiva dos seres humanos, da qual se desenvolvem esferas autônomas, como a ciência e a arte, que “[...] não apenas nos colocam questões teóricas epistêmicas cada vez mais elaboradas, mas, efetivamente, nos colocam diante de uma nova verdade ontológica” (Santos, 2017, p. 6).
Westphal e Pinheiro (2004) trabalham com a epistemologia do já citado Mario Bunge. Para explicar o realismo ontológico de Bunge, os autores trazem em nota de rodapé uma citação de Cupani e Pietrocola (2002, p. 101): trata-se da “[...] convicção de que o mundo existe independentemente de nós. Para Bunge, todas as operações da ciência [...] implicam essa crença e ficariam privadas de sentido sem ela”. Assim como Skordoulis (2008), reconheço que, em alguns aspectos, há concordâncias entre a filosofia de Bunge com o marxismo. Porém, Bunge (1974) é a favor de um construtivismo epistemológico, pois ele compreende que as teorias e modelos construídos não retratam a realidade, pois são convencionais - uma vez que a construção do conhecimento científico é influenciada por fatores sociais - e, nesse sentido, são apenas aproximativos (Bunge, 1974; Westphal & Pinheiro, 2004). As concepções de Bunge e do construtivismo radical (Kelly, 1997; Laburú & Carvalho, 2001) remetem tanto à convenção científica do neopositivismo como ao ceticismo epistemológico da pós-modernidade (Della Fonte, 2007, 2011).
O reflexo científico do ser social é capaz de captar o movimento da realidade por meio da mediação de categorias e por meio de conceitos. As categorias existem na realidade, mas não são tocáveis: elas fazem parte dos mecanismos do movimento da essência da realidade, os quais não são necessariamente captados no domínio do empírico; enquanto mediação, as categorias sintetizam esses movimentos e nos auxiliam na compreensão da realidade (Cheptulin, 1982). Portanto, o conhecimento produzido pela práxis científica tem caráter aproximativo, mas objetivo, não se trata apenas de uma convenção. A ciência é fruto de disputas ideológicas e deve se posicionar criticamente em relação aos interesses que podem limitar a sua objetividade: “A liberdade de buscar a verdade não é aumentada pela adoção de uma crença ilusória no desengajamento social da prática de produzir conhecimento científico” (Duarte et al., 2021, p. 5, tradução nossa).
CONCLUSÕES
A revisão bibliográfica apresentada teve como objetivo identificar quais focos temáticos os autores da EC têm mobilizado nos estudos que envolvem aspectos ontológicos e epistemológicos da ciência. Os 114 artigos foram classificados conforme a área das ciências da natureza e o foco - concepção de mundo e de ciência, currículo, ensino e aprendizagem de conceitos, fundamentação e prática pedagógicas, modelagem, representação e simbolismo, pesquisa e metodologia -, com predominância do ensino e aprendizagem de conceitos, que trata principalmente de obstáculos ontológicos e epistemológicos. De modo geral, embora os autores dos 114 trabalhos apresentem uma discussão mais epistemológica, eles investigam aspectos que se relacionam com a concepção de mundo e de ciência e resgatam discussões filosóficas pertinentes que acabam não sendo abordadas no ensino de ciências (Matthews, 2014).
Na análise realizada, apresentei a perspectiva marxista acerca da natureza da realidade e a possibilidade de conhecê-la partindo das discussões de 11 trabalhos selecionados em um novo recorte e mobilizando categorias. Esses trabalhos evidenciaram a heterogeneidade da concepção de mundo e de ciência de professores e alunos, bem como a possibilidade de mudança dessas concepções. A maioria dos autores não evidenciam a sua concepção de natureza, de ser humano e de ciência, deixando-a em suspenso ou velada, e discutem sobre a dimensão ontológica a partir de uma perspectiva epistemológica, submetendo a realidade ao sujeito e relativizando-a. Os artigos apresentam concepções tanto do neopositivismo como da pós-modernidade, as quais são criticadas por Della Fonte (2007, 2011), Lukács (2018), Tonet (2013) e Valero et al. (2022) porque são idealistas, manipulativas e mascaram a realidade e a dinâmica desumana do capitalismo, que acabam relegadas a abstrações ou ao transcendente. Para Lukács (2018, p. 113), “[...] essa é a perda do senso de realidade da maioria das pessoas que vivem em nossa época em virtude da crescente manipulabilidade de seu cotidiano”. De acordo com o materialismo histórico e dialético, a realidade é prioritária e independe da consciência humana; logo, não há espaço para antirrealismos e relativismos. A realidade não é mecânica, cristalizada e/ou absoluta; ela é estratificada, está em movimento, tem aspectos dialéticos e pode ser captada mentalmente e conceitualmente pelo reflexo científico do ser social, ser ontocriativo. O conhecimento que advém da práxis científica tem objetividade, não é fixo nem imutável, pois reflete a realidade, e não é apenas uma convenção.
Para Matthews (2009, 2014), a educação científica deveria tratar de elementos filosóficos da ciência e da importância da concepção de mundo. Complemento o autor afirmando que, para ensinar ciências com esse tipo de abordagem, o docente precisa ter consciência desses elementos e conhecer os fundamentos de uma determinada pedagogia, que dizem respeito a uma determinada concepção de ser humano, de realidade e de ciência. Principalmente em um contexto de problemas sociais e ambientais urgentes, negacionismos e tensões políticas (Reis, 2021), o docente precisa se posicionar e avaliar se tal concepção é coerente com a sua própria concepção de mundo e de ciência e com a sua prática educativa.