Introdução
Acadêmicas feministas foram pioneiras em indicar que a violência sexual é fruto de dinâmicas sociais de poder. Se o sexo também é político, como diversas pensadoras feministas afirmam,4 a perpetuação de violências sexuais é indicador do funcionamento dessas dinâmicas. Neste artigo, tentaremos apontar como a chamada “cultura de estupro” acusa a recorrência de violências – sofridas majoritariamente por mulheres e perpetuadas, também majoritariamente, por homens5 – a uma estrutura social marcada pelo machismo institucionalizado. A discussão sobre a motivação para a recorrência de casos de estupro é feita, geralmente, em duas direções: enquanto autoras como Catharine MacKinnon (1991) e Andrea Dworkin (1997), por exemplo, defendem que dinâmicas sexuais possuem mais explicações nas questões de gênero, nas quais homens consolidam poder e controle sobre a sujeição social de mulheres, do que no sexo per se, por outro, leituras na psicologia evolutiva como a oferecida por Pinker (2002) sugerem uma leitura do fenômeno de estupro como uma estratégia evolutiva e de perpetuação da espécie, e, nesse sentido, como um ato fundamentalmente sexual.
Nossa hipótese é que a perspectiva de Pinker deve ser contrastada com a abordagem construtivista e política de questões de gênero, e que a redução do estupro a um ato sexual inserido dentro de um contexto evolutivo e vinculado a motivações mimético-biológicas, não tem um potencial explicativo satisfatório, especialmente diante da complexidade sociopolítica das relações de gênero. Aqui, não queremos rejeitar inteiramente o modelo cognitivo proposto por Pinker, mas apontar as insuficiências explicativas na análise comportamental-mimética do sexo.6
Para tanto, iremos adotar como fio condutor deste trabalho uma reflexão sobre como o modelo de psicologia cognitiva e comportamental, adotado por Bandura (2015), pode nos auxiliar a compreender o que motiva e conduz indivíduos a cometerem atos desumanos, e, especificamente, a perpetuar o estupro? Seriam estupradores, em grande medida, vítimas de patologias? Como pessoas consideradas normais (ou seja, sem transtornos psicológicos diagnosticados) e que, supostamente, possuem um senso de moralidade são capazes de estuprar? Em que medida as Neurociências perpetuam essas relações assimétricas de gênero e desconsideram fatores socioculturais em suas análises das diferenças?
Um caso emblemático para ilustrar esses questionamentos é o da artista performática Marina Abramovic. Na performance Ritmo 0, de 1974, a artista pôs-se no palco com objetos variados. Em uma grande mesa havia rosas, martelos, plumas, mel, facas, correntes e uma arma carregada. A proposta era interagir com a plateia, permitindo-lhe que fizesse com a artista o que quisesse, utilizando aqueles objetos. Por seis horas “eu sou um objeto, façam comigo o que quiserem. Terei total responsabilidade por todos os atos”, disse Abramovic.
No começo, a artista foi acariciada com uma rosa, tocada e beijada, sem reagir em nenhum momento. Depois de algum tempo, ela começou a ser provocada, teve suas roupas cortadas por uma tesoura, e a pele fracamente cortada por uma faca. Progressivamente, os atos foram ficando mais violentos. Ela foi acorrentada, teve o ventre perfurado pelos espinhos da rosa e desafiada a atirar em si mesma com uma arma. A artista escreve, em sua autobiografia, que ela acredita que “a razão por não ter sido estuprada [por esses homens] foi a presença de suas esposas”7 (ABRAMOVIC, 2016, p. 69). A plateia, contudo, era composta por outros artistas e intelectuais, pessoas percebidas socialmente como perfeitamente normais, e que, mais uma vez, supostamente, jamais seriam capazes de cometer torturas.
Aqui, no entanto, cabe a pergunta: Se retirarmos a explicação patológica para a recorrência de casos de estupro, ou ao menos assumirmos que essa não é suficiente para dar conta da maioria dos casos, como explicar a perpetuação desses atos por pessoas normais? Para responder a essa pergunta, superando tanto explicações inatistas, que tentam reduzir o comportamento sexual a um impulso evolutivo e mimético, quanto explicações sexistas, vinculadas à naturalização de papéis sociais de gênero, propomos, primeiramente, uma discussão entre as duas abordagens mencionadas acima, através de um confronto entre as premissas biológicas da neurociência comportamental e críticas feministas sobre papéis de gênero. Aqui, utilizaremos o argumento de Bandura (2015) sobre desengajamento moral, uma abordagem cognitivo-social capaz de dar um fio condutor conceitual e rigoroso para os questionamentos a respeito do fenômeno da cultura de estupro.
1 Da psicologia evolutiva ao cognitivismo social: definindo conceitos sobre comportamento, cultura e estupro
A psicologia evolutiva desenvolvida por Pinker (2002) utiliza fatores biológicos de diferenciação entre homens e mulheres para a explicação de diversas das interações sociais que estipulam papéis de gênero. Nessa perspectiva, por exemplo, o tamanho do cérebro e as diferenças de estratégias nas tomadas de decisão embasam uma visão determinista do que é, em termos comportamentais, ser homem ou ser mulher (TRANEL et al., 2005). Assim, quando fazemos recortes de gênero nos comportamentos sociais, estamos verificando, em grande medida, os marcadores biológicos que diferenciam como homens e mulheres se comportam. Por exemplo, homens e mulheres, por fatores biológicos e evolutivos, dariam valores diferentes ao trabalho e aos filhos, o que impactaria, consequentemente, a formação e os objetivos de carreira entre os gêneros.
No argumento da psicologia evolutiva, especialmente de Pinker, o estupro é explicado fundamentalmente em termos de sexo. Segundo Pinker, a cópula forçada é encontrada nas mais diversas espécies e tem sua fundamentação na necessidade biológica de reprodução e acesso ao sexo (PINKER, 2002, p. 367). Nas palavras do autor, o estupro é “uma estratégia reprodutiva”. Sendo assim, o estupro é o resultado do desejo masculino – em grande medida determinado em termos hormonais – de sexo. Pinker assume como consequências desses fatores biológicos que, uma vez que “homens normalmente querem fazer sexo com mulheres que não querem ter sexo com eles” e “alguns homens usam de violência para conseguir aquilo que querem, independentemente do sofrimento que causam”, portanto, Pinker conclui que “seria um fato extraordinário [...] se homens não utilizassem de violência para terem sexo” (PINKER, 2002, p. 362).
Assim, Pinker entende o estupro como um ato fundamentalmente sexual, voltado à realização de um autointeresse de homens que desejam mulheres e que veem, na violência sexual, um caminho mais simples e direto para a realização desse desejo – que, vale ressaltar, em Pinker, encontra uma explicação suficiente nos ímpetos mimético e evolutivo: na vontade de reproduzir a espécie que é expressa no desejo sexual. A saída para essas condutas, em Pinker, é persuadir, através da implementação de mecanismos de controle social (por exemplo, leis mais duras contra violência sexual), indivíduos potencialmente violentos sexualmente de que o ato sexual não oferece uma relação custo-benefício; ou seja, retirando qualquer justificativa racional para o ato.
Aqui, já encontramos diversos pontos que necessitam de uma abordagem mais complexa e crítica para explicar tanto comportamentos de gênero quanto atos de estupro. Primeiro, parece que Pinker não vê, absolutamente, diferença alguma entre cópula e sexo, ou seja, não entende relações sexuais entre pessoas como um ato complexo que envolve sexualidade, emoções, moralidade e diversos outros elementos que possuem significados a partir de interações sociais. Além disso, essa narrativa é enganosa na medida que reduz os fatores biológicos relevantes para o sexo a fatores hormonais, quando, na verdade, as relações humanas possuem características, também biológicas, mas mais complexas, como, por exemplo, as emoções e a moralidade.
Nesse sentido, o mesmo corpo que possui libido, o que justificaria dentro da explicação da psicologia evolutiva o estupro, desenvolve capacidades cognitivas de julgar o certo e o errado, o comportamento apropriado e a forma com que esse se vincula a outros indivíduos. Isso nos permite fazer duas perguntas que são quase insignificantes em uma perspectiva evolucionista e inatista: Como a moralidade pode entrar como um elemento-chave para entendermos atos de estupro? e Existem, afinal, diferenças que podemos qualificar como diferenças de gênero para descrever julgamentos morais de homens e mulheres?
Para Bussey e Bandura (1999) embora existam alguns marcadores biológicos que diferenciam os sexos, a maioria das diferenças está conectada a um “design cultural” de papéis de gênero. Para ele “os estereótipos de gênero formam as diferenças estereotipadas de gênero”. Além disso,
[...] os estereótipos de gênero moldam a percepção, a avaliação e o tratamento de homens e mulheres de formas seletivamente “generificadas” gerando os próprios padrões de comportamento que confirmam os estereótipos iniciais. Muitas diferenças de gênero no comportamento social são vistas como produtos da divisão do trabalho entre os sexos, que são replicadas por meio de práticas socioestruturais governadas pelos status e poder desiguais de gênero8
(BUSSEY; BANDURA, 1999, p. 683).
Assim, a identidade de gênero é desenvolvida ao longo do tempo e é dependente de um contexto cultural, e não, apenas de uma característica inata.
Segundo Jorge Moll (2002), por exemplo, nosso cérebro recebe estímulos visuais qualitativos que produzem intuições morais sobre os eventos percebidos, ou seja, o estímulo visual consequente de uma cena de violência altera o estado mental do nosso cérebro, causando um estresse nas zonas do córtex pré-frontal ventromedial (parte do cérebro responsável, majoritariamente, pela cognição social), o que indica que fatos como violência tendem a causar intuições morais básicas que afetam o estado do nosso cérebro em situações normais. O que isso quer dizer, de maneira resumida, é que todo cérebro normal possui intuições morais que afetam o comportamento humano e a forma com que julgamos moralmente as nossas ações e as ações dos nossos semelhantes. Essas intuições morais estão muito mais conectadas com os eventos que causam os estímulos visuais, do que com qualquer característica biológica, como o sexo. Assim, homens e mulheres passam pelo mesmo processo de estímulo moral e de julgamento moral. Tendo o mesmo processamento cognitivo moral, como conseguimos fazer um recorte por gênero do ato de estupro? Por que homens com total capacidade cognitiva de entender as consequências de seus atos e julgar a moralidade de suas ações, prosseguem com atos de estupro? Seriam esses atos consequências de patologias?
Um indicador importante, obtido na leitura de diversos dados sobre estupro, é que o ato é majoritariamente cometido por pessoas próximas da vítima (em 70% dos casos), como parentes, parceiros, namorados e maridos, que, em maioria avassaladora, não têm qualquer condição cognitivo-comportamental atípica diagnosticada. Como explicar a ocorrência de determinados comportamentos violentos, ou de normalização de determinadas violências em pessoas sem qualquer lesão cerebral ou transtorno psiquiátrico? Uma leitura inatista do fenômeno do estupro e da violência não consegue dar conta dessa pergunta sem apelar para uma naturalização de condutas desumanas. Inversamente, a nossa hipótese é a de que os mecanismos de desengajamento moral desenvolvidos por Bandura explicam por que pessoas normais cometem atos desumanos como o estupro e a de compreender a existência de um sistema estrutural de normalização do estupro como parte da sexualidade masculina – algo que Pinker parece fazer ao naturalizar a conduta através de uma explicação inatista e evolutiva. Além disso, nossa proposta é trazer um olhar cognitivista para sustentar a nossa leitura do fenômeno da cultura de estupro como algo enraizado em nossa sociedade e sustentado a partir da socialização de papéis de gênero e do machismo.
2 Os mecanismos de desengajamento moral de Bandura e sua aplicabilidade conceitual na cultura de estupro
Bandura (2015) especifica diversos mecanismos – ou práticas desengajadoras – morais que utilizamos, individual ou coletivamente, para praticar atos de violência e abuso. O conceito “desengajamento moral” foi proposto por ele para explicar o processo de inibição das intuições morais, em que o julgamento moral torna-se desconectado de intuições morais primárias e requalifica a experiência moral na fase da sintaxe, como aceita ou moralmente positiva. Assim justificamos, moralmente, atos desumanos e nos tornamos capazes de cometê-los.
Nas palavras do autor,
as pessoas não se engajam comumente em condutas prejudiciais até que elas tenham justificado para si mesmas a moralidade de suas ações. Neste processo de justificativa moral, a conduta prejudicial é transformada em pessoal e moralmente aceitável ao retratá-la como sendo socialmente válida ou com propósitos morais. As pessoas podem agir num imperativo moral e preservarem sua visão de si mesmas como um agente moral, enquanto causam danos a outros
(BANDURA, 2015, p. 23).
O julgamento e as intuições morais, na premissa de Bandura, nunca deixam de existir. Contudo, o desengajamento constitui justificativas que compensam o estresse da ação moral. Para Bandura (2002) a cultura de estupro incentiva a culpabilidade da vítima, modificando a carga moral que a ação violenta geralmente ocasiona em termos de representação mental.
Uma das dificuldades na análise da chamada cultura de estupro é o estabelecimento de uma teoria capaz de dar conta do fenômeno de forma adequada, estabelecendo um aporte conceitual que possa, ao mesmo tempo, dar conta da dimensão social do fenômeno e estabelecer uma linguagem comum que permita um subsídio teórico.
Essa dificuldade fica ainda mais clara quando percebemos que muitas das formas de estupro que hoje podem ser expostas e combatidas passaram por uma conquista histórico-social de reconhecimento, que foi, em grande medida, avançada através do feminismo, como movimento social – esse esforço de luta social, no entanto, não nos dá um arcabouço teórico e epistemológico suficiente. Por exemplo, a possibilidade de usar o termo estupro para relações sexuais forçadas dentro do casamento, ou em situações em que não há, necessariamente, a ocorrência de penetração vaginal ou mesmo em casos de violência sexual contra homens e meninos, tornaram-se, há pouco tempo, parte do nosso vocabulário legal9 e, ainda assim, a forma com que usamos a linguagem para falar de estupro continua problemática – seguimos com uma dificuldade imensa de usar, socialmente, o termo estupro para situações relativamente cotidianas de violência sexual e, também, para afirmar judicialmente a urgência de lidar com essas situações como situações de estupro.
Essa instabilidade linguístico-conceitual é abordada por Bandura como uma característica persistente de instrumentos de desengajamento moral. Ele destaca que a linguagem possui um papel relevante dentro dos padrões de pensamento pelos quais as ações morais ocorrem, dando a elas significados diferentes dependendo de como essas ações são chamadas (BANDURA, 2002, p. 104). Na premissa do mecanismo de desengajamento moral da linguagem eufemística, ocorreria, justamente, a suavização ou dissociação do ato de estupro através da utilização de outros termos como: abuso, sexo não consentido, atentado violento ao pudor, entre outros. Aqui, voltamos a uma espécie de paradoxo na abordagem epistemológico- teórica da chamada cultura de estupro, que é o seguinte: um aporte teórico geralmente requer uma limitação conceitual de um fenômeno, o que é dizer que é necessário o estabelecimento de um domínio restrito de compreensão. Esse domínio restrito parece quase impossível quando lidamos com algo que é estipulado culturalmente de forma necessariamente vaga. O nosso ponto, aqui, é que para a cultura de estupro é necessário que o termo estupro seja colocado de forma incompleta, quase indefinida – justamente para que possa ser feita uma relativização linguística do fenômeno através do uso de eufemismos.
Deslocamento de responsabilidade também é uma ferramenta de desengajamento moral que ocorre quando o autor não se identifica como responsável pelo ato, como, por exemplo, quando o estupro é utilizado como uma arma de guerra ou de forma punitiva através de tortura, uma vez que depende de uma hierarquia de comando. Em Variation in Sexual Violence during war, Elisabeth J. Wood sugere que há variações nas formas em que o estupro é utilizado em períodos de conflito, tendo uma relação com “escolhas estratégicas por parte da liderança do grupo armado, pelas normas dos combatentes, dinâmicas entre grupos pequenos e efetividade da disciplina militar” (WOOD, 2006, p. 308). Na análise de Wood, em muitos casos, parece ser comum uma dissociação dos soldados que cometem estupros como agentes morais do ato, uma vez que, quando as instituições ou pessoas em posições hierárquicas aprovam, incentivam ou ignoram o ato, tornam-se responsáveis pela instrumentalização do estupro em períodos de conflito.
Ainda aproveitando a rica análise de Wood, entre as amplas variações de formas de estupro em períodos de guerra, outras ferramentas de desengajamento moral podem ser explicitadas. Um exemplo dessas ferramentas é a Desumanização, que ocorre quando o agente da violência sexual não percebe a vítima como plenamente humana, ou com o mesmo status social que atribui a si e a seus similares. Wood descreve a escravidão sexual como uma das formas comumente utilizadas durante guerras, em que “as mulheres são capturas para servir os combatentes como suas empregadas e parceiras sexuais por períodos extensos” (WOOD, 2006, p. 308). Além disso, poderíamos associar o estupro a grupos específicos, utilizado com o objetivo de extermínio da população e genocídio, como uma forma de desumanização daquele grupo específico. Entretanto, outros mecanismos propostos por Bandura também seriam úteis para a análise de Wood.10
Alguns atos em períodos de guerra são cometidos por indivíduos, muitos são cometidos por grupos. Alguns atos ocorrem em configurações privadas, outras são públicas, na frente de familiares ou membros da comunidade. Em alguns conflitos, o padrão da violência sexual é simétrico, com todos os partidos da guerra engajados em violência sexual com a mesma extensão de rigidez, [e], em outros conflitos, são muito assimétricos
(WOOD, 2006, p. 308).
Especialmente nos casos de estupro coletivo, Bandura vai chamar de Difusão de Responsabilidade a fragmentação da culpa entre os envolvidos, de forma que ninguém se reconhece como agente responsável pelo ato. Como exemplo desse mecanismo, entre tantos casos diários de estupro coletivo no Brasil, citamos o estupro de uma adolescente de 16 anos,11 na Baixada Fluminense, que mobilizou o País em 2016. No decorrer do caso, que obteve grande repercussão midiática, os acusados alegaram que não sabiam que se tratava de um estupro, que acham que havia o consentimento. Em um dos depoimentos, um dos acusados afirmou que apenas entendeu o que ocorreu quando assistiu ao vídeo do estupro.12 Foi notório que os acusados não se descreviam como culpados pelo ato. Bandura afirma que “onde todo mundo é responsável, ninguém realmente se sente responsável”, e, portanto, “a ação coletiva que dá anonimato é, ainda, outro elemento para o enfraquecimento do controle moral” (2002, p. 107).
A perda de controle moral, além da responsabilidade, também pode ocorrer pela relativização das consequências do ato. Segundo Bandura, a Distorção das Consequências é um mecanismo que auxilia o perpetuador do ato a não encarar o mal que está fazendo a outro, diminuindo sua real consequência. A Comparação Vantajosa também é um mecanismo que ocorre quando o ato é diminuído através da comparação com outros atos, como, por exemplo, ao não considerar seu ato como estupro de verdade, comparando-o com outros casos que seriam supostamente mais graves.
Enquanto os resultados prejudiciais da conduta de alguém são ignorados, minimizados, distorcidos ou descrentes, há poucas razões para que a autocensura seja ativada. [...] É mais fácil machucar alguém quando seu sofrimento não é visível e quando ações destrutivas são fisicamente e temporalmente distantes de seus efeitos prejudiciais
(BANDURA, 2002, p. 108).
Uma das formas que vemos na utilização desse mecanismo em casos de estupro é através de estupros corretivos que comunidades de homossexuais, especialmente de lésbicas, são submetidas. A luta contra estupros corretivos em mulheres lésbicas faz parte da agenda do ativismo lésbico, uma vez que muitas mulheres homossexuais são vítimas de estupros como uma tentativa de corrigir o comportamento homossexual ou para que “vire mulher ”.13
“Você vai aprender a gostar de homem.” Essa terrível frase é tristemente comum em caso de violência sexual contra mulheres lésbicas no Brasil. A estatística assusta: 6% das vítimas de estupro que procuraram o Disque 100 do governo federal durante o ano de 2012 são mulheres homossexuais vítimas de violência, em sua maioria de fundo sexual. Chamada de “estupro corretivo”, a violação tem requintes de crueldade e é motivada por ódio e preconceito, o que torna a descoberta dos casos algo complexo para o sistema de direitos humanos nacional.14 (DUARTE, 2013).
Além disso, outra forma pela qual as pessoas comuns praticam atos desumanos, como o estupro, é através da Atribuição de Culpa. Ao atribuir culpa, o perpetuador transfere os danos do ato à própria vítima. Esse mecanismo é bem comum nos casos de estupro,15 uma vez que essa violência é justificada pela forma como a vítima se vestia,16 o local em que estava e elementos de seu comportamento,17 por exemplo. Para Bandura, “ver as vítimas sofrerem maus-tratos pelos quais são mantidos parcialmente responsáveis leva os observadores a derrogá-los” (BANDURA, 2002, p. 110).
É imporcBANDURA, 2002, p. 110).
Assim, dentro do processo social de normalização de práticas consideradas desumanas, o estupro é claramente um dos casos em que os atos são, muitas vezes, aceitos, relativizados ou mesmo tornados fictos pela abordagem discursiva que a prática do ato adquire na sociedade. Embora persista um estuprador ideal no imaginário social, que seria alguém com algum tipo de patologia ou alguém que possa ser estereotipado como anormal ou mesmo monstruoso, a realidade é que, através de uma cultura progressivamente permissiva, quem comete os estupros são majoritariamente homens normais, que são pais, padrastos, namorados, amigos, etc.18 Nem os estupradores e nem as vítimas são, na realidade, representativas do imaginário social ideal; pelo contrário, as vítimas são meninas, meninos e mulheres comuns que não merecem ser estuprados, e quem pratica o estupro é normalmente uma pessoa bem próxima em plena capacidade cognitiva. Então, a pergunta fundamental é: Por que ocorrem com tanta frequência?19
Os mecanismos de desengajamento moral de Bandura parecem auxiliar a entender as formas pelas quais a população comum se engaja em práticas violentas e desumanas, o que reforça a hipótese de que a ocorrência de estupro está associada a aspectos culturais de como entendemos socialmente o ato, ou seja, aquilo que chamamos de cultura de estupro. Em um texto sobre mitos culturais que suportam o estupro, Martha Burt (1980, p. 217) afirma que “estupro é a extensão lógica e psicológica de uma cultura dominante e submissa, competitiva e com papéis sexuais estereotipados”. Ao conseguirmos, portanto, fazer recortes bem claros de gênero nos dados sobre estupros, evidenciamos que a cultura de estupro passa, necessariamente, por uma discussão sobre papéis de gênero e como a sexualidade é constituída socialmente.
Independentemente do mecanismo utilizado – e é claro que esses mecanismos são bem mistos dentro do ato e são facilmente utilizados ao mesmo tempo – o fato é que pessoas que cometem danos a outras não as enxergam como pessoas. A desumanização é um mecanismo que tira as qualidades humanas de um indivíduo ou grupo e o transforma em um objeto ou em um ser sub-humano. Nesse sentido, as premissas apresentadas por Bandura parecem ir ao encontro do diagnóstico de autoras como MacKinnon (1997) e Martha Nussbaum (1995), de que ser mulher ainda não é uma forma de ser plenamente humano, uma vez que a elas são negadas as mesmas funções e capacidades básicas de desenvolvimento que os homens possuem.
3 Conclusão
A cultura de estupro é mantida através de diversos mecanismos e é dependente de inúmeros fatores. Uma abordagem mais complexa e completa sobre a recorrência de casos de estupro precisa sair do universo conceitual que visa a patologizar aqueles que os cometem para uma perspectiva mais socialmente constituída, em que possamos falar de uma cultura que, de diversas formas, torna o estupro possível e mantém o estuprador impune. Em grande medida, nosso objetivo com este texto é o de contribuir para que consigamos relacionar o ato de estupro com a própria estrutura social machista e misógina que oportuniza, através da linguagem e das ações, sua concretização.
Os mecanismos oferecidos por Bandura contribuem para uma análise do estupro visto como um fenômeno social fortemente estabelecido nas bases da sociedade, que viabiliza o afastamento moral do perpetuador do ato a partir da desumanização do outro. A perpetuação de uma cultura que, ideologicamente, visa à continuidade de estruturas de dominação masculina, contribuindo fortemente com a violência da sexualidade feminina.
A violência contra a mulher, especificamente causada pelo fato de ser mulher, é concreta, sistemática e banalizada. Uma sociedade, marcada historicamente pelo machismo e pela desumanização das mulheres, cria as condições externas perfeitas – ou como diversas feministas apontam, a socialização perfeita – para a perpetuação de atrocidades que, supostamente, são moralmente justificadas, como o estupro. Pinker (2002, p. 368) pode estar certo ao afirmar que estupro não pode ser visto como parte de “uma vasta conspiração masculina, contudo, negligenciar o fator cultural para nossa formação de identidade, gênero e moral e se basear apenas em noções biológicas preconcebidas para justificar a permanência de um sistema de desigualdade de gênero e de violência contra a mulher, é uma forma de também exercer desengajamento moral, de nos retirar a responsabilidade de agentes morais.