O livro “Método Científico: uma abordagem ontológica” de autoria de Ivo Tonet, foi lançado em 2013, pelo Instituto Lukács, preenchendo uma lacuna de sistematização sobre o método em Marx, necessidade premente para os estudiosos da teoria social crítica1. Ao longo da sua trajetória o autor tem se dedicado aos estudos marxistas, voltando os seus interesses especialmente para a ontologia do ser social, perfazendo temas como trabalho, reprodução e emancipação humana, sendo um intelectual reconhecido no âmbito da educação, filosofia e ciências sociais no Brasil. De posse destes termos, apresentamos algumas considerações trazidas na presente obra que atestam a sua relevância, com o intuito de auxiliar os/as pesquisadores/as interessados/as na temática, especialmente os/as iniciantes, tendo em vista o complexo de questões analisadas, bem como a qualidade didática da exposição na apresentação das categorias e conceitos.
Tonet resgata os fundamentos ontológicos do método científico, com abordagem histórico-social de bases marxistas2. Desenvolve a análise considerando o trabalho como categoria fundante do ser social que permite compreender o processo de reprodução ao longo da história e os modos de entificação da problemática do conhecimento, depreendendo-se a razão do mundo que norteará as abordagens científicas analisadas, e considerando as classes sociais como sujeito fundamental do processo de conhecimento.
[...] a conquista e a manutenção do domínio de uma classe sobre outras exige que a classe que quer dominar lance mão não apenas de forças materiais, mas também de forças não materiais (ideias e valores). E, para isso, ela deve dar origem a determinada concepção de mundo que fundamente o seu domínio. Deste modo, conhecer e explicar o mundo de determinada forma são condições imprescindíveis para que uma classe conquiste e mantenha o seu domínio sobre outras (TONET, 2013, p. 18).
Diante disso, faz-se necessário, perscrutar os diferentes paradigmas científicos que se estabeleceram historicamente a fim de entender as determinações que estão implicadas no modo de conhecer reproduzidos, cujos interesses referendam uma perspectiva de classe que orienta as práxis e as concepções de mundo que legitimam.
O autor organiza o livro em seis partes: a introdução, quatro capítulos e as considerações finais, com o objetivo de analisar a problemática do conhecimento que se estabelece em torno da relação sujeito-objeto, nas diferentes formas de produzir ciência experienciadas pela humanidade. Os capítulos desenvolvem análises sobre os padrões greco-medieval, moderno e marxiano considerando a origem, natureza e função que exercem na reprodução do ser social, bem como suas rupturas fundamentais, em cada configuração histórica socialmente determinada.
Na introdução o autor enfatiza a problemática em torno do método científico moderno, que é amplamente disseminado como sinônimo de “caminho único e adequado para produzir conhecimento verdadeiro”. Esta assertiva assenta-se no pressuposto de que a sociedade moderna organiza o padrão científico que a caracteriza, rechaçando as formas de produção de conhecimentos anteriores, o que levou a compreensão de que é a modernidade (ou pós modernidade para algumas correntes de pensamento) a forma de sociabilidade definitiva e, assim sendo: “[...] qualquer abordagem do método científico que questione [...] essa forma de fazer ciência é [...] declarada sem sentido ou, no máximo, ideológica e, portanto, não científica” (TONET, 2013, p. 10), o que induz a um falseamento da problemática do conhecimento.
Contrapondo-se a esta perspectiva, no primeiro capítulo o autor ressalta que a problemática do conhecimento pode ser compreendida numa abordagem crítica a partir de dois caminhos: do ponto de vista gnosiológico e ontológico. Organiza a exposição dessas duas formas de abordagem discorrendo brevemente sobre suas características basilares como produtos histórico-sociais.
Afirma que a metodologia científica tradicional/moderna reconhece apenas uma forma de abordagem, a gnosiológica, que tem o sujeito como polo regente do conhecimento. Tida como o único caminho adequado e correto de produzir ciência, a gnosiologia - estudo da problemática do conhecimento - se estabelece renunciando a abordagem ontológica (presente nas formações sociais greco-medievais). Tendo em vista que o conhecimento é instrumento para a intervenção social, essa compreensão, segundo o autor, impede que se percebam os interesses sociais que permeiam a construção da cientificidade e que se desenvolva uma mentalidade realmente crítica (TONET, 2013, p. 11-12).
A ontologia, por sua vez, é “[...] o estudo do ser, isto é a apreensão das determinações mais gerais daquilo que existe” (TONET, 2013, p. 12). Nela o objeto é o polo regente do conhecimento, e portanto, o sujeito não cria teoricamente o objeto, mas captura as suas determinações reais, ultrapassando os elementos empíricos com vistas a apreensão da sua essência, e o traduz através de conceitos. Afirma que a abordagem ontológica pode ser metafísica ou histórico-social e, dependendo do caráter que a ontologia apresenta, poderemos ter por exemplo “[...] uma abordagem da problemática do conhecimento fundamentada em uma ontologia não-histórica, de caráter fenomenológico ou existencialista” (TONET, 2013, p. 15).
Apresentados sumariamente os dois caminhos, no segundo capítulo o autor trata do padrão greco-medieval, demonstrando a centralidade da objetividade e a impostação filosófica de caráter ontológico. Discorre sobre a forma de produção baseada no trabalho escravo e servil, onde a concepção de mundo disseminada pelas classes dominantes, estava baseada na hierarquia e imutabilidade da estrutura social, numa atividade passiva do homem diante do mundo que requisitava a adaptação a uma ordem cósmica inalterável. Assim o conhecimento tinha um caráter contemplativo, essencialmente a-histórico, cabendo ao sujeito “[...] apreender a essência imutável das coisas” (TONET, 2013, p. 24-25), haja vista que a verdade estava no próprio objeto, isto é, no ser.
No terceiro capítulo o autor analisa o padrão moderno, situando a centralidade da subjetividade e o caráter gnosiológico do conhecimento científico. A ruptura com o mundo feudal e a transição para o mundo capitalista trouxe implicações materiais e espirituais significativas diante da intensa complexificação da sociedade. O dinamismo gerado pelo novo modo de produção e composição de novas classes fundamentais, impulsionado pela ênfase na razão, na liberdade e na individualidade, fez com que o ser humano se tornasse eixo da vida social, construtor ativo da sua história, em um mundo infinito, sem ordenação hierárquica e em constante movimento (TONET, 2013, p. 33).
O autor enfatiza as consequências do fenômeno da reificação para a problemática do conhecimento no padrão moderno, haja vista que as relações sociais nesse modo de produção se estabelecem como relações entre coisas e não entre pessoas. Adquirindo um caráter natural esta ‘coisificação’ das relações humanas, mediadas pelas mercadorias, gera impactos mascarando os fenômenos sociais, sem que se percebam o cerne gerador de conflitos. Outro aspecto significativo é o processo de individuação individualista, que altera a dinâmica entre ser humano singular e a comunidade, fazendo com que o interesse comum seja subsumido ao interesse individual. (TONET, 2013, p. 32-33).
Essa nova organização e concepção de mundo acentua a importância do conhecimento científico, imprescindível para a reprodução da riqueza material e desenvolvimento das forças produtivas. O objeto é teoricamente construído pelo sujeito, que se direciona aos aspectos da realidade que podem ser mensuráveis e quantificáveis, portanto, o critério de verdade se estabelece através da experimentação e verificação empírica. Este processo “[...] impõe que o conhecimento seja uma articulação entre os dados empíricos e a razão, colhidos através dos sentidos, única mediação entre o mundo subjetivo e o mundo objetivo” (TONET, 2013, p. 37).
O padrão moderno considera que a sociabilidade atual é a última e mais adequada forma de desenvolvimento da humanidade. Assim, o objetivo central do conhecimento é pragmático/utilitário: “[...] deve ter apenas por finalidade permitir o aperfeiçoamento dessa forma de sociabilidade” (TONET, 2013, p. 46). Com esse fim, o cientista/pesquisador deve impedir que os seus interesses interfiram na análise do objeto, utilizando o valor lógico, metodológico e a vigilância epistemológica, para que não haja comprometimento valorativo na produção do conhecimento. Dada a “[...] incapacidade do homem de compreender a realidade como totalidade e de intervir para transformá-la radicalmente” (TONET, 2013, p. 62), o conhecimento produzido direciona-se à busca de melhorias e não a uma transformação estrutural da realidade.
No quarto capítulo Tonet dedica-se à abordagem do padrão marxiano, afirmando que Marx lançou os fundamentos de uma concepção radicalmente nova de mundo, como também de produzir conhecimento científico, articulando filosofia e ciência. Ressalta que esta abordagem supera os padrões de conhecimento anteriores quando compreende a objetividade e a subjetividade enquanto momentos que constituem uma unidade indissolúvel, tendo a práxis como atividade mediadora entre ambas, haja vista que para Marx a ênfase entre uma ou outra tem um caráter redutor e parcial da realidade.
Nessa abordagem as categorias totalidade, historicidade e práxis são fundamentais para a efetuação do conhecimento, tendo em vista que conhecer não é meramente contemplar, pois parte do princípio de buscar respostas para questões postas pela humanidade, em virtude das necessidades de intervenção/transformação do real, em um cenário de constantes mudanças. Há, portanto, uma determinação recíproca entre conhecimento e realidade, em que o método se organiza partindo da “terra para o céu”:
Voltar-se para o objeto, histórica e socialmente construído a partir da sua matriz fundante, que é o trabalho, para apreender a lógica desse processo de entificação, trazer para a cabeça a lógica desse objeto; capturar e traduzir teoricamente o processo histórico e social de construção desse objeto (TONET, 2013. p. 80).
Desse modo é a tradução da lógica do próprio objeto - que existe independentemente da consciência e, portanto, tem prioridade ontológica sobre o sujeito - que permite a captura do seu movimento real, numa mediação permanente entre teoria e práxis, com vistas a sua reconstrução teórica, que precisa considerar o processo histórico-social e os diversos elementos que o constituem, articulando aparência e essência. Portanto, o critério de verdade é o objeto: “[...] somente a prova ontoteórica e ontoprática poderão demonstrar a verdade ou falsidade de qualquer conhecimento” (TONET, 2013, p. 125).
Sinalizados brevemente estes aspectos, percebemos que o conhecimento socialmente produzido não é neutro, porta perspectivas, valores e concepções de mundo que determinam o modo pelo qual os fenômenos são analisados. Conforme observamos o apelo ao método científico tradicional/moderno, como o “único modelo de produção de conhecimento verdadeiro”, atende ao caráter reformista de manutenção dos padrões de sociabilidade do capital, escamoteando o conflito entre as classes e reduzindo a realidade ao aparente, mensurável e imediato, com consideráveis implicações para a cientificidade.
Considerando as determinações sócio-históricas atuais, dispor de uma análise como esta, nos permite compreender a dimensão do método científico para além de um conjunto de instrumentos e técnicas, percebendo a função ideológica que desempenha na compreensão da realidade, bem como “os interesses que permeiam a construção da cientificidade”, articulando mediações entre conhecimento e realidade, entre teoria e práxis, como possibilidades para a construção de uma verdadeira crítica emancipatória.
Deste modo, o estudo empreendido por Tonet traz uma relevante contribuição para as pesquisas desenvolvidas a partir do método crítico-dialético - sendo uma fundamentação imprescindível para os/as pesquisadores/as e interessados/as em aprofundar análises e estudos nessa área - pelas notórias contribuições concedidas ao campo da teoria social crítica, como também para o campo da teoria do conhecimento