Introdução
Pela centralidade que a formação de professores ocupa nos sistemas educativos, o estudo dos modelos dessa formação se constitui como importante objeto de investigação no campo da Educação (Araújo; Vianna, 2010; Brzezinski, 2009; Gregório; Ferreira, 2015; Cunha, 2013; Gatti, 2010; Nóvoa, 1992). Nesse âmbito, destacamos a relevância de estudos relativos à formação inicial de professores, aqui entendida como:
o início institucionalmente enquadrado e formal, de um processo de preparação e desenvolvimento da pessoa, em ordem ao desempenho e realização profissional numa escola ao serviço de uma sociedade historicamente situada. (Estrela, 2002, p. 18)
Contrapondo-se às particularidades inerentes a cada país e a cada instituição educativa, a internacionalização é uma tendência global dos sistemas de educação superior na busca pela melhoria de sua qualidade (Wit; Hunter, 2015). Enquanto parceiro internacional de destaque, o interesse pelo estudo dos sistemas europeus e, especificamente, pelo estudo da construção do Espaço Europeu de Ensino Superior (EEES) se consolidou (Pereira; Almeida, 2011), sobretudo no que se refere ao designado Processo de Bolonha, atualmente vigorando em 49 países europeus, 5.000 instituições de ensino superior e envolvendo cerca de 16 milhões de estudantes1
Segundo Malet (2004, p. 1301), os novos desafios enfrentados pela educação comparada relacionam-se a fatores como:
[...] o crescimento de problemáticas educativas transculturais, o enfraquecimento dos Estados-Nações que acompanhou a consolidação de territórios identitários supranacionais (como a Europa) ou infranacionais (como as regiões) e fenômenos de expansão e interdependência cultural (globalização).
No caso de países da América Latina, alguns autores vão além, apontando que o melhor conhecimento da experiência europeia pode ser de interesse para a criação do Espacio Común Latinoamericano:
senalamos enfáticamente, que el Proceso de Bolonia podrá constituirse en un marco adecuado para estudiar los procesos de convergencia, no para adoptarlos acriticamente (Lamarra, 2015, p. 60).
O pressuposto é que, devido aos processos de globalização em curso, um melhor conhecimento do que se passa em outros países pode auxiliar a compreensão do que acontece no nosso, considerando que não há um modelo único.
Há que se pontuar, contudo, que o leque de estudos comparando aspectos educacionais do Brasil com os de outros países é ainda relativamente pequeno (Souza, 2016). Em particular, faltam olhares cruzados entre Brasil e Portugal no que concerne à formação de professores em áreas específicas, às singularidades dos modelos assumidos em cada país e às possíveis contribuições recíprocas.
Neste estudo, a escolha recaiu sobre os modelos de formação inicial de professores de Física. A opção se justifica pelo melhor conhecimento que os autores têm do campo de estudo, pela relevância social que a Física e o seu ensino ocupam nas sociedades contemporâneas, pela baixa procura por cursos de licenciatura em Física, tanto no Brasil quanto em Portugal (Gregório, Ferreira, 2015; Lunkes, Rocha Filho, 2011; Santos, Curi, 2012) e pelo fato de não conhecermos bibliografia que confronte, criticamente e sistematicamente, modelos de formação inicial de professores de Física em uso nesses dois países.
De fato, há estudos que compararam aspectos da formação de professores no Brasil e em Portugal, como Whiters e Sarmento (2015). Entretanto, tais trabalhos não abordaram a formação de professores de Física ou são anteriores ao Processo de Bolonha, perdendo-se, assim, a sua atualidade.
Um segundo grupo, mais restrito, é formado por estudos que analisaram diferentes aspectos associados à formação de professores de Física, só que de modo independente em cada um dos países. No caso do Brasil, podemos citar como exemplos: Langhi e Nardi (2011), Moreira e Osterman (1999), Bejanaro e Carvalho (2004), Baccon e Arruda (2010) e Castiblanco e Nardi (2014). Já no caso de Portugal, podemos citar: Nunes, Rebelo, Vaz e Nascimento (2010), Gregório e Ferreira (2015), Baptista e Conceição (2018) e Leite e Esteves (2005).
Sem prejuízo ao interesse e à qualidade desses estudos, assumimos a tarefa de olhar criticamente e de forma cruzada as experiências de formação inicial de professores de Física nos dois países, possibilitando a emersão de singularidades, similaridades e diferenças entre as realidades atuais de formação. É sobre esse novo campo de possibilidades que passamos a tratar.
Uma maneira possível de orientar tal reflexão é explorar o referencial teórico-metodológico de Ball (1994) sobre as dinâmicas dos “ciclos de contextos” em que se desenvolve a atividade educativa, nesse caso, a formação inicial de professores. Neste estudo, tal referencial teórico convoca diferentes focos de interpelações e campos de análise: contextos sociopolíticos da formação (“contexto de influência”); legislação pertinente sobre os cursos (“contexto de produção”); sua organização científica/pedagógica (“contexto da prática”) e possíveis inter-relações.
Em linha com o quadro de referências apresentado, o objetivo geral deste trabalho é contribuir para a reflexão crítica sobre singularidades, similaridades e diferenças dos modelos de formação inicial de professores de Física no Brasil e em Portugal, investindo na compreensão e na interpretação eclética, ou seja, com um sentido não normativo e não prescritivo. Pretende-se responder, ainda que como tentativas, às questões norteadoras da análise: i) Qual a incidência de diferentes contextos sociopolíticos na arquitetura dos modelos atuais de formação inicial de professores de Física no Brasil e em Portugal?; e ii) Quais as implicações científicas/pedagógicas resultantes desses cursos, em particular a nível curricular?
No que se segue, apresentam-se o desenho metodológico e o desenvolvimento de cada uma das questões de pesquisa. Na última seção, apresentam-se as notas finais, incluindo conclusões, limitações do estudo e as possíveis perspectivas para sua continuidade.
Metodologia
Na impossibilidade de analisar todos os cursos de formação inicial de professores de Física nos dois países, o foco foi dado em um curso de cada país. No caso do Brasil, foi selecionado um curso de licenciatura plena em Física de uma instituição pública federal da região Sudeste do País. No caso português, foi selecionado o curso de Física (licenciatura em Física e mestrado em Ensino de Física com componente de Química) de uma universidade pública. Tal curso é confluente com outros cursos portugueses com a mesma finalidade. A escolha desses dois cursos para comparação baseou-se em três elementos teórico-estruturais essenciais que estão em linha com o aprofundamento do objetivo geral enunciado anteriormente: i) terem emergido em contextos sociopolíticos diferenciados; ii) serem exemplos de cursos de formação consolidados em territórios identitários diversos (Malet, 2004), no caso português, de ordem supranacional; e iii) apresentarem no seu desenho e na sua organização especificidades epistêmicas relevantes para análise no contexto deste trabalho.
Acrescente-se que o curso brasileiro em análise já foi reformulado para se adequar à Resolução do Conselho Nacional de Educação (CNE)/CP nº 2/2015, que possui seu desenho curricular em sintonia com os cursos brasileiros de licenciatura em Física na modalidade presencial, considerados de boa qualidade de acordo com avaliação realizada pelo Ministério da Educação. No caso português, o curso está credenciado pela Agência de Avaliação e Acreditação do Ensino Superior de Portugal e a sua matriz curricular é confluente com outros cursos portugueses com a mesma finalidade.
Tendo em conta a natureza do objetivo e das questões de investigação, o desenho metodológico seguiu uma abordagem qualitativa de estudo de caso múltiplo (Yin, 1984) cujas unidades de análise são cada um dos dois cursos. Em linha com os contributos teórico-metodológicos de Ball (1994), em particular a importância dada à legislação e à documentação de apoio como dispositivos de análise (“contexto de produção”), selecionaram-se como fontes de informação: o enquadramento sociopolítico da formação de professores; a legislação relativa à formação de professores; a documentação institucional específica; a grade curricular; os relatórios técnicos sobre os cursos (incluindo o de avaliação); e as respostas escritas dadas pela coordenação dos dois cursos a questões elaboradas, tendo em vista o objetivo e as questões de pesquisa, sobretudo a segunda.
Em específico, as questões elaboradas indagavam os coordenadores sobre aspectos de ordem curricular pertinentes para a segunda questão de investigação e não acessíveis por meio da análise documental: “Tendo em conta os objetivos do curso, indique os seus pontos fortes e fragilidades na sua organização e funcionamento”; “Quais as melhorias que considera necessárias na atual grade curricular do curso, quer nas componentes de Física Básica/Aplicada, quer nas componentes da Didática/Pedagógicas?”; “Quais as melhorias que sugere na organização e funcionamento do estágio supervisionado do curso?”, além de uma pergunta em formato aberto sobre “qualquer outro aspecto relevante para a melhoria do curso”. Os questionários foram enviados por e-mail em meados de 2018 e as respostas foram recebidas cerca de um mês depois.
O processo de análise seguiu técnicas de análise documental (Flick, 2009) com uma imersão total nos diferentes dados, triangulação e leituras contínuas até sua saturação. Para a análise do “contexto da prática” (Ball, 1994), abordaram-se dimensões curriculares em linha com eixos epistemológicos estruturantes da formação de professores para o ensino das ciências (Cachapuz; Praia; Jorge, 2002), em particular: abrangência e abertura curricular; articulação teoria/prática; dimensão investigativa na formação; e interdisciplinaridade. Sempre que possível, o reconhecimento de evidências foi feito por meio da operacionalização de cada dimensão. Por exemplo, a abertura curricular foi reconhecida por meio da avaliação da oferta de disciplinas optativas e/ou eletivas.
O registro dos resultados obtidos foi feito em matrizes qualitativas de análise, de forma a evidenciar facilmente eventuais singularidades dos dois cursos.
Dos modelos da formação
O Quadro 1 sistematiza marcos importantes da arquitetura dos cursos de formação de professores de Física nos dois países.
Em Portugal (e em vários países da Europa), há um modelo anterior e um posterior ao início do Processo de Bolonha. Trata-se de processo que acentuou uma orientação de cunho economicista da formação e cujas raízes se assentam na globalização neoliberal, ou seja,
[...] o mercado como instrumento regulador das políticas públicas, neste caso das políticas de educação. O novo modelo enfatiza “management” e empreendedorismo mais do que liberdade acadêmica, democracia interna e papel organizador das disciplinas acadêmicas (Maassen, 2008, p. 94).
Um dos modos como a visão economicista se traduz na nova arquitetura dos cursos de formação de professores em Portugal é na adoção de um modelo sequencial de formação do tipo “3+2” (licenciatura + mestrado). O custo dos mestrados exigidos como novo requisito de habilitação profissional para a docência é muito superior ao custo das antigas licenciaturas pré-Bolonha (curso de cinco anos que, de forma geral, seguia o modelo integrado, embora houvesse variações dependendo da universidade). Logo, o custo tem impactado negativamente a equidade e a democraticidade no acesso à docência. Há um desinvestimento do papel do Estado e uma transferência de custos (mestrado) para estudantes e famílias. Também o estágio supervisionado dos futuros professores deixou de ser remunerado. Ademais, devido aos custos, não se favorece a mobilidade internacional dos futuros docentes.
Com o Processo de Bolonha, a área da futura docência (Física/Química) e a área didático-pedagógica tornaram-se, temporalmente e espacialmente, desligadas na formação. Ou seja, a formação de professores deixou de ser um projeto pedagógico de raiz: na licenciatura em Física (três primeiros anos) coexistem agora futuros físicos e futuros professores de Física. Nem sempre foi assim.
No caso brasileiro, a visão economicista da formação docente adensa-se a partir da década de 1970, durante a Ditadura Militar, em particular com o processo de precarização do trabalho docente. Conforme Oliveira e Pires (2014), trata-se de um adentramento da lógica neoliberal no mundo do trabalho, tornando a função docente uma mercadoria.
As alterações na arquitetura dos cursos foram variando, nem sempre de forma linear, em função de diferentes contextos sociopolíticos desde os anos 1930, com a Faculdade Nacional de Filosofia (FNF), até 2015, e com a Resolução CNE/CP nº 2/2015. Tal resolução sinalizou para uma arquitetura de formação segundo um modelo integrado, o qual, a nosso ver, possui maior potencial profissionalizante ao longo da formação.
Nos dois países, é visível a redefinição do papel dos governos em relação às políticas de formação de professores no quadro de uma lógica de mercado, promovendo a desvalorização da formação docente. Ainda assim, as incidências da lógica economicista na arquitetura dos cursos de formação são diferentes nos dois países. Em Portugal, faz-se por meio de um modelo sequencial de Bolonha. No Brasil, por meio de mecanismos de precarização (relacionados especialmente à remuneração e às condições de trabalho) e de flexibilização dos profissionais que podem atuar na docência. Em particular, com a ascensão de Michel Temer ao poder, por meio da Lei nº 13.415 de 2017, também passaram a ser admitidos como profissionais da educação escolar básica pessoas que não realizaram cursos para se tornarem professores.
Implicações científicas/pedagógicas
No Quadro 2, apresenta-se uma matriz de análise curricular (MAC), adaptada de Cachapuz, Praia e Jorge (2002), resumindo aspectos científicos e pedagógicos relativos à estrutura curricular de cursos de formação de professores de Ciências.
Na análise feita, foi necessário, por vezes, recorrer às ementas das disciplinas para, por exemplo, decidir se uma disciplina é ou não interdisciplinar. Nos dois casos, a organização curricular é semestral, mas, no caso brasileiro, há maior dispersão (quase sempre seis disciplinas em cada um dos oito semestres; no caso português, no máximo cinco disciplinas em cada um dos dez semestres).
Abrangência curricular
No caso brasileiro, há apenas uma disciplina de Química, uma diferença substancial em relação ao caso português (o que está relacionado à organização dos currículos escolares do ensino médio nos dois países). A solução encontrada no caso português minimizou as dificuldades da nova legislação e passou a permitir uma formação científica equilibrada nessas duas áreas disciplinares, pois em Portugal, a disciplina de Física só aparece isolada no final do ensino secundário (12º ano de escolaridade). O mesmo se aplica à Química. Até aí, desde o 8º ano de escolaridade, a disciplina que é oferecida anualmente aos alunos é Física e Química. Isso faz com que a formação de professores abarque as duas disciplinas..
Os 180 European Credit Transfer System (ECTS) da licenciatura estão repartidos por 29 disciplinas: Física (84 ECTS), Química (60 ECTS) - em ambos os casos com forte componente laboratorial - e Matemática (36 ECTS). São oferecidas disciplinas de Física Clássica e Física Moderna e Contemporânea, como Astrofísica e Física do Núcleo e das Partículas. De acordo com a legislação atual, a carga horária reflete uma estimativa do tempo total de trabalho dedicado pelo estudante. Essas horas são transpostas em unidades de crédito, designadas ECTS. A unidade de crédito ECTS engloba o número total de horas, incluindo todas as formas de trabalho previstas: contato, estágios, projetos, trabalho de campo, estudo e avaliação. Cada ano curricular corresponde a 60 ECTS (em geral 30 ECTS por semestre). Em um dado curso, um ECTS oscila entre 25 e 28 horas de trabalho total (letivo e autônomo) do aluno. Ou seja, em cada ano, a carga total de trabalho de um estudante oscila entre 1.500 e 1.680 horas. Em geral, as disciplinas possuem de três a seis ECTS.
No mestrado em Ensino de Física com componente de Química (que habilita para a docência do 8º ao 12º ano de escolaridade), os 120 ECTS (60 por ano, quatro semestres de curso) estão repartidos por mais 13 disciplinas (uma delas opcional): 100 ECTS em Educação/Didática/Estágio (componente pedagógico do curso), 10 ECTS em Física e 10 ECTS em Química. Em média, a carga horária que se refere ao contato entre professor e estudantes em sala de aula é de cerca de 1/3 das horas totais. Trata-se de uma tendência em concordância com os princípios de Bolonha, ao defender maior autonomia dos estudantes na aprendizagem, ainda que não seja claro se esses princípios estão assentados em pressupostos pedagógicos ou meramente na economia de recursos docentes. No total (licenciatura mais mestrado), os futuros professores de Física e Química necessitam obter aprovação em 44 disciplinas, correspondendo a 94 ECTS em Física, 70 ECTS em Química, 36 ECTS em Matemática e 100 ECTS em Educação/Didática/Estágio, perfazendo 300 ECTS no total (180 de licenciatura e 120 de mestrado), o que equivale a 8.400 horas e cerca de 2.800 horas de contato entre professor e estudantes.
No caso brasileiro, o curso de licenciatura em Física analisado está dividido em oito semestres, perfazendo um total de 3.244,2 horas. Dessas, 400 horas são de estágio curricular supervisionado (não remunerado, como em Portugal) e 2.644,2 horas são referentes às 47 disciplinas obrigatórias do curso. A primeira diferença em relação ao caso português é que, no Brasil, a carga horária se refere apenas às horas de contato entre alunos e professores em sala de aula. Nesse sentido, há similaridade entre a carga horária brasileira e a portuguesa.
Das 47 disciplinas do curso brasileiro, 19 (cerca de 40%) são disciplinas de caráter didático-pedagógico geral (área da Educação) ou específico (disciplinas da área de ensino de Física/Ciências e disciplinas como Língua Brasileira de Sinais aplicada ao Ensino da Física). As outras 28 disciplinas são similares ao caso português, isto é, disciplinas de Física, Matemática e, em menor quantidade, de Química e de caráter formativo geral (como Leitura e Interpretação de Textos Científicos e História da Ciência e Tecnologia). Vale pontuar que também são obrigatórias disciplinas de Física Moderna e Contemporânea, como Física Quântica e Relatividade.
Articulação entre teoria e prática
Em ambos os casos estudados, a articulação entre teoria e prática faz-se, sobretudo, por meio das disciplinas de Didática Específica e Estágio/Prática Pedagógica no final da formação.
No caso português, a coordenação considera como pontos fortes:
a sequencialização das disciplinas de didática específica (1º, 2º e 3º semestres do mestrado), que culminam com uma disciplina eminentemente prática, voltada para a preparação teoricamente fundamentada de materiais didáticos; organização modular da ‘prática profissional’, com uma forte articulação entre ‘seminários da área de docência’, ‘Observação de Aulas e Desenho do Projeto’ e ‘Intervenção Pedagógica’.
No estágio profissional, realizado nos dois últimos semestres, das 1.260 horas totais (45 ECTS), menos da metade são horas de contato. Além disso, destas, nem todas são de prática pedagógica em sala de aula, já que uma parte se destina a seminários de apoio e à orientação tutorial dos futuros professores. Ao invés das ex-licenciaturas integradas pré-Bolonha (um ano de contato permanente nas escolas durante o 5º ano de formação dos futuros professores), agora os estudantes têm somente alguns períodos de observação e regência em turmas do seu orientador da escola. Em resposta ao questionário que elaboramos, a coordenação do curso apontou a necessidade de:
um maior envolvimento dos estagiários nas atividades da escola, para além da docência nos níveis de ensino previstos por lei; no reconhecimento da importância do projeto de intervenção conducente ao relatório de estágio.
Já segundo o coordenador do curso brasileiro:
O estágio é realizado nas modalidades: observação, regência e projetos de intervenção. O núcleo docente estruturante (NDE) propôs que os estágios devem ser constituídos nessas modalidades visando uma formação mais adequada para a qual os alunos encontrarão quando estiverem no exercício docente. Os alunos são motivados a propor ações que favoreçam a aprendizagem nas escolas, auxiliando os professores dessas escolas assim como os próprios alunos.
Por outro lado, na visão de professores do curso, entre eles um dos autores deste trabalho, na condução dos estágios, a relação entre as escolas de ensino básico e a instituição de ensino superior (IES) ainda se mantém frágil e distante, não se configurando como uma efetiva parceira voltada à melhoria da formação do futuro professor. Muitas vezes os estagiários são vistos como “intrusos” nas escolas por seus professores supervisores e pela equipe gestora. A concepção de que o estagiário vai à escola para registrar os defeitos do professor supervisor e da escola em si ainda se faz presente no contexto dessas relações. Nesse contexto, foi criado em 2018 o programa de residência pedagógica, financiado pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes). Uma de suas finalidades é estreitar as relações entre as escolas de ensino básico e as IES, induzindo a reformulação do estágio supervisionado nos cursos de licenciatura. Trata-se, contudo, de uma iniciativa recente e sobre a qual, além de algumas críticas, ainda não parece haver estudos sistemáticos.
Por fim, há que se registrar que, nos dois países, a mediação entre a IES e as escolas se faz por meio dos professores orientadores.
Abertura curricular
Diferentemente do que ocorre no caso brasileiro, no curso português são oferecidas disciplinas optativas, como Inclusão e Necessidades Educativas Especiais do Domínio Cognitivo e Motor, Processos Cognitivos e Aprendizagem (ambas com 5 ECTS), ou ainda opções em Física (6 ECTS). De fato, a possibilidade de escolha valoriza a autonomia do futuro professor no processo de construção do seu conhecimento profissional. Por outro lado, faz-se pertinente a indicação de que alguns cursos de licenciatura em Física brasileiros também oferecem disciplinas optativas e/ou preveem em suas grades curriculares a existência de um rol de disciplinas eletivas.
Investigação
Em ambos os casos, brasileiro e português, não existe na grade curricular dos cursos nenhuma disciplina específica de formação em investigação em Educação. A tradicional dissertação de mestrado pré-Bolonha foi substituída por um relatório crítico e/ou por um projeto de intervenção. Houve uma clara regressão. De modo geral, a iniciação à investigação em educação se faz agora a partir de pequenos projetos de pesquisa integrados em disciplinas e também durante o estágio, sobretudo por meio de intervenções pontuais de investigação/ação. Especificamente no curso de licenciatura da universidade portuguesa que tomamos para análise, existe um projeto de investigação em Física, no último semestre, com elevada carga horária.
No curso brasileiro de licenciatura em Física analisado, a realização de um trabalho de conclusão de curso (TCC), com carga horária prevista de 200 horas, pelos futuros professores é opcional. Isso acaba sendo reflexo do fato de que a Resolução CNE/CP nº 2/2015 nada diz a esse respeito. Dessa forma, apenas alguns licenciandos desenvolvem trabalhos de investigação na área da Educação, especialmente por meio de projetos de iniciação científica.
Interdisciplinaridade
Exceto no estágio, não existem evidências nas grades curriculares dos dois cursos analisados acerca da existência de espaços especificamente vocacionados para a interdisciplinaridade. A análise das ementas das disciplinas revela propostas de trabalho - como produção de materiais didáticos - que até cruzam diferentes áreas disciplinares, em particular no âmbito da Ciência, Tecnologia, Sociedade e Ambiente (CTSA), mas com reduzida incidência.
Finalmente, uma das fragilidades comuns aos dois países, identificada por meio dos questionários que foram entregues aos coordenadores, diz respeito ao perfil acadêmico dos alunos. No caso português, é referido pela coordenação:
Estudantes com formação científica frágil e/ou desequilibrada, resultante de possibilidade de ingressar no mestrado sem possuir uma formação sólida em Física e/ou em Química, pelo fato de esse ingresso se basear em créditos e não numa licenciatura que confira uma formação equilibrada nos diversos ramos da Física e da Química.
No caso brasileiro: “Devido aos problemas de formação básica, os alunos possuem grande desfasagem nos conteúdos de Matemática Básica.”.
Em resumo, com base na MAC construída, são várias as similaridades e as diferenças curriculares entre os dois casos estudados no Brasil e em Portugal. Algumas delas, de ordem estrutural, como os diferentes graus acadêmicos exigidos como habilitação profissional para a docência, revelam a incidência das políticas públicas referidas neste estudo; outras, de ordem conjuntural, como a diferente abrangência da Química e a abertura curricular dos dois cursos, são consequência de políticas institucionais e/ou fatores locais.
Notas finais
Um dos pioneiros da educação comparada considerava que
o valor prático de estudar o funcionamento dos sistemas educativos estrangeiros, no seu verdadeiro espírito e com precisão científica, é que, como resultado disso, estaremos melhor preparados para estudar e compreender o nosso (Sadler, 1964, p. 313-314).
O estudo apresentado está em linha com esses argumentos e centrou-se em dois exemplos de cursos de formação de professores de Física de qualidade reconhecida no Brasil e em Portugal, que possuem estrutura curricular em sintonia com os cursos de formação de professores de Física em cada um dos dois países. Entendemos que os resultados apresentados, ainda que com limitações devido ao reduzido número de casos estudados, convergem para uma melhor compreensão do campo de estudo.
A primeira conclusão possível é que a globalização neoliberal em curso influenciou dinâmicas de mudança nas políticas públicas de formação inicial de professores de Física - o “contexto de influência” (Ball, 1994). Ainda que essas mudanças assumam diferentes faces, os dois países seguem o mesmo padrão economicista. Em particular, no caso português, a existência de atores e agências supranacionais com gênese na União Europeia atuou como motor de indução dessas políticas. Para Keeling (2006, p. 214), restringe-se severamente o estabelecimento de políticas educativas a nível nacional, “[...] dado que as prioridades nacionais devem estar em conformidade com os objetivos traçados a nível europeu”. Em jogo estão, por isso mesmo, desafios e limitações à autonomia dos Estados (por via do enfraquecimento dos Estados-Nações, caso português) e das instituições de ensino superior no projeto das suas políticas de formação. No que diz respeito à autonomia (institucional e acadêmica) das IES, subsistem tensões nos graus de liberdade e controle na definição e na aplicação das suas estratégias de desenvolvimento (organizativa, administrativa, científica, pedagógica e financeira). Por isso mesmo, o tema continua a suscitar atenção em diferentes continentes, como nos casos da Europa (Pruvot; Estermman, 2017) ou do Brasil (Muzi; Drugowich, 2018). Não é de admirar que assim seja, pois, a par com a internacionalização, a autonomia da universidade está no seu próprio DNA.
A segunda conclusão é que o modo como a legislação e os documentos oficiais produzidos - “contexto de produção” (Ball, 1994) - impactaram na arquitetura dos dois cursos em estudo foi diversa: enquanto no caso estudado no Brasil a legislação possibilita modelos de formação inicial do tipo integrado, no caso português segue um modelo sequencial segundo a matriz de Bolonha. A transposição para os “contextos da prática” (Ball, 1994) arrastam consequências científico-pedagógicas analisadas anteriormente. Nesse sentido, consideramos que a MAC (Quadro 2) pode ser um instrumento de análise útil no estudo de realidades diversas de formação, inclusive a nível internacional.
A terceira conclusão é que os modelos de formação inicial de professores de Física (e não só) no Brasil e em Portugal não foram propostos a partir da avaliação científica dos modelos de formação que os precederam. Em ambos os casos, foram, sobretudo, pressupostos de ordem político-administrativa que lhes deram origem em função de contextos políticos do momento. Trata-se, portanto, de dois exemplos flagrantes de como, muitas vezes, o tempo político não coincide, e até mesmo se sobrepõe, ao tempo da educação. Em jogo está a autonomia das instituições de ensino superior e a desvalorização dos conhecimentos científicos, dos quais elas são a principal matriz e representante.
A quarta possível conclusão diz respeito ao lugar ocupado pelo futuro professor no processo de formação. Ambos os casos estudados perspectivam o futuro professor de Física como objeto e sujeito da formação. Há uma dupla lógica na construção científico-pedagógica do currículo - “contexto da prática” (Ball, 1994) -, em que
a análise de necessidades de formação decorre mais da análise dos saberes científicos, da sociedade, da instituição escolar e da ordem social que a rege que não é objeto de questionamento, do que das necessidades individuais do estudante [...] com base numa visão normativa da formação e da profissão [e menos numa visão emancipatória] (Estrela, 2002, p. 21).
Por exemplo, mesmo no caso português, a abertura curricular (Quadro 2) é limitada, retirando autonomia dos estudantes no processo de construção de sua identidade e profissionalização. De acordo com Estrela (2002, p. 22), é necessário valorizar o futuro professor “enquanto adulto autônomo, detentor de uma experiência e de um sentido de vida, afirmando a indissociabilidade da pessoa e do profissional”. Tal valorização é, porventura, mais visível nos dois cursos no âmbito de disciplinas da área didático-pedagógica. Uma maneira possível de minimizar essa dupla lógica na construção do currículo é por meio de modelos de formação reflexivos propostos desde os anos 90 do século passado (Pombo, 1993). Para esta autora, é importante assegurar na formação, de modo articulado, uma reflexão educativa sobre as grandes finalidades da educação, uma reflexão política e institucional que interrogue o significado e as funções da instituição escolar, e ainda uma reflexão epistemológica e disciplinar que suscite uma consciência crítica do futuro professor em relação ao seu próprio saber, de modo a equacioná-lo na complexa situação atual dos saberes.
Finalmente, uma das consequências da falta de reflexão crítica na procura por novas inteligibilidades sobre a formação de professores é a ausência de uma visão sistêmica, uma visão que seja capaz de integrar harmoniosamente modelos de formação inicial e modelos de formação continuada. Tanto no Brasil quanto em Portugal, faltam visão e planejamento estratégico acerca de como articular, de modo intencional e sistemático, essas duas fases inseparáveis da formação de professores, tendo em vista a construção da identidade, da autonomia e da profissionalização docente. Trata-se, naturalmente, de medidas de médio e longo prazos, dificilmente compatíveis com os tradicionais ciclos políticos. Em outras palavras, não se formulam políticas de Estado para a educação, mas sim políticas de governo. Este é um campo de estudo que merece aprofundamento por meio de redes institucionais de formação de professores.
Para o futuro, ficam as experiências em curso nos dois países e o modo como a comunidade educativa em cada um deles, ou em conjunto, vai lidar com elas e promover a sua mudança no quadro da participação cidadã. Parafraseando Aldous Huxley, a experiência não é o que nos acontece, mas sim o que fazemos com o que nos acontece.