Introdução
Em nosso tempo, a educação e a produção de conhecimento se veem cercados, por um lado, pela lógica da produção capitalista e, por outro, sofrem uma crise de fundamentos referenciais em relação à emancipação na contemporaneidade, sendo que a dispersão dos rumos dessa crise vem demonstrando suas fragilidades na (re)formulação das concepções na pesquisa e na produção da ciência. Dessa forma, objetiva-se refletir sobre a educação em uma época de transformações, avanços científicos, tecnológicos e globalização – sendo essa compreendida por Santos (2002, p. 26) como “[...] um fenômeno multifacetado com dimensões econômicas, sociais, políticas, culturais, religiosas e jurídicas interligadas de modo complexo”.
Nesse sentido, algumas questões se destacam: em nosso contexto, a produção da ciência se torna uma possibilidade ou um obstáculo à emancipação humana? Que limitações e impactos podemos perceber em nossas pesquisas, quando questionados pela imposição das linhas abissais visíveis e invisíveis que produzem discursos e ordenam hierarquias? A partir dessas questões, podemos pensar na necessidade de refletirmos sobre os processos de invisibilidades e ausências da produção do conhecimento latino-americano.
O presente texto trata-se de um ensaio crítico-reflexivo que pretende refletir acerca da educação e dos desafios da ciência e da produção de conhecimento na busca de emancipação. A aproximação com as temáticas problematizadas ocorre por meio da perspectiva teórico-metodológico-dialética, em cujas pretensões de generalização de análise da educação levam-se em conta as múltiplas determinações do fenômeno analisado.
Desse modo, num primeiro momento, fazemos uma análise do livro Educação e emancipação (1995) de Theodor W. Adorno, particularmente, nos textos sobre o tema da barbárie. Como trama de fundo, trazemos uma breve discussão sobre a produção de conhecimento na atualidade para além daquilo que Santos (2007) chama de “pensamento abissal”. Assim, pretende-se pensar a condição da educação na perspectiva de regressão e barbárie, isto é, discutir seus rumos em tempos de regressões políticas e econômicas. Em seguida, indica-se a necessidade de superação do pensamento abissal para se pensar até que ponto a educação ainda serve como recurso fundamental para emancipação e até onde vão seus limites.
Educação em tempos de regressão e barbárie
A condição da educação brasileira, na atualidade, se encontra numa encruzilhada em vista dos rumos que tomará diante de um contexto de incertezas. Na atualidade, a educação brasileira vem sendo atacada por concepções que beiram a obscuridade ou o obscurantismo (ataques, como por exemplo, do projeto “Escola sem Partido”, do possível fim das disciplinas de filosofia e sociologia, para citar alguns deles) que veem a escola ou a universidade como um lugar de “doutrinação esquerdista” ou de “balbúrdia” e repleta de “idiotas úteis”.
A coletânea Erziehung zur Mündigkeit, na tradução brasileira Educação e emancipação,4 foi um projeto de Adorno desenvolvido com Helmut Becker e Gerd Kadelbach, produzida em parceria com a Divisão de Educação e Cultura do Estado de Hessen – Alemanha. “Questões educacionais da atualidade” foram realizadas no período de 1959 a 1969. A coletânea tem o claro objetivo de tratar da educação e de seu posicionamento contra a barbárie que acometeu a Europa e apresentam elementos importantes para se entender a condição da educação na atualidade.
Em Adorno (1995), não é possível ficar longe da controversa problemática do “esclarecimento moderno” na constituição da subjetividade, isto é, excluir a caracterização do conceito de sujeito na perspectiva de análise da crise e da crítica da razão na modernidade. Essa racionalidade instrumental que se perdeu no caminho se empobreceu e não consegue mais voltar a si. Não é apenas com a alienação do sujeito do objeto dominado que é paga a dominação, mas, também, com a “coisificação do espírito” em que as próprias relações dos sujeitos são enfeitiçadas.
O domínio da natureza se desenvolveu no domínio também do ser humano sobre si mesmo, de forma que o triunfo, que seria a superação do mito, do mundo encantado, tornou-se tragédia. Essa é a “rememorização” da própria dominação. Essa dominação alcança os recônditos espaços da subjetividade, escravizando o sujeito, submetendo-o aos caprichos da razão formalizada, calculista e ratificando a lógica do aparelhamento econômico-capitalista. Adorno (1995) vinculou-se intensamente a essas questões, sobretudo, na caracterização crítica da sociedade capitalista e na própria dificuldade de transformação dessa sociedade. Buscou anotar um diagnóstico da progressiva totalização capitalista em todas as esferas da vida, como também do prisma de apreensão da sociedade como socialização produzida em determinadas condições (MAAR, 2004, p. 165).
O sujeito jogado nessa lógica, ao mesmo tempo que busca sua emancipação, sofre as consequências de sua própria aniquilação, isto é, faz com que o sujeito se torne refém de sua própria subjetividade. No dizer de Adorno, “aquilo que a filosofia transcendental exaltou na subjetividade criadora é o cativeiro do sujeito em si, oculto para ele mesmo” (ADORNO, 1995, p. 191). Esse cativeiro subjetivo reproduz o cativeiro social (p. 192). Ou seja, o sujeito aparece e some, é engolido pela “totalização social”.
No interior desse quadro, notemos, por exemplo, a obra Minima Moralia (1993), em que Adorno retrata as condições da vida “danificada” do sujeito nesse “mundo sistêmico” (administrado). Ora, se pensarmos numa das chaves adornianas, a condição do sujeito na era da “totalização social-capitalista”, ou como uma sociedade absolutamente administrada, apresenta-se aí a condição insistente de liquidação do próprio indivíduo e de qualquer forma de alteridade.
Duarte (1997) 5 considera que, na Minima Moralia, Adorno alimenta uma aversão a qualquer tipo de totalização e um desgosto crítico à lógica da racionalidade instrumental. O cerne dessa obra é a denúncia do embrutecimento da razão expressada nas mais simples e complexas condutas cotidianas das pessoas no mundo administrado. Tais condutas revelam a decadência das ações de homens e mulheres absorvidos na relação com todo tipo de “parafernália” tecnificada.
A tecnificação torna, entrementes, precisos e rudes os gestos, e com isso os homens. Ela expulsa das maneiras toda hesitação, toda ponderação, toda civilidade, subordinando-as às exigências intransigentes e como que a-históricas das coisas. Desse modo, desaprende-se a fechar uma porta de maneira silenciosa, cuidadosa e, no entanto, firme. As portas dos carros e das geladeiras são feitas para serem batidas, outras têm a tendência a fechar-se por si mesmas, incentivando, naqueles que entram, o mau costume de não olhar para trás, de ignorar o interior da casa que os acolhe
(ADORNO, 1993, p. 42 apudDUARTE, 1997, p. 149).
Adorno (1995) manifesta sua desconfiança nas promessas não cumpridas do iluminismo, sobretudo, nas promessas em que a produção tecnológica traria civilização e progresso. O caráter de denúncia da situação presente abarca a compreensão de que a tecnificação desmancha, progressivamente, a linha divisória entre cultura e barbárie (DUARTE, 1997, p. 149). Somente uma ascese bárbara contra a cultura de massa e contra o progresso dos meios seria capaz de produzir, de novo, a não barbárie (ADORNO, 1993apudDUARTE, 1997, p. 149).
Retornando ao emblemático caso de Auschwitz, sobre que ensinamentos podemos refletir a partir dessa experiência traumática na condição do Brasil de hoje? Uma primeira tentativa seria realizar o exercício de olhar para o passado, perceber os danos e as ressonâncias desses fatos no presente para projetar um futuro. Ou seja, é preciso estudar os acontecimentos passados, o que Adorno chamaria de “elaboração do passado”, compreendendo que esse passado ainda está muito vivo e próximo de nós.
Elaborar esse passado não significa negar ou minimizar o ocorrido, pelo contrário, trata-se de desmistificar uma suposta culpa das vítimas, e um sentido de correção praticado pelo Estado. Ou seja, são memórias que precisam ser preservadas, feridas que precisam continuar abertas, pois há que se fazer um exercício constante para entender o passado no presente, percebendo os riscos e impactos que ainda ressoam na sociedade atual.
O que representa Auschwitz é a criação de mecanismos pensados, arquitetados para a morte dos presos. Uma chamada burocracia da morte, uma arquitetura pensada sutilmente nos seus mínimos detalhes tanto para mortes rápidas como para mortes lentas, tanto para experiências como para simples humilhação e coação dos presos, mecanismos que garantiam a tortura psicológica e o uso da força em trabalhos forçados. Essa arquitetura da morte, esse requinte de maldade são questões com as quais precisamos nos preocupar, pois só foram possíveis porque pessoas comuns compactuaram e trabalharam para garantir a existência desses mecanismos. O que Adorno (1995) chama de “coisificação da consciência”, entendida também como processo de desumanização do humano, ocorre quando se pensa apenas na técnica de execução, desqualificando a possibilidade de se deixar afetar, ou seja, a perda da capacidade de afecção.
Adorno (1995) chama a atenção aos riscos de novas barbáries como a de Auschwitz que podem voltar a ocorrer, devido a alguns indicativos presentes em nossa sociedade, como, por exemplo, o uso de discursos autoritários, ou mesmo tentativas de homogeneização do pensamento. Insiste sobre o tema, comentando que todo pensamento coletivo, toda homogeneização e massificação do pensamento comportam riscos e representam perigos e recomenda uma educação política e contextual, visando ao esclarecimento, à emancipação, à visão crítica da sociedade e a uma consciência cultural.
A educação orientada pela razão instrumental tem conduzido mais à barbárie do que à emancipação. Adorno (1995) acredita que o papel da educação não é ensinar apenas para a aplicação tecnológica, na ciência, mas também para desenvolver a capacidade de autorreflexão crítica, a fim de evitar que se repitam os horrores ocorridos na guerra, especificamente em Auschwitz. O autor aponta à barbárie como algo inerente ao processo de modernização da sociedade e ao ser humano, tanto em termos sociais como psicológicos. Uma pessoa normal carrega, em si, um fator de não civilização e, dependendo de determinadas condições, pode agir descontroladamente: é o que Freud e Adorno chamam de “anticivilização”.
A respeito de como a educação pode auxiliar na formação de sujeitos, para que esses não sejam capazes de repetir barbáries, Adorno (1995) afirma que a razão e o esclarecimento levariam as pessoas a serem melhores, a desenvolverem uma espécie de humanidade. A educação pelo esclarecimento pode fazer alguma coisa no sentido de modificar a atitude dos que praticam atos bárbaros. O ato de refletir criticamente representa um elemento fundamental na luta pela emancipação. A educação deve possibilitar a compreensão do passado e não deve contribuir para o esquecimento da história, das vidas e dos conhecimentos construídos com suor, sangue e emoção de homens, mulheres e vencidos.
Ao refletir sobre educação e barbárie, podemos citar diversos exemplos que, pela ausência de memória, ou de uma educação emancipadora, permanecem presentes em nossa sociedade, a exemplo do racismo, do feminicídio, das distorções e omissões referentes a barbáries ocorridas, por exemplo, na ditadura militar (1964-1985). Para Adorno (1995, p. 135) “quem ainda insiste em afirmar que o acontecido nem foi tão grave assim já está defendendo o que ocorreu, e sem dúvida, seria capaz de assistir ou colaborar se tudo acontecesse novamente”.
Isso torna possível a seguinte reflexão: enquanto algumas condições objetivas e subjetivas persistirem, a barbárie estará sempre latente, esperando o momento para eclodir. Assim, é preciso “contrapor-se ao poder cego de todos os coletivos, fortalecendo a resistência frente aos mesmos por meio do esclarecimento do problema, da coletivização” (ADORNO, 1995, p. 127). É preciso vislumbrar a reconstrução da educação como um todo, em um projeto que auxilie a pensar a sociedade.
Retomar o pensamento adorniano sobre a educação, nesses tempos de enfrentamentos antiformativos,6 significa mostrar a atualidade e a persistência dos diversos modos de submissão da educação aos limites da regressão e da barbárie generalizada. E isso significa compreender que a formação dos indivíduos, nesse modo, tornou-se intrinsecamente limitada, ou seja, virou semiformação generalizada. Nessa perspectiva, trataremos, aqui, de alguns elementos de como se configura a educação brasileira na atualidade, em tempos de obscuridade e acusada de “balbúrdia” promovida por “idiotas úteis”.7
As reformas educacionais brasileiras não escapam dos critérios mercantis de exigências de eficiência e otimização de recursos. Nesse sentido, as propostas de reformas na educação brasileira, ao serem definidas por esses critérios, legitima-se uma definição das formas educativas próprias à dominação social vigente. Isto é, torna a educação um grande filão de negócios, com um mote lucrativo. E, quando são propostas essas reformas, são atingidas, sobretudo, as áreas de humanidades, limitando as possibilidades de formação e emancipação na produção de conhecimento.
Emancipação na produção de conhecimento para além do pensamento abissal
Identificamos, nas leituras feitas até agora do texto adorniano, até que ponto pode-se conferir possibilidades à educação de uma experiência crítico-formativa, bem como, em que ponto estão seus limites, particularmente, a partir do momento em que identificamos categorias da racionalidade instrumental no âmbito dos processos de produção de conhecimento. Essa postura corrobora os programas ideológicos de grupos dominantes, numa sociedade de mercados capitalistas, e não escapa dos critérios de produtividade.
Ao pensarmos na produção de conhecimento na atualidade, podemos reconhecer que estamos profundamente marcados por uma racionalidade instrumental, a qual está implicada com um modelo positivista. Esse modelo foi, pouco a pouco, sendo transportado para e inserido em um modo de produção filosófico-científico brasileiro, mesclando, resistindo, aceitando, mas dando lugar ao que temos produzido até os dias de hoje.8
Essa continuidade, ou permanência, de uma herança positivista pode ser percebida desde as estruturas curriculares do Ensino Básico aos programas de pós-graduação, que estão permeadas de escolhas e intencionalidades acerca do que deve ser aprendido e ensinado. Nesse sentido, a educação, ao ser definida por esses critérios, para se legitimar, precisa seguir a definição da dominação social. Portanto, a transformação das condições objetivas é sempre colocada como precondição para uma real transformação da subjetividade.
Essas escolhas não são neutras e, automaticamente, excluem outros conhecimentos. São espaços de tensão e disputas, onde sobressaem os discursos mais aceitos, ditos oficiais. Uma trama que possui como elemento de fundo uma disputa epistemológica do que Foucault9 chama de “regimes de verdades”, o que está em jogo são verdades supostamente reconhecidas como conhecimentos científicos e conhecimentos não científicos. Em nome dessa suposta cientificidade, se exclui o conhecimento de civilizações orientais milenares, conhecimentos dos povos ameríndios, dos povos africanos, além de enquadrar o conhecimento popular em um lugar de inferioridade. A exclusividade desse monopólio é o ponto central de toda disputa epistemológica entre ser e não ser científico.
Santos (2007) ajuda-nos a compreender esse jogo de poder, pensando no paradigma da emancipação e regulação. “Durante algum tempo, o paradigma da apropriação/violência parecia chegar ao fim, bem como a divisão abissal entre este lado da linha e o outro lado da linha” (SANTOS, 2007, p. 79). Entretanto, os deslocamentos produzidos nos últimos tempos não foram capazes de dirimir tais profundidades, muito menos corrigir atrocidades cometidas nos últimos séculos. “O pensamento moderno ocidental continua a operar mediante linhas abissais que separam o mundo humano do mundo sub-humano, de tal modo que princípios de humanidade não são postos em causa por práticas desumanas” (SANTOS, 2007, p. 76).
Ao seguirmos esse pensamento, acabamos submersos nesse discurso, colocando, em prática e legitimando essa “linha invisível e abissal”, muitas vezes de forma inconsciente, incorporando, em nossa produção, um discurso dominante. Utilizamos ferramentas conceituais e metodológicas10 formuladas por teóricos europeus, para pensar no contexto latino-americano, para analisar e propor políticas à educação brasileira e à latino-americana.
Qual é o problema que reside nisso? Nenhum e todos! Não há nenhum problema em utilizar autores e discursos europeus para analisar casos e especificidades latino-americanas, desde que se tenha clareza das limitações, e dos riscos de se produzir um estudo de “encaixes” teóricos.
É necessário ter entendimento sobre o uso que se faz, para não correr o risco de apenas transpor conceitos que, na prática, não se aplicam. Ao mesmo tempo, ao dar visibilidade a certas teorias, acabamos colocando outras na invisibilidade. “Refiro-me aos conhecimentos populares, leigos, plebeus ou indígenas do outro lado da linha, que desaparecem como conhecimentos relevantes ou comensuráveis por se encontrarem para além do universo do verdadeiro e do falso” (SANTOS, 2007, p. 73).
Santos (2007) denuncia a ausência de um debate nos sistemas educativos, sobre quais são os conhecimentos e como são produzidos os saberes da ciência, da experiência humana, quais são os interesses dessa visão de realidade, refletindo sobre o pensamento hegemônico e as possibilidades de um multiculturalismo. Para ele “o pensamento pós-abissal parte da ideia de que a diversidade do mundo é inesgotável, e que esta diversidade continua desprovida de uma epistemologia adequada. Por outras palavras, a diversidade epistemológica do mundo continua por construir” (SANTOS, 2009, p. 84).
Assim, o pensamento pós-abissal surge do entendimento da diversidade do mundo, uma diversidade inesgotável, que carece de reconhecimento e demarcação dessa epistemologia, do reconhecimento de que essa epistemologia não é derivativa do pensamento ocidental-europeu, mas que emerge das vastas produções sob uma nova ótica de pensar. Tais questões implicam pensar que nossas escolhas não são neutras, mas que se inserem em campos de disputa entre visibilidade e invisibilidade, como indica Meksenas (2002, p. 102): “[...] a opção por um método do conhecimento é sempre uma escolha política e ética: aceito um e descarto outro de acordo com minhas convicções, situadas em contextos históricos”.
Os conhecimentos dos “silenciados”, geralmente, estão fora dos sistemas educacionais. Em uma sociedade de classes desiguais, é necessário assumir uma postura crítica e refletir sobre a escolarização acerca das culturas historicamente excluídas. As heranças históricas do colonialismo, da escravidão e do imperialismo cultural teceram, na educação brasileira, consensos relativos ao currículo, privilegiando métodos, formas de organização e conhecimentos da ciência como única possibilidade de ensino. De acordo com Meksenas e Carminati (2008, p. 143), nas práticas relacionadas ao processo de produção de conhecimento, “é fundamental a construção de espaços com relações baseadas em princípios éticos e democráticos, a fim de que se possam questionar os métodos e valores burgueses da sociedade capitalista”.
Santos (2007) critica o pensamento único e afirma que devem ser considerados e incorporados os conhecimentos plurais, além do conhecimento científico, que é tomado como verdade absoluta. “As epistemologias do sul” – metáfora que o autor utiliza para significar pessoas, grupos sociais que tenham sido excluídos ou silenciados – considerados senso comum, percebam o seu valor para produzir conhecimentos significativos. Acerca do senso comum, é um conhecimento portador de valores, explicações, orientação da ação e projeções cognitivas associadas às práticas dos indivíduos na vida.
Acerca do senso comum, é um “conhecimento portador de valores, explicações, orientação da ação e projeções cognitivas associadas às práticas dos indivíduos na vida comum, [que] orienta nosso estar no mundo e o nosso estar com os outros” (MEKSENAS; CARMINATI, 2008, p. 145-146), sem contar a “riqueza dos conhecimentos que lograram preservar modos de vida, universos simbólicos e informações vitais para a sobrevivência em ambientes hostis com base exclusivamente na tradição oral” (SANTOS, 2007, p. 88).
A ciência moderna deve estabelecer relações com outros tipos de conhecimento e criar essa espécie de epistemologia, cuja base é uma pluralidade de conhecimentos que se cruzam entre si. Assim, “é preciso um novo pensamento, um pensamento pós-abissal, que confronte a monocultura da ciência moderna com uma ecologia de saberes” (SANTOS, 2007, p. 83). Santos (2007) afirma que, por meio de uma epistemologia nova e da pluralidade de conhecimentos, é possível vislumbrar a ecologia dos saberes: a ecologia de todo conhecimento que foi silenciado ao longo dos anos.
Na ecologia de saberes, a busca de credibilidade para os conhecimentos não-científicos não implica o descrédito do conhecimento científico. Implica simplesmente a sua utilização contra-hegemônica. Trata-se, por um lado, de explorar a pluralidade interna da ciência, isto é, as práticas científicas alternativas que têm se tornado visíveis por meio das epistemologias feministas e pós-coloniais, e, por outro lado, de promover a interação e a interdependência entre os saberes científicos e outros saberes, não-científicos
(SANTOS, 2007, p. 87).
Nesse sentido, o pensamento pós-abissal de Santos (2007) entende que a diversidade do mundo é inesgotável e que continua desprovida de uma epistemologia adequada. É necessário reconhecer que há diversas perspectivas diferentes para se olhar o passado. Dessa forma, “as epistemologias do sul” valorizam os conhecimentos a partir da luta social, da resistência, uma vez que, com o passar do tempo, mesclam os pensamentos, mas a disparidade entre sul e norte continua existindo.
A ciência, desde muito tempo, é vista como a única forma válida de conhecimento. Santos (2007, p. 88) adverte que “há outros modos de intervenção no real que hoje nos são valiosos e para os quais a ciência moderna em nada contribuiu” e, ao contrário, são ameaçados pela crescente intervenção da ciência moderna como é o caso, por exemplo, “da preservação da biodiversidade possibilitada por formas de conhecimento camponesas e indígenas” (SANTOS, 2007, p. 88).
O pensamento moderno-ocidental-abissal consiste em um sistema de distinções visíveis e invisíveis: as invisíveis são estabelecidas por meio de linhas radicais que dividem a realidade social em dois universos, isto é, o “deste lado da linha” e o “do outro lado da linha”, sendo esse inexistente (SANTOS, 2007). O outro lado da linha abissal é um universo que se estende para além da legalidade e da ilegalidade, da verdade e da falsidade. Juntas, essas formas de negação radical produzem uma ausência radical: a ausência de humanidade, a subumanidade moderna.
Considerações finais
A intenção deste ensaio foi mostrar a atualidade e a persistência dos diversos modos de submissão da educação aos limites da razão instrumental, bem como compreender aquilo que Boaventura Sousa Santos chamou de “pensamento abissal”. E o que isso significou? Significou compreender que a educação, nesse modo, tornou-se intrinsecamente limitada. Nosso estudo se propôs, a partir desse ponto, refletir sobre a condição da educação, colocando em evidência a crítica às posturas reducionistas que limitam a emancipação humana.
Com o advento das tecnologias e por meio da ciência, desenvolveram-se várias inovações e recursos tecnológicos que encurtaram distâncias, facilitaram o acesso às informações e tornaram a produção mais eficiente. Entretanto, apesar de tantos avanços, da quantidade e da velocidade de informações, as pessoas não se tornaram emancipadas. Não se questionam, aqui, as intervenções e a produtividade propiciadas pela ciência, porém é preciso que se reconheçam essas intervenções propiciadas por outras formas de conhecimento.
Desse modo, a educação orientada pela razão instrumental tem conduzido mais a barbáries do que à emancipação. Por um lado, Adorno (1995) acredita que o papel da educação não é ensinar apenas para a aplicação tecnológica, na ciência, mas também para desenvolver a capacidade de autorreflexão crítica, a fim de evitar que se repitam os horrores ocorridos na guerra, especificamente em Auschwitz. Assim, a exclusão se torna, simultaneamente, radical e inexistente, uma vez que seres sub-humanos não são considerados sequer candidatos à inclusão social. A humanidade moderna não se concebe sem uma sub-humanidade moderna.
Nesse sentido, por outro lado, Santos (2007) questiona: Qual seria o impacto de uma concepção de conhecimento pós-abissal (como uma ecologia de saberes) sobre as instituições educativas? De antemão, o autor afirma que não há respostas definitivas, mas a tentativa de dar tais respostas é a única forma de confrontar essa versão capciosa do pensamento abissal. Assim, uma proposta inclusiva e emancipatória é a abertura aos saberes da experiência, dando visibilidade e voz aos valores e às representações estéticas dos diversos grupos, cujas vozes, geralmente, são excluídas e silenciadas, nos sistemas educativos, colocando-se em diálogo com a ciência e (re) conhecendo as culturas que foram excluídas ao longo dos séculos.
Isso torna possível a seguinte reflexão: enquanto algumas condições objetivas e subjetivas persistirem, a barbárie estará sempre latente, esperando o momento para eclodir. Assim, é preciso contrapor-se ao poder cego de todos os coletivos, fortalecendo a resistência diante dos mesmos por meio do esclarecimento do problema. A busca por uma racionalidade crítica, na produção do conhecimento, passa por tensões e fraturas da própria condição humana no capitalismo contemporâneo. Mas isso não quer dizer, necessariamente, que se tenha que abandonar a própria razão, para dispor de uma condição adequada de vida humana para além do pensamento abissal.