Contextualizando a questão
Do ponto de vista legal, a integração da Educação Infantil à Educação Básica foi formalizada com a aprovação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN), Lei n. 9.394/1996. Porém, em termos concretos de garantia de acesso com qualidade, atendendo às especificidades de todas as crianças e de suas infâncias, aspectos que consideramos fundamentais para sua consolidação, o País ainda apresenta oferta desigual na relação entre as classes sociais, entre a população branca e a negra, entre a população urbana e a rural e entre os grupos de diferentes idades dentro da faixa de 0 a 5 anos, como evidenciado nos estudos de Rosemberg (2012) e nos relatórios de monitoramento do atual Plano Nacional de Educação (PNE) divulgados pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Anísio Teixeira (INEP, 2016, 2018, 2020).
Com o objetivo de colocar em evidência a importância e a possibilidade de ações que fortaleçam a identidade da Educação Infantil, nas políticas públicas implementadas em âmbito local, colocamos em destaque, neste artigo, a Base Nacional Comum Curricular para a Educação Infantil (BNCC-EI). Em dezembro de 2017, foi publicado pelo Ministério da Educação (MEC) o documento final dessa base para as duas primeiras etapas da Educação Básica, implicando, desde então, em desdobramentos diversos em termos de políticas educacionais nos Estados e Municípios. Dentre esses, citamos a construção de documentos com orientações curriculares estaduais ou municipais; a (re)organização de documentos orientadores no âmbito da gestão dos sistemas de ensino; a seleção de materiais didáticos, bem como a reconstrução de propostas pedagógicas visando a adequar as práticas educativas em espaços voltados ao atendimento de crianças de até 6 anos a nova norma.3
Além desses efeitos, há outros que estão determinados, ou já em curso, tais como: aqueles ligados aos processos de organização curricular dos cursos de formação de professores; adequação de cursos e de programas voltados à formação continuada de docentes; e, ainda, repercussões em relação à correlação entre as novas competências e os objetivos definidos na base e as matrizes de avaliação da Educação Básica em todas as esferas de governo, sem falar nas atualizações já em andamento nos produtos do mundo empresarial que orbita no entorno dos sistemas educacionais.
Nos interessa destacar, no escopo deste artigo, o papel da gestão municipal, pois, no caso daqueles Municípios com sistemas próprios de ensino, esses têm a responsabilidade legal de “[...] autorizar, credenciar a supervisionar [...]” (BRASIL/LDBEN n. 9.394/1996, art. 11) as instituições da rede pública municipal onde ocorrer a oferta de Educação Infantil, bem como as escolas privadas onde existir a oferta de Educação Infantil de maneira exclusiva, sendo relevante o papel das Secretarias Municipais de Educação, instâncias de administração dos seus sistemas.4
A metodologia contemplou análise documental, com destaque ao ordenamento legal vigente e documentos normatizadores e/ou orientadores do MEC e do Conselho Nacional de Educação (CNE) produzidos em anos recentes, com papel indutor em relação a políticas curriculares, tanto em nível de instituições de Educação Básica, como de Ensino Superior. Para tanto, apoiamo-nos em Evangelista e Shiroma (2014), entendendo que leis e normas evidenciam as concepções que subjazem às políticas adotadas; nesse sentido, cabe analisar o conteúdo e a maneira como algumas políticas pretendem (e podem) repercutir na organização e gestão da Educação Infantil, como uma consequência de essa constituir-se como primeira etapa da Educação Básica na atual LDBEN.
Sistematizando o momento atual do País em termos de políticas educacionais com implicações para a organização curricular, selecionamos um diálogo com a BNCC-EI: a) a Política Nacional de Alfabetização (PNA, 2019), publicada no Decreto n. 9.765/2019; b) a proposta para o Sistema de Avaliação da Educação Básica – documentos de referência (2018) e a Portaria do MEC n. 458/2020, que institui normas complementares ao cumprimento da Política Nacional de Avaliação da Educação Básica; e c) a Base Nacional Comum para Formação de Professores da Educação Básica (2019), por entendermos que tais políticas guardam relações entre si quanto aos objetivos, estratégias, sujeitos envolvidos ou excluídos em seus processos de elaboração, bem como quanto a possíveis efeitos a partir da articulação entre seus conteúdos. Entendemos que, a depender dos encaminhamentos para a implementação de cada uma delas e de todas em conjunto, tanto no nível macro quanto naquele das políticas locais, poderão ser efetivados prejuízos à consolidação da identidade da Educação Infantil como integrante da Educação Básica, desrespeitando suas especificidades.
Cabe, aqui, distinguir, de maneira breve, que essas quatro políticas colocadas por nós em inter-relação foram originadas, elaboradas e/ou aprovadas em diferentes gestões do Governo Federal, ainda que todas se situem em um passado recente. Embora tenham havido movimentos anteriores, principalmente a partir de 2010,5 a construção de um documento concernente a uma BNCC iniciou em 2014, na primeira gestão da presidente Dilma Rousseff e teve seu processo desenvolvido na segunda gestão, contando com a publicização e discussão de suas versões iniciais, até o Golpe de 2016, o qual levou ao impeachment da então presidente. A terceira versão da BNCC foi construída durante o Governo de Michel Temer, com discussão conduzida pelo CNE, sendo que sua versão final foi publicada em dezembro de 2017.
As matrizes de referência para o Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica foram publicadas em 2018, evidenciando alinhamento com o conteúdo da BNCC, sendo apresentadas pelo INEP como resultantes de um processo longo de estudos, entre 2015 e 2016, que considerou desde as versões iniciais da BNCC, tendo havido, também, consultoria de especialistas da área da Educação Infantil em momentos específicos dessa construção. Ressaltando a adequação do Sistema de Avaliação da Educação Básica à BNCC, em 2018, o Inep publicou um caderno intitulado Sistema de Avaliação da Educação Básica. Documentos de Referência, versão 1.0, com matrizes de referência para elaboração de testes cognitivos e questionários a serem aplicados no Ensino Fundamental.
A PNA foi construída e apresentada pelo Governo Bolsonaro, em 2019, a partir da publicação do Decreto n. 9.765, de 11 de abril de 2019, citando como objetivo central a necessidade de qualificar processos de alfabetização no Brasil e seus resultados (BRASIL/MEC/SEALF, 2019). Um documento de mesmo nome, de 54 páginas, lançado ainda em 2019, argumenta sobre a necessidade de tal política para o País, apoiado em dados estatísticos de desempenho insatisfatório de estudantes brasileiros na Avaliação Nacional da Alfabetização (ANA), no Programa Internacional de Avaliação dos Estudantes (Pisa), realizado pela Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), a partir dos resultados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), em relação ao analfabetismo entre a população de jovens e adultos e, ainda, do Indicador de Alfabetismo Funcional (Inaf), divulgado pelo Instituto Paulo Montenegro. No documento, está claramente indicada a necessidade de alcance de padrões previstos na BNCC.
Há algumas décadas, vivemos, no Brasil, um contexto de disputa pelo fundo público e pelo conteúdo da política educacional, no qual ganham espaço grupos de interesse mercantil, que vem se aproximando das instâncias oficiais de gestão das políticas educacionais brasileiras nas três esferas de governo. Tais grupos e empresas a eles vinculados ofertam serviços e produtos, apregoando vantagens da aplicação de modelos de viés gerencialista, calcados em padronização curricular e avaliação em larga escala, como ferramentas para garantir “eficiência e resultados” paraa educação pública (PERONI; ADRIÃO, 2018; AVELAR; BALL, 2017). Nos últimos anos, especialmente a partir da obrigatoriedade de matrícula na pré-escola, esses grupos vêm trabalhando na disseminação de propostas voltadas à Educação Infantil (PERONI; FLORES, 2018).
No cenário atual, em face das crises sanitária e econômica mundiais instaladas no ano de 2020,6 configura-se no Brasil uma correlação de forças políticas muito desfavorável aos investimentos públicos necessários à garantia do direito educacional para todas as crianças brasileiras que frequentamescolas públicas (CAMPANHA NACIONAL PELO DIREITO À EDUCAÇÃO, 2020; FINEDUCA, 2020). Mas, ainda que estejamos em um contexto adverso, e justamente em razão desse, argumentamos no sentido de que o estudo do material referente à base pelas instituições de Educação Infantil, em espaços voltados à formação continuada, desde uma abordagem participativa de (re)construção de currículos contextualizada a cada realidade, pode levar à efetivação de práticas cotidianas em consonância com a identidade da etapa, definida nas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil (DCNEI), estabelecidas pela Resolução CNE/CEB n. 5/2009, amparada no Parecer CNE/CEB n. 20/2009, servindo de contraponto ao proposto nas novas políticas.
Visando a desenvolver nosso objetivo, o artigo encontra-se dividido em duas seções: a primeira está voltada a abordar aspectos relevantes das conquistas legais e avanços no acesso à Educação Infantil. Na medida em que contextualizamos a trajetória de inserção da etapa nas políticas educacionais para a Educação Básica, evidenciam-se, no horizonte, alguns direitos recém-conquistados e ainda em fase de consolidação, que já se encontram em risco.
Na segunda seção, aprofundamos aspectos do processo de construção da BNCC-EI, enfatizando movimentos, sujeitos e conteúdos relativos às várias versões, configurando-se a versão final do documento na materialização de um complexo conjunto de avanços e retrocessos. Por fim, nas Considerações Finais, retomando as evidências de risco anunciadas, enfatizamos a possibilidade e a necessidade de que cada escola/rede/comunidade se aproprie dos processos de (re)reconstrução do currículo das instituições de educação coletiva de crianças de até 6 anos, em contextos formativos em serviço, nos quais a demanda pela implementação da BNCC-EI possa servir de espaço/tempo para a construção de uma Educação Infantil de mais qualidade para todos.
Alguns avanços e desafios para a consolidação da identidade da Educação Infantil
É importante considerar que o direito à educação para crianças bem pequenas foi uma conquista recente; positivada na Constituição Federal de 1988 (CF/88) como direito das crianças de 0 a 6 anos a atendimento e, também, como direito social de trabalhadores urbanos e rurais “[...] à assistência gratuita aos filhos e dependentes desde o nascimento até os seis anos de idade em creches e pré-escolas” (BRASIL, CF/88, art. 7º, Inc. XXV; art. 208, Inc. IV).
Incorporada à Educação Básica, nível e conceito novos apresentados na atual LDBEN, gradualmente, a Educação Infantil, subdividida nos grupos etários creche (0 a 3 anos) e pré-escola (4 e 5 anos),7 possui vários indicadores que demonstram que a etapa vem sendo reconhecida e legitimada no campo da educação. Sua inclusão em documentos legais importantes, como as leis que criaram o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb), em 2007, o primeiro PNE aprovado por lei, em 2001, assim como o plano atual, aprovado pela Lei n. 13.0005/2014. Cury (2008) destaca que a definição de uma “Educação Básica”, surgida no contexto brasileiro, em 1996, implicaria uma mudança de quadro de referências, envolvendo, pelo menos, três aspectos: um conceitual; um concernente ao direito educacional em si; e outro referente à organização da oferta de educação nacional para as três etapas que a compõem.
Sendo assim, o fato de que a Educação Infantil, o Ensino Fundamental e o Ensino Médio se encontrem articulados entre si, em caráter de progressividade, não reduz a diversidade e especificidade próprias a cada uma das etapas, haja vista, por exemplo, que, à época de aprovação da LDBEN, apenas o Ensino Fundamental com oito anos de duração era obrigatório, e que a designação ensino não foi utilizada para a Educação Infantil, pressupondo, desde então, um reconhecimento das particularidades inerentes aos processos educacionais em cada fase da vida humana.
Ao mesmo tempo que a inserção da Educação Infantil na CF/88, na LDBEN, na Lei do Fundeb e nos últimos dois PNEs são marcos reconhecidos como positivos na medida em que promovem igual status entre as três etapas da Educação Básica, outros processos e mudanças legais, que alteraram a organização da Educação Básica e da educação obrigatória, são alvo de questionamento e podem ser vistos como ameaça à consolidação de um direito arduamente conquistado para as crianças pequenas. Nesse sentido, há visões favoráveis e outras contrárias, por exemplo, à ampliação do Ensino Fundamental para nove anos de duração, determinada em 2006, que implicou o ingresso de crianças de 6 anos de idade no primeiro ano, reduzindo a faixa etária da pré-escola com o argumento de que seria implementado um novo Ensino Fundamental a partir do ano seguinte.8
Outra mudança polêmica foi derivada da Emenda Constitucional n. 59/2009, que alterou novamente a obrigatoriedade de matrícula escolar, vinculando-a à faixa etária dos 4 aos 17 anos. Se, por um lado, tal determinação pode ser considerada como um avanço do ponto de vista de acesso, pois trazia consigo a perspectiva de universalização do atendimento à faixa etária de 4 e 5 anos, por outro, muitos pesquisadores apontaram os riscos de uma cisão na etapa e, ainda, de retrocessos no atendimento às crianças de até 3 anos (CAMPOS, 2010).
O Brasil ainda precisa avançar no sentido de redução da desigualdade no acesso, que penaliza crianças de grupos sociais mais vulneráveis, de origem étnico-racial afrodescendente ou do meio rural, especialmente aqueles da faixa etária de até 3 anos (ROSEMBERG, 2012, 2014; BRASIL/INEP, 2020). Espaços inadequados, banheiros não adaptados, inexistência de parques ou de brinquedos em número suficiente são dados evidenciados pelo Censo Educacional, demonstrando, também, abismos de desigualdade entre ricos e pobres e entre crianças que frequentam creche ou pré-escola (GOMES, 2017).
Quando do início das discussões para organização de uma BNCC, um dos argumentos favoráveis à inclusão da Educação Infantil foi a possibilidade de que esse documento pudesse se configurar como mais uma normativa para fortalecer o reconhecimento dessa etapa educativa como parte da Educação Básica, desde que garantidas suas especificidades e condições de oferta.
Porém, como a construção efetiva de tal documento se deu em um tenso momento de disputa entre projetos de sociedade (AGUIAR; DOURADO, 2018), a inclusão da Educação Infantil na BNCC colocou polêmica para a área, especialmente, em relação à subetapa creche, cujo caráter de não obrigatoriedade constituía um respaldo para que esse grupo etário ficasse de fora de uma política que, com o passar dos anos, foi se amalgamando a outras políticas de forte sentido regulador, em termos de predefinições curriculares, avaliações nacionais e de responsabilização de docentes (ANPED, 2015; ADRIÃO; PERONI, 2018).
Um dos argumentos contrários à inclusão da Educação Infantil na BNCC estava relacionado à possível disseminação de modelos de avaliação em larga escala, aplicados aos Ensinos Fundamental e Médio, os quais, em grande medida, se apoiam em currículos padronizados, engessando as práticas escolares e sobrevalorizando alguns conteúdos em relação a outros, desconsiderando aspectos de contexto local, os desafios à gestão e as próprias condições de infraestrutura escolar (ALMEIDA; DALBEN; FREITAS, 2007).
O risco de inclusão da Educação Infantil em propostas de avaliação classificatórias focadas apenas no desempenho das crianças pautou, de maneira intensa, discussões da área (ROSEMBERG, 2013; SOUZA, 2014), sendo produzidos textos e documentos tematizando as especificidades da avaliação dessa etapa (FLORES; ALBUQUERQUE, 2018; RIBEIRO, 2015), a qual não se encontra centrada na avaliação do desempenho de bebês e de crianças pequenas.9 A proposta de uma política nacional de avaliação da etapa e de uma sistemática que colocassem em foco as condições de oferta, utilizando-se, em parte, de dados já existentes a partir da coleta do Censo Educacional do Inep, é apresentada em projetos e documentos do MEC (BRASIL/MEC, 2012, 2015).
Sem desconsiderar a importância de todos os aspectos da infraestrutura necessários a uma oferta adequada de educação para crianças de até 6 anos, no âmbito da análise que aqui propomos, queremos enfatizar elementos fundamentais vinculados à valorização dos profissionais, considerando a formação inicial, o plano de carreira, as condições de trabalho, e a remuneração (DOURADO, 2016). Por entendermos ser de fundamental relevância o trabalho realizado por profissionais da educação, cabe, aqui, destacar que “Profissionais da Educação Infantil” era uma das seis dimensões de avaliação da qualidade propostas na Avaliação Nacional da Educação Infantil (Anei), integrante do Sistema de Avaliação da Educação Básica (Sinaeb) previsto no atual PNE.10
Diversos estudos evidenciam um descompasso quanto às condições da formação inicial; ao reconhecimento; à carreira e ao salário entre profissionais da Educação Infantil e aqueles dos anos iniciais do Ensino Fundamental, a despeito das determinações legais constantes na LDBEN e na Lei n. 11.738/2008, conhecida como a “Lei do Piso”. E, além dessa diferenciação, dentro dos próprios espaços de Educação Infantil, encontramos diferentes profissionais, com cargos, atribuições, carga horária, condições de trabalho e salário desiguais, sendo, em certos casos, responsáveis por funções semelhantes com as crianças (KRAMER, 2011). Atualmente, a Educação Infantil integra, oficialmente, o novo Sistema de Avaliação da Educação Básica (SAEB), conforme proposta divulgada no documento Sistema de Avaliação da Educação Básica: documentos de referência – versão 1.0 (BRASIL/MEC/INEP/DAEB, 2018). O material prevê aplicação de instrumentos a responsáveis por Secretarias de Educação, gestores escolares e docentes tanto de instituições públicas quanto daquelas conveniadas. Apesar de indicar que não está prevista a aplicação de testes individualizados e de base cognitiva diretamente com as crianças da Educação Infantil, o documento faz referência a conhecimentos determinados na BNCC-EI que poderiam ser incluídos, por exemplo, na Matriz de Referência para a avaliação de Matemática nos anos iniciais do Ensino Fundamental, remetendo à ideia de uma sequenciação de conteúdos desde a Educação Infantil.
No Eixo Ensino e Aprendizagem, que envolve os temas Currículo e Práticas Pedagógicas, o documento do Inep (2018) afirma a pretensão de medir como os currículos para os ensinos Fundamental e Médio “[...] estão sendo construídos nas escolas e como eles vêm sendo utilizados pelos professores [...]”, destacando a necessidade de adaptações para cada etapa, inclusive, considerando a “[...] especificidade da Educação Infantil, etapa em que as aprendizagens não são medidas” (BRASIL/INEP, 2018, p. 29). Em relação à avaliação do alcance de objetivos relativos ao Ensino Fundamental, o documento é claro:
Considerando o necessário alinhamento entre as Matrizes de Referência e a atual BNCC, e observada a determinação exarada pelo CNE, por meio da Resolução nº 2/2017, do prazo de um ano para essa atividade, a Daeb dedicou-se à produção de Matrizes de Referência alinhadas à BNCC, ao longo de 2018, para orientar os testes que compõem o Saeb nas etapas do 2º, 5º e 9º anos do Ensino Fundamental
(BRASIL/INEP, 2018, p. 10).
Em 5 de maio de 2020, o ministro da Educação assinou a Portaria n. 458, que institui normas complementares ao cumprimento da Política Nacional de Avaliação da Educação Básica, a qual, em seu art. 8º, ratificando o papel que já vinha sendo dado à BNCC, determina que o Saeb passará a ser realizado anualmente, com caráter censitário, incluindo todas as etapas: “[...] tendo como objetivo aferir o domínio das competências e das habilidades esperadas ao longo da Educação Básica, de acordo com a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e as correspondentes diretrizes curriculares nacionais” (BRASIL, Portaria n. 458/2020, art. 8º).11
Outra política que passa a considerar e em papel de destaque a primeira etapa da Educação Básica é a Política Nacional de Alfabetização (BRASIL/ MEC, 2019), instituída pelo Decreto n. 9.765/2019. Apresentada como “[...] um esforço do Ministério da Educação para melhorar os processos de alfabetização no Brasil e os seus resultados” (BRASIL/MEC, 2019, p. 7), a proposta se diz apoiada nas ciências cognitivas, especialmente na ciência cognitiva da leitura, que “[...] apresenta um conjunto vigoroso de evidências sobre como as pessoas aprendem a ler e a escrever e indica os caminhos mais eficazes para o ensino da leitura e da escrita” (BRASIL/ MEC, 2019, p. 7).12 As críticas a essa proposta questionam seu foco em um único campo da ciência e a desconsideração para com a produção teórica sobre o tema existente no País.13 Além disso, o documento da política coloca forte acento em práticas e habilidades preditoras de sucesso nos processos de alfabetização, as quais precisariam ser estimuladas durante a Educação Infantil, sendo claramente explicitada a correlação entre os processos a serem desenvolvidos antes para o alcance de padrões previstos para o Ensino Fundamental na BNCC:
Em 2017, foi homologada a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), um normativo para os currículos das escolas públicas e privadas que propõe conteúdos mínimos para cada etapa da escolarização (BRASIL, 2017). Conforme a BNCC, espera-se que a criança seja alfabetizada no 1º e 2º anos do Ensino Funda mental, processo que será complementado por outro, a partir do 3º ano, denominado “ortografização”
(BRASIL/MEC/SEALF, 2019, p. 14).
Por sua vez, o decreto que institui a PNA, também é claro quanto às implicações decorrentes da Política para a Educação Infantil, ao afirmar, em seu art. 8º: “A Política Nacional de Alfabetização será implementada por meio de programas, ações e instrumentos que incluam: I – orientações curriculares e metas claras e objetivas para a Educação Infantil e para os anos iniciais do Ensino Fundamental; [...] (BRASIL, 2019).
No sentido de contrapor argumentos a essa antecipação de responsabilidades para a etapa anterior, a Carta Aberta da Associação Brasileira de Alfabetização (Abalf) destacou a necessidade de “fortalecimento da identidade da Educação Infantil, compreendida como etapa que contribui para o processo de apropriação da linguagem escrita pelas crianças, sem que isso signifique estar submetida aos objetivos de alfabetização próprios do Ensino Fundamental” (ABALF, 2019).
No que tange às relações construídas entre as definições curriculares para as crianças e os processos voltados à formação de profissionais, o Parecer CNE/CP n. 22/2019, aprovado em 7 de novembro de 2019, trata das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação Inicial de Professores para a Educação Básica e institui a Base Nacional Comum para a formação, conhecida como a “BNC da Formação”. A instituição de novas diretrizes para a Formação de Professores da Educação Básica se deu em um processo acelerado e centralizado, fortemente questionado pelas entidades da área, desconsiderando a representatividade da Resolução n. 02/2015 para a área, dado o seu processo de discussão e produção, sendo que essa norma ainda se encontrava em etapa final de implementação pelas Instituições de Ensino Superior que atuam com a formação de docentes e finalizavam revisões de currículos de suas licenciaturas. Sobre o conteúdo do novo parecer, que aponta para um alinhamento com a BNCC, Freitas destaca:
[...] tal proposta em seu conteúdo, concepção e forma, responde exclusivamente aos interesses do setor privado na sua lógica empresarial de padronizar os currículos de escolas e de universidades para avaliar estudantes e professores em provas nacionais censitárias; premiar e punir escolas a partir dos resultados dos exames, reduzindo a defesa da qualidade da educação aos resultados nas provas nacionais e. escancarando ainda mais as portas para processos de privatização da educação e da escola públicas via vouchers e entrega de escolas à gestão privada de Organizações Sociais
(2019, s/p., grifos da autora).
Para Santos a proposição do novo documento consideraria que uma simples reformulação no currículo dos cursos voltados à formação de professores poderia garantir uma formação mais qualificada:
O equívoco aqui é duplo, porque parte do pressuposto de que todos os cursos mudariam seus currículos de acordo com essa proposta, ignorando as tradições e experiências acumuladas por cada instituição e as diferentes transformações e mudanças que sofre um texto quando interpretado e adaptado à realidade local. O outro equívoco é pensar que teremos professores bem preparados sem alterações nas condições de trabalho e na valorização salarial e social do magistério
(2019, s/p).
Resgatando o histórico do Movimento Nacional de Formação da Educação, que cunha a expressão “base comum nacional”, em 1980, em um contexto político de luta pela redemocratização do Brasil, Albino e Silva (2019) evidenciam as diferentes interpretações ligadas à expressão ao longo das últimas décadas, na medida em que o conceito de qualificação foi reduzido à noção de competências no texto da Proposta da Base Nacional de Formação Professores, com uma correspondência explícita na BNCC para a Educação Básica, como exemplifica o trecho, a seguir, do parecer:
As 800 horas (oitocentas) horas – parte comum – devem ser realizadas a partir da integração das três dimensões: conhecimento, prática e engajamento profissionais, como organizadoras do currículo e dos conteúdos, segundo as competências e habilidades da BNCC da Educação Básica para as etapas da Educação Infantil, do Ensino Fundamental e do Ensino Médio
(BRASIL/Parecer CNE/CP n. 22/2019).
Desde o início das discussões sobre a elaboração de uma BNCC para o Brasil, os debates foram polarizados entre defensores e opositores. Dentre os argumentos contrários, podemos identificar dois posicionamentos principais: um deles versa sobre a própria (in)adequação da existência de um documento com tal teor de especificidade curricular para um País continental como o nosso. Abordando os deslocamentos que sofre a dicotomia presente no discurso acadêmico, a qual contrapõe conhecimento para fazer algo e conhecimento em si, quando as expressões são colocadas a serviço da defesa de uma BNCC, Macedo (2016) evidencia o movimento crescente de produção de textos de política curricular no Brasil que “[...] têm produzido demandas por uma base curricular comum [...]” (MACEDO, 2016, p. 46) entre 1996 e 2015. A autora (2016) questiona os argumentos que sustentam a defesa da BNCC para os Ensinos Fundamental e Médio no País, na medida em que pretendem importar, de forma acrítica, propostas internacionais vistas como bem-sucedidas, desconsiderando, justamente, as particularidades que podem explicar seu sucesso. Contrapondo a visão de uma “completa inadequação” de uma BNCC, podemos destacar que o texto da primeira versão da BNCC conseguiu superar a visão eurocêntrica no campo da história e literatura, da língua como gramática e da Educação Infantil como preparatória.
No Brasil, desde a promulgação da Constituição Federal de 1988 (CF/88), alguma forma de definição curricular já estava posta para os Ensinos Fundamental e Médio, a partir da política dos livros didáticos, monopólio de grandes empresas do ramo editorial. As culturas de aquisição de sistemas de apostilamento e de sistemas de avaliação são outras faces da definição de currículos que se espalham pelo território nacional, inclusivena Educação Infantil (NASCIMENTO, 2012; CORREA; ADRIÃO, 2014; BARBOSA, GOBATTO; BROILO, 2018; BROILO; BARBOSA; GOBATTO, 2019). O poder que já existia nas mãos dessas empresas e que tende a se concentrar ainda mais a partir da base é, realmente, um tema fundamental a ser colocado em debate público.14
Outro conjunto de questionamentos à construção de uma BNCC apontava na direção da participação e de eventuais usos de tal processo por representantes de grupos empresariais, interessados em incidir sobre a formulação de um documento cujo objetivo seria definir parte significativa do currículo escolar no Brasil (PERONI; CARVALHO, 2019). Analisando a “[...] crescente influência do empresariado na elaboração e na execução de políticas públicas para a Educação Básica brasileira [...]” (PERONI; CARVALHO, 2019, p. 59), em um estudo de caso sobre os Arranjos de Desenvolvimento da Educação (ADEs), as autoras concluem que representantes de um empresariado que se apresenta como filantropo ou sem fins lucrativos (institutos e fundações) vêm atuando em rede, materializando diferentes arranjos nos Estados e/ou Municípios, criando formas híbridas de colaboração entre o setor público e o privado, as quais envolvem formulação, gestão e avaliação de políticas públicas educacionais, contemplando a produção de material didático, a disponibilização de plataformas virtuais de apoio à aprendizagem, programas voltados à formação de profissionais da educação, incluindo a criação de sistemas de avaliação (PERONI; CARVALHO, 2019).
Para Ball e Olmedo (2013) essa nova filantropia ou, “filantropia 3.0”, é um movimento que ocorre globalmente, ainda que com variações locais, mudando as relações entre o Estado e a sociedade, uma vez que o primeiro passa a compartilhar responsabilidades intrínsecas ao ato de governar a coisa pública com diferentes atores sociais não governamentais, que podem passar, inclusive, a frequentar instâncias decisórias sobre como o recurso público será utilizado, apresentando soluções “baseadas no mercado”, caracterizando uma aproximação entre “a caridade e os resultados” (BALL; OLMEDO, 2013, p. 33).
Um dos estudos que mais evidenciaram a influência do Movimento pela Base15 no processo de construção da BNCC é aquele desenvolvido por Avellar e Ball (2017), apoiado em uma metodologia chamada “etnografia de redes”, com a realização de entrevistas e produção de gráficos de redes sociais, no qual restou explicitada como operou, na prática, uma rede de governança, que se afasta da hierárquica burocracia estatal, levando ao funcionamento de um Estado “heterárquico”, materializado em uma rede complexa de relações horizontalizadas e verticalizadas entre o Estado, a iniciativa privada e o voluntariado. Com um intenso trabalho de campo, buscando mapear relações entre representantes e instituições governamentais, pessoas e instituições do setor privado, inclusive internacional, os autores mapeiam ações iniciadas em 1997, no governo de Fernando Henrique Cardoso, e citam a influência de documentos produzidos pelo Banco Mundial (BM) e pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) na sustentação de argumentos no sentido de que países da América Latina se beneficiariam de um currículo comum para diminuir suas desigualdades.
Do outro lado, dentre os argumentos a favor da inclusão da etapa Educação Infantil na BNCC, também, podemos identificar justificativas apoiadas na possibilidade de ampliação de direitos, ou, ao menos, da manutenção dos direitos já consagrados nas DCNEIs (2009). Ocupar o espaço de primeira etapa da Educação Básica, com educação integral, um currículo situado, sem seriação, com objetivos em longo prazo, defendendo as ideias das diferentes diretrizes enunciadas nos últimos 20 anos, como direitos humanos, étnico-racial, meio ambiente, seria obrigação num momento de disputa político-ideológica por caminhos educacionais.
Entre os argumentos de defesa, por exemplo, era considerado o fato de que propor linhas curriculares próprias para bebês e crianças pequenas poderia garantir a necessidade da presença de um professor com formação superior, superando formatos de atendimento apoiados em profissionais leigos. A existência de uma base, também poderia oferecer inspiração para ampliar as referências dos profissionais acerca dos patrimônios cultural, artístico, ambiental, científico e tecnológico, isto é, ampliar as vivências proporcionadas a bebês e crianças nas instituições educativas. Uma base pode permitir um diálogo entre o local e o universal, pois a partir da parte diversificada, do local e do conhecido, pode propiciar o encontro com algo que esteja para além do situado, real, conhecido, abrindo portas para outros mundos, àquilo que poderá ser comum a todos. E, assim, em certo sentido, garantir que as instituições de educação coletiva estejam comprometidas com a defesa dos direitos das crianças propiciando às mesmas uma potente experiência de infância e não apenas de confinamento em espaços inadequados.
Afinal, os objetivos de aprendizagem propostos a partir de experiências com brincadeiras, interações e exploração de materialidades, podem tensionar a exigência de qualificação dos espaços educativos em termos de material e equipamentos, agregando qualidade a esses. Ou seja, o texto da BNCC, a partir da discussão política e das negociações visando à sua implementação, pode contribuir, ou não, para garantir o compromisso que a Educação Infantil possui em relação a todas as crianças.
É importante verificar que a construção e a implementação da BNCC estão vinculadas a dois grupos do campo neoliberal (CAMPOS, 2020): um primeiro, mais atuante no processo de elaboração do texto, representado pelo governo Temer, e hoje ainda presente no CNE, que conta com a atuação de políticos de centro-direita, de grupos empresariais privados, ou a partir de organizações que os congregam, obtendo uma crescente incidência nas políticas educacionais brasileiras, pautando slogans, concepções e propondo soluções gerencialistas baseadas em avaliação em larga escala, meritocracia e responsabilização de docentes e de escolas pelo desempenho de estudantes. Esse grupo, que está em diálogo com atores multilaterais, como a OCDE, tem como referência a educação como ciência empírica e quantitativa e vem promovendo reformas curriculares e a implementação de avaliações internacionais há várias décadas, com o objetivo de definir um parâmetro internacional a partir do qual possam ser mensurados os saberes necessários, para que crianças e jovens de todo o mundo venham a participar de uma sociedade de consumo, com base no capitalismo. A ciência e o conhecimento são muito valorizados nessa abordagem, ainda que vistos de modo desconectado das experiências de vida dos estudantes e de suas comunidades.
Por outro lado, no momento de implementação da BNCC, se posiciona, ainda, um outro grupo de políticos, de corte ultraliberal, de caráter conservador e anticientífico, o qual vem a promover mudanças em relação à organização curricular da Educação Básica. Aqui, o objetivo não é mais a implementação de um currículo cientificista, mas, sim, a elaboração de propostas de políticas fragmentadas baseadas em pressupostos ideológicos. Esse grupo rejeita, claramente, a própria identidade da Educação Infantil, pois sugere que as crianças pequenas devem estar com suas mães em ambiente familiar, coloca a pré-escola em um lugar preparatório em relação ao Ensino Fundamental, propondo a utilização de livros didáticos, o treinamento de habilidades de literacia e numeracia pela família e pela escola, a aplicação de avaliações em larga escala, tudo isso articulado à formação de docentes com base em conteúdos disciplinares. Os resultados das ações de ambos os grupos sinalizam reflexos negativos na consolidação da Educação Infantil (SILVA, 2020; LIMA; MOREIRA, 2020).
O resgate acima contribuiu para evidenciar articulações entre diferentes políticas voltadas à Educação Básica, com forte repercussão negativa nos processos sociais recentes na direção de uma consolidação da identidade da Educação Infantil. Na seção seguinte, desenvolvemos, especificamente, os percalços do processo de elaboração da BNCC-EI e as possibilidades que defendemos para releituras críticas desse documento, a serem protagonizadas por profissionais das redes e instituições de ensino.
A construção da BNCC-EI e os desafios para sua implementação na perspectiva dos direitos das crianças
Iniciamos esta seção com um breve resgate acerca do processo de construção da BNCC-EI e, na sequência, indicamos um aprofundamento sobre alguns aspectos dessa política que podem construir um diálogo com as DCNEIs, o que, em nosso entendimento, seria interessante como estratégia do campo para efetivar a determinação legal de implementação da BNCC-EI, ao mesmo tempo que se poderia fortalecer a identidade da etapa a partir de processos voltados à formação continuada em nível local.
Diferentemente da origem das demais etapas de ensino, a assistência social dirigida a bebês e crianças pequenas em nossa sociedade nasceu fora do campo educacional e foi constituindo, ao longo dos séculos XIX e XX, a interlocução com a educação escolar. As creches e os jardins de infância não estavam vinculados, inicialmente, a processos de escolarização formal. A invenção social dessas instituições decorreu das exigências de transformação nas relações familiares no âmbito da urbanização e do trabalho nas sociedades capitalistas e socialistas. Se, atualmente, em muitos países, o atendimento educacional voltado a crianças pequenas articula-se com órgãos de assistência social, saúde, direitos das famílias e das mulheres, no Brasil, constituiu-se como uma dicotomia política e econômica entre os Ministérios da Saúde e de Assistência Social e o Ministério da Educação. A partir da CF/88, o atendimento de crianças entre 0 e 6 anos foi sendo gradualmente assumido pelo Ministério da Educação.
Desde então, a Educação Infantil luta para encontrar um lugar de visibilidade e tratamento igualitário nos diferentes âmbitos do sistema educacional (BARBOSA; RICHTER, 2013), mesmo que, em algumas realidades locais, tal inserção ainda seja frágil, com falta de equipe técnica nas Secretarias de Educação, salários diferenciados, ausência de concurso para professores e de políticas que garantam, por exemplo, formação continuada.
Fortalecer a identidade da Educação Infantil, no contexto das políticas para a Educação Básica, foi a grande referência para a participação da etapa na BNCC, mas a participação de interlocutores ligados ao campo na elaboração do documento demonstrou sua fragilidade. Em 2014, houve a elaboração de um documento da BNCC no governo da presidente Dilma Rousseff sem a participação de representantes da Educação Infantil. Em 2015, a presença de especialistas em Educação Infantil se deu, ainda, de forma minoritária, pois, de um grupo técnico de 116 componentes, apenas quatro representavam a etapa.
Uma importante especificidade do grupo técnico representando a Educação Infantil na elaboração da primeira versão da BNCC foi o fato de que parte de seus integrantes havia participado na elaboração das DCNEIs, documento considerado representativo da produção da área em vários aspectos, tais como as concepções de infância, de criança e de Educação Infantil, que embasaram a escrita da primeira versão do documento da BNCC.16 Elaboradas ao longo dos anos 2000, a partir de um processo de pesquisa e de debate, que envolveu vários segmentos da sociedade, é possível afirmar que as DCNEIs expressam princípios e orientações para o desenvolvimento de projetos educacionais inclusivos, na perspectiva de respeito e valorização da pluralidade e diversidade cultural de nosso país (BRASIL, 2009).
Acerca da construção da BNCC, um elemento a ser destacado é sua estrutura, que foi constituída a partir de modelos apresentados e defendidos por grandes empresas educacionais emergentes no Brasil, originadas em países de Língua Inglesa, como EUA e Austrália, tendo como referências a psicologia cognitiva e a pedagogia tecnicista (SAVIANI, 1980; LIBÂNEO, 1985). Portanto, há uma maior ênfase na relação ensino e aprendizagem, no professor como modelador do comportamento infantil, nos objetivos individualizados, no controle da aprendizagem pelo professor, e no uso de inúmeras técnicas e tecnologias educacionais, com a ausência de referências às relações históricas, sociais e culturais, assim como consideração às diversidades sociais e individuais. Isto é, uma tendência oposta àquela defendida pelas DCNEIs como concepção de criança e currículo.
Ainda que a estrutura demandada para a primeira versão da BNCC se mostrasse distante do posicionamento teórico-metodológico das DCNEIs construídas ao longo dos anos 2000, a primeira versão da BNCC-EI, mesmo dentro dessa camisa-de-força, conseguiu enfatizar, a nosso ver, três aspectos principais: em primeiro lugar, a ideia de que bebês e crianças pequenas são sujeitos de direitos, um conceito caro ao campo da Educação Infantil, entendendo-se que esses direitos são amplos, indo ao encontro da aprendizagem como uma relação social (ROGOFF, 2005; PONTE-CORVO et al., 2005).
Em segundo lugar, explicitou-se, no texto, que a creche e a pré-escola conformam a Educação Infantil e têm o compromisso de garantir formas de vivência dos princípios éticos, estéticos e políticos, materializados nos direitos das crianças de aprender a explorar, brincar, conviver, expressar, participar e se conhecer na vida cotidiana com seus pares. E, por fim, mas não menos importante, ficou expresso que esses direitos das crianças pequenas em espaços de educação coletiva somente podem ser efetivados a partir de uma ação docente que promova ações derivadas desses mesmos verbos, tais como: conversar, interagir, colaborar. Isto é, garantindo ambientes nos quais o controle, a vigilância e a punição são substituídos pela coexistência de relações democráticas e participativas.
A passagem das tradicionais disciplinas ou áreas de conhecimento para o campo de experiências reconhecem a necessidade de que a instituição de Educação Infantil tem a obrigação de inserir a criança nos diferentes domínios da vida social, como: comer, conviver, brincar, e interagir com saberes e conhecimentos das artes, da ciência, da história, da literatura, da música. Sendo o currículo o espaço que supera a visão de linguagens isoladas, de saberes desenraizados e propõe a reflexão intercampos de conhecimentos, a partir de um compromisso da instituição educativa em abrir portas para as culturas local e popular e janelas para os multiversos onde estamos incluídos e que fazem compreender e decidir sobre a vida pessoal e a coletiva.
Na segunda versão da BNCC-EI, seguindo nosso fio histórico, houve mudanças com a inclusão de elementos advindos da participação de outros atores, tais como, o movimento social, que propôs a inclusão de temáticas específicas e emergentes; os gestores educacionais, com definições acerca de seriação ou divisão em faixas etárias e, ainda, as exigências oriundas do campo empresarial, no que se refere a uma maior ênfase na preparação para a alfabetização desde a educação pré-escolar. A ausência de tempo para uma leitura criteriosa e a revisão dessas diversas contribuições por parte do grupo técnico deixou a escrita da segunda versão com diversas lacunas, pois o planejamento inicial previa quatro meses para uma escrita que foi realizada em menos de um mês.
A exigência de alfabetização – uma grande tensão do campo – ganhou maior visibilidade com a construção da esfera da cultura escrita, a partir de pesquisa da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG, 2017) procurando afirmar o direito de participação do bebê em atos de leitura, mas tendo o cuidado de evitar a antecipação da alfabetização para a pré-escola.
A partir dos movimentos que levaram ao golpe de abril de 2016, importantes aliados do MEC, como o Consede e a Undime, entidades que congregam gestores públicos, vinculados à esfera político-partidária, o CNE e o Movimento “Todos pela Educação”/“Todos pela Base” redesenham a base como um todo, assim como os encaminhamentos para sua implementação. Daí em diante, tanto a BNCC como outros documentos definidores de políticas educacionais e curriculares, que foram formulados em sequência, passam a constituir-se como materialidades do golpe no campo da educação.17
Nos vários países onde foram implementados documentos com objetivo e estrutura semelhantes, houve intensa disputa sobre o percentual que a base deveria ocupar no currículo escolar, oscilando entre 40%, 50% ou 60%. Essa importante questão política havia sido colocada, no início do processo de escrita da BNCC, porém, ela foi pouco considerada pela equipe responsável. No caso brasileiro, em um primeiro momento, alegava-se que a BNCC configuraria a parte comum dos currículos, cerca de 60% , e que as escolas seriam responsáveis pela construção da parte diversificada, 40%. Isso significaria um tipo de relação de poder que poderia agradar tanto aos universalistas como aos autonomistas. Nessa perspectiva, os Estados, as Regiões, os Municípios e o Distrito Federal poderiam orientar inclusões na base, mas não deveriam elaborar extensos documentos de referenciais próprios.
Porém, a influência política de governadores e prefeitos fez com que a Base Nacional, um documento já extenso em suas 472 páginas, fosse complementado por mais objetivos e habilidades acrescidos pelas demais esferas do governo. Desse modo, as instituições educativas e seus profissionais ficaram aprisionados a um total de mais de 90% de objetivos comuns, que se apresentam alheios às especificidades identitárias de cada comunidade, os quais deveriam ser contemplados na elaboração das propostas político-pedagógicas locais, como determina a LDBEN (BRASIL, Lei n. 9.394/1996, art. 13, Inc. I).
As propostas de alguns Estados e Municípios foram de complementação, releitura, revisão, reorganização da BNCC, tendo em vista as realidades locais, porém, em outros casos, houve, ainda, muitos acréscimos, tornando relevante a questão dos percentuais para a discussão do papel de cada instituição educacional e da própria autonomia docente. Afinal, se um professor tem 200 dias letivos e 40 objetivos nacionais, mais 20 estaduais, mais 20 municipais, torna-se difícil, ou até impossível, organizar sua prática pedagógica considerando a comunidade e a participação das crianças.
Refletindo sobre tal situação, entendemos que os docentes não podem ser apenas distribuidores de objetivos predefinidos em um check list de atividades de ensino dirigidas a cada objetivo, resultando em práticasdescontextualizadas, sem sentido ou significado. É necessário que tais profissionais possam agir como atores sociais que selecionam objetivos, definem o que priorizar, como organizar em agrupamentos, pensando nos tempos e, fundamentalmente, criando objetivos contextualizados que materializem o privilégio que representa educar crianças pequenas.
Consideramos que o estudo do material referente à base pelas instituições, em espaços voltados à formação continuada, desde uma abordagem de construção participativa de currículos contextualizados a cada realidade pode levar à efetivação de práticas cotidianas em consonância com as DCNEIs. Ler a BNCC criticamente, compreender seu endereçamento, momento político de elaboração e implementação, refletir sobre a importância da instituição de Educação Infantil – e dos conhecimentos – para a formação pessoal, social e política das crianças, analisar a ideologia da pedagogia das competências e dos objetivos, revisar e cotejar com as pedagogias críticas e emancipatórias, podem fazer com que professores e instituições efetivem práticas criativas de resistência.
Como o CNE definiu prazo para a revisão da BNCC para 2024, entendemos que tal processo será organizado pelos sistemas de ensino, entidades da área e, especialmente, pelos docentes, a partir de experiências vividas ao longo dessa implementação. No caso da Educação Infantil que aprofundamos aqui, entendemos que possa ser produtivo pensar a BNCC-EI como um material aberto para o exercício de reflexão sobre vários temas, tais como, as especificidades da etapa, as particularidades da educação de bebês em espaços coletivos e as relações entre Educação Infantil e Ensino Fundamental.
Do ponto de vista didático-pedagógico, também se faz pertinente avaliar o que dela faz sentido para cada contexto, o que poderia ser excluído, o que é preciso incluir, o que caberia a cada instância educacional determinar, e até que ponto os referenciais curriculares estaduais se constituem em uma parte complementar que garante uma necessária contextualização nos currículos locais, ou, ainda, o que significa trabalhar com objetivos abertos ou objetivos comportamentais, por exemplo. Ter uma BNCC pode ser fundamental para a construção de um país mais igualitário no ponto de partida, mas certamente sabemos que apenas a existência de um documento com tal teor não é suficiente; há que se considerar quem o constrói e quais são os objetivos comuns mais adequados à formação humana das nossas crianças.
Em nosso ponto de vista, a expectativa de um trabalho de qualidade com essa etapa, passa, diretamente, pela formação inicial e continuada e pelas condições de trabalho de profissionais, que, em sua maioria, são mulheres. A possibilidade de reuniões de planejamento, estudo e trabalho coletivo pelas equipes que atuam nas instituições educacionais é uma condição fundamental para garantir processos formativos, nos quais cada profissional possa ser sujeito em relação às práticas cotidianas adotadas.
Internacionalmente e, também na literatura brasileira, a formação continuada em contexto assume papel de destaque como elemento que possibilita a construção de currículos centrados nas crianças com a promoção de atividades significativas para cada grupo. (CAMPOS, 2002; OLIVEIRA-FORMOSINHO, 2016; KRAMER, 2011). Dentre as abordagens estrangeiras, a pedagogia italiana para a primeira infância se destaca como inspiração para experiências brasileiras (SOUZA; MORO; COUTINHO, 2015). O protagonismo das equipes de trabalho, como uma comunidade de aprendizagem e de prática, é elemento central nesta abordagem (MASELLI; ZANELLI, 2013), sendo o grupo de profissionais responsável pelo planejamento educativo e pela implementação das condições necessários à efetivação dos processos de aprendizagem e desenvolvimento das crianças. Em algumas experiências no Norte da Itália, é proposta uma articulação entre os espaços formativos e os processos de avaliação da qualidade, conformando um círculo participativo e virtuoso de planejamento, ação, avaliação e novo planejamento (BENEDETTI; GARIBOLDI; MASELLI, 2017). Nessa perspectiva, o contexto é compreendido “[...] a partir de elementos concretos (pessoas, mobiliário, materiais) e das relações em processo estabelecido com as dimensões simbólicas, materiais e relacionais, de modo dinâmico, recíproco, desvelando e consolidando a identidade educativa da instituição” (BONDIOLI, 2014).
As instituições escolares têm uma autonomia relativa, como diria Grasmci (1985), ou, ainda, a escola possui uma cultura escolar (VIÑAO FRAGO, s/d) que também traz elementos de resistência. Potencializar a reflexão, a reinvenção, a criação dos professores e a força do trabalho coletivo é fundamental para o enfrentamento de uma leitura focada em elementos que a BNCC carrega de um ideário identificado com a educação integral, o currículo situado, a avaliação formativa e os temas contemporâneos.
Considerações finais
No âmbito deste artigo, buscamos evidenciar riscos à consolidação da identidade da Educação Infantil relacionados a processos de implementação da BNCC-EI, dado o contexto recente do Brasil em relação ao conjunto de políticas voltadas à Educação Básica. Para tal, sistematizamos certos elementos do processo de construção da base, evidenciando atores envolvidos na formulação e nos direcionamentos que poderão ser realizados, a partir de intersecções entre essa política curricular e as determinações da Política Nacional de Alfabetização; os desdobramentos dos processos em curso para a constituição do novo Sistema Nacional de Avaliação com matrizes de referência adequadas à BNCC; a implementação da PNA e, ainda, a Base Nacional para a Formação de Professores da Educação Básica apresentada recentemente pelo Governo Federal, em um esforço de preparar docentes com foco nos objetivos definidos para o currículo nacional. O resgate histórico e a pesquisa documental evidenciaram que a identidade da Educação Infantil tende a se fragilizar a partir da implementação de políticas centradas em currículos padronizados e avaliações em larga escala, sejam aqueles direcionados à Educação Básica ou aos cursos responsáveis pela formação docente.
Argumentamos no sentido de que, a despeito das intenções iniciais quando da formulação da proposta, a depender das condições de implementação da BNCC-EI, ao invés da promoção da qualidade, poderão ser postos em funcionamento modelos conteudistas, etapistas e classificatórios, que prejudicariam a oferta da etapa desde uma perspectiva de direito à educação com equidade e qualidade para todas as crianças. A revisão de literatura sobre o estudo das infâncias aponta à coerência necessária entre a organização do currículo a ser desenvolvido e as especificidades da educação de crianças pequenas.
Como ato ético, político e pedagógico de resistência à adoção de modelos curriculares e avaliativos predeterminados, incluindo sistemas apostilados e avaliações estandardizadas e em larga escala, argumentamos no sentido do fortalecimento de ações locais voltadas à formação continuada, visando a uma construção participativa e democrática de currículos contextualizados e pensados a partir das especificidades da educação de crianças de até 6 anos estabelecidas nas DCNEIs.
Com base na literatura da área dos estudos sociais da infância, apresentamos algumas possibilidades de articulação entre os campos de experiência, os direitos e objetivos de aprendizagem e de desenvolvimento propostos pela BNCC-EI e os princípios e determinações presentes nas DCNEIs, buscando contribuir para outras leituras do documento, que possam subsidiar a construção de práticas cotidianas que considerem as crianças e sua infâncias nas diferentes realidades do País, visando ao fortalecimento da identidade da etapa em cada rede e instituição de Educação Infantil. Construídos no nível micro, a partir dos campos de experiência apresentados na base, defendemos currículos que efetivem práticas cotidianas em maior consonância com os direitos de aprendizagem de cada e de todas as crianças brasileiras.