1 O contexto do letramento em debate
As questões que envolvem processos de ensino e aprendizagem na escola pública, suas dificuldades, seus avanços e desafios e suas possibilidades, sempre foram de interesse de pesquisadores, professores e de todos aqueles que se encontram envolvidos com a formação dos estudantes de escolas públicas do País. Nos últimos 40 anos, se torna recorrente um conjunto de órgãos internacionais, multilaterais e ações governamentais, na direção de compreender e intervir nos processos que constituem e condicionam a Educação na América Latina.
Uma das principais pautas dessas instituições é a de conhecer as condições diversas em que ocorrem os processos de alfabetização no conjunto dos países que compõem a América Latina. Vale lembrar que o grande número de analfabetos e analfabetos funcionais sempre foi uma questão a ser corrigida em nosso continente, bem como o debate sobre a alfabetização percorre a história das lutas sociais no Brasil.
É de nosso conhecimento que esse é um caminho já traçado, no qual vivenciamos a luta pelo fim do analfabetismo e do analfabetismo funcional.1 Assim, muitos esforços são realizados em prol da democratização e ampliação do acesso ao Ensino Fundamental, à gratuidade, à laicidade, à qualidade da escola pública e da transformação das concepções de ensino e aprendizagem e seus distintos métodos de alfabetização. Esses aspectos citados, entre outros, afloram no debate em torno da pouca eficácia dos processos de ensino e aprendizagem nas etapas da alfabetização, principalmente de sujeitos das classes populares, que é o segmento que mais sofre com a precarização do ensino público. A fim de qualificar esse processo, um elemento vem sendo incorporado pelas escolas públicas: o debate intenso sobre o letramento.
No Brasil, o debate sobre o fenômeno do letramento ganhou força, principalmente a partir dos anos 80, em que pesquisas e laboratórios experimentais foram desenvolvidos, materiais de apoio, produzidos, e um conjunto de formações passa a ser incorporado ao cotidiano da formação continuada dos professores.
De acordo com Soares (2004), as questões referentes à utilização do conceito de letramento, incorporadas aos processos de alfabetização da classe trabalhadora, encontram-se articuladas com políticas internacionais de desenvolvimento das competências com o código escrito e com seu desdobramento no mundo do trabalho atual. Ainda, para a mesma autora, a discussão da utilização do termo letramento emerge de problemáticas, nas quais se encontram os países considerados subdesenvolvidos, em relação ao número de analfabetos e analfabetos funcionais, em todo o mundo, diante de órgãos internacionais, como a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) e o Banco Mundial. Nesse processo, o letramento é colocado como um instrumento eficaz e capaz de incorporar a aprendizagem das classes populares, que se encontram carentes de acesso ao mundo letrado. (SOARES, 2004).
Em um mundo altamente competitivo, que exige capacidades de qualidade total e de sujeitos polivalentes, não é concebível, na atualidade, a ofensiva neoliberal, que tenhamos sujeitos inoperantes no modelo imposto. Daí o interesse, por exemplo, do Banco Mundial, em se tornar um dos parceiros de campanhas como “Todos pela Educação”, aqui, no Brasil. O avanço da “era digital”, o crescente de novas tecnologias, a comunicação que anda a passos largos exigem, por parte da escola, que estejamos, a cada passo dado, mais conectados com a diversidade letrada do mundo e de suas múltiplas capacidades, ou seja, mais conectados e imbricados nas formas de exploração, apropriação, objetivação e subjetivação da atualidade do mundo do trabalho. Há a necessidade, portanto, que a escola desenvolva sua ação pedagógica na direção das exigências do mundo atual, altamente competitivo e excludente.
2 O letramento como ferramenta propositiva dos professores da/na escola pública
Este trabalho é parte da reflexão desenvolvida na dissertação de Mestrado,2 que buscou, como foco de análise, compreender os processos de letramento daqueles que são responsáveis por forjar as novas gerações: os professores. O esforço, aqui apresentado, foi o de compreender os diferentes conceitos que envolvem o debate sobre o letramento, nos processos de ensino e aprendizagem, assim como de apresentar algumas implicações às práticas realizadas pelos professores de escola pública.
Ao aprofundar o tema sobre o conceito de letramento, tivemos como referencial teórico- metodológico o Materialismo Histórico Dialético de Paulo Freire e nos utilizamos de revisão bibliográfica, com o intuito de cercar as diferentes concepções sobre o foco em estudo. Realizada a revisão de bibliografia utilizamos, principalmente, as contribuições de Tfouni (1995) e Soares (2004). Foi com esse procedimento que encontramos dois grandes campos de entendimento ou formas de definição. Ambas as formas estão associadas ao conceito de alfabetização e apresentam desdobramentos no processo educativo, em face das necessidades do mundo do trabalho e dos interesses de classe. Um primeiro conceito relaciona-se aos processos de aquisição da leitura e da escrita, em um sentido que compreendemos como forte, o qual adentra, mais profundamente, na relação dos sujeitos com o conhecimento e com o processo de transformação social. Já o segundo campo de entendimento desse conceito compreende como, em seu sentido fraco, associa-se à utilização do código escrito, como ferramenta para a desenvolver a habilidade com a escrita, a leitura e com os demais artefatos culturais.
A partir desse entendimento, buscamos aprofundar o debate, com o objetivo de ampliar a compreensão da importância de desenvolver estudos mais específicos sobre a utilização do letramento em seu sentido forte e radical, visto como a potencialidade de promover mudanças significativas nas práticas escolares de escolas públicas. Para isso, é necessário que pensemos a construção do conhecimento científico nos processos de alfabetização e letramento, a partir das relações dos seres humanos em sociedade, num movimento permanente de apropriação do conhecimento e de intervenção consciente no mundo.
Com esses lineamentos, é que compreendemos a importância de aproximar o Materialismo Histórico Dialético do debate sobre o letramento, como uma epistemologia que compreende o sujeito em sociedade como um ser histórico, isto é, que busca, no passado, os condicionamentos do presente e o devir, o vir-a-ser (KOSIK, 2011), colocando o pensamento e a ação humanos em permanente movimento. Dessa maneira, a ciência e o conhecimento acumulado historicamente têm o papel de serem utilizados de forma a contribuir para transformar as circunstâncias da vida humana, embasados na concepção de que as experiências vividas e a teoria estão vinculadas ao mundo material.
Pensar na Educação, em bases dialéticas, é pensar no que podemos vir-a-ser e na contribuição do processo de conscientização da vida objetiva, que se contrapõe ao modelo de educação burguesa que hoje ainda vivenciamos.
A partir desse foco, é que aproximaremos o letramento da formação de consciência humana, como possibilidade de construção de novas relações no processo de ensino e aprendizagem nas escolas públicas. Para isso, focalizaremos o Materialismo Histórico Dialético numa perspectiva metodológica, analisando-o como epistemologia para a construção de uma proposta pedagógica, por se apresentar como teoria da práxis humana, a qual se encontra preocupada com a compreensão do real para a transformação social, a partir do ponto de vista dos trabalhadores, e com base na experiência das lutas sociais por melhores condições de vida.
3 Materialismo Histórico-Dialético, Educação e Letramento
A dialética como enfoque teórico, contribui para desmistificar a realidade, pois busca apreender o real a partir de suas contradições e suas relações entre a singularidade, a particularidade e a universalidade. Esse enfoque tende a analisar o real a partir de sua história, sua gênese e seu desenvolvimento, captando as categorias mediadoras que possibilitam sua apreensão como totalidade. Portanto, o Materialismo Histórico Dialético parte da concepção materialista da realidade para, através do método dialético de análise, abordar, de maneira mais correta, profunda e abrangente, os mais variados fenômenos e, ainda, descobrir as leis objetivas mais gerais que regem sua construção. Assim, o Materialismo Histórico Dialético é a base filosófica de análise e compreensão do mundo e da realidade à nossa volta. Como lemos em Kosik,
A dialética e o pensamento crítico que se propõem a compreender a “a coisa e em si” e sistematicamente se pergunta como é possível chegar à compreensão da realidade. Por isso, é o oposto da sistematização doutrinária ou da romantização das representações comuns [...]. O pensamento que destrói a pseudoconcreticidade para atingir a concreticidade é, ao mesmo tempo, um processo no curso do qual sob o mundo da aparência se desvenda o mundo real [...]
(2001, p. 20).
O caminho teórico-metodológico desenvolvido por Marx (2006) foi o de compreender a sociedade para além de sua aparência e de evidenciar a essência, que é a produtora das aparências, em suas múltiplas dimensões. Mesmo sem ter escrito especificamente uma teoria da Educação, sua abordagem possibilita refletir sobre a importância da Educação, quando ela se insere na busca pela conscientização da classe trabalhadora, como uma das formas capazes de contribuir com a sociedade para a superação da condição de alienação, o que implica a superação da sociedade dividida em classes e, como consequência, a superação da divisão social e intelectual do trabalho (MARX; ENGELS, 2004). Para Marx uma mudança radical só seria possível com uma ruptura radical desse sistema, na direção de resgatar o sentido ontológico do trabalho, realizado pelos seres humanos, no processo de produção da vida.
De acordo com Enguita (1989), no contexto da sociedade capitalista, a escola pública surge como uma necessidade da classe dominante, na formação de mão de obra qualificada às necessidades do mundo capitalista em formação. Esse espaço, a escola, para o autor concretiza-se, ao mesmo tempo, como instrumento da classe dominante ante a alienação e como condição para a intensificação da exploração da força de trabalho dos sujeitos de classe populares.
Compreendemos alienação, como Iasi:
No senso comum, a alienação é tratada como sendo um estágio de não consciência. Após essa análise preliminar, percebemos que ela é a forma de manifestação inicial da consciência. Essa forma será a base, o terreno fértil, onde será plantada a ideologia como forma de dominação
(2011, p. 20).
Dessa forma, entendemos que cada sujeito e o conjunto da classe trabalhadora possuem sua própria condição particular de superação dos processos de alienação, que têm base nas relações de produção, e que se manifesta nas relações sociais, condicionando todas as dimensões da vida. A formação de consciência, nesse sentido, é o resultado das relações vividas no cotidiano, em uma sociedade em contínuo movimento, assim como a superação da alienação implica a compreensão, pelo sujeito, da dinâmica do mundo, no qual sua vida se institui e desenvolve.
Como se buscou evidenciar, a Educação que hoje vivenciamos é resultante do processo de desenvolvimento da sociedade capitalista, e isso quer dizer que está a serviço da produção dessas relações alienantes, já mencionadas, fruto da lógica de acumulação de capital, que implica acumulação de riqueza e exploração da força de trabalho da classe dominada.
Ao pensar num processo educativo que enfrente essa estrutura de alienação, é preciso ir além, ir ao encontro aos interesses das classes populares, que significa explicitar a importância da consciência de classe e de uma escola comprometida com a formação humana, para que o mundo vivido seja problematizado, e para que os estudantes se apropriem de ferramentas de análise desse sistema desumanizante. Daí a importância da formação de criticidade, apontada por Freire (2011), entendida como um componente para a curiosidade crítica diante da vida, capaz de desnaturalizar a exploração e a opressão, buscando a humanização, em um movimento contínuo, no qual a escola pública se insere e representa uma real necessidade das classes populares.
Freire (1980) também compreendia a educação na direção de uma educação libertadora para as classes populares. Essas concepções críticas de Educação indicam, claramente, a importância de nos apropriarmos do conceito de letramento a partir do seu sentido “forte”, ao qual já nos referimos, e que significa superar o ensino da escrita mecânica,3 direcionando-o à condição de diálogo crítico mediado pela realidade social. Como refere Freire,
pensávamos numa alfabetização que fosse ao mesmo tempo um ato de criação, capaz de gerar outros atos criadores, uma alfabetização na qual o homem, que não é passivo nem objeto, desenvolvesse a atividade e a vivacidade de invenção e da reinvenção, características dos estados de procura
(1980, p. 41).
Isso significa compreender a escola no seu sentido amplo/forte/radical e na sua particularidade de escola pública, relacionando-a com a vida social dos sujeitos num sentido sócio-histórico de produção e interpretação do mundo. É nesse sentido que reconhecemos o valor da palavra letramento como leitura de mundo e da palavra, como diz Freire.
Nosso papel não é falar ao povo sobre a nossa visão do mundo, ou tentar impô-la a ele, mas dialogar com ele sobre a sua e a nossa. Temos de estar convencidos de que sua visão do mundo, que se manifesta nas várias de sua ação, reflete a sua situação no mundo, em que se constituem. A ação educativa e política não podem prescindir do conhecimento crítico dessa situação, sob pena de se fazer “bancária” ou de pregar no deserto
(FREIRE, 2011, p. 120).
.A partir dessas análises, encontramos a centralidade do papel do letramento na formação de educadores e educandos numa perspectiva crítica, problematizadora, dialética. Com isso, o letramento representa a dimensão social do exercício de leitura e de escrita e da totalidade do conhecimento adquirido, bem como sua utilização na sociedade com o propósito de transformação das relações sociais de vida e de trabalho.
Pensar no letramento em seu sentido amplo, forte, é ir além do processo de aquisição de um código escrito, sendo também um exercício revolucionário da práxis humana. É pensar na totalidade do processo educativo e de leitura de mundo, bem como suas especificidades, em um movimento contínuo de teoria e prática, na busca pela superação das contradições da sociedade.
Porém, em nossa pesquisa empírica,4 o debate sobre o letramento que encontramos associado a políticas públicas de educação e em suas práticas escolares nas escolas públicas, em sua maioria, busca responder às mudanças que têm ocorrido no mundo do trabalho, o que justifica os inúmeros grupos de formação para professores, a fim de sanar as lacunas da funcionalidade da leitura e da escrita em um mundo que necessita, cada vez mais, de capacidades técnicas para apropriação das práticas letradas.
O capitalismo vive um novo padrão de acumulação decorrente da globalização da economia e da reestruturação produtiva, que passa a determinar um novo projeto educativo para os trabalhadores, independentemente de suas áreas de atuação (KUENZER, 2005). E com isso, o letramento, em seu sentido restrito, fraco, cumpre seu papel como instrumento capaz de adequar os processos educativos a novas demandas do mundo do trabalho. Esse, portanto, é um dos motivos pelos quais os órgãos multilaterais afloram o debate crescente referente ao número de analfabetos funcionais e à incapacidade produtiva das escolas públicas de realizar uma formação adequada às exigências do mundo.
Tfouni (1995), ao apresentar a perspectiva histórica da construção do letramento, afirma que a necessidade de se começar a falar de letramento surge da consciência de que havia algo mais do que apenas a alfabetização; tratava-se de algo que era mais amplo e determinante para o processo escolar.
Soares (2004), ao definir alfabetização, pontua que ela é a inserção no mundo da leitura e da escrita, e que essa é desenvolvida por meio de competências, habilidades, conhecimentos e atitudes; é o uso efetivo da técnica em uma prática social, que, quase exclusivamente, é escolar. Já o conceito de letramento é compreendido como uma gama de conhecimentos, habilidades, capacidades, valores, usos e função social, e isso vai depender de como é utilizado nas práticas escolares.
Soares pontua que a utilização do termo letramento, representa a necessidade de buscar um novo conceito, que venha ao encontro das novas demandas sociais, que aprofunde a problemática para além do “do estado ou da condição de analfabeto ou alfabetizado”. Com isso, a autora apresenta que, “Não basta apenas ler e escrever, é preciso também saber fazer uso do ler e do escrever, saber responder às exigências de leitura e de escrita que a sociedade faz continuamente – daí o recente surgimento do termo letramento” (SOARES, 2004, p. 20).
Os conceitos de letramento, a partir das questões expostas, podem ter duas grandes dimensões de análise: uma de dimensão individual, e outra de dimensão social, considerando seu entendimento e sua utilização.
A compreensão da dimensão individual do letramento, em linhas mais gerais, “é a habilidade de colocar em ação todos os comportamentos necessários para desempenhar adequadamente todas as possíveis demandas de leitura e escrita” (SOARES, 2004, p. 68), ou seja, é a habilidade de manejar o código desde a maneira mais simples, como assinar o próprio nome, até as mais complexas, como redigir uma tese de doutorado.
A perspectiva de dimensão social, sobretudo, é considerada não como uma habilidade individual, pois “é no conjunto de práticas ligadas à leitura e à escrita que os indivíduos se envolvem com seu contexto social” (SOARES, 2004, p. 72), como a funcionalidade de uma prática social mais ampla, e isso significa dizer que é a maneira como as pessoas se utilizam da leitura e da escrita, relacionando-a com seus valores, necessidades e práticas sociais de determinado espaço.
Para a dimensão social, o letramento, de sentido forte, que seria mais que a mera habilidade para interpretar as práticas de leitura e escrita, não é um “instrumento neutro” dentro desse processo, mas práticas historicamente construídas e com uma real intencionalidade no contexto social. Desse modo, de acordo com Soares,
os conceitos de letramento que enfatizam a sua dimensão social, fundamentam-se ou em seu valor pragmático, isto é, na necessidade de letramento para o efetivo funcionamento na sociedade (a versão fraca) ou em seu poder revolucionário, ou seja, em seu potencial para transformar relações e práticas sociais injustas (a versão forte)
(2001, p. 78).
As versões citadas evidenciam o caráter e o significado que é dado ao conceito de letramento, sem perder de vista o papel sócio-histórico e político desse conceito.
Porém, quando nos referimos aos espaços escolares, o significado que é frequentemente vinculado ao letramento em sala de aula, principalmente em escolas públicas, é a versão fraca desse conceito, de modo que é quase nula a apropriação de um sentido mais forte desse processo de letramento. Essa compreensão é possível reconhecer nos documentos do Ministério da Educação (MEC).
Letramento é, pois, o resultado da ação de ensinar ou de aprender a ler e escrever, bem como o resultado da ação de usar essas habilidades em práticas sociais, é o estado ou condição que adquire um grupo social ou um indivíduo como consequência de ter-se apropriado da língua escrita e de ter-se inserido num mundo organizado diferentemente: a cultura escrita. Como são muito variados os usos sociais da escrita e as competências a eles associadas (de ler um bilhete simples a escrever um romance), é frequente levar em consideração níveis de letramento (dos mais elementares aos mais complexos). Tendo em vista as diferentes funções (para se distrair, para se informar e se posicionar, por exemplo) e as formas pelas quais as pessoas têm acesso à língua escrita – com ampla autonomia, com ajuda do professor ou da professora, ou mesmo por meio de alguém que escreve, por exemplo, cartas ditadas por analfabetos –, a literatura a respeito assume ainda a existência de tipos de letramento ou de letramentos, no plural
(MEC, 2007, p. 11).
Dessa forma, é importante pensar em como está sendo utilizado o letramento em nossas escolas, já que sabemos que, ideologicamente, a escola capitalista tem um papel a cumprir, qual seja, o de manter o estudante ajustado a essa sociedade que produz alienação, no que diz respeito à compreensão das contradições sociais. O acesso ao conhecimento científico não se encontra à disposição das classes populares; assim, esse domínio ainda está reservado a poucos, dificultando uma participação mais efetiva nas práticas sociais de cunho transformador.
O que parece estar claro, pela pesquisa realizada, é que a apropriação do letramento, como uma prática de aperfeiçoamento do processo mecânico de codificação e decodificação do código escrito, expressa o caráter de dominação e exploração do conceito de letramento vinculado à grande maioria das escolas públicas, que ainda representam o papel da escola como sendo uma ferramenta social de manutenção da classe trabalhadora a serviço das necessidades do capital, lembrando que cada escola é a versão local de todo esse processo histórico.
Pensar no letramento de forma mais ampla significa não esquecer o seu caráter político, que tem como horizonte a autonomia dos sujeitos ante a necessidade de buscar seus direitos, utilizando-os como instrumento de luta popular.
Aproximar o conceito de letramento ao método Materialista Histórico Dialético, desenvolvido por Marx, significa analisar esse conceito articulado com o desenvolvimento da vida humana, a interpretação dessa realidade e a concentricidade dessa realidade à sua visão de mundo e práxis. Significa desvelar a realidade a partir da materialidade da vida no movimento histórico, com todas as suas contradições e possibilidades, mediadas pela luta concreta dos sujeitos.
4 Conclusão
Concluímos tendo a certeza de que se trata de um grande desafio compreender, hoje, a escola pública como um espaço de oportunidades de elevação da consciência das classes populares, e da utilização do letramento em seu sentido social, forte e radical. Compreender a escola como um espaço de oportunidades para a classe trabalhadora significa, também, que ela contribua nos processos de construção das lutas por maiores condições tanto de estrutura física como de melhor remuneração para os educadores e tantas outras questões pendentes na realidade do nosso sistema educacional, mas, também, e fundamentalmente, que possa ser capaz de possibilitar a apropriação do conhecimento sistematizado pela humanidade, pela classe trabalhadora, a fim de buscar novas oportunidades diante da realidade objetiva de forma crítica e autônoma, sem perder o horizonte de outra sociedade possível, sem o jugo da exploração.
Pensar no letramento, a partir dos pressupostos do Materialismo Histórico e Dialético, é colocar, no centro do debate, o papel do conhecimento e da escola pública na formação da sociedade. É evidenciar a escola pública como instrumento de resistência à lógica social posta, e o trabalho de seus professores no aprofundamento da leitura da realidade, na vinculação da construção do conhecimento com a leitura crítica da realidade, com uma leitura de mundo comprometida com a superação das condições de opressão e exploração.
Na atualidade, muitos são os desafios para a construção do ensino e aprendizagem em um dialogo com o real, com o concreto, com o enfrentamento das múltiplas dificuldades das dimensões da vida, como, por exemplo, a superação do preconceito, do moralismo, do obscurantismo. A escola, que se compromete com processos transformadores é terreno fértil para a socialização de um conhecimento mais elaborado, de sistematização de experiências, de vivências culturais diversas, de intercâmbio com a totalidade da vida em sociedade, do compromisso ético e da renovação.
A escola, entendida como um dos agentes de construção de uma nova sociabilidade humana, está comprometida com o “vir-a-ser”, já que as relações não estão dadas e necessitam ser construídas pelos sujeitos. Anuncia-se, portanto, que o termo letramento pode ser considerado um conceito em disputa acerca dos rumos que podem ser dados aos processos de ensino e aprendizagem, quando comprometidos com seu sentido forte, social, amplo e radical, na direção de ir à raiz daquilo que se ensina e do próprio papel do conhecimento. Esse pode ir além de uma apropriação dos códigos escritos e signos, e ser, também, uma ferramenta de aprofundamento da consciência e de apropriação de uma leitura crítica e reflexiva de tudo aquilo que busca socializar.
Assim, se a educação crítica pretende proporcionar o amadurecimento da consciência, não pode perder de vista o conflito, as diferenças, as contradições e o questionamento sobre a realidade. É a partir da compreensão crítica da realidade, do resgate do trabalho com o conhecimento, de uma prática feita com base no diálogo e nas trocas, que a escola poderá contribuir para que os educandos superem a visão fragmentada da realidade, para que possam perceber o caráter histórico e mutável das relações sociais e, portanto, que se reconheçam como sujeitos na construção de si mesmos e da realidade que, por não ser estática, está sempre em movimento.