Introdução
A partir da Constituição Federal de 1988, são propostas reformas estruturais e curriculares que visam um melhor desempenho da educação e do ensino no país. A CF/88 determina que a educação é direito de todos e o estado tem o dever de garantir isto, com igualdade de acesso e devidas condições de permanência dos estudantes. Em consonância com tal premissa, a Lei N. 9.394, de 20 de dezembro de 1996 (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional - LDB) e as Diretrizes Curriculares Nacionais (DCNs), apresentam orientações gerais para que sejam observadas no Ensino Fundamental de todas as escolas brasileiras a organização, a articulação, o desenvolvimento e avaliação de suas propostas pedagógicas (BRASIL, 2013).
No Brasil, o Ensino Fundamental se conforma como uma das etapas relevantes para a formação básica de crianças e adolescentes, pois constitui modalidade obrigatória da educação brasileira, e tem duração de 09 anos, durante os quais, diversas experiências são vivenciadas por esses agentes no espaço escolar. Tais experiências guardam relevância, não somente para o processo de desenvolvimento cognitivo desses estudantes, como para a constituição de identidade e, por conseguinte, das sociabilidades na escola. Assim, a escola assume relevância nos processos de aprendizagens, na medida em que oportuniza a aquisição naquilo que Young (2007) denomina de conhecimento poderoso, o qual favorece a expansão da escolarização, bem como contribui para a promoção da equidade, sobretudo, em relação a estudantes já socialmente desfavorecidos, dentre os quais, pretos e pardos figuram como um expressivo contingente no panorama das desigualdades, concorrendo para aquilo que Marcelino (2018) denomina o sucesso e o fracasso de estudantes negros.
Ainda sobre o Ensino Fundamental, a Resolução N. 03/2005, do Conselho Nacional de Educação (CNE), define normas para a ampliação deste nível de ensino no país, mediante a obrigatoriedade da matrícula de crianças a partir dos seis anos de idade, medida esta que passou a ser implantada nas instituições escolares a partir do ano de 20102 (SAVELI, 2008). Estudos apontam que nos anos finais, diversos fatores comprometedores da aprendizagem despontam na experiência dos estudantes: fracasso escolar, baixo desempenho, reprovações, evasões, abandono, problemas comportamentais os quais demandam atenção por meio da adoção de políticas públicas (MARTURANO e; ELIAS, 2016; D’ABREU e; MARTURANO, 2010).
Por outro lado, estudos como os de Hédio Silva Jr (2002) já apontavam outros fatores comprometedores da aprendizagem, situando a discriminação racial, dentre os elementos que inviabilizaram a permanência e finalização exitosa da trajetória escolar por estudantes negros, naquilo que Ahyas Siss e Iolanda Oliveira (2007) identificaram como acidentes de percurso que conferiam prejuízos na trajetória escolar das crianças negras. Marcelo Paixão (2008), ao se debruçar sobre a realidade dos indicadores da escolarização de brancos e negros, evidencia que são notada, e persistentemente distintos. Favoráveis ao primeiro grupo de raça/cor.
Nesse sentido, a relevância de estudos sobre as experiências relacionadas ao Ensino Fundamental, permanece atual, pois as filigranas das dificuldades de aprendizagem, não se restringem a uma única dimensão. Ainda que saibamos, pela literatura, que a escola não apresenta ação redentora, ela ocupa um lugar político e estratégico, na formação de identidades (BERGER; LUCKMANN, 2004) das futuras gerações.
Pensar a escola sob tal perspectiva promove, na formulação de Wilma Coelho e Carlos Silva (2017), as ações que se fazem possíveis na alteração de estruturas sociais marcadas por representações e práticas preconceituosas, nos quais a escola responde à chamada. Tais representações, veiculadas por parte da sociedade brasileira, na qual a escola se inclui, refletem e por vezes, legitimam “práticas de privilegiamento, exclusão e subordinação social, seus efeitos se materializam na convivência humana ao produzir hierarquizações, que são transformadas em desigualdades” (COELHO; SOARES, 2011, p.136).
Neste panorama, este artigo - advindo de pesquisa financiada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), efetivada junto a 175 (cento e setenta e cinco) estudantes, em duas escolas - refere-se a um recorte que contou com a participação de 111 (cento e onze) estudantes, do 6º ao 9º ano, de uma escola pública paraense, no município de Belém - objetiva analisar as relações de sociabilidades estabelecidas entre adolescentes, em uma escola da rede pública estadual de Ensino Fundamental de Belém - PA. Especificamente, tencionamos identificar o perfil dos estudantes e averiguar as relações estabelecidas entre eles na relação com a escola.
Para a análise pretendida, nos utilizaremos das noções conceituais de violência simbólica, hierarquia e habitus, em Pierre Bourdieu (1996, 2002, 2010); representação, em Roger Chartier (1991, 1982). No que tange à literatura especializada sobre relações sociais, sociabilidades adolescentes e relações étnico-raciais, adotaremos as formulações Wilma Coelho; Mauro Coelho (2016), Wilma Coelho; Carlos Silva (2015; 2017; 2018; 2019), Nicelma Soares (2010). As formulações conceituais de Laurence Bardin (2010), Marli André (2003), Meinerz (2011) e Heraldo Vianna (2003), auxiliaram no trato e sistematização dos dados, etnografia escolar, observações e grupos de discussão realizados na escola. O artigo estrutura-se a partir das seguintes sessões: sobre as dimensões iniciais do estudo; relações de sociabilidades e diversidade na escola sob a ótica dos adolescentes e a discussão sobre a realidade de que o racismo ainda se encontra vivo na escola - impactos nas relações de sociabilidades.
Sobre as dimensões iniciais do estudo
O recorte que originou o estudo em tela contou com a participação de 111 (cento e onze) estudantes, do 6º ao 9º ano, de uma escola pública paraense, no município de Belém. A escola foi selecionada, considerando três aspectos: primeiro, o de integrar o sistema público de ensino; segundo, os Índices de Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB) nos últimos anos (a escola apresentou o índice 0,03); o terceiro aspecto consistiu na localização geográfica no entorno da Universidade Federal do Pará, no bairro do Guamá4.
A escola oferta as modalidades de Ensino Fundamental (6º ao 9º ano), Ensino Médio e Educação de Jovens e Adultos (EJA) em três turnos, e comporta, no Ensino Fundamental, duas turmas de cada ano, as quais totalizam 223 (duzentos e vinte e três) estudantes. Destes, o universo de 111 (cento e onze) estudantes, compôs a amostra de 50% desse nível de ensino, para reflexão sobre a escola.
Para este estudo, que se constitui uma pesquisa de cunho qualitativo (BOGDAN; BIKLEN, 1994), adotamos procedimentos metodológicos que foram desde a inserção na escola para a realização da observação participante (nas salas de aulas e diversos espaços frequentados pelos estudantes na instituição); aplicação de questionários e o grupo de discussão (MEINERZ, 2011). Tais procedimentos foram acionados objetivando identificar o perfil das relações de sociabilidades estabelecidas entre os adolescentes na escola, com vistas a analisar as percepções destes sobre aquelas relações de sociabilidades5, assim como a importância que a escola assume na vida dos mesmos, além do ponto de vista sobre as temáticas e ações voltadas para a diversidade.
Os encaminhamentos iniciais seguiram as seguintes etapas: a) contatos com a direção, coordenadores e coordenadoras da escola, com as finalidades relacionadas aos procedimentos éticos e formais da pesquisa; b) autorização dos pais e responsáveis, por meio de Termo de Consentimento; c) observações, durante 6 (seis) meses em sala e no ambiente escolar (corredores, quadras de esportes, refeitórios e pátios). As observações em sala de aula consideraram as disciplinas de Língua Portuguesa, História, Artes, Estudos Amazônicos e Educação Religiosa - a definição dessas disciplinas relaciona-se ao fato de que nelas, a temática sobre a diversidade assume enfoques distintos; d) aplicação dos questionários, para elaboração do perfil dos estudantes, considerando dimensões pessoais, escolares, socioeconômica e cultural. Além destas, abarcaram dimensões relativas à formação de grupos juvenis, interação na internet, relação com a escola e amizades; e) grupos de discussão, considerando o aprofundamento de questões sondadas inicialmente por outros suportes.
Os instrumentos adotados possibilitaram a identificação qualitativa dos estudantes, a qual conforma um perfil de maioria negra (75%), com representação etária, em sua maioria, de 16 anos (35%), e o menor percentual, com a idade de 14 anos (10%), em um universo de quase 60% de meninos. Dentre os estudantes, a maioria (77,5%) tem casa própria; com um mínimo de 4 (quatro) pessoas morando no mesmo ambiente. Em tais domicílios, quase 70% possui, no mínimo, 01 (um) aparelho de televisão e acesso à internet. Com 35% de acesso aos canais de TV a cabo, a maioria (50%) possui, no mínimo, um aparelho celular. Para a locomoção, 75 % utilizam entre ônibus e outros transportes para deslocamento para a escola.
Em relação aos pais dos estudantes, a figura paterna não se constitui uma realidade no cotidiano dos mesmos (22,5%). Entre os pais que convivem com os estudantes, 50% não lê livros. Quando lê, às vezes (37,5%), a opção mais acessada são os jornais, por meio das colunas de Variedades e Policiais, as quais detêm a atenção destes pais, cuja escolaridade oscila entre o Ensino Fundamental completo e o Fundamental incompleto. A inserção no mercado de trabalho varia entre formal e informal, com 12,5% e 50% respectivamente. O uso da televisão encontra-se como principal recurso de entretenimento dos pais, com assistência preferencial aos programas esportivos.
No que se refere às mães, a escolarização situa-se entre o Ensino Médio completo (32%) e o Fundamental completo (27,5%). Elas possuem maior escolarização, em relação aos pais, mas tais índices não impactam a relação positiva com a leitura: expressivos contingentes das mães nunca leem revistas (40%), livros (50%) e nem jornais (45%). Em contrapartida, 55% assistem televisão, com predominância para as novelas. Em relação à inserção no mercado de trabalho, 30% situa-se no mercado informal, e 25% exercem atividades de donas de casa. Somente 10% apresenta inserção no mercado formal de trabalho.
Se relacionados os dados dos pais e das mães aos estudantes, percebemos mais similaridades do que distanciamentos. Primeiro, em relação ao tempo destinado à televisão; como as mães, 70% dos estudantes dedica seu tempo para assistir televisão. A diferença ocorre entre a programação, enquanto as mães preferem as novelas, os filmes são o foco dos filhos. Outra similaridade reside nos hábitos de leitura: como os pais e as mães, não costumam ler revistas (55%) e nem livros (60%). Dentre os que leem, a leitura cumpre com direcionamentos escolares: 40% leem os livros exigidos pela escola. Há ainda outros distanciamentos dos estudantes em relação aos pais: primeiro, no que se refere ao percentual relativo aos hábitos de leitura dos jornais (60%); segundo, na utilização de suportes da internet para ler matérias de jornais; e terceiro, na sessão Mundo, figurando entre as mais acionadas. Contudo, o uso da internet não se restringe para este fim, dentre os 70% dos estudantes que a utilizam diariamente para acessar filmes e jogos online, a visita às páginas do Youtube e as redes sociais figuram dentre as suas preferências.
Explicitados os procedimentos, cenários e agentes que permearam este estudo, na próxima sessão nos deteremos no que dizem os estudantes sobre suas relações de sociabilidades e diversidade.
Relações de sociabilidades e diversidade na escola sob a ótica dos adolescentes
Convém situarmos a compreensão sobre a qual este estudo se assenta, no tocante as adolescências. A adoção do termo, no plural, subsidia-se pela literatura especializada, a qual tem demonstrado, em estudos como os de Ozella e Aguiar (2008) a multiplicidade de adolescências e a multideterminação que os contextos nos quais se inserem, encaminham a esta experiência. Outra premissa a ser considerada, diz respeito às sociabilidades e diversidade. Coelho e Silva (2015, 2019) ponderam que tais sociabilidades, desenvolvidas no âmbito das dinâmicas escolares, tanto virtuais, quanto presenciais, sofrem o impacto das representações sobre raça, cor, preconceito racial, discriminação e identidade negra.
As Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-raciais encaminham, dentre seus princípios, a crítica e a subversão das representações estereotipadas sobre negros6 e outras chamadas minorias. Elas propõem a construção de referências positivas para a educação das relações étnico-raciais (BRASIL, 2004). Compreender a educação das relações étnico-raciais foi, e continua sendo, relevante, especialmente nos espaços formativos de crianças e adolescentes, naquilo que Nilma Lino Gomes (2008) considera como espaços estratégicos para o debate de questões como exclusão, discriminação e marginalização de um segmento social. Entre tais espaços, figura a escola.
A posição estratégica da escola possibilita re-produções de naturalizações, de ações racistas existentes e reproduzidas por parte dos setores sociais. Como microcosmo social o ambiente escolar experimenta a re-produção de parte das estereotipias que circulam na sociedade, de forma mais ampla. Não raras vezes, na escola, o racismo se reveste do que Margarida Knobbe (2005) identificou como o biombo da piada, e Silva e Paludo (2011), como brincadeiras e piadas. Contudo, de brincadeira, e de piada, o racismo não tem nada! Portanto, os estudos no interior da escola, como uma parte da literatura especializada já aponta, são pródigos no sentido de identificar o problema, analisar alternativas e encaminhar estratégias em diálogo com os agentes nele envolvidos, uma vez que não se pode intervir no que não se conhece, sob pena de agir, conforme argumento de Wilma Coelho e Mauro Coelho (2008), sob as bases do improviso. Em relação a crianças e adolescentes, é impossível improvisar.
As ações escolares pautadas no improviso, anunciadas por Coelho e Coelho (2008) há mais de uma década, continuam demandando a intervenção conscienciosa proposta por Wilma Coelho (2009). Se considerarmos as relações de sociabilidades engendradas pelos estudantes, esta demanda também responde à chamada. Senão vejamos: Coelho e Coelho (2015) argumentam sobre a potencialização que a atuação da escola assume ao compreender as culturas juvenis. Expressivo contingente dos estudantes (71%) da escola pesquisada reporta a existência de grupos juvenis naquele ambiente. Compreender as dinâmicas sob as quais se assentam essas sociabilidades representa possibilidade da intervenção conscienciosa, proposta por Wilma Coelho (2009), reduzindo assim, as distâncias entre os objetivos legais e a experiência na escola (COELHO; COELHO, 2015).
Os adolescentes indicam a boa conversa como principal elemento na definição de pessoas para estarem ao lado. Os elementos que seguem na ordem das definições, relacionam-se a comportamentos como não ser falso; gostar de brincar e gostar de estudar, respectivamente. Paradoxalmente, ainda que estejamos falando da escola, os estudantes indicam o gostar de estudar como o comportamento que ocupa a última posição na definição de pessoas para estarem ao lado, nas relações que estabelecem naquele espaço. Os elementos com indicações mais presentes relacionam-se a conversas e comportamentos que as sociabilidades demandam em quaisquer outros ambientes fora da escola.
Na mesma direção das definições para estarem ao lado dos colegas, as relações de sociabilidades são engendradas por traços como confiança e amizade e por comportamentos como bom humor. A exemplo das definições dos elementos que precisam se apresentar nas pessoas que escolhem ter por perto, as relações de sociabilidades que os estudantes experimentam na escola têm por base elementos que permeiam as relações mais amplas, fora daquele ambiente.
Os elementos relacionados ao ambiente escolar se apresentam quando inquirimos sobre aspectos negativos. Na verificação do que não gostam, o preconceito desponta como primeira indicação nos comportamentos rejeitados pelos estudantes. A ele se segue o fato de não gostar de estudar, como segundo elemento de rejeição nas relações na escola. Os dados relativos às rejeições dos estudantes são reiterados, dentre os elementos que concorrem para o afastamento dos colegas: na ordem, são mencionados não gostar de estudar; a ausência de confidencialidade e companheirismo nas relações e a aparência física.
Não gostam de alguém quando: | A pessoa é preconceituosa |
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Não gostam de alguém quando: | Não gosta de estudar |
Não gostam de alguém quando: | Fala mal dos outros |
Os estudantes se afastam dos colegas quando: | Não gostam de estudar |
Os estudantes se afastam dos colegas quando: | Não são confidentes, ou companheiros |
Os estudantes se afastam dos colegas quando: | Por conta da aparência física |
Fonte: Dados produzidos pelas pesquisadoras a partir dos grupos de discussão, 2018.
Novamente os elementos indicados nas relações estabelecidas na escola, presentes nas sociabilidades dos adolescentes, afluirão na conformação dos grupos que circulam naquele ambiente. Os aspectos que denotam atenção são aqueles voltados especialmente para dimensões externas à escola: os brincalhões, as meninas, os do fundão, cujas características poderiam ser percebidas em qualquer ambiência social juvenil. A exceção que confere especificidade para a dimensão escolar, percebida pelos próprios, são os nerds, que não desfrutam do “privilégio” de circulação entre todos os grupos, em contraponto com os demais.
Os estudos que demarcam a gênese dessas relações de sociabilidades na escola, com as feições aqui tratadas, se aproximam do cenário investigado por Coelho e Coelho (2015). Naquele panorama, as investigações sobre as relações étnico-raciais na escola demandaram inspecionar como se concretizavam as relações de sociabilidades construídas pelos adolescentes. A partir daqueles achados, os estudos se ampliaram. Os indicadores da existência de grupos nas escolas só têm se alterado em relação aos grupos identificados. A natureza da formação destes, o motivo dessa conformação, de certo modo, apresenta muita similaridade com aqueles grupos estudados anteriormente. Os elementos externos a escola, que conformam grupos juvenis que circulam em quaisquer outros espaços sociais, são indicados pelos adolescentes com maior ênfase. O próprio processo de formação dos grupos advém das experiências externas a escola:
Influências que levam à formação de grupos na escola | ||
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Uso das redes sociais | A brincadeira como centralidade no comportamento | Mesmo gosto musical, de séries e filmes |
Fonte: Dados produzidos pelas pesquisadoras a partir dos grupos de discussão, 2018.
O uso das redes sociais desponta como o principal elemento de convergência dos grupos, não somente em relação aos interesses, mas fundamentalmente no que tange ao tempo dedicado ao acesso as redes sociais, independentemente dos grupos. Tal acesso ocorre fora e dentro da escola, com ênfase nos jogos online Free Fire7, além do Whatsapp, Instagram, Youtube e Facebook. Nestes últimos, são frequente e sistematicamente compartilhadas mensagens pessoais, sobre assuntos relacionados aos mesmos conteúdos que já compartilham na escola, relacionados aos grupos - moda, maquiagem, música, danças, conquistas amorosas, encontros, desencontros, sucessos, dissabores, dentre outros.
Em relação aos elementos de reiteração e identificação entre os grupos, a despeito da socialização virtual, a demarcação estética nas relações presenciais, assume relevância, mesmo que secundária. Se naquele, eles postam para todos visualizarem e receberem likes (postam fotos juntos no status do Whatsapp, gravam vídeos para serem postados no Instagram, trocam carinhos, consolos e outros mais), nestas, a demarcação se concretiza pelo uso de adereços e vestimentas8 comuns ao grupo de pertencimento - chapéus, piercings, pulseiras e brincos coloridos, uniforme customizado, maquiagem, sandálias, mochilas com alças longas e moletom. Além dessas demarcações estéticas, os beijos entre si (independente de gênero) e em algumas situações os socos, xingamentos e pontapés, se constituem ações corriqueiras, entre os adolescentes que podem ocorrer entre estudantes da mesma turma, mas, sobretudo, daqueles que conformam os grupos de adolescentes na escola.
A escola, na compreensão dos estudantes, desconhece a existência do estatuto interno das relações de sociabilidades dos grupos juvenis, embora tenha notícias de sua existência. Quando presentes, as ações advindas dos responsáveis pelo trabalho pedagógico na escola, segundo os estudantes, incidem sobre questões amplas, relacionadas a comportamentos genéricos que impactam aquele ambiente, mas nascem das relações miúdas dessas formações entre os grupos. Contudo, tais ações se distanciam das singularidades que essas formações encerram.
A despeito do protagonismo que assumem nos grupos, os adolescentes colocam em evidência o distanciamento dos mesmos em relação aos gestores da escola, ainda que não haja nenhum sinal de animosidade dos primeiros em relação aos últimos. A percepção deles no que tange ao lugar da escola parece significativa para o redimensionamento desta relação em aberto.
O racismo ainda se encontra vivo na escola - impactos nas relações de sociabilidades
A avaliação dos estudantes em relação à escola indica a necessidade de maior proximidade entre esses agentes. Um percentual significativo de estudantes (84%) considera a relevância de interlocução mais efetiva entre os agentes da escola e eles. Neste sentido, vale a ressalva de Juarez Dayrell (2007) de que a crise deflagrada entre a escola e a juventude prejudica os processos de socialização destes últimos, na medida em que a escola não conhece os meandros dessas relações. A reflexão de Dayrell encontra eco neste estudo e o contrário é verdadeiro, uma vez que tal ausência distancia a escola, na percepção dos problemas havidos dentro dela e, por conseguinte, dos grupos. Dentre os problemas indicados pelos estudantes, o racismo ainda se encontra vivo na escola e impacta as relações de sociabilidades, tanto no interior da escola, quanto fora dela, e vice-versa.
Tal impacto, dentre outras razões, se concretiza naquilo que Mauro Coelho e Wilma Coelho (2015) identificam como incômodo em conviver com a diferença. Em situações de provocações, de xingamentos, ou de deparar-se com “o diferente”, os estudantes conferem conotações pejorativas às falas em relação aos colegas:
Tá vendo só, parece até que é preto! (Estudante, 8º ano, pardo, 14 anos - Grupos de discussão, 2018) Esse daí só pode ser autista. (Estudante, 9º ano, pardo, 16 anos - Grupos de discussão, 2018)
A forma acionada pelos adolescentes da escola para identificar o outro, a partir de atributos identificados por Goffman (1980) como estigmas indesejáveis - uma vez que apresentam incongruências com as determinações criadas para um determinado tipo de indivíduo - em certa medida, denotam uma forma particular de lidar com o diferente. Dentre essas estereotipias, existem outras que são mais acentuadas, concretizadas em forma de racismo. Neste contexto, Wilma Coelho e Mauro Coelho (2015) argumentam sobre a importância da ação pedagógica da escola nas sociabilidades juvenis engendradas neste espaço.
A interlocução havida com os estudantes por ocasião dos grupos de discussão se constitui como um indicativo do quão vivo está o racismo na escola: 80,9% relatam terem sofrido ou presenciado ações de discriminação racial na escola. Sobre tais experiências, destacamos duas posições de estudantes do 8º e 9º anos no tocante ao racismo neste espaço:
Racismo é um vírus dentro da escola, que contamina e manipula as mentes de jovens, crianças e todas as classes sociais dentro e fora da escola. (Estudante, 9º ano, pardo, 15 anos - Grupos de discussão, 2018) Racismo é a prova de como ainda somos primitivos. (Estudante, 8º ano, negro, 12 anos - Grupos de discussão, 2018).
A compreensão de Essed (1991) de que o racismo que opera por meio de dimensões estrutural e simbólica, ou ideológica, envolve sempre conflitos de grupos a respeito de recursos culturais e materiais, e implica se opor a práticas e ideologias pelas quais opera, por meio das relações culturais e sociais. Tal compreensão parece oportuna, na percepção de que os grupos exercem influências, uns sobre os outros, e tais influências, tanto positivas, quanto negativas, se conectam com as experiências dos estudantes. A literatura especializada, no curso dos anos (CAVALLEIRO, 2001; MUNANGA, 2005; NADAL, 2007; GOMES, 2012; SILVA, 2015), tem sido fértil em demonstrar o racismo como experiência nociva na escola. Dito de outra forma, quando as ações são desencadeadas por alguém, dependendo do lugar dessa pessoa no grupo, elas tanto podem ser produzidas, quanto podem ser reproduzidas pelos outros, pois, contamina e manipula as mentes de jovens, crianças.
Estudos mostram a relevância dos anos finais do Ensino Fundamental como o período de transição para o Ensino Médio, caracterizado como um percurso acadêmico crítico na vida escolar dos estudantes (FERNANDES et al., 2018). Tal relevância se concretiza, para alguns autores, pelo fato de que, não somente a família, amigos, professores, mas, o espaço escolar, se constituem fortes influências na vida dos adolescentes (DIAS et al., 2015; TOMÉ; MATOS, 2012; MARTURANO; ELIAS, 2016).
As considerações de Wilma Coelho e Carlos Aldemir Silva (2017) sobre o saber sensível indicam que tal saber continua urgente no acompanhamento das experiências concretas dos estudantes no ambiente escolar. A efetivação desse acompanhamento auxilia no encaminhamento de estratégias de subversão quando se refere ao racismo engendrado, não raras vezes, pelos adolescentes-juvenis, na sala aula e, por conseguinte, no ambiente escolar.
A percepção de que ainda somos primitivos encaminha uma experiência que deixa de fora a ideia de comunidade, exclui a diversidade e desconsidera a diferença. A despeito do reconhecimento do quão nocivas as ações racistas se constituem, paradoxalmente os estudantes consideram, em algumas situações, tais práticas como banais, ou como brincadeiras. A educação para a diferença promove uma experiência social demarcada pela diversidade, pela pluralidade e pelo conflito. Neste aspecto, Mauro Coelho (2019) reitera a diferença, como constitutiva da experiência social, que deve ser reconhecida, valorizada e respeitada, tal como definida na legislação educacional para a diversidade (BRASIL, 2004). Assim, a ideia contrária à assertiva do estudante - de ainda sermos primitivos - evoca as atitudes, posturas e valores que eduquem cidadãos quanto à pluralidade étnica e racial, presente em uma sociedade plural.
Considerações finais
A análise das relações de sociabilidades estabelecidas entre adolescentes, em uma escola da rede pública estadual de Ensino Fundamental de Belém - PA, tendo por base Meinerz (2005), no que se refere aos processos de interação que concretizam as sociabilidades, denotam a construção social atribuída por Coelho e Silva (2018) a este processo. Os dados sinalizam que os estudantes têm nas redes sociais a centralidade da sua atenção, inclusive no estabelecimento e no rompimento das relações de sociabilidades. São estudantes com participação limitada da figura paterna, e quando presentes, o nível de interação se constitui por meio de um interesse em comum - a televisão - mas se distinguem no que nela assistem: enquanto as mães são prevalentes pelas novelas, os pais o são pelos programas esportivos. Os índices de leitura também são similares pela não leitura de livros, nas três categorias, bem como, no tocante a leitura de jornais, pelos pais e filhos, entretanto se distanciam em termos do interesse maior dos filhos; do suporte por meio do qual estes acessam e da sessão de sua preferência (Mundo, para os filhos, Variedades e Policial, pelos pais). Em relação às mães, embora detenham maior escolarização (Ensino Fundamental e Médio completos), essa formação não concretiza a intensidade da leitura. Esse quadro, de certo modo, se reproduz em relação a não leitura dos filhos, os quais se obrigam a ler, restritamente o exigido pelas atividades escolares.
A centralidade das atenções sobre as redes sociais encaminha as relações estabelecidas entre eles como o foco do interesse na experiência escolar. Tal experiência se pauta menos nos conteúdos produzidos na escola; distante de perspectivas de futuro, da influência docente, mas em função das redes de sociabilidades constituídas naquele espaço. Esses estudantes pensam no hoje. Sob a limitação temporal desta perspectiva, o investimento da escola tem passado ao largo desses interesses. Isso não implica em não-aprendizado. Essas construções podem não se constituir no projetado pela escola em termos de aprendizado, uma vez que estes adolescentes não sinalizam interesse pelo que tem sido projetado para eles; preferem estar nos corredores, refeitório, pátio da escola e nas escadas, em detrimento da sala de aula, e quando lá estão, não raras vezes, estão só de corpo presente, no dizer de Wilma Coelho (2005). As saídas renitentes (tomar água, ir ao banheiro) representam para a maioria, uma estratégia para escapar das aulas sistematicamente. Os encontros com os grupos ocorrem, via de regra, nas áreas externas da escola, daí, as escapadas frequentes das aulas. Em tais encontros, as piadas, a música, a brincadeira, os apelidos, as postagens, as conversas prevalecem entre os adolescentes.
Tais comportamentos parecem corriqueiros nas escolas em distintos espaços geográficos e temporais, com poucas distinções. Contudo, o que se destaca na experiência dos adolescentes que integram este estudo, reside na ordem de relevância do lugar ocupado pela escola para os mesmos: é sempre o último. Esta ordem é precedida por comportamentos, preferências musicais, filmes, brincadeiras e a interação nas redes sociais. O gosto pelo estudo, e tudo que a ele se relaciona, figura como menos relevante, na indicação dos estudantes em relação ao espaço escolar. Tal consideração se concretiza nos dados analisados, sobretudo quando os estudantes assumem que suas relações estabelecidas no espaço escolar não priorizam o gosto pelo estudo. Para esses estudantes a escola se constitui um ambiente transitório para o estabelecimento de relações de sociabilidades presenciais e virtuais, não prioritariamente atinentes ao conteúdo veiculado naquele espaço escolar. Por meio desse estabelecimento de relações de sociabilidades, se fortalecem os grupos constituídos fora da escola, mas que operam cotidianamente também naquele espaço. A menor relevância materializa-se, finalmente, em razão da parca interlocução entre os agentes escolares - leia-se, principalmente, professores e coordenadores - e as demandas desses estudantes no estabelecimento de suas relações de sociabilidades e formação de grupos que circulam no ambiente escolar.
Tais aspectos demandam investimentos - do ponto de vista pedagógico - que aprofundem o que para os estudantes se constitui como o mais representativo em suas experiências na escola: as relações que estabelecem.
Como esse espaço se constitui, praticamente como um espaço de entretenimento, nesse ambiente tudo ocorre de modo espontâneo, por vezes sem a intervenção pedagógica da escola. As manifestações relacionadas ao racismo, não estão fora deste contexto. As representações dos estudantes sobre o racismo, embora o reconheçam como nocivo, são assumidas como banais, ou como brincadeiras. Parece-nos que a crise da escola, sobre a qual fala Dayrell (2007), contribui para o descompasso entre a compreensão do caráter nocivo e a reiterada manifestação do mesmo no ambiente escolar, com sua propagação por meio daquilo que potencialmente tem sido uma maneira de sociabilidade dos estudantes do Ensino Fundamental: as redes sociais. Os adolescentes paraenses, não diferentemente dos cearenses estudados por Luciana Miranda, José Souza Filho e Maité Santiago (2014), encontram nas redes sociais, uma forma de lazer que os congrega. Ainda que as redes sociais assumam relevância, as relações presenciais, fortalecidas nos ambientes externos da escola, assumem, conforme Carla Meinerz (2005), importância nas sociabilidades estabelecidas pelos adolescentes.