Il paroît que c’est faute de connoître les vraies causes des passions, des talens, de la verve poëtique, de l’ivresse, &c, que ces êtres ont été divinisés sous les noms de Cupidon, d’Appollon, d’Esculape, de Furies. La terreur et la fièvre ont eu pareillement des autels. En un mot l’homme a cru devoir attribuer à quelque divinité tous les effets dont il ne pouvoit se rendre compte. (Paul-Henri Holbach)
Segundo Günther Mensching, no século XVIII, os filósofos distanciaram-se bastante da metafísica tradicional. Em especial, para os materialistas franceses, a ciência dos princípios universais não era mais do que um tipo de “engano inventado por gerações de filósofos e teólogos para contentar sua vã ambição e forjando sistemas que somente consistiam em palavras sem significação precisa”. (1992, p. 118). No empreendimento de um exame mais acurado a respeito de como se formam, no espírito, termos, expressões ou conceitos que não levam em conta a própria realidade, Holbach não hesita em afirmar que certas ideias que o homem engendra dentro de si são resultantes de uma inconstância dos humores1 que o impede de ver quais são as razões de atribuir um caráter sacro a certas opiniões legadas por uma tradição filosófico-teológica. As paixões, longe de serem romantizadas e levarem vantagem em relação à reta razão, justamente por serem menos frias e mais lúdicas, sob a pena do Barão, ganham uma imagem negativa, definidas como verdadeiros obstáculos ao homem que quer entender os princípios, o curso e as leis da natureza sem recorrer a instâncias ou entidades sobrenaturais inventadas pela imaginação, pela oscilação dos humores ou pela linguagem. Antes de refletirmos acerca da crítica às paixões, feita por Holbach no Sistema da natureza, dois anos antes, em sua Teologia portátil ou dicionário abreviado da religião cristã - 1768 - no verbete Paixões, o Barão, quando as define, ironiza:
Movimentos necessários à conservação do homem e inerentes à sua natureza desde que ela se corrompeu pelo pecado original. Sem essa memorável tolice, nós teríamos sido como os paus e as pedras; teríamos gozado, por conseguinte, da mais perfeita felicidade. Um cristão não deve ter paixões, a não ser aquelas que os padres lhe inspiram. (2012, p. 169).2
Pierre Naville afirma que “desde que se trata de mostrar simplesmente a dependência das faculdades intelectuais de certas causas físicas, Holbach é inesgotável” e, nesse sentido, “a crítica anti-teológica atinge seu apogeu”. (1967, p. 277-278). Nesses termos, de cara, Holbach inaugura a segunda parte do seu Sistema afirmando que ao homem é necessária a audácia de ir à origem das opiniões mais enraizadas em seu cérebro e tentar saber, com exatidão, as razões que o levam a reverenciá-las como sacras. (SN, II, i, p. 429).3 Uma vez efetivado um exame acerca do que o leva a esperar ou temer algo, rapidamente constataria que “seu espírito trabalha às pressas e sem nexo no meio da desordem de suas faculdades intelectuais, perturbadas por paixões que as impedem de raciocinar com justeza ou de consultar a experiência em seus julgamentos”. (SN, II, i, p. 429).4
Segundo Holbach, se colocarem um ser sensível em natureza da qual todas as partes movimentam-se, ele terá sentimentos diversos a depender dos efeitos bons ou maus que experimentará, e, consequentemente, disso dependerá sua felicidade ou infelicidade segundo as qualidades das sensações que serão excitadas nele, amando ou temendo, buscando ou fugindo das causas reais ou imaginárias dos efeitos incidentes em seu corpo. Ao contrário, se não possui experiência alguma, inevitavelmente, enganar-se-á a respeito dessas causas, não conseguindo descobrir sua origem, nem sua energia, nem como age. Somente quando ocorrerem sucessivas experiências que fixem seu julgamento, ele sairá do seu estado de perturbação e inquietude. (SN, II, i, p. 429-430; II, ii, i, p. 2). Para Holbach o homem somente traz consigo desde o seu nascimento uma aptidão a sentir mais ou menos fortemente, a depender da sua conformação individual, não conhecendo nenhuma das causas que agem sobre ele. Progressivamente, quando as sente, ele descobre suas diferentes qualidades, aprendendo a julgá-las e fazendo com que lhe fiquem mais íntimas, associando-lhes ideias dependendo de como é afetado. A veracidade ou falsidade de tais ideias tem como parâmetro a boa ou má-constituição dos órgãos e a capacidade ou incapacidade de fazer experiências seguras e confirmadas regularmente. (Ibid.; Ibid.).
Dessa consideração acerca do sentimento cada vez mais fortalecido ou enfraquecido, de acordo com o grau de experiência que o homem possui, Holbach chega à questão da necessidade, definindo-a como “o primeiro dos males que o homem experimenta”. (Ibid.; Ibid.).4 Definição forte, à primeira vista, ainda mais o autor entendendo-a como um mal necessário, mas que constitui uma etapa fundamental para a manutenção do ser do homem. Segundo o Barão, os homens, em seus primeiros momentos, possuem algumas necessidades e, para conservar o seu ser, necessita do concurso de várias causas análogas a eles, imprescindíveis à sua existência. Essas necessidades, em um ser sensível, aparecem mediante uma desordem em sua máquina que lhe causam a impressão de uma sensação dolorosa, desarranjo que permanece e se amplia até que a causa necessária para eliminálo venha retomar a ordem adequada à máquina humana. O mal que encerra a necessidade, na verdade, é um aviso que a desordem dá ao homem forçando-o a procurar uma cura. (Id., p. 430-431; Id., p. 3). Destituídos de necessidades, os homens seriam meras criaturas insensíveis, incapaz de se conservar e de perseverar na existência:
Sem necessidades, nós não seríamos mais do que máquinas insensíveis, semelhantes aos vegetais e incapazes, como eles, de nos conservar ou de adquirir os meios de perseverar na existência que nós recebemos. É às nossas necessidades que se devem as nossas paixões, nossos desejos, o exercício das nossas faculdades corporais e intelectuais. (SN, II, ii, i, p. 431; SN, II, ii, i, p. 3).5
São as necessidades que fazem com que o homem pense, queira e aja, como, da mesma forma, para saciá-las ou para erradicar as sensações dolorosas que elas causam, conforme a sensibilidade natural e a energia peculiar ao homem, esse se esforça tanto corporal como mentalmente. Sendo as necessidades ininterruptas, é forçoso despender um labor incessante para proporcionar os objetos capazes de aplainá-las. Em outros termos, há uma relação direta entre a multiplicidade das necessidades e a ação permanente da energia humana e, quando elas cessam, o homem sucumbe ao fastio, entedia-se ficando em uma condição letárgica até que novas necessidades apareçam para reavivá-lo. (Ibid.; Ibid.). Holbach conclui que “o mal é necessário ao homem; sem ele o homem não poderia conhecer aquilo que lhe causa dano, nem evitá-lo, nem proporcionar a si mesmo o bem-estar”. (Ibid; Ibid, p. 3-4, grifo do autor).6 Poder-se-ia, aqui, entender como uma espécie de fatalismo essa concepção de mal holbachiana devido à associação que o filósofo faz com a necessidade. Mas é fundamental entender que o mal, como necessidade para Holbach significa um mal temporário ou momentâneo [momentané] que força o homem a fazer com que funcionem, a pleno vapor, suas faculdades, fazer experiências, estabelecer comparações e distinções entre os objetos que podem prejudicá-lo ou favorecer a conservação de sua existência. Mais do que isso, inexistindo o mal, seria impossível conhecer o bem, e o resultado seria o desaparecimento da própria humanidade. Como uma criança perdida e sem experiência, o homem iria em direção, a passos largos, à sua perda iminente, sem julgar nada e sem poder escolher e, desprovido de “vontades, paixões, desejos, não se revoltaria contra os objetos desagradáveis, não poderia afastá-los dele, não teria motivos para amar nada ou temer nada”. (Ibid., p. 432; Ibid., p. 4).7
A essa altura, Holbach chega no ponto central da questão, quando afirma que “se não existisse nenhum mal no mundo, o homem jamais teria pensado na divindade”. (SN, II, i, p. 432; SN, II, ii, i, p. 4).8 Se a natureza concedesse o privilégio da fácil satisfação de todas as necessidades presentes e futuras ou somente gozar de sensações prazerosas, toda a vida do homem teria sido uma uniformidade contínua, sem se instigar, em momento algum, em procurar as causas desconhecidas da natureza. Uma existência imediata, baseada na percepção dos objetos arranjados de maneira que lhe agradaria, estaria plenamente conforme seu modo de ser, não tendo nem medo, nem esperança, nem se inquietar com o porvir. Toda sensação desagradável e contrária a esse estado de felicidade e indiferença (em relação ao que origina e ordena o sistema da natureza) seria oriunda de alguma sensação desprazerosa que o afetara anteriormente, desordenando sua máquina e tornando infeliz.
Contudo, aqui se situa o tour de force argumentativo de Holbach: a despeito da renovação contínua das necessidades humanas que por vezes é impossível saciá-las, todo homem sentiu males de toda ordem, por meio de fenômenos naturais, doenças, escassez e outros. Daí a desconfiança e a temeridade típicas do homem, já que a experiência de dor o avisa a respeito de todas as causas desconhecidas das quais ainda os efeitos não foram experimentados e, mais ainda, essa experiência faz com que sempre se mantenha em alerta contra os objetos dos quais a consequência é ignorada. (Ibid., p. 433; Ibid., p. 5). Toda apreensão e medo aumentam à proporção do aumento da desordem que os objetos produzem, da sua raridade, da sua sensibilidade natural, da efervescência de sua imaginação. Holbach vê que quanto mais o homem é ignorante ou sem experiência, mais ele se apavora, sendo que
a solidão, a obscuridade das florestas, o silêncio e as trevas da noite, o assobio dos ventos, os ruídos súbitos e confusos são, para todo homem que não está acostumado com essas coisas, objetos de terror. O homem ignorante é somente uma criança que tudo assusta e faz tremer. Seus alardes desaparecem ou se acalmam à medida que a experiência mais ou menos [se] familiarizou com os efeitos da natureza. (Ibid.; Ibid.).9
Se, por um lado, a experiência é o caminho seguro à medida que permite conhecer as causas agindo e que permite saber os meios de evitar os seus efeitos, em contrapartida, uma vez não identificadas as causas que o atormentam fazendo-o sofrer, o chão lhe some dos pés, ficando atônito diante do - ainda - desconhecido. A imaginação o domina, pintando-lhe um quadro de terror, culminando numa desordem que o impede de conhecer determinado objeto. Holbach chega, aqui, à gênese do fenômeno supersticioso: a imaginação opera em analogia a alguns dos seres já conhecidos, sugerindo meios semelhantes aos de que o homem se vale corriqueiramente para extraviar os efeitos e minimizar a potência da causa secreta que engendrou dentro de si suas aflições e temores. Segundo o Barão, tudo isso se deve a “poucos homens, mesmo em nossos dias, estudaram suficientemente a natureza, ou se puseram a par das causas físicas e dos efeitos que elas devem produzir”. (SN, II, i, p. 434; SN, II, ii, i, p. 6).10
A sinonímia entre a ideia de divindade e a aflição para Holbach é clara, pois é, dentro da ignorância dos alardes e das calamidades que “os homens sempre foram buscar as suas primeiras noções sobre a divindade: de onde se vê que elas devem ter sido suspeitas ou falsas, e sempre aflitivas”. (Ibid., p. 437; Ibid., p. 9).11 O Barão desenvolve essa ideia apoiando-se em três argumentos: 1) É suficiente olhar para qualquer parte do Planeta para confirmar que em todos os lugares os homens estremeceram, e que foi devido a seus temores e infortúnios que criaram deuses nacionais ou que reverenciaram os trazidos de outras localidades. A ideia de um deus sempre esteve conjugada com a do terror, seu nome sendo associado às próprias tragédias do homem e a de seus ancestrais, sendo o temor atual somente uma continuidade dos temores mais antigos.
Nesse sentido, Holbach estabelece uma conexão necessária entre a transmissão perpétua de pavores manifestados em épocas mais remotas e a associação da ideia de uma divindade a calamidades naturais; 2) Da mesma forma, foi por meio da dor que cada homem fabricou a potência desconhecida para ele próprio, devido à sua ignorância sobre as causas naturais e os seus modos de agir. Diante de algum revés, fica desamparado, e as paixões que afetam seu corpo, não lhe permitindo encontrar sua verdadeira fonte, são efeitos que ele vê como sobrenaturais, pois são opostos à sua natureza atual. Dessa forma, se o julgamento dos objetos que são desconhecidos se baseia naqueles que é possível conhecer, o homem, conforme a si mesmo, “atribui vontade, inteligência, intenção, projetos, paixões - em poucas palavras, qualidades análogas às suas - a toda causa desconhecida que sente agir sobre ele.” (Ibid., p. 439; Ibid., p. 11);12 e 3) A disposição que serviu para ludibriar todos aqueles que a razão não tiver desiludido das aparências, a saber, o concurso aleatório de alguns efeitos com causas que não os produziram, ou a simultaneidade desses efeitos com algumas causas que não têm uma ligação necessária com eles. Longe de operar por meio da gratuidade, no sistema da natureza os efeitos diversos são devidos a causas naturais e a circunstâncias necessárias, que influem diretamente sobre o homem, não podendo a natureza ser divinizada.
Holbach toca no fundamento da fé, à medida que essa se firma ou se fragiliza devido à crença em presságios bons ou ruins. Se eles são vistos como alertas dados pelos deuses, e o homem atribuindo-lhes qualidades que ele mesmo não tem, é porque “a ignorância e a perturbação fazem com que [...] creia que uma pedra, um réptil ou um pássaro sejam muito mais instruídos do que ele próprio”. (Ibid., p. 441; Ibid., p. 13).13 As parcas observações feitas pelo homem só o tornaram mais supersticioso e, submetendo o poder, a inteligência e as virtudes que ele anteriormente tinha a alguns objetos insensíveis, ele supõe que eles são movidos por alguma causa oculta da qual eles são os instrumentos. É evocando esse agente misterioso que procura conquistá-lo, querendo seu auxílio e apaziguar sua fúria e, para ter êxito, lança mão dos mesmos artifícios que usaria para minimizar ou ganhar o apreço de seus pares.
De todas essas considerações a respeito de como o homem se porta perante os supostos infortúnios causados pela natureza, Holbach reflete sobre o que compõe ou, constitui, uma religião. Essa é definida como “um sistema de conduta inventado pela imaginação ou ignorância para tornar favoráveis as potências desconhecidas às quais supuseram que a natureza estava submetida: alguma divindade irascível e implacável sempre lhe serviu de base”. (Ibid., p. 443; Ibid., p. 15).14 Foi nessa definição que o sacerdócio alicerçou todos seus direitos, seus templos, seus altares, suas riquezas, seu poder e seus mandamentos que, na verdade, são as bases em que toda religião se funda e se mantém, tendo o poder de regular o modus vivendi das nações mais civilizadas. Tais sistemas foram, sucessivamente, metamorfoseados pelo homem, sempre tendo em vista inculcar, na mentalidade coletiva, objetos desconhecidos aos quais, ao mesmo tempo que se atribui a maior importância, nunca foram examinados acuradamente.
Segundo Holbach, essa foi a trajetória da imaginação em relação às ideias sucessivas que ela engendrou ou que lhe concederam sobre o que seja uma divindade. Na escala das teologias, a primeira foi a que fez com que o homem temesse e adorasse os elementos mais materiais e rústicos. A segunda fez com que ele reverenciasse os supostos agentes que geravam e ordenavam esses elementos, os gênios supremos, os heróis e os homens com maiores qualidades. Refletindo, acreditou poder reduzir todas as coisas a uma inteligência providencial que tivesse o poder de pôr em funcionamento o sistema da natureza e, “remontando de causas em causas, os mortais acabaram por nada ver, e é nessa obscuridade que eles colocaram o seu deus”. (SN, II, i, p. 444; SN, II, ii, i, p. 16).15 Dessa forma, Holbach avança mais na discussão a respeito do que, afinal, seria a ideia de divindade e quando ela é utilizada. A sua definição de tal ideia é pontual: o termo deus é tudo o que há de mais misterioso e de mais contrário aos efeitos sentidos pelos homens e somente é usado quando ainda não é do conhecimento deles o funcionamento das causas naturais:
Se quisermos dar conta das nossas ideias sobre a divindade, seremos obrigados a reconhecer que, pela palavra deus, os homens jamais puderam designar senão a causa mais oculta, mais distante e mais desconhecida dos efeitos que eles viam: eles não fazem uso da palavra a não ser quando o funcionamento das causas naturais e conhecidas deixa de ser visível para eles. A partir do momento que perdem o fio dessas causas, ou a partir do momento que o seu espírito não pode mais seguir a sua cadeia, eles resolvem a dificuldade e terminam suas investigações chamando de deus a última das causas, ou seja, aquela que está além de todas as causas que eles conhecem. Assim, eles nada mais fazem do que consignar uma denominação vaga a uma causa ignorada, na qual a sua preguiça ou os limites dos seus conhecimentos os forçam a se deter. (Ibid., p. 444-445; Ibid., p. 16-17, grifos do autor).16
Flertando com um problema linguístico, a partir do momento em que palavras são usadas para pôr termo a um problema tão complexo como o da origem do sistema da natureza, do arranjo de seus mecanismos e de suas leis e para que fins ela tende, Holbach não vê legitimidade no fato de simplesmente, por não entender as razões de a natureza seguir o seu curso de maneira necessária, recusar-lhe o poder de produzir, por si mesma, efeitos incompreensíveis para o homem, pois não é sinônimo de maior esclarecimento todas as vezes em que se observa certo efeito e não poder depreender daí sua causa, atribuí-la à vontade de um deus, que só proporciona menos ideias do que causas naturais. Mesmo a noção de divindade sendo totalmente inexplicável e inútil do ponto de vista da explicação das relações necessárias entre causa e efeito na natureza, Holbach concebe que os homens, em sua maioria, estão impossibilitados de constituir ideias simples acerca da formação das coisas, de remontar à verdadeira fonte dos eventos que os fazem admirar ou temer e que os fazem acreditar na necessidade da ideia de um agente divino e oculto que engloba todos os fenômenos dos quais é impossível reconhecer as verdadeiras causas.
Logo, os que enveredam por outro caminho explicativo são taxados de insensatos aos olhos dos mais ortodoxos, por entenderem ser dispensável “a necessidade de admitir um agente desconhecido ou uma energia secreta que, por falta de conhecer a natureza, o colocam fora dela mesma”. (SN, II, i, p. 447; SN, II, ii, i, p. 19).17
Segundo Holbach, uma imagem deturpada da natureza e de suas leis se deve ao fato de o homem ter feito de si mesmo o centro de toda a natureza, só podendo “com efeito, julgar as coisas pela maneira como ele próprio é afetado por elas”. (Ibid., p. 447; Ibid., p. 19).18 Ama aquilo que lhe apraz e repudia o que o atormenta, crê que tudo está na mais perfeita ordem quando tudo, supostamente, convenha ao seu modo de existir. Consequentemente, o gênero humano se iludiu ao pensar que a totalidade da natureza convergia para ele, entendendo que seria o objeto último de suas obras ou que as supostas causas divinas da natureza produziam efeitos que o beneficiavam. Desse ponto de vista, tudo em que a natureza favorece o homem é sinônimo de prosperidade, e todos os males são entendidos como uma injustiça. Eis aqui, novamente, o tema do mal: esse, ainda mais do que o bem, foi o que levou à investigação sobre a divindade, as ideias engendradas a seu respeito e a conduta que mantiveram sobre ela. Não foram suficientes a contemplação da natureza e admitir todas as suas benesses para fazer com que fosse necessária uma reflexão acerca da origem de todas as coisas. Mas quando pensou sobre a divindade, na verdade, o homem pensou sobre a causa dos seus próprios males, foi um empreendimento infrutífero, já que tanto seus males como seus bens são igualmente efeitos necessários das causas naturais e não advindos das ficções que inventou para si, que lhe retiraram sua própria maneira de ser e de sentir.
Crendo obstinadamente que a natureza era sua própria imagem, como em um espelho, ele jamais conheceu a natureza em sua totalidade, da qual ele é uma parte ínfima. Para Holbach, tudo isso demonstra que o bem e o mal são modos de ser que dependem inteiramente das causas que afetam, e que um ser sensível, forçosamente, experimenta, e a natureza, por sua vez, é constituída de seres diversos ad infinitum. Da mesma maneira, é necessário um choque entre matérias opostas de modo que ele perturbe a ordem e a maneira de existir dos seres que não têm nada de semelhante com elas e a natureza, por sua vez, agindo através de leis inexoráveis, logo ela “não pode ser considerada boa nem perversa; tudo aquilo que se faz nela é necessário.” (SN, II, i, p. 451; SN, II, ii, i, p. 23).19
A essa necessidade que caracteriza a natureza, Holbach associa o desconhecimento de suas leis imutáveis a certa moral de interesse: uma vez os homens, estando em um bem-estar absoluto, essa ideia tinha pouca importância e influência, já que tudo nela concorria para a tranquilidade. Porém, se sentiam na necessidade de agradecer a um deus imaginário pelos bens concedidos com receio de serem ingratos pela possibilidade de desfrutarem da paz aqui na Terra. E, diante das catástrofes, eles o invocaram com todo temor, implorando que a natureza mudasse o curso das coisas e o modo de agir dos seres, pretendendo que, para erradicar o mal mínimo que os afligia, toda a natureza teria que alterar sua cadeia contínua e suas leis. Sempre descontentes com sua própria sorte e nunca concordando sobre seus desejos, os mortais destinam suas preces mais extravagantes aos deuses. Prostram-se diante de uma entidade imaginária que creem ter o direito e o poder de ordenar à natureza desviar-se de seus caminhos e fins para tornála subserviente de objetivos particulares e fazer os homens conciliarem-se em suas vontades opostas. Faltando ver e pensar a natureza do seu verdadeiro ponto de vista, não é de admirar sempre ver alguém esperando por milagres mesmo que a natureza sempre seja surda aos pedidos dos que a veem como um instrumento de uma divindade. A esse respeito, Holbach arremata:
O doente expirando no seu leito lhe pede que os humores acumulados em seu corpo percam instantaneamente as propriedades que os tornam nocivos ao seu ser, e que por um ato do seu poder o seu deus renove ou crie novamente as engrenagens de uma máquina gasta pelas enfermidades. O cultivador de um terreno úmido e baixo se queixa a ele da abundância das chuvas pelas quais o seu campo está inundado, enquanto o habitante de uma colina elevada lhe agradece pelos seus favores e solicita a continuação daquilo que faz o desespero do seu vizinho. Enfim, cada homem quer um deus unicamente para ele e pede que, em seu favor, segundo as suas fantasias momentâneas e as suas necessidades cambiantes, a essência invariável das coisas seja mudada. (SN, II, i, p. 452-453; SN, II, ii, i, p. 24-25).20