Romana e seus cadernos...
“Tudo depende, pois, da posição que adota aquele que olha. O lugar de onde se olha condiciona não somente o que se vê, mas também como se vê o que se vê”. (VIÑAO-FRAGO, 2008, p. 15).
O presente artigo toma como objeto de análise um conjunto de cadernos escolares pertencente à Romana Bragatti, que, entre 1934 e 1936, preparava-se para o magistério primário em Caxias do Sul, Município colonizado por imigrantes italianos, localizado no Rio Grande do Sul. Artefatos da ordem do comum, produtos da cultura escolar, esses suportes de escrita carregam historicidades e se inscrevem como documentos no campo da História da Educação. Escrituras disciplinadas (MEDA, 2014), testemunhas do que pode ter sido (HEBRÁRD, 2001), pouco deixam ver a subjetividade de quem escreve/ensina, mas permitem, por meio do exame de suas páginas, rastrear concepções de educação escolarizada em vigência no Brasil na década de 1930, notadamente, aspectos relativos à formação pedagógica das futuras professoras primárias.
Se, como diz Viñao-Frago, nosso olhar sobre algo parte de algum lugar, procuramos situar o leitor acerca do percurso da pesquisa. Os cadernos foram localizados no Arquivo Histórico Municipal João Spadari Adami (AHMJSA),1 em Caxias do Sul, encontrados na Coleção Especial do Arquivo, intitulada “Cadernos Escolares”, que pertenceram a uma antiga aluna do Colégio São José,2 mantido pela Congregação das Irmãs de São José.
Romana Bragatti frequentava o Curso Complementar do Colégio São José, criado em 1930. Segundo Werle (2005), a partir de 1906, as Escolas Complementares formaram professoras, muitas delas vindas de camadas sociais mais abastadas. Recebiam estudantes que haviam cursado a Escola Elementar e tinham como objetivo “preparar candidatos ao magistério público primário” (p. 620), desenvolveram-se, majoritariamente, em instituições mantidas por ordens religiosas, como o Colégio São José.
E o que mais podemos saber sobre essa antiga aluna do Colégio São José? No Livro de Atas de Conclusão do Complementar, de 1936 a 1941, a primeira ata de conclusão de curso, datada de 8/12/1936, apresenta dados sobre a turma de diplomandas do Curso Complementar, totalizando 20 alunas. Nesse registro, constam os nomes, a idade, o estado civil, apresentadas por ordem de desempenho escolar, classificadas por “distinção grau (10)” ou “aprovada plenamente (9, 8, 7 ou 6)”. Observa-se que a média de idade das diplomandas era de 17 anos, sendo a mais nova “Romana Pierina Bragatti, filha de Eraldo Bragatti, brasileira, solteira, com 15 anos de idade, aprovada plenamente grau 7”.3 Ao observar esta última informação, constata- se que ela apresentava desempenho escolar inferior às demais estudantes. Ficamos a indagar se haveria alguma relação entre idade e desempenho escolar naquele Curso Complementar.
Voltando aos cadernos, foco temático deste texto, destacamos alguns aspectos de seu itinerário. Sabendo que foram escritos nos anos 1930, inferimos que eles estiveram com Romana, guardados por muitos anos, até 1984, conforme registros do arquivo, quando houve um deslocamento: esses artefatos deixaram o espaço familiar e foram habitar um lugar de memórias públicas, o AHMJSA. Se “quem guarda, guarda para se guardar” (CUNHA, 2016),4 Romana Bragatti, possivelmente, tenha atribuído um significado importante às suas escritas escolares ao ter escolhido conservá- las e, pela decisão de doar esse material ao arquivo, optou, mesmo que inconscientemente, em preservar memórias de um tempo, de um sujeito e de um modo de escolarização.
A coleção contém cinco cadernos: um de História Universal, um de Pedagogia e três de Matemática,5 os quais compreendem a temporalidade entre 1934 e 1936. Entretanto, nosso foco está nos Cadernos de História Universal e de Pedagogia. Os cinco possuem o formato de brochura, têm capa preta, quatro foram produzidos pela Livraria Selbach, e apenas o Caderno de Pedagogia foi produzido pela Livraria Saldanha.6 Em todos consta uma etiqueta centralizada na capa com o nome da estudante, disciplina e ano do curso.
Em relação aos cadernos de História Universal e de Pedagogia, ambos foram utilizados ao longo do segundo e do terceiro anos do Curso Complementar, em 1935 e 1936. Por meio da análise desses artefatos, observa-se a preocupação da aluna em otimizar a ocupação de todo o espaço disponível para a escrita: são raras as linhas em branco, mesmo para introduzir novos títulos, Romana não deixou espaços vazios, inclusive as margens foram aproveitadas para outras anotações. Utilizar até o fim os cadernos parecia ser uma prática da cultura escolar daquela temporalidade, considerando as possíveis dificuldades de aquisição desses suportes de escrita, mesmo às camadas da sociedade mais favorecidas economicamente.
Como escrituras disciplinadas, os cadernos escolares, em tese, não permitem a expressão da espontaneidade dos escreventes. O fato de apresentarem exclusivamente textos ou esquemas de temas desenvolvidos, divididos por pontos, são elementos que dificultam a percepção da presença de sua autora. Não há atividades, como questionários, não há marcas da presença do professor. Assemelham-se a manuais escolares,7 como uma espécie de mimetização deles, o que faz pensar que seriam praticamente transcrições desses livros.
Nesse sentido, notam-se aproximações da investigação desenvolvida por Jean Hebrárd (2001), referente a um caderno datado de 1873, no qual aponta a escrita regular e constante, entendendo-o como imitação de livro. Pessanha (2008), em estudo sobre cadernos escolares de normalistas, na década de 1930, na cidade de Campo Grande - MS, igualmente identifica o uso de manuais didáticos como possíveis “guias do professor” (p. 229) que neles se fundamentavam para o ensino das diferentes disciplinas. A autora explica a recorrência a esses manuais pelos docentes, que resumiam os conteúdos, por meio de ditados ou cópias no quadro-negro, tendo em vista o pouco acesso a livros naquela época.
Assim, se vê que as marcas de Romana são mínimas, quase imperceptíveis, pois exigem daquele que pesquisa um olhar atento aos detalhes. Não obstante, essas marcas existem. Nos dois cadernos, ela, por várias vezes, faz um destaque para marcar o início dos trimestres. Em páginas inteiras, escreveu: “Pertence à aluna Romana Bragatti. Viva!”, em letras grandes, no sentido longitudinal. A cada novo período de aulas, uma página do caderno era preenchida com essa identificação, sinalizando o início de ciclos de estudos. Portanto, a frase “Viva!” é um dos raros indicadores que permitem identificar algo da subjetividade daquela moça de 14 ou 15 anos de idade. Seria uma evidência de seu entusiasmo juvenil pela escola? Seria uma prática de todas as estudantes em conformidade com a cultura escolar-local? Existiriam semelhanças nessa forma de registro com a produção de um diário íntimo? Philippe Lejeune menciona essas (des)continuidades do diário tendo como suporte o caderno e apresenta o autor do diário como uma pessoa livre, mas que acaba adotando “algumas formas de linguagem que servem de ‘fôrmas’ para todas as entradas, e nunca mais as abandona”. (2014, p. 343). Essa expressão “Viva!”, registrada de modo recorrente pela escrevente, pode sugerir uma fusão de aspectos presentes no diário íntimo, por exemplo, que se expressam na escrita do caderno escolar. Em outras palavras, cada suporte (caderno, diário, agenda, etc.) possui seus protocolos, que podem deslizar, dependendo dos usos e das apropriações feitas por quem escreve.
Outra questão importante de ser trazida, ainda de ordem subjetiva, é o modo como a estudante organizou seus cadernos. Importa lembrar o quanto se insistia na escrita caligráfica, desenhada com esmero, como condição à docência.8 Nesse sentido, fazia parte do habitus pedagógico a manutenção de cadernos impecáveis, vigiados de perto pelas instituições de formação docente.9 Entretanto, a observação atenta do material permite inferir que Romana, de certo modo, transgrediu determinado ideal de perfeição exigido pela escola. Como explica Castillo Gomez, “a possibilidade de transgressão é inerente a cada ato de escrita”. (2012, p. 68). Diferentes de outros cadernos de décadas passadas, a esses que aqui examinamos não cabe o emblema de “escritos imaculados”. (ALMEIDA; SIMÃO, 2015). Em diversas páginas, notam-se rasuras, riscos em forma de “X”, que ocupam todo o espaço, observa-se que a letra muda o traçado, distanciando-se dos modelos fomentados pela escola republicana. Seria, esse, um indício de fadiga daquela que escrevia diante das exigências do Curso Complementar?
Igualmente, chamam a atenção as últimas páginas do Caderno de História Universal. Imagina-se que esse espaço sobrou no final dos anos letivos e foi aproveitado para registros que não passariam pelo crivo do professor; também é possível que o espaço tenha sido utilizado por outros, que não a estudante. Pessanha (2008, p. 230), ao observar as páginas finais de cadernos de normalistas da década de 1930, também sugere que tenham sido utilizados “por outras pessoas que não a primitiva dona do caderno, talvez irmãos ou filhas”. De qualquer modo, esses apontamentos indicam práticas de escrita dissonantes do prescrito em sala de aula. Em um primeiro olhar, nos pareceu que teriam sido redigidos em outro idioma. Entretanto, afinando a mirada detetivesca para os sinais (GINZBURG, 2007), nos deparamos com uma surpresa: as anotações são escritas de trás para frente. Exemplo disso é a seguinte frase: “ohnos mu è roma O”, que significa “O amor é um sonho”. Nosso entusiasmo diante da descoberta nos impulsionou a dispensar um tempo maior a esse trabalho de tradução. Também é possível que essas frases tenham sido feitas por Romana e suas colegas de classe, em momentos lúdicos, fora da sala de aula. Consideramos importante essa discussão justamente porque tais práticas que, em certo sentido, desobedecem à normatividade, fornecem “pistas que permitem aprender um pouco mais sobre sua vida na escola, para além dos registros e das informações oficiais fornecidas pelos professores ou pelas suas notas”. (OLIVEIRA, 2008, p. 134).
Portanto, os registros escritos não indicam apenas aquilo que fora ensinado em determinado momento; permitem pensar e problematizar outras questões da cultura escolar daquela temporalidade. Assim, como protocolos de escrita/leitura, destaca-se o uso de palavras sublinhadas que sinalizam novos temas que seriam estudados. O uso da primeira letra em maiúscula e também de todas as letras dos títulos serem redigidas em tamanho maior, realçam a escrita da estudante. Cabe destacar a ausência de datas diárias nos cadernos. Seria uma prática comum restringir o uso de delimitação temporal apenas no início e no encerramento de cada trimestre? A ausência desse “regulador do tempo escolar” (HÉBRARD, 2001), bem como o cumprimento desses protocolos de escrita/leitura, seriam escolhas de Romana ou ela apenas cumpria o que lhe era exigido como uma padronização da escrita escolar? Castillo Gomez (2012, p. 68) explica que os cadernos expressam “tanto a vontade individual como a mediação que exerce a pessoa que ensina”.
A seguir, a intenção é adentrar o interior dos cadernos e, de modo esmiuçado, procurar analisar o conteúdo discursivo apresentado às estudantes que buscavam formação pedagógica no Curso Complementar do Colégio São José.
O Caderno de História Universal e o Caderno de Pedagogia: enunciados para formar professoras primárias
Foram investigados dois cadernos utilizados pela estudante no segundo e no terceiro anos do Curso Complementar, produzidos em 1935 e 1936. Versam sobre temas de “História Universal” e de “Pedagogia”, saberes considerados importantes à formação docente, apresentando características descritivas. Especialmente o Caderno de Pedagogia, para além da descrição, manifesta também um caráter prescritivo, constituindo-se num suporte de orientação teórico-metodológica à futura docente.
Uma análise do Caderno de História Universal permite observar, sem maiores surpresas, a manutenção de um viés eurocêntrico, seguindo uma sequência temporal, com ênfase nos estudos referentes à Europa Ocidental, em que os fatos são apresentados por “pontos”, às vezes em estilo de esquemas, conforme anunciado. Entende-se que esse modo de organizar as temáticas de estudo teria uma intenção didática, ou seja, de construir sínteses explicativas que facilitassem a assimilação dos conteúdos desenvolvidos.
A parte do caderno referente ao segundo ano inicia pelos “Hebreus”, estendendo-se até o “Fim do Império Romano e a ascensão do Cristianismo”. São muitas páginas dedicadas ao estudo de gregos e romanos, em detrimento de outras culturas. Em alguns momentos, a aluna escreve “estuda-se pelo livro páginas 119 a 123”, o que indica a existência de um livro como acompanhamento das aulas. No terceiro ano, o caderno começa com fatos da “Idade Média”, estendendo-se até a “Revolução Francesa”. As abordagens que tematizam o Brasil aparecem perifericamente, quase como um pequeno apêndice das chamadas grandes civilizações europeias, ocupando apenas seis páginas. Cumpre ressaltar que essas eram prerrogativas próprias da constituição da História como disciplina,10 que remonta ao século XIX e se adensou com o advento da República, caracterizando seu ensino na primeira metade do século XX. Ainda cabe lembrar que Romana concluiu seus estudos às vésperas da implantação do Estado Novo, portanto, não se constata a presença de ideais nacionalistas que logo emergiriam como instrumento de controle dos currículos escolares, sobretudo no Sul do Brasil (CORSETTI; KISTEMACHER, 2008) com vistas a homogeneizar a cultura brasileira.
No Caderno de Pedagogia, observa-se a ênfase dada ao discurso escolanovista. Como o de História, divide-se em trimestres e por “pontos” que compreendem títulos e subtítulos. Constata-se a intenção de apresentar às estudantes um conceito moderno de Pedagogia, fundamentado cientificamente, em contraposição ao que se chama “pedagogia dogmática”. Em uma das páginas, diz que a Pedagogia “é, pois, uma ciência aplicada baseando-se no conhecimento da criança”.
Para além dessas questões, no segundo ano do curso, encontram-se evidências de uma construção discursiva referente à feminilização do magistério. Naquelas primeiras décadas do século XX, justificou-se, com mais vigor, a educação escolarizada da mulher, entendendo-se que poderia ocupar o lugar de professora primária, sem prejuízos aos papéis de mãe e esposa. (TAMBARA, 2002). Assim, copiou a estudante, “a honra de ser a primeira educadora dos filhos cabe à mãe. Desenvolve o gérmen contido na sua alma, dando a educação desde os primeiros meses de sua vida, imprimindo nela, aos poucos, a existência de um Deus”. Alinham-se os enunciados que glorificam o lugar da mulher na sociedade, inscrita nos parâmetros da modernidade, atrelados à potência do Cristianismo como alicerce familiar.
Louro (2004) explica que a formação cristã, ao longo dos séculos, no Brasil, foi entendida como “a chave principal de qualquer projeto educativo”, notadamente em relação às mulheres. (p. 447). Entretanto, a autora alerta que o uso recorrente da palavra cristã deve ser relativizado, tendo em vista a força do Catolicismo no Brasil, mesmo considerando a laicização do Estado republicano. Nesse sentido, vale lembrar que Romana vivia em uma região colonizada por imigrantes italianos, em que o Catolicismo constituía-se como referência hegemônica entre a população.
Na esteira dessa tematização, são elencados os atributos necessários a “um bom professor”, alternando o uso dos gêneros masculino e feminino. Nitidamente, atribui-se à formação moral maior relevo que o nível de instrução. O texto explica que “o educador não é aquele que embrenha seu espírito nas teorias mais profundas dos escritores eruditos. Embora isso tudo lhe dê qualidades latentes, deve, antes de tudo, conhecer os elementos gerais e o funcionamento do espírito.” E, nessa perspectiva, valorizam-se, explicitamente, as relações afetivas em detrimento de outros atributos: “Quando falta o laço de empatia e de amor, o professor ensina como o semeador distraído, que deixa cair a semente ao acaso”. Louro (2004) afirma que os enunciados referentes à formação da professora datam do século XIX e se acentuam com a República, sendo seu ideário de teor positivista, no sentido de forjar uma sociedade moderna, assentada em bases higienistas, que privilegia a manutenção da função social da mulher, considerada “mãe virtuosa, a educadora das gerações do futuro”. (p. 447). Complementa ao dizer que “ainda que o reclamo por educação feminina viesse a representar, sem dúvida, um ganho para as mulheres, sua educação continuava a ser justificada por seu destino de mãe”. (p. 447).
A definição de um modelo de “bom educador” ocupa outros espaços do Caderno de Pedagogia. Orienta a zelar por seus alunos, cuidar da sua saúde, “evitando as neurastenias para ter sempre um bom humor, paciência e energia”. Além disso, aconselha as futuras professoras a fazerem “exercícios físicos moderados, passeios higienísticos, procurando distrair-se e instruir- se”. Deveriam ser “prudentes e reservadas em contendas alheias” e, por fim, apresentam as “virtudes indispensáveis de um professor”: “firmeza na palavra, tenacidade, coragem, generosidade e delicadeza”. Todos esses enunciados permitem que se perceba a construção de determinada identidade da profissão de professor que atravessou o século XX, fundamentada em uma espécie de devoção, e que, em alguma medida, ecoa no presente.
Institui um discurso que legitima a profissão de professor e, por meio dele, pode-se imaginar o quanto essas mulheres, na condição de escreventes e leitoras, aderiam ao que era dito a elas. Assim, a estudante em formação, ia, paulatinamente, apropriando-se do que lhe era prescrito, e essas prescrições, possivelmente, a acompanhariam ao longo dos anos de exercício do magistério. Definia um certo ethos da profissão docente naquele contexto histórico, difundido nessas instituições de formação docente.
À medida que a escrita avança no caderno, observa-se a importância que os aspectos metodológicos assumem no processo de formação docente. A partir do segundo trimestre do segundo ano do curso, são apresentados diferentes modos de ensino, e é nesse ponto que aparece, pela primeira vez, a menção ao “método da Escola Nova”,11 tema de destaque no caderno, a partir de então. No terceiro ano, percebe-se, nos textos copiados, uma feição eminentemente metodológica, vinculado à prática pedagógica. Desdobram-se explicações acerca de como ensinar a ler e a escrever, com base na caligrafia. Ainda, metodologia da Aritmética, da Geometria, da História, do Desenho, das Ciências Naturais e Físicas e da Geografia.
Portanto, pela análise do caderno, podemos inferir que Romana e suas colegas tiveram uma formação afinada às concepções da Escola Ativa. Em várias passagens, vê-se uma série de críticas a outros modos de escolarizar, considerando-os ultrapassados. Por isso, as constantes referências a Claparéde, Decroly, Dewey, Montessori como pensadores inscritos no escolanovismo. Desse modo, ali está registrado que o professor não é mais aquele que detém o saber, mas a quem cabe “a difícil missão de facilitar e abreviar o aprendizado, o professor conduz seus alunos à compreensão e assimilação do programa”. A presença efetiva desses registros vinculados à Escola Nova também pode ser compreendida como uma mimetização dos manuais pedagógicos que circulavam no período e que, como mencionado, faziam parte das aulas destinadas à formação docente. De acordo com pesquisa de Silva (2003), o volume de publicações voltadas a docentes, especialmente os manuais, foi intenso na década de 1930 e a presença de citações sobre o escolanovismo e John Dewey é predominante nesses suportes escolares de escrita.
Em outro momento, Romana escreveu que o professor “não transmite o ensino, apenas protege e auxilia os que aprendem”. Podemos dizer que a Escola Nova instituiu nov o habitu s pedagógico, atr elado à cientificidade e modernidade introduzidas na Pedagogia. Nesse sentido, Vidal (2007, p. 497), argumenta que os novos enunciados difundiam outras concepções de instituição escolar, “desqualificavam aspectos da forma e da cultura em voga nas escolas, aglutinadas em torno do termo tradicional. Era pela diferença quanto às práticas e saberes escolares anteriores que se construía a representação do novo nessa formação discursiva”.
Destaca-se a importância que assume a Psicologia Experimental na formação docente, especialmente considerando os Testes Psicológicos, fortalecendo a concepção científica da Pedagogia, atrelada aos princípios higienistas, que, entre outros aspectos, procuravam constituir as classes escolares de modo homogêneo.12 Em uma determinada página, aparece, objetivamente, essa questão, quando se atribui “o fracasso da escola antiga” à “ignorância fisiológica e psicológica da criança. Não faz muito tempo que o professor só estudava as matérias do programa que devia ensinar”. Nos novos tempos, ao mestre caberia conhecer as crianças do ponto de vista psicológico.
Um exemplo claro desse olhar psicológico voltado à infância encontra- se na página do caderno em que consta a ilustração de uma “árvore do Dr. Pizzoli”. Fazendo uma breve consulta, percebe-se o desenho como cópia da imagem apresentada no livro Pedagogia Scientífica, escrito por Ugo Pizzoli em 1909, “médico italiano que em 1914 ministrou o Curso de Technica Psychologica no Gabinete de Psychologia e Anthropologia Pedagógica anexo à Escola Normal de São Paulo”. (MENEZES; PINHEIRO, 2016, p. 165). Os livros de Ugo Pizzoli circularam pelas Escolas Normais paulistas e, possivelmente, ecoaram em outros espaços, como no Colégio São José em Caxias do Sul. Por meio de um Laboratório de Pedagogia Científica criado na Itália, o Pizzoli defendia a ideia de que os professores deveriam receber uma preparação técnica para realizar exames em seus alunos, em prol de uma mudança na forma de ensinar. Em seus estudos, Ugo Pizzoli relacionava a Pedagogia Científica às áreas da Psicologia e da Antropologia. No caso da “árvore da biologia pedagógica”, as ciências estavam voltadas ao estudo do homem, e os registros da árvore se assentavam nos conhecimentos científicos de anatomia humana, psicologia, higiene e patologia infantil. (MENEZES; PINHEIRO, 2016).
Sobre a organização da escola, é prescrito a respeito de como deveria ser o “dia escolar”, pautado por preceitos higiênicos e disciplinamento temporal, como condição ao sucesso do trabalho escolar, exigindo do professor uma atitude de autovigilância. Continuando, orienta que “leitura, linguagem, aritmética devem ser aplicadas todos os dias. A história natural e o canto não são necessários todos os dias, mas nem por isso devem ser esquecidos”. E afirma que leitura, escrita e cálculo “são princípios de qualquer escola tradicional ou nova”.
Ao chamar a atenção à importância de prever momentos de descanso durante o trabalho escolar, observa-se, mais uma vez, a presença dos conhecimentos da Psicologia fundamentando a organização das práticas pedagógicas. Enfatiza a necessidade de recreios, “para que a criança possa mover-se e avivar as ideias porque mantendo-as sem o recreio o esforço mental se desperdiçaria e não prestariam mais atenção”, com duração de 15 a 30 minutos, podendo ser mais longo para os menores. Prosseguindo na discussão acerca da capacidade de concentração, ainda que com pouco embasamento, é dito que “a atenção da criança não pode ficar por muito tempo, exige momentos de expansão e liberdade”. Sobre a distribuição das atividades escolares, afirma-se que “a duração das lições não deve passar de 20 a 25 minutos porque os maiores aborrecem as crianças”, se passar desse tempo será “lição perdida”. Mais uma crítica subjacente aos métodos da “escola tradicional”, em que a “atenção desaparece em poucos minutos”. Ainda, uma prescrição de ordem subjetiva diz que “o mestre enquanto durar a lição deve olhar que não falte o contato espiritual entre ele e os alunos”.
Preocupações com a aprendizagem também podem ser observadas nas orientações em relação à aplicação de atividades, pois é recomendado alternância entre “exercícios fáceis e difíceis”. Em relação à distribuição do horário escolar no turno, há outro cuidado em relação àqueles que porventura não chegassem ao início das aulas: “A primeira disciplina não deve ser das mais importantes, nem das que exigem muito esforço, pois os atrasados podem perdê-la.” Desaconselham dois turnos, sendo que “é inconveniente às crianças que moram longe porque não teriam descanso entre um turno e outro”. Observam-se, nessas prescrições, um cuidado com os discentes que comumente percorriam longas distâncias da casa até a escola em um país ainda marcadamente rural.
Em relação aos ensinamentos morais, a orientação é não determinar um momento exato para essas aulas, mas aproveitar diferentes situações para introduzir essas questões, pois, segundo o caderno, “a melhor hora para uma lição de moral é quando a ocasião se nos apresenta”. E, mais uma vez, a força do discurso escolanovista se apresenta nesse conselho, “quando, por algum acidente, os alunos estejam interessados, devemos aproveitar o momento para lhes explicar sem o temor que esteja fora do horário”.
E o planejamento das aulas? O que diz o caderno? Acentua a importância do “preparo diário e contínuo, mesmo para os mais experientes”. Para tanto, o professor precisa estudar “o que vai tratar em aula, por conta das perguntas imprevistas, deve ler livros superiores aos dos alunos” e preparar um “plano de lição” que contenha “introdução, apresentação, recapitulação”. Valoriza o planejamento de aulas “agradáveis” que conduzam “a criança a concluir por si mesma, cultivando-lhe a imaginação”.
Com a intenção de rejeitar o passado e apresentar uma proposta de escolarização redentora, não é recomendada a forma expositiva e interrogativa no ensino primário, considerados “métodos antigos”, pois, segundo o texto copiado por Romana, “andaria errado um professor que chegasse em aula e fizesse uma preleção da matéria que iria ensinar, teria falado em vão e roubaria um tempo precioso das crianças, pois, dessa forma, é o mestre quem estuda, dita regras, expõe a matéria”. Reforça-se a importância do conhecimento psicológico da criança, afirmando que “o aluno não é um receptáculo de acúmulo de conhecimentos, mas um ser vivo que, convenientemente excitado, pensa, observa, experimenta e explica”.
Na sequência, apresenta conselhos ao docente ao elaborar perguntas, afirmando-se que “a História não se presta para apenas interrogações, o professor deve levar o aluno a deduções fáceis”, salienta a importância de não fragmentar os temas desenvolvidos, mas procurar relacioná-los “com outras lições já estudadas, conservando-lhe sempre a maior unidade possível”. Com relação às respostas dos alunos, a prescrição é preferir sempre respostas individuais, sob a justificativa de que, no coletivo, “uns repetem o que os outros já disseram e o professor não pode saber se o aluno compreendeu ou não”. Além disso, em relação às respostas, “o aluno deve falar alto, claro, pronunciando bem as palavras. Não se devem aceitar as respostas de sim ou não”. Nesse sentido, Vidal (2007, p. 498), explica a importância do trabalho individual para a Escola Nova. Acentua a autora que “o trabalho individual e eficiente tornava-se a base da construção do conhecimento infantil. Deveria a escola oferecer situações em que o aluno, a partir da visão/observação, mas também da ação/experimentação, pudesse elaborar seu próprio saber”.
A disciplina é outro ponto que segue essa mesma linha de pensamento. No caderno são enfatizadas as transformações na Escola Nova, de acordo com os postulados de um “moderno conceito de disciplina escolar”, em que não há lugar para castigos, nem prêmios. São necessários, sim, investimentos na prevenção por meio do trabalho escolar. Demoniza métodos antigos e glorifica os novos. De acordo com o que está escrito no caderno, no passado, a escola priorizava “o trabalho escolar pelo silêncio e a simetria”, que praticamente anulava o educando. Ao contrário, argumenta-se que “a criança necessita mover-se e não passar horas e horas no mesmo lugar, a criança gosta de falar, brincar, distrair-se, se o mestre se adapta a essas condições não serão necessários prêmios e castigos”.
Entretanto, vê-se a preocupação em “não confundir educação liberal nacional com educação anárquica”, princípios de ordem e regramento são vistos como indispensáveis, mas “há maneiras de consegui-la” e nessas “maneiras” a Escola Nova fomentava o que considerava ser “autonomia dos escolares em vez da autoridade externa”. Entretanto, aqui se entende que a formação escolar buscava, de fato, a construção da autorregulação dos estudantes, pois o que está escrito indica que se pretendia ir “criando pouco a pouco a autoridade interna, só assim formaremos homens com iniciativa, capazes de governarem a si mesmos”. Observa-se que a internalização desses conceitos inscreve-se em um propósito civilizatório (ELIAS, 2011), difundindo preceitos de civilidade que deveriam ir além das fronteiras da escola. A Escola Nova, ao insistir no que ela chama de autonomia, constitui, isso sim, modos de disciplinar/conter corpos e mentes pela regulação de condutas e comportamentos socialmente aceitáveis. Nesse cenário, Peres (2004, p. 115), explica que a Escola Nova depositava na escola a capacidade de “reformar a sociedade pela educação; em outras palavras, “renovar a escola para renovar a sociedade”. Assim, a valorização do “autogoverno, valorização da experiência; educação moral, intelectual e física; métodos ativos de ensino” ocuparam um lugar de destaque no pensamento pedagógico daquela temporalidade.
Nas palavras copiadas por Romana, “é preciso tirar das escolas castigos que atentam contra o amor próprio do aluno [...]. Os prêmios devem ser abolidos, orgulham o aluno e predispõem ao egoísmo”. A disciplina escolar é entendida como “disciplina inteligente, misto de firmeza e afeto”, fundamentada no respeito à infância; assim, “não há criança indisciplinada uma vez que lhe ofereça uma ocupação diferente” e, portanto, são valorizados os jogos e brinquedos como “partes essenciais da concepção funcional da educação”.
No entanto, Veiga (2007) aponta às diferenças entre o que era preconizado e as práticas efetivadas. Afirma que a escola no Brasil, nas primeiras décadas do século XX, ainda praticava, de modo recorrente, castigos físicos e morais, em que “se exacerbava a vigilância sobre o estado de limpeza do corpo, da roupa e dos modos dos alunos”. (p. 371). Vidal (2007, p. 497), igualmente acentua essa questão considerando o descompasso entre o que era defendido no plano teórico e as práticas escolares. Explica que “operavam-se, no entanto, apropriações do modelo escolar negado, ressignificando seus materiais e métodos”.
Teríamos outros tantos aspectos a explorar nesses cadernos da estudante Romana Bragatti, impossíveis nos limites de um artigo. Viñao-Frago (2008, p. 23) fala que essas atividades escritas representam a própria instituição de ensino, inscrita naquele lugar e naquela temporalidade, sendo o caderno um “instrumento inculcador da noção de saber escolar legítimo (e ilegítimo), daquilo que se pode ou não escrever nele e como escrever”. Pela análise do caderno de Pedagogia, podemos perceber que a formação de Romana esteve inscrita nos pressupostos do escolanovismo. Esses discursos da Escola Nova indicam caminhos que, ao menos teoricamente, se afastavam das referências do passado e orientavam a futura professora a conduzir sua prática docente de outros modos, mais afinados aos conceitos da modernidade pedagógica.
Para (não) concluir...
Na década de 1930, Romana Bragatti preparava-se para ter uma profissão. Era estudante do Curso Complementar do Colégio São José, em Caxias do Sul. É preciso dizer que o acesso à tal formação representava um diferencial para as mulheres daquele tempo, considerando o pouco acesso à escola à maioria da população brasileira.
A análise de seus cadernos permitiu-nos a compreensão da potencialidade desses artefatos para a História da Educação. Investigá-los permite que possamos chegar perto dessa quase professora que, durante um tempo de sua vida, exercitou a escrita e a leitura nas páginas desses suportes de escrita.
Foi preciso aguçar o olhar para melhor perceber o que os cadernos tinham a nos dizer. As marcas de sua autora são poucas, as transgressões aos padrões disciplinares não se deixam ver de imediato. Mesmo assim, apostando na potência desses documentos, nos lançamos a observá-los com cuidado, com certa reverência, afinal, foram guardados por Romana por muitos anos e, depois, confiados para serem preservados em um arquivo público.
Os discursos preconizados em seus cadernos, de modo especial no caderno de Pedagogia, indicam códigos de conduta moral considerados adequados à professora. Por outro lado, pela análise dos registros copiados, percebe-se que a quase professora esteve em contato com o movimento escolanovismo, que instituía uma Pedagogia com bases científicas, bem como conheceu determinada concepção de História. Assim, seus apontamentos transformaram os cadernos em possíveis manuais à estudante em formação.
Os tensionamentos que procuramos estabelecer em torno dos suportes de escrita permitem refletir acerca da cultura escolar de uma época, especialmente em relação aos discursos que projetavam a formação docente no Brasil, nos anos 1930. Reforçamos que esses artefatos escolares produzem representações de outros tempos e indicam o caderno como uma espécie de companheiro da vida escolar do estudante (MIGNOT, 2008), que guarda memórias significativas de sua formação, atreladas à instituição educativa e ao sujeito que constitui esses cadernos do modo que os recebemos para investigar.