Introdução
Ao retomarmos os ensinamentos de Foucault (2008), buscamos compreender o neoliberalismo como uma reivindicação global. “É Hayek, que dizia, há alguns anos: precisamos de um liberalismo que seja um pensamento vivo” (FOUCAULT, 2008, p. 301). Hoje, quando alguns críticos reacionários praguejam sobre a inexistência do que chamamos de neoliberalismo, eles estão, equivocadamente, reduzindo a complexidade do conceito aos aspectos econômicos discutidos no Colóquio Walter Lippmann de 1938 e, consequentemente, exibindo uma extrema incompreensão das problemáticas contemporâneas às quais todos estamos sujeitados diariamente. Como diz Maffesoli,
prefira a humildade das coisas – do que a pretensão dos conceitos. É nesse sentido que não se trata de “ser pós-moderno”, mas antes utilizar uma palavra ou simples noção como alavanca metodológica – o mais pertinente possível – para compreender as relações e os fenômenos sociais que estão apenas começando, mas dos quais é difícil negar sua importância, tanto quantitativa quanto qualitativamente (2013, p. 64).
Compreende-se, aqui, o neoliberalismo como um problema contemporâneo em curso pleno e de difícil decodificação. Diante disso, pode-se dizer: “O que Michel Foucault fez em relação à Modernidade resta fazer sobre a época que se anuncia. Trata-se de um grande desafio, que necessita de uma postura intelectual audaciosa” (MAFFESOLI, 2013, p. 76). Foucault afastou-se das perguntas metódicas, a partir de uma concepção da necessidade de desnaturalizar verdades absolutas, através, principalmente, da genealogia que busca compreender que condições possibilitaram que algumas coisas fossem ditas e pensadas em determinado momento histórico, e não em outro, de modo a mapear as “ascendências (Herkunft), na forma de condições de possibilidade para a emergência (Entestehung) do que hoje é dito, pensado e feito” (VEIGA-NETO, 2003, p. 70).
Dito isso, concentramo-nos, seguindo o que vem fazendo Stephen J. Ball, “no como do neoliberalismo. Como ele é provido. Como ele é ‘feito’. Como ele ‘funciona’” (2014, p. 24). Para buscar as sutilezas dessa compreensão, nosso foco está na racionalidade neoliberal. Conforme Dardot e Laval (2016, p. 17), o termo racionalidade não deve ser usado “como um eufemismo que nos permite evitar a palavra ‘capitalismo’. O neoliberalismo é a razão do capitalismo contemporâneo, de um capitalismo desimpedido de suas referências arcaizantes e plenamente assumido como construção histórica e norma geral de vida”. Além disso,
o neoliberalismo é também polimórfico e evolutivo, ele se transforma e se adapta, assumindo características locais das geografias de circunstância econômicas e políticas existentes e de arcabouços institucionais, em que variabilidade, constituição interna, influências sociais e organismos individuais desempenham o papel de (re)produzir, circular e facilitar o seu avanço. Ele pode materializar-se em formas mutantes e híbridas
(BALL, 2014, p. 64-65).
Dentre o emaranhado de tecnologias político-constituintes do neoliberalismo, partimos de uma análise da ordem dos discursos educacionais. Nesse âmbito, concordamos com Foucault (1999, p. 44), quando o autor afirma que “todo sistema de educação é uma maneira política de manter ou de modificar a apropriação dos discursos, com os saberes e os poderes que eles trazem consigo”. Para tal, articulamos achados de duas pesquisas, no sentido de compor uma trama analítica de discursos sobre docência veiculados na contemporaneidade. Trata-se de uma análise macro1 – campanhas e projetos com foco na docência divulgados pela Rede Latino-Americana pela Educação (Reduca) – e de seus desdobramentos discursivos em termos micro – especialmente nas campanhas eleitorais brasileiras2 dos candidatos ao segundo turno para os cargos de: prefeito de Porto Alegre – RS, no pleito eleitoral de 2016; governador do Rio Grande do Sul, no pleito eleitoral de 2014; e presidente do Brasil, no pleito eleitoral do mesmo ano.
Nesse percurso, defendemos que a categoria analítica “formação continuada e valorização de professores”, emergente dos documentos analisados, exerce papel central na consolidação da racionalidade do projeto neoliberal, resultando em inúmeras formas de pautar a Educação a partir da (des)profissionalização e da (des)legitimação do papel docente. Tais questões são evidenciadas na longa lista de reformas apregoada principalmente, pelo mercado educacional, segundo o qual
a escola deve se tornar mais centrada no aluno, se esforçar para desenvolver o talento, ser mais sensível ao mercado de trabalho e ao ambiente social de forma a motivar e atender ao bem-estar dos alunos, oferecer Educação baseada em evidências, o que é mais eficaz
(MASSCHELEIN; SIMONS, 2015, p. 19).
Por outro lado, vê-se os mesmos grupos reformistas envolvidos em campanhas que visam a fomentar a procura pela docência em tempos de precarização da profissão de professor e da baixa procura pelas licenciaturas, sem pautar o conjunto de fatores que afeta diretamente os processos educacionais:
As políticas educacionais postas em ação, o financiamento da educação básica, aspectos das culturas nacional, regionais e locais, hábitos estruturados, a naturalização em nossa sociedade da situação crítica das aprendizagens efetivas de amplas camadas populares, as formas de estrutura e gestão das escolas, formação dos gestores, as condições sociais e de escolarização de pais e mães de alunos das camadas populacionais menos favorecidas (os “sem voz”) e, também, a condição do professorado: sua formação inicial e continuada, os planos de carreira e salário dos docentes da educação básica, as condições de trabalho nas escolas
(GATTI, 2010, p. 1.359).
Novamente retomando Ball (2014, p. 74), é preciso conceber os pilares do neoliberalismo “não como ideias abstratas, mas como um discurso, no sentido complexo da palavra – um conjunto de práticas e subjetividades que são realizadas em formas ‘realmente existentes’ e corriqueiras em diferentes locais e contextos”. Nesse âmbito, a Reduca é uma rede de políticas que pode ser compreendida como “um tipo de ‘social’ novo, envolvendo tipos específicos de relações sociais, de fluxos e de movimentos. Eles constituem comunidades de políticas, geralmente baseadas em concepções compartilhadas de problemas sociais e suas soluções” (BALL, 2014, p. 29). Desse modo, o problema social central desta investigação é a docência, foco de diversas campanhas da Reduca, como demonstramos ao longo deste artigo. Em nossa visão, as propostas de ações voltadas aos professores atuam como parte integrante de um grande projeto de reforma engendrado pelos empresários – os novos atores políticos, substituintes dos Estados na função de delinear as diretrizes educacionais de forma global.
Como agentes responsáveis pelo polo latino-americano na missão de inserir a Educação no mundo corporativo, temos, atualmente, na composição da Reduca: a organização brasileira Todos pela Educação; a argentina Proyecto Educar – 2050; a chilena Educación – 2020; a colombiana Empresarios por la Educación; a equatoriana Grupo Faro; a salvadorenha Fundación Empresarial para el Desarrollo Educativo (Fepade); a guatemalteca Empresarios por la Educación; a hondurenha Fundación para la Educación Ernesto Maduro Andreu (Ferema); a mexicana Mexicanos Primero; a nicaraguense Foro Educativo Nicaragüense “Eduquemos”; a panamenha Unidos por la Educación; a paraguaia Juntos por la Educación; a peruana Empresarios por la Educación; a dominicana Acción por la Educación (Educa); e a uruguaia ReachingU (REDUCA, 2018).
As concepções de educação reformuladas pelas práticas discursivas, observadas a partir dos documentos político-eleitorais, ganham materialidade a partir da atuação empresarial da rede. Na próxima seção, buscamos compreender como a racionalidade neoliberal é implementada pelos governos, a partir da diluição das responsabilidades políticas estatais e dos redirecionamentos aos atores empresariais, por meio de tecnologias políticas. (BALL, 2002). Discutimos as formas de constituição da profissão docente a partir das tecnologias implementadas, na tentativa de compreender o papel do professor na agenda docente racionalizada. Finalmente, examinamos, de forma articulada, o desenvolvimento de discursos político-eleitoral-neoliberais em ações materializadas, representadas pelos projetos da Reduca.
Racionalidade neoliberal como forma de governo
Nem o neoliberalismo, tampouco seus interesses no campo educacional, surgiram ao acaso. A noção de liberdade sustentada pelo concorrencialismo3 transformou completamente o liberalismo clássico. Conforme Dardot e Laval (2016), a oratória proferida por Bolkestein, na conferência “Construindo a Europa liberal do século XXI”, detalhava um programa de reformas com um item de necessário destaque:
[...]
4) A defesa do ideal de civilização de uma sociedade livre contra o “niilismo”: “O relativismo moral e epistemológico dessa corrente ameaça os valores essenciais do projeto liberal, com o espírito crítico e racional e a crença na dignidade fundamental do indivíduo livre; “o advento da Europa liberal de amanhã pode ser abalado pela educação que se dá hoje aos jovens europeus nas escolas e nas universidades [...]. A tarefa dos universitários, portanto, é transmitir, por meio de seu trabalho, os valores fundadores da sociedade livre ou, em todo caso, combater as ideias que visam a pôr em risco esse tipo de sociedade
(DARDOT; LAVAL, 2016, p. 248-249).
A fundação neoliberal da Europa foi marcada por conflitos de poder. A história, segundo Foucault, “não tem ‘sentido’, o que não quer dizer que seja absurda ou incoerente. Ao contrário, é inteligível e deve poder ser analisada em seus menores detalhes, mas segundo a inteligibilidade das lutas, das estratégias, das táticas” (1979, p. 5). Na visão de Bolkestein, a Educação é compreendida pela sua tarefa política de orientar os valores sociais em formação na sociedade europeia. Essa compreensão se faz importante para a significação do que é, de fato, fazer política. Conforme Arendt, “o pensamento político baseia-se, em essência, na capacidade de formação de opinião” (2002, p. 10). No contexto neoliberal, o tema política se reinscreve e apresenta alguns desafios que são descritos por Miller e Rose (2012) a partir de três pontos: 1) o termo política precisa ser objeto de análise, pois não pode mais ser utilizado como se seu sentido fosse autoevidente; 2) o poder político passa a ser exercido a partir de uma profusão de alianças móveis; e 3) o Estado é deslocado para dentro de uma analítica de problemas de administração.
No início do século XX, grandes pensadores liberais já não sustentavam a crença na autorregulação do mercado e discutiam alternativas: “Segundo Lippmann, ‘a verdade é que no Estado moderno, mesmo uma política de laissez-faire deveria ser administrada de forma deliberada, mesmo o livre jogo da oferta e da demanda deveria ser mantido de forma deliberada’” (LIPPMANN, 1935, p. 43-44 apudDARDOT; LAVAL, 2016, p. 272). A “mão invisível” do mercado passava a empreender suas ações de forma ponderada, em um processo naturalmente racional. Todavia, segundo Dardot e Laval,
o Estado foi reestruturado de duas maneiras que tendemos a confundir: de fora, com privatizações maciças de empresas públicas que põem fim ao “Estado produtor”, mas também de dentro, com a instauração de um Estado avaliador e regulador que mobiliza novos instrumentos de poder e, com eles, estrutura novas relações entre governo e sujeitos sociais (2016, p. 273).
A mudança do modelo político-econômico-liberal para a sociedade neoliberal constitui um novo modo de vida, e a escola acaba sendo determinante em tal processo, ao mesmo tempo que é constituída também nessa relação. A lógica de mercado deve prevalecer no Estado, para que ele possa ser supostamente mais eficiente e produtivo. (PERONI, 2003). De acordo com a nova filosofia governamental, toda política social que não seja produtiva, ou, em outras palavras, não gere lucro, deve ser estancada, configurando-se assim “o Estado mínimo para as políticas sociais e máximo para o capital” (2003, p. 19).
A escola, a partir da reconfiguração do Estado, passa a exercer novo modo de poder, não permitindo a ninguém ousar ter dúvidas sobre a importância da Educação no âmbito político. Contudo, sob a ordem neoliberal, setores da economia também monitoram essas modificações em andamento, ao passo que, segundo Ball (2004, p. 1.112), “o capital especulativo está começando a se interessar pelos serviços educacionais”. Cientes disso, apresentamos a Rede Latino-Americana pela Educação (Reduca) como a concretização de uma iniciativa empresarial direcionada ao (novo) mercado escolar. Optamos por apresentar uma breve descrição de cada organização/movimento, no sentido de visibilizar a rede de políticas que se constitui a partir da interlocução dos países da América Latina.
Os atores da Reduca, descritos no Quadro 1, produzem discursos voltados a soluções educacionais por meio de ações microfísicas, as quais geram a falsa sensação de fragilidade da rede para deliberar ações políticas. Como diz Ball (2014, p. 93-94), “uma das características que definem os muitos participantes-chave em redes de políticas é a sua capacidade para se mover entre o social, o político e o mundo dos negócios – eles praticam o que pregam rompendo limites tradicionais e por serem flexíveis e adaptáveis”.
País | Organização e autodescrição |
---|---|
Argentina |
Proyecto Educar – 2050 A associação trabalha pela melhoria da Educação, inspirada no projeto educacional da madre Alcira García Reynoso (Três Isletas/Chaco). (PROYECTO EDUCAR - 2050, 2019, tradução nossa). |
Brasil |
Todos pela Educação O movimento atua a partir de quatro eixos: avaliação das ações dos governos; mobilização de atores- chave do cenário nacional pela Educação; monitoramento de indicadores e de políticas; e produção de conhecimento. (TODOS PELA EDUCAÇÃO, 2019). |
Chile |
Educación – 2020 O Educación – 2020 trabalha para garantir umaEducação de qualidade, equitativa e inclusiv.a A organização impulsiona a transformação da sala de aula, através de projetos de inovação educati.va (EDUCACIÓN 2020, 2019, tradução nossa). |
Colômbia |
Empresarios por la Educación (Site indisponível.) |
Equador |
Grupo Faro “Somos um centro de pesquisa e ação que repercute na política e promove práticas para a transformação e a inovação social” (GRUPO FARO, 2019, tradução nossa). |
El Salvador |
Fundación Empresarial para el Desarrollo Educativo (Fepade) A missão da fundação “é contribuir para o desenvolvimento daEducação em El Salvador, em todos os seus níveis, através da execução de diferentes programas e projetos”. (FEPADE, 2019, tradução nossa). |
Guatemala |
Empresarios por la Educación A associação “ busca contribuir para a melhoria da Educação público-nacional, através da articulação de esforços do setor privado, público e da sociedade em geral”. (EMPRESARIOS POR LA EDUCACIÓN, 2019, tradução nossa). |
Honduras |
Fundación para la Educación Ernesto Maduro Andreu (Ferema) (Site indisponível.) |
México |
Mexicanos Primero A iniciativa visa a diagnosticar e a propor soluções para problemáticas educacionais. (MEXICANOS PRIMERO, 2019, tradução nossa). |
Nicarágua |
Foro Educativo Nicaragüense “Eduquemos” A associação “ facilita o diálogo entre setor privado,a sociedade civil e o Estado, promovendo uma Educação de qualidade”. (EDUQUEMOS, 2019, tradução nossa). |
Panamá |
Unidos por la Educación O grupo discute o estabelecimento depolíticas de Estado em matéria deEducação que transcendam governos. (UNIDOS POR LA EDUCACIÓN, 2019, tradução nossa). |
Paraguai |
Juntos por la Educación A organização trabalha para melhorar a qualidade da Educação pública no Paraguai. (JUNTOS POR LA EDUCACIÓN, 2019, tradução nossa). |
Peru |
Empresarios por la Educación “A Asociación Empresarios por la Educació[n...] busca contribuir paraa melhoria da Educação público-nacional, através da articulação de esforços do setor privadop, úblico e da sociedade em geral” (EMPRESARIOS POR LA EDUCACIÓN, 2019, tradução nossa). |
República Dominicana |
Acción por la Educación (Educa) A Educa é uma instituição querepresenta o setor privado em matéria de Educação, e que trabalha para que todos tenham Educação de qualidade. (EDUCA, 2019) . |
Uruguai |
ReachingU A fundação financia e cocria programas de Educação de qualidade para crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade no Uruguai. (REACHINGU, 2019, tradução nossa). |
Fonte: Elaborado pelos autores a partir dos sites consultados.
Assim, a prestação de contas e a competição entre escolas e regiões são a língua franca desse novo “discurso de poder”; e a Educação, retomando Ball (2010, p. 39), torna-se “o novo modo de regulação social (e moral)”, subjetivando profundamente a prática docente. “A educação é, em vários sentidos, uma oportunidade de negócios” (BALL, 2004, p. 1.108). Dessa forma, o governo e o mercado passam a necessitar de novas ferramentas para a gestão do “negócio educacional”.
As práticas de governança educacional gestadas pela Reduca surgem como tecnologias políticas (BALL, 2002) e de controle (DARDOT; LAVAL, 2016). A seguir, discutiremos como a docência, foco da agenda educacional reformista, tem sido narrada e produzida por intermédio de discursos veiculados em programas da Reduca e de discursos político-eleitorais.
O papel do professor na racionalidade neoliberal
Em pesquisa já finalizada, utilizamos a siga MVP como uma provocação à performatividade docente (PASINI-LEANDRO, 2018). A designação é utilizada, sobretudo, nos esportes americanos, em especial no basquete, para eleger o Most Valuable Player – em tradução livre, “jogador mais valioso”. O ganhador desse prêmio é o atleta com o melhor desempenho individual dentre todos os participantes da competição. A titulação “O Professor MVP” não surge por acaso, uma vez que a valorização desse profissional está, na contemporaneidade, diretamente ligada ao seu desempenho, ou performance, como docente. Lembramos que o contexto neoliberal de organização da Educação leva naturalmente à competição; desse modo, não parece absurdo utilizar uma analogia esportiva para redefinir o papel do professor nessa sociedade meritocrática.
Nas duas pesquisas utilizadas neste artigo, percebeu-se que os discursos políticos – produzidos no âmbito do governo e no da rede de governança da Educação – pautam parte das reformas educacionais a partir do viés da ineficácia docente. O culto da eficácia e o imperativo da inovação/modernização pedagógica (LAVAL, 2004) são produzidos e propagados como verdades que reinscrevem a agenda educacional. O discurso da ineficácia docente se organiza pelo suporte de duas categorias centrais: a valorização da profissão docente e sua relação com premiações e performances; e a necessidade de reinvenção de práticas pedagógicas. Dentre essas duas categorias, a formação será o dispositivo regulador, responsável pela (re)invenção de modos de exercer a docência, valorizáveis no contexto neoliberal. O nosso desafio, neste artigo, ao articularmos as duas pesquisas, foi o de evidenciar que a agenda educacional, pautada pelas duas categorias analíticas citadas, reverbera tanto nas intencionalidades dos governos – por meio de propostas políticas de campanha eleitoral – quanto na rede de governança da Educação que tem uma forte participação do empresariado – como é o caso da Reduca. As categorias analíticas visibilizam metanarrativas sobre a docência, que se naturalizam na contemporaneidade.
A proposta de governo de Neves (2014, p. 51-52) sugere “incentivar o uso dos resultados das avaliações externas na melhoria da sala de aula e no avanço do desempenho dos alunos, a partir de estratégias que articulem metas por escola, ações de natureza pedagógica e prêmio de produtividade pelas metas alcançadas”. A propósito, o prêmio idealizado por Neves (2014) poderia ser batizado de “Professor Excelência”, como no programa de governo de Melo e Brizola (2016, p. 16); ou ainda de “Maestro 100 Puntos”, caso a Guatemala fosse o local do pleito eleitoral. Conforme a organização “Empresarios por la Educación”,
O prêmio Maestro 100 Puntos é uma iniciativa impulsionada pelos Empresários pela Educação, em conjunto com universidades, fundações, empresas, pessoas individuais, instituições de desenvolvimento, meios de comunicação, entidades internacionais e o acompanhamento do Ministério da Educação. O prêmio tem como propósito honrar o labor docente e do diretor, reconhecer boas práticas na aula e no estabelecimento, motivar os professores e diretores a fazer um bom trabalho, assim como sistematizar e divulgar experiências positivas a fim de que sejam repetidas (MAESTRO 100 PUNTOS, 2019, tradução nossa).
No contexto dessas propostas, professores e escolas seriam premiados pelos (bons) resultados da comunidade escolar. Com isso, fica uma indagação: Acreditariam os atores políticos ser necessário um incentivo financeiro extra para que os professores se empenhem em sua atuação profissional? A culpabilização dos docentes pelo mau-desempenho escolar é percebida nesses discursos, sendo a responsabilidade pela desvalorização dos profissionais retirada do Estado e delegada ao próprio professor, haja vista sua (des)qualificação como profissional da área educacional. As premiações vinculam a lógica racional gerencialista de resultados aos processos de aprendizagem nas salas de aula. Para o “Mexicanos Primero”, essa, em parte, é a explicação para a criação do Prêmio ABC,
porque os professores premiados estão concentrados na aquisição da aprendizagem de todos os seus alunos, no benefício para a comunidade, através do trabalho em equipe e, finalmente, da vontade constante de superação e prestação de contas, por meio de certificação periódica
(MEXICANOS PRIMERO, 2019, tradução nossa).
Fica explícita, nos discursos, a defesa da necessidade de os professores serem mais eficientes para receberem uma remuneração que esteja de acordo com os resultados alcançados. Por outro lado, vê-se uma série de propostas que aborda a necessidade de melhores salários, porém sempre atrelados à formação4 dos docentes. Os mecanismos de premiação, no entanto, podem apenas transformar o próprio salário dos docentes no “resultado meritocrático” do exercício da profissão professor. Para Sartori e Cairoli
igualmente importante é o esforço a ser feito na melhoria da remuneração dos professores. [...]. Sem isso, persistirão os problemas de recrutamento de quadros qualificados, evasão e baixa autoestima dos professores, no final, a má-qualidade da educação (2014, p. 20).
Ao encontro disso, Neves (2014, p. 48) deixa clara a relação entre os discursos sobre falta de eficiência e eficácia, propondo vincular “a remuneração dos professores à melhoria da aprendizagem dos alunos”.
A performatividade, como “tecnologia política de reforma”, produz subjetividades docentes. A lógica do desempenho, mais do que um processo de mensuração da eficácia e da eficiência, produz efeitos nas subjetividades dos praticantes (BALL, 2014). Nesse sentido,
a performatividade é uma tecnologia, uma cultura e um modo de regulação que se serve de críticas, comparações e exposições como meios de controle, atrito e mudança. Os desempenhos (de sujeitos individuais ou organizações) servem como medidas de produtividade e rendimento, ou mostras de “qualidade” ou ainda “momentos” de promoção ou inspeção
(BALL, 2002, p. 4).
Para atingir as métricas de produtividade, todavia, os discursos reformistas consideram ser necessário modificar a estrutura da formação docente. A promessa de Rousseff (2014, p. 18) garante o compromisso de “enfrentar o desafio de valorizar o professor, com melhores salários e melhor formação”. Por sua vez, Marchezan (2016, p. 10) cita a necessidade de qualificar o atendimento na Educação Infantil, mediante a “formação continuada dos profissionais”. Já Sartori e Cairoli (2014, p. 22) prometem “investir na qualificação dos professores, promovendo e incentivando ampla e permanente atualização”, enquanto Genro e Pereira (2014, p. 21) citam a “formação continuada dos professores e professoras, visando mais qualidade na educação”.
O quórum formado pelos candidatos, em distintas posições do espectro político,5 legitima-se perante a sociedade civil através das iniciativas das organizações das redes políticas. A campanha argentina #QuéMaestro “tem como principal objetivo revalorizar e reposicionar o papel docente na sociedade civil” (PROYECTO EDUCAR – 2050, 2019, tradução nossa). No Brasil, o apelo à profissionalização docente é materializado pelo projeto “Todos pela Educação Profissão Professor”, o qual avança diretamente ao encontro da ação governamental “para contribuir com o avanço de mudanças estruturantes em âmbito nacional, presentes na agenda do Educação Já”.6
As campanhas e os programas organizados pela Reduca estão projetados para modificar o significado da profissão docente. Conforme Lyotard (2009, p. 4-5), “o antigo princípio segundo o qual a aquisição do saber é indissociável da formação (Bildung) do espírito, e mesmo da pessoa, cai e cairá cada vez mais em desuso”. A mercantilização do saber está sendo engendrada pelo empresariamento da Educação, contexto em que a subjetivação docente se faz necessária para o sucesso desse processo.
A construção das reformas formativo-docentes passa diretamente pela reinvenção das práticas pedagógicas, pautada intensamente pelo culto à modernização tecnológica. Nessa perspectiva, para Melo e Brizola (2016, p. 16), há a necessidade de “modernizar os espaços tecnológicos nas escolas, lousas interativas, acesso pleno à internet e incentivo à robótica, que já são destaque no município, inclusive com participação em competições internacionais. Todavia, do mesmo modo que Sartori e Cairoli” (2013, p. 22).
O culto pela modernização é questionado por Saraiva (2006, p. 104). Para essa pesquisadora, há um caráter messiânico implicado nesses discursos, “que consistem na busca de alguém ou de algo capaz de solucionar os problemas que hoje experimentamos, levando todos para uma terra prometida onde corra o leite e o mel”. Todavia, do mesmo modo que Sartori e Cairoli (2014, p. 22) buscam “redobrar esforços para dotar, progressivamente, nossas escolas de equipamentos e meios que potencializem a aprendizagem, tais como laboratórios, bibliotecas e salas digitais”, no Peru, os atores envolvidos no projeto “Inclusión digital”
têm como objetivo que os docentes das escolas públicas do país incorporem, de maneira adequada e efetiva, os recursos tecnológicos ao desenvolvimento de suas aulas e, assim, contribuam para uma melhor aprendizagem dos estudantes
(EMPRESARIOS POR LA EDUCACIÓN, 2019, tradução nossa).
De forma semelhante, e não coincidentemente, Neves reforça as narrativas em suas propostas:
Apoio à modernização dos equipamentos escolares, incluindo a instalação de bibliotecas e laboratórios, computadores e acesso à Internet, e adequação térmica dos ambientes para o tempo de verão, garantindo a todas as escolas brasileiras condições adequadas de infraestrutura, incluindo conexão WIFI acessível a todo estudante (2014, p. 49).
As reformas de cunho tecnológico criam o binômio modernização/inovação. Nesse cenário, mostra-se perspicaz o rótulo do programa “Innovar para Aprender”, iniciativa que “busca transformar a educação chilena através da implementação de enfoques pedagógicos que mudem as dinâmicas de ensino e aprendizagem dentro da aula” (EDUCACIÓN – 2020, 2019, tradução nossa).
Os cruzamentos entre projetos da Reduca e propostas político-eleitorais materializam e visibilizam metanarrativas contemporâneas sobre a docência. Premiação, performatividade, desempenho, meritocracia, falta de formação e necessidade de atualização para a (re)invenção das práticas pedagógicas a partir do imperativo da inovação/modernização são temas recorrentes tanto nos discursos político-eleitorais quanto nos veiculados em programas da Reduca. As análises possibilitaram compreender os processos de responsabilização dos sujeitos pelos sucessos e fracassos da Educação, que tem sido pautada fortemente pelo mercado. Nesse sentido, as bonificações e formações voltadas, em grande medida, à difusão e a construção de “boas práticas pedagógicas”, ou de “práticas pedagógicas eficazes”, partem do pressuposto de que “cada indivíduo deve ser seu próprio supervisor, mantendo atualizadas a contabilidade de seus resultados e a adequação às metas que lhe foram atribuídas” (DARDOT; LAVAL, 2016, p. 315).
Na racionalidade neoliberal, o mercado atravessa e constitui o tecido socialinstitucional. No caso da Educação, percebe-se, por meio dos dados abordados ao longo do artigo, a forte atuação dos empresários em diferentes países da América Latina e a reverberação desses discursos nas campanhas eleitorais do governo brasileiro. Diante disso, compreender como a Educação vem sendo reinscrita a partir dessa e de outras redes de políticas é fundamental para desnaturalizarmos os discursos veiculados por tais redes.