Introdução
O presente estudo, por meio da relação que se estabelece entre a singularidade privada, a vida cotidiana e a necessidade religiosa, objetiva problematizar a posição do indivíduo em relação à generidade. Como o sujeito humano tem, no cotidiano, a base de sua práxis, a personalidade privada sustenta todo o movimento do entorno do indivíduo. O centro da problemática, desse modo, gira ao redor do seguinte questionamento: Como superar a personalidade privada, garantindo, ao mesmo tempo, que ela continue central para a pessoa humana?
Toma-se como base, para enfrentar essa problemática, os seguintes apontamentos lukacsianos: a orientação religiosa tende a afirmar a personalidade privada, deixando-a presa na pessoa singular. Ou seja, a religião prende a personalidade do sujeito singular. Já a ciência e a arte – mas também a ética –, cada uma à sua maneira específica, possibilita que a singularidade da pessoa privada seja preservada, ao mesmo tempo que é superada.
Essa superação, posta em prática pela ciência e pela arte, de modo algum, aniquila a privaticidade singular. Ela continua, com efeito, sendo a base vital que, por isso mesmo, promove o essencial das forças necessárias para o autoaperfeiçoamento da pessoa humana: é o depósito íntimo que alimenta, por um lado, os esforços direcionados à imediaticidade e, por outro, os motivos que apontam para o cume da existência humana.
A maioria das religiões, de modo contrário, cria um elo inseparável entre o mero ser-assim de cada sujeito privado e o seu destino pessoal. O crente, sujeitado à religiosidade, vincula seu destino ao mais-além. Essa conexão transcendente força o sujeito a pleitear a autossalsalvação, ou seja, alcançar a graça do mais-além exclusivamente para si próprio: apenas para a pessoa singular privada, processo que reforça a preservação da personalidade privada do crente sujeitado à religião. O complicado, quando isso ocorre, é que a preservação da pessoa privada não pode, no entanto, simplesmente, se contentar com a preservação fixada na singularidade privada.
A superação dialeticamente conservada, possibilitada pela ciência e pela arte, cada uma à sua maneira, garante ao ser humano sua elevação para o socialmente possível. Esse processo dialético produz, no sujeito humano, transformações estruturais de conteúdo que retroagem sobre o indivíduo, de modo que sua existência originária, ou imediata, se enriqueça qualitativamente.
Para a presente exposição, o que mais interessa da especificidade da preservação da personalidade privada, posta em ação pela forma religiosa do cristianismo, são seus desdobramentos sobre a esfera estética, haja vista que o nascimento e o desenvolvimento dessa forma religiosa, sobretudo no Ocidente, cobram da arte determinada demanda social.
Durante muito tempo, principalmente em determinado período da Idade Média, a arte consegue, sob uma luta incessante e perante inúmeras contradições, colher de tal cobrança os elementos necessários para criar suas refigurações e, assim, abrir as veredas do autêntico realismo. O desenvolvimento contraditório da sociedade, principalmente com a evolução da ciência, contudo, impôs modificações sociais no âmbito das necessidades religiosas. As transformações que essa classe de necessidade sofre na modernidade demanda, decisivamente, de novos contornos para a relação entre arte moderna e religião.
Esse é o arcabouço em que a presente exposição, de caráter teórico-bibliográfico, busca desenvolver a articulação entre a pessoa privada e a necessidade religiosa. Dessa tematização, retiram-se inferências sobre a arte moderna. O ponto de partida do artigo é o chão do cotidiano, dado que é nesse solo que o sujeito singular vivencia sua práxis. Opta-se, do ponto de vista do método, por uma leitura imanente do Capítulo 16 da Grande estética de Georg Lukács.
Necessidade religiosa e destino humano: à procura de um sentido para a vida
Para que a exposição possa se erguer com sustentação histórica, inicia-se pelo nascimento do eu privado. A singularidade do sujeito privado nasce com o fim do comunismo primitivo. Em estágios primitivos, o sentimento do eu não existe, senão germinalmente, in nuce. Na vida diária dos homens e mulheres contemporâneos, todavia, esse sentimento é completamente dominante. Para que ele se erguesse ao patamar da vida diária que se vive hoje, precisou percorrer, contudo, um longo caminho.
O desenvolvimento do trabalho e com ele o desdobramento de outros complexos sociais, possibilitou que se formasse a consciente relação objeto-sujeito. A divisão social do trabalho teve que alcançar um relativo e complexo patamar de desenvolvimento, para que a dissolução do comunismo primitivo fosse consumada. Sem esses elementos, o conjunto humano não tinha como pensar em possuir um eu privado como centro intelectual e emocional da vida. Todo esse processo é resultado de uma longa e contraditória evolução histórica. Seus estágios iniciais provavelmente nunca poderão ser esclarecidos com precisão.
Com base no desenvolvimento contraditório da divisão social do trabalho, importa para a presente investigação destacar duas questões: a) essa evolução corre em paralelo com a transformação da magia em religião; e 2) o que primaria espontaneamente e se irradia através de todos os fenômenos da vida é a necessidade elementar, absorvida pelo sujeito humano, de sentir e entender sua pessoa privada como o centro real do mundo.
Comecemos pela problemática da necessidade religiosa que, por sua vez, tem desdobramento e crescimento na vida cotidiana. A espontaneidade dessa esfera da vida faz com que tudo se refira ao eu privado de cada sujeito dado. Não se pode esquecer que o trabalho e as experiências que dele brotam, educam o vivente a prestar profunda atenção às legalidades desantropomórficas da realidade objetiva que o rodeia. Para o adequado progresso na vida cotidiana, porém, é necessário que os conhecimentos adquiridos dessa experiência retroajam sobre o eu privado enriquecendo-o antropomorficamente.
O êxito ou fracasso no domínio do trabalhador sobre o mundo tem chão nas averiguações das leis imanentes do mundo. Ao trabalhar, ao operar sobre a matéria natural, as legalidades conquistadas intelectualmente aparecem como se fossem produtos unicamente do sujeito: antropomórficas. O agente da vida cotidiana esquece, com demasiada frequência, que é ele o produtor do mundo social e que, por meio do trabalho, impõe ao mundo objetivo sua vontade, seu desejo, suas necessidades. As finalidades postas pelo trabalhador, a teleologia pela qual orienta o que quer extrair como produto de seu trabalho, por ser esquecida na cotidianidade, deixa o vivente em dúvida se é ele próprio o criador de si mesmo e do destino de sua vida. A consequência disso é acreditar que há, no mundo, um elemento teleológico; de modo que nessa transcendência teleológica, o destino pessoal privado dependa de uma entidade não terrena.
Todo esse processo deixa o sujeito humano diante da dicotomia de ser o mundo absurdo ou ter um sentido a priori. Como não é possível eliminar o acaso do decurso da realidade objetiva, a presença da inevitável e incontrolável casualidade abre toda sorte de interpretações a qualquer contingência que surja na vida cotidiana. Nessa esfera da vida, o acaso aparece ao sujeito humano como algo que perturba, incalculavelmente, sua teleologia, seus planos. Na mescla entre a vida ter um sentido ou ser absurda, portanto, brota um dos principais elementos que cobra do vivente cotidiano a necessidade religiosa: um sentido para o destino da humanidade que absorva o acaso.
Independentemente de todas as diferenças entre as diversas formas de religião, para o problema que agora se aborda, importa repetir que, no complexo religioso, se produz uma ativa tendência a referenciar o destino da pessoa privada à teleologia universal. Essa viva linha tendencial guarda a regulação externa-interna dos viventes, o que lhes faz crer, quando seguem a imagem de mundo projetada pela religião, que ela é capaz de resolver todos os problemas que surgem no curso da vida. Ao se cumprir a necessidade religiosa em seu fundamento, os desejos privados adquirem garantias de satisfação, mesmo que não seja no mundo concreto, senão no mais além. Aqui, tanto o fracasso como o êxito surgem da causalidade sem sentido do decurso cósmico.
Ademais, como anotado em sua Grande estética, “ocorre que no comportamento religioso concreto, os limites entre ambas as esferas [de valores] tendem a não ficarem nítidos e que, de outra parte, nenhuma religião [...] pode renunciar à dimensão teleológica dos destinos humanos privados e singulares [...]”
(LUKÁCS, 1967, p. 492).1
Sobre esse debate, interessante é mencionar, mesmo que apenas a título ilustrativo, que, no capítulo dedicado ao trabalho, no livro Para a ontologia do ser social, Lukács (2018a) lembra, com Marx, que a teleologia não é um atributo cósmico-natural como entendia Aristóteles, tampouco, como queria Hegel, é um atributo presente na história-social. A teleologia, do modo como o filósofo húngaro interpreta Marx, apenas é orientadora dos resultados sociais por ser específica à atividade do sujeito humano.
O próprio agente humano, como escreve o filósofo, e apenas ele, “[...] é aquele que, em conexão imediata com a ocasião dada, ou guiado por perspectivas mais gerais, dá sentido ao acontecimento ‘sem sentido’ [...]” (p. 492); isto é, confere um significado à dada ocorrência. Esse sentido conferido pelo sujeito humano a determinado acontecimento, apenas pode ancorar seu valor, como complementa o filósofo, na medida em que a nova compreensão contida na entrega do vivente à ocorrência, torna-se capaz de direcionar, mais adequadamente, a atividade futura desse mesmo sujeito, fornecendo-lhe um modelo para sua prática cotidiana.
Esse debate possibilita investigar a relação entre os elementos morais que interferem nas emoções e nas decisões do sujeito e a privaticidade da pessoa singular. Para que essa relação seja analisada, há de se considerar, com o autor, o seguinte: por maiores que sejam os sacrifícios, as adaptações e até as renúncias de si mesmo que a teodiceia da dor é capaz de promover no vivente, o objetivo final da proposta religiosa é a salvação da alma do indivíduo em questão. Isto é, a preservação sublimada da privaticidade da pessoa singular reduz a vida cismundana a uma mera preparação para a esperança de uma salvação no além-vida.
O mundo pedestre, com essa preservação, torna-se um mero lugar de prova, de teste para uma vida melhor no mais-além. Esse processo impede que homens e mulheres considerem as circunstâncias em si mesmas valiosas, obstacularizando que as forças vitais brotadas da imanência da vida pedestre movimentem o conjunto humano para além da privaticidade pessoal-singular.
O vivente submetido a esse processo acaba se deparando com uma inevitável contradição, a saber, na medida em que os acontecimentos da vida cotidiana ganham vida própria, pois são realizações efetivas da ação humana, o conflito com o objetivo final transcendente – a esperança na vida do mais-além – torna-se indesviável.
O essencial do debate até aqui apreendido é o fundamento da necessidade religiosa na vida cotidiana. Em outros termos, o vivente privado da vida cotidiana almeja que haja uma inflexão teleológica que corresponda às necessidades mais básicas e vitais que ele vivencia na cotidianidade. Esse desejo, legitimamente humano, pleiteia a existência de um nexo causal entre os acontecimentos – completamente independente da consciência humana: desantropomórficas – e as necessidades do indivíduo privado de cada caso.
Quando, no entanto, a vida individual de um determinado sujeito desenvolve-se na fragmentação e sem objetivos causais que guiem seus desejos, naturalmente, exacerba-se a necessidade religiosa. Como a entidade sensível individual da existência da pessoa humana conecta-se com a condição que a sociedade lhe impõe, essa conexão torna-se o elo que coloca em prática a atividade pessoal de homens e mulheres.
Considerando que a pessoa singular privada almeja, por um lado, um sentido para sua vida e, por outro, que há articulação polar entre a demanda social e os anseios subjetivo-privados, pode-se inferir que uma conduta humano-individual que busque um aperfeiçoamento cismundano, que procure, por meio de uma tendência imanente, um comportamento ético e pedestre diante de questões decisivas da existência humano-social, criam obstáculos ao surgimento da necessidade religiosa no cotidiano.
A práxis pedestre, com efeito, deve ser o critério para a religião, e não, o contrário. Observa-se, entretanto, que, de maneira geral, as concepções religiosas, tendencialmente, aumentam sua influência sobre a classe trabalhadora na medida direta em que a política reformista aumenta sua influência sobre a sociedade. Há, com efeito, a utilização utilitarista do complexo religioso pela política.2 O mundo contemporâneo está cheio de exemplos em que determinado líder militante-político, bem como seus seguidores, assimilam a religiosidade que é útil para sua ação prático-imediatista.
Esse utilitarismo desdobra-se agudamente, sobre a sociedade, dado que a transcendência do complexo religioso retroage sobre o social, impregnando-o do conservadorismo próprio da desconsideração do humano como produtor de si mesmo.
Desse debate o que mais importa é o fato de que, para o sujeito pedestre, a gênese ou a extinção da necessidade religiosa parece ser, acima de tudo, um problema da prática da vida. Como escreve Lukács,
[...] na maioria dos homens a decisão entre o mais além e esta vida depende de que consigam ou não satisfazer na Terra as necessidades mais profundas de suas vidas, ou se pode empreender pelo menos uma luta pela satisfação futura dessas necessidades, luta que consegue dar às suas vidas um significado interno
(1967, p. 501).
Para o autor interessa registrar o fato de que a práxis social exitosa libera forças humanas orientadas a uma realização cismundana. O desdobramento dessas forças sobre o sujeito humano faz com que ele perceba a capacidade humana como coisa pedestre, que lhe é própria. Percebendo-se como produto de si próprio, o vivente consegue enxergar o teor negativo na esperança transcendente da vida, fora do mundo concreto, no mais-além, o que abre espaço para a desconfiança na vida após a morte.
Perante uma luta nada pacífica, considerada ao longo da história, percebe-se um recuo da influência religiosa sobre a imagem de mundo. Se se considera o manto ideológico que reveste a Idade Média, que, por sua vez, se desenvolve sobre um processo de muitas contradições e jamais linear, o avanço – também contraditório – do reflexo desantropomórfico científico é inegável. Os achados copernicanos e de alguns de seus seguidores, as pesquisas de Newton, o darwinismo, as investigações de Marx e Engels, dentre outras iniciativas, impõem à verdade religiosa que ela abra mão de territórios antes exclusivos ao domínio teológico-transcendente.
O resultado dessa disputa fragmenta alguns dos mais importantes pilares da concepção religiosa de mundo. A revelação religiosa3 sofre, em vista dessa fragmentação, sérios e irreparáveis danos. Essa rachadura da revelação religiosa é importante, dado que ela é a base de toda religião que procura agir como força social, funcionando, como “[...] a única garantia da realidade das representações religiosas como tais e da natureza concreta da transcendência afirmada nelas” (LUKÁCS, 1967, p. 505). A fé religiosa, portanto, perde a única salvaguarda possível “[...] do ser e, acima de tudo, do ser-assim daquela transcendência [...]” em que se baseia tal fé (p. 505). Sem sua revelação, ou com ela rachada, a fé religiosa perde o elo que serve de conexão entre ela e os crentes. Essa ligação é importante para a fé, uma vez que é por meio de tal conexão que a pessoa singular privada acredita encontrar, em certa personificação de um Deus, a garantia de seu destino.
Autodissolução da revelação religiosa e alguns de seus desdobramentos: uma síntese
Mesmo sendo necessário analisar todas as consequências que as rachaduras sofridas pela revelação religiosa têm, na totalidade do desenvolvimento da religião, essa tarefa não pode ser desenvolvida aqui. Para Lukács (1967) importa mais ilustrar os efeitos da autodissolução da revelação religiosa sobre o pensamento religioso contemporâneo. Isso se justifica, pois, assim, torna-se possível uma adequada relação entre os efeitos dessa autodissolução e a produção artística contemporânea. As pesquisas do autor húngaro registram que, com o abandono da prova da revelação em si, as religiões passarem a procurar complementação para seus dogmas em diversos campos, inclusive fora da própria esfera religiosa. Admite-se, com isso, que a religião não é mais a única guardiã da verdade.4 Tornou-se possível, na prática do crente, mesclar certo dogma de determinada religião com os preceitos de outra. Podem ser rejeitados aqueles que apetecem ao sujeito com outros que, a seu gosto, não podem compor o cardápio de sua fé. Toda essa miscelânea destrói a unidade – antes indivisível – da revelação religiosa em sua concreta relação com o crente.
O rebatimento desse processo de dissolução da proposta religiosa interliga-se, intimamente, com a desintegração do sujeito humano. O comportamento subjetivo do crente decompõe-se, inclinando-se para a mais banal redução ou, no melhor dos casos, ao esvaziamento da subjetividade. Sem o objeto de sua fé, ou com ele pulverizado em objetivos superficiais, o caminho é o desespero. Para fugir desse processo – em momentos de crise, ele se intensifica – o agente humano procura conforto no refúgio espiritual de um niilismo inconformista.
A resultante dessa fuga desemboca, na maioria das vezes, como registra Lukács (1967, p. 515), em “[...] algum elegante ceticismo conservador ou restaurador”. Para o esteta magiar, independentemente da intensidade com que se manifestam as expressões desse desespero religioso, e do modo como ele distorce e retroage sobre a realidade que o produziu e reproduziu, ele é fruto de uma necessidade religiosa produzida pela contemporaneidade. Do ponto de vista social, “[...] a necessidade religiosa característica dos nossos dias é uma necessidade de origem subjetivamente necessária, produzida, portanto, pelas forças sociais de efeito mais essenciais nesta época” (p. 516).
Estando claro o caráter fragmentário da necessidade religiosa moderna, bem como seus rebatimentos principais, abre-se a possibilidade de esclarecer o que há de autêntico em tal carência. Para atender a esse plano, é preciso observar o que é subjetivamente sincero e o que é, necessariamente, produzido pela evolução histórico-social. O debate precedente mostrou que apenas é possível conseguir o desdobramento da evolução do humano particular quando a personalidade privada da pessoa humana é preservada ao mesmo tempo em que é superada. O problema é que a orientação transcendente a uma salvação no extra-terrenal, fora do mundo pedestre, cria obstáculos ou até mesmo destrói as formas que dotam o sujeito humano de elementos que lhe possibilitem desenvolver, com base em sua privaticidade, a almejada autorrealização.
Essa contradição cobra a importância do conceito de criatura religiosa, haja vista que, embora baseado na privaticidade, esse conceito abarca todas as tendências humanas que se inclinam à superação do meramente singular-privado por meio das forças sujeitadas à cismundanidade. Isso implica dizer que, em caso de conflito, nos momentos de crise, sobretudo aguda, na hora em que o indivíduo precisa, decididamente, tomar uma posição, a religião aponta um caminho de conduta. Nesses casos-limites, a religião condena, severamente, qualquer tendência aparentada ao orgulho, à soberba, ao egoísmo, entre outros sentimentos dessa monta, que procuram desviar a criatura humano-religiosa do caminho de Deus.
Aproximações entre o neopositivismo e a necessidade religiosa: da farsa à tragédia
Como visto, o avanço científico restringe o alcance da religião. Apesar disso, apenas parte das chamadas ciências da natureza consegue pôr em prática o desenvolvimento alcançado pela luta da ciência em defesa de uma imagem de mundo desantropomórfica e imanente. O debate sobre a dialética da necessidade religiosa, mesmo que em suas linhas sócio-históricas mais gerais, abre os elementos para entender como tal necessidade se comporta no modo de produção capitalista. Esse plano é importante, pois lança luz sobre a relação entre religião e arte moderna, objeto específico da comunicação de agora em diante. Para desenvolver, adequadamente, essa tematização, é necessário considerar a inconciliável oposição entre, de um lado, a imagem científico-filosófica de mundo e, de outro, a imagem religiosa-teológica.
Para Lukács a compreensão moderna de mundo faz ressurgir a tese de dupla verdade defendida na Idade Média pelo Cardeal Belarmino. Quando a história se repete, contudo, como registrou Marx (2008), há um deslocamento da tragédia para a farsa. Se, antes, era a dupla verdade do religioso que dava o encaminhamento para se entender o mundo, na concepção moderna, surge a dupla vida do poeta Gottfried Benn (1970). Para esse escritor, tanto faz como tanto fez, pois a realidade não existe mesmo. Observemos suas palavras:
Na guerra e na paz, na frente e na retaguarda, como oficial, assim como médico, entre acumuladores e as excelências, diante de células de borracha e da prisão, junto de camas e caixões, no triunfo e na decadência, nunca abandonei o transe de que a realidade não existe (BENN, 1970, p. 26).
A atração que as ciências da natureza, com pretensão filosófica,5 exerce sobre a síntese religiosa que, como visto, perde espaço para a ciência, compõe essa ilusória dupla vida almejada por Benn. Cenário satisfatório para fertilizar o desencontro entre o fazer humano e sua capacidade de compreender o mundo.
Essa misturada dupla vida, que nada mais é senão a fragmentação radicalizada do indivíduo humano sob o capitalismo, interpreta que tanto a ciência como a religião são incapazes de compor, cada uma à sua maneira, uma imagem unitária de mundo. Todo esse processo prepara um encontro entre a Teologia e neopositivismo que, por força das necessidades do capitalismo, se ergue ao patamar de entidade científico-moderna de maior poder.
A efetivação prática da atração entre o neopositivismo e a Teologia moderna, resulta que se substitui a imagem de mundo unitária por uma cosmovisão. Como explica Lukács, tanto o neopositivismo como a Teologia moderna retiram do conceito de imagem do mundo o caráter objetivo. Passa-se ao utilitarismo que, por conseguir relativo êxito nas ciências da natureza, atende às especificidades do desenvolvimento capitalista. Aceita-se como instrumento intelectual para compreender a realidade, não o desantropomorfismo imanente do objeto mundano, senão cria-se um mero modelo, que, por ser tecnologicamente útil em certas situações e para determinados fins, atende aos desejos mercadológicos do capitalismo.
Notadamente, esse desejo não leva em conta o modo como seu conteúdo de verdade se comportará em outras conexões, ou mesmo em relação a outros aspectos do mesmo fenômeno que se relacionam com o destino autenticamente humano. Ele apenas procura atender, principalmente, àqueles relacionados ao desenvolvimento da produção capitalista. Nesse arranjo tecnologicamente utilitarista, não se considera o modo científico de verificação do conteúdo de verdade, interessa apenas se o resultado atende aos anseios do modo de produção capitalista.
Não é objeto do presente artigo aprofundar a crítica que Lukács empreende contra o neopositivismo. Basta, para as intenções deste texto, mencionar o exame que Lukács faz sobre alguns dos princípios lançados por Rudolf Carnap, presente no Capítulo I da Pequena ontologia: neopositivismo e existencialismo (LUKÁCS, 2018b). Nesse capítulo, o esteta de Budapeste demonstra, por meio de um exemplo específico, como o neopositivismo carnapiano claramente se baseia na manipulação lógico-linguística.6
Teóricos neopositivistas como Carnap hoje podem, raramente desencadeando objeções, se referir a que, quando engenheiros medem uma montanha, para o resultado desta sua atividade é totalmente indiferente como eles filosoficamente se postam para com a qualidade de ser do mensurado. Isso parece imediatamente correto para muitos. Apesar disso, não pode ser negado que uma montanha, independentemente das opiniões filosóficas já muitas vezes fortemente influenciadas dos engenheiros que a medem, deve ser acima de tudo existente para poder ser medida. Assim como no período da coleta só se podia colher amoras existentes, também na época do mais elevado desenvolvimento da manipulação técnica pode-se apenas medir montanhas realmente existentes.
(LUCKÁCS, 2018b, p. 11).
Esse utilitarismo tecnológico é aceito como sucedâneo da visão de mundo desantropomórfica. Nele, tanto o neopositivismo como a Teologia em sua fase moderna, sentem-se confortáveis para administrar uma objetividade relativa. De uma só tacada se nega, por um lado, a possibilidade de apreensão teórico-prática da unidade objetiva da realidade e, por outro, entrega esse mundo à cosmovisão.7
O resultado desse acordo científico-teológico-utilitarista sobre o sujeito humano mostra sua cara mais perversa no fato de prender sua essência atada, radicalmente, a mera privaticidade da pessoa singular. A saída, para que o indivíduo se liberte dessa opressão, se ancora na pura abstração econômico-social, haja vista que, em última instância, os homens e mulheres da atual sociedade capitalista vivem em um mundo completamente reificado. A dinâmica dessa coisificação decompõe todos os vínculos mediadores concretos entre eles e a sociedade, o que reduz todas as relações humanas concretas a puras abstrações econômicas do ter. Socialmente, o sujeito apenas se realiza quando tem o poder de comprar para possuir privadamente algo.
Essa antinomia sobre as relações humanas concretas que é abstrata ao mesmo tempo que é também privativa, toma corpo por todos os ramos da vida social. Vai desde a cegueira entusiasmada pela evolução de uma suposta era tecnológica,8 até o desabafo crítico-desesperado contra o desenvolvimento cultural. O resultado disso é que a vida humana, ao mesmo tempo que não ultrapassa sua mera privacidade, é dominada por forças puramente abstratas, que vão desde sua atividade profissional até a esfera do tempo livre, tomadas, por sua vez, por numerosos fatores: moda, mídia, vestuário, processo educativo, alimentação, sexualidade, férias, etc.
No capitalismo imperialista, segundo indica o filósofo húngaro, há uma diferença em relação aos períodos anteriores. O capitalismo, antes de sua fase imperialista, consegue transformar, por intermédio da maquinaria, as formas de trabalho em relação ao tempo socialmente necessário para sua realização (LUKÁCS, 1967). Hoje, além de uma transformação radical dessas formas de trabalho, do modo como ele se realiza, há toda uma capitalização da vida privada da pessoa singular. Transformam-se em dinheiro com o apoio do aparato discursivo-tecnológico, os elementos mais sutis e íntimos de cada indivíduo privado. A pessoa singular fica entregue a toda sorte de sedução que acena à preservação de sua privaticidade por meio da esfera econômico-social.
Mesmo que o sujeito singular tenha, ou não, consciência disso, “[...] o paradoxo da necessidade religiosa contemporânea é exacerbado pelo fato de que, em muitos casos [...]”, a vida do mais-além, ancora-se no Nada9 (LUKÁCS, 1967, p. 523).
Como não há mais um sentido mundano para a vida concreta, como a ciência e até a religião, perderam a capacidade de explicar o mundo unitariamente, postula-se, para compensar a falta de sentido mundano, um significado sobrenatural. Por isso, aspira-se a um prolongamento da vida pedestre que, por intermédio de um místico significado, estaria carregada de sentido. O problema é que, “no lugar de uma religião, por mais corrigida que seja, surge frequentemente um ateísmo religioso em que a necessidade religiosa, que às vezes adquiriu uma intensidade extraordinária, não tem outro conteúdo senão o desespero, uma angústia sem nome” (LUKÁCS, 1967, p. 525).
Em síntese, tomando o desenvolvimento da arte em relação à sua luta por independentizar-se da religião, o paradoxo que chega à produção artística atual assenta-se na seguinte situação: há um visível esvaziamento da imagem religiosa do mundo, não obstante, exista uma conexão maior e mais intensa entre arte e religião.
Em séculos anteriores, apesar da luta sem tréguas que a arte travou por sua independência referente ao complexo religioso, o elo entre produção artística e necessidade religiosa era bem mais contraditoriamente mediado, o que abriu as veredas para o surgimento e o desenvolvimento do realismo artístico. Em épocas anteriores, a arte liga-se à religião por um processo dialético-unitário e unívoco. A capitulação contemporânea desfruta de uma articulação mecânica entre arte e uma religião que já não sabe mais qual é a imagem de mundo que defende.
Hoje não há mais luta entre arte e religião, senão um encontro desprezível que desconsidera, perigosamente, o mundo concreto que rodeia produtores e receptores. Contemporaneamente – com raras e notáveis exceções –, a arte e a necessidade religiosa encontram-se na completa ausência de conexão temática entre elas e a mundanidade. Isso, para o complexo artístico, resulta em descrição subjetiva – negação na narração realista – e no abandono da relação conteúdo-forma, possibilitando ao artista, quando muito talentoso, apanhar os ventos do naturalismo.
Essa diferenciação pode ser bem-ilustrada pela distinção existente entre a arte de hoje e a renascentista. A abordagem religiosa-contemporânea não fortalece uma dada objetividade sensível que possa orientar a criação da forma. Na Idade Média, sobretudo no Ocidente europeu, distintamente, promoveu-se um robustecimento da objetividade sensível que dava o mote para que o realismo ganhasse forma. Nas obras atuais, há a promoção da corrosão ou até mesmo o aniquilamento dessa estrutura objetiva. A tendência contemporânea que procura coincidências entre arte e religiosidade, tendencialmente, também elimina a luta entre o complexo artístico e o religioso. Pugna tal que, na Idade Média, de modo latente ou inconsciente, possibilitou, por meio do reflexo da arte, o florescimento e a fortificação de uma grandiosa autoconsciência humana.
Notas conclusivas
O complexo religioso tem a tendência de preservar a proximidade estrutural existente entre a vida e a cotidianidade. A arte e a ciência, motivadas por suas imanências próprias, ao contrário, destroem a referência teleológico-espontânea ao eu privado, alçando o sujeito a um determinado soerguimento.
A submissão contemporânea na qual a arte se submete a princípios determinados por uma nova, fragmentada e oscilante necessidade religiosa, apresenta natureza espontânea e sem orientação. Esse caráter amorfo e de perfil eclético, assumido pela atual necessidade religiosa, é o elo de ligação entre a religião e a arte moderna. Tal eclética conexão dá apoio às tendências destruidoras das formas estéticas. Como sintetiza Lukács (1967, p. 528), “e como essa necessidade não tem hoje uma unidade organizada nem um poder oficialmente visível, o artista capitula calmamente sem se sentir magoado em sua vaidade inconformista”. E mais:
O artista se encontra na confortável situação consistente em que pode se submeter sem condições para essas necessidades religiosas comuns e, entretanto, continuar executando todos os gestos da personalidade inconformista, puramente baseada em si mesma, embora seja claro que, objetivamente, esse seu inconformismo está tão submetido ao domínio absoluto da moda como está o toillete mais pessoalmente pensado por uma dama [que se considera] elegante
(1967, p. 528).
Desse cenário surge a tentação que atrai a prática artística atual. Desperta-se no criador contemporâneo a ilusão de que é possível a experimentação ilimitada. O produtor não enxerga que, por trás de toda essa ilusão, se esconde uma infinitude vazia e depreciada que apenas permite variações em sua forma. Essa ilusória experimentação sem limites diminui ao extremo a possibilidade de construção de uma consciência adequada aos fundamentos mundanos da vida humana. O resultado desse desespero formalista é a adesão à moda do inconformismo. Ao aderir a esse modelo ditado pela moda artística contemporânea, o criador prepara-se – e prepara o receptor – para conviver, psicologicamente, com o nada.
A capitulação da arte moderna, perante a nova necessidade religiosa, é socialmente condicionada. Traz como novidade, por ter o nada como horizonte, o enfraquecimento, o descompromisso e a ausência de conteúdo.
Todos esses elementos enfraquecem a capacidade artística de desenvolver as determinações necessárias da criação. O fechamento da obra, assim, não consegue apanhar, por meio da dialética imanente da vida humano-social, os caracteres que possibilitam configurar seres humanos e suas relações socialmente típicas, desfaze-se o realismo artístico. Quanto mais cresce essa fraqueza, mais os artistas procuram introduzir, em suas composições, categorias externas ao campo da arte; por exemplo, descrições científicas, entre outros elementos da esfera da ciência. O resultado é o abandono da arte autêntica e sua substituição por um sucedâneo. Melhor dizendo, pela tentativa desesperada e vazia de encontrar um conteúdo verdadeiro que possibilite o registro da autoconsciência da humanidade.