CONSIDERAÇÕES INICIAIS
As pesquisas que se debruçam a analisar, interpretar e compreender aspectos relacionados à cultura material escolar possibilitam diálogos sobre os processos de escolarização e as formas de como se pretendeu formar um cidadão numa conjuntura histórica. A cultura material abordada no estudo se refere aos aspectos arquitetônicos dos edifícios e dos espaços escolares, aos mobiliários, aos utensílios e aos materiais pedagógicos e didáticos. Tais objetos podem revelar práticas e culturas escolares, bem como apresentar mudanças e permanências nos processos de escolarização, visto que o aparecimento, desaparecimento ou esquecimento evidenciam modos de uso e de apropriação desses objetos pelos sujeitos em um contexto.
Nesse sentido, nosso principal objetivo foi identificar que materiais e objetos fizeram parte de uma cultura material escolar da Escola Giuseppe Garibaldi1 (EGG), localizada em Caxias do Sul/RS, e que integram um conjunto de normas e regras que definem conhecimentos a ensinar, condutas e disciplinas a inculcar, fundamentados nos pressupostos de Julia (2001)2. O recorte espaço-temporal adotado compreende a implementação da EGG no ano de 1974 até 1989, data da ampliação do novo prédio escolar. Assim, abrimos as discussões propostas a partir do excerto de Escolano Benito (2021, p. 56-57):
À nova história cultural da educação importa, além dos elementos mais conhecidos - por serem mais facilmente abordados com base nas metodologias clássicas estabelecidas -, a caixa preta dos códigos que a velha narrativa não conseguiu elucidar, ou que a historiografia nem sequer chegou a tomar como objeto de conhecimento.
Entre os elementos que ajudam a compor a narrativa escolar, estão as condutas observáveis dos sujeitos escolares, os vestígios materiais que trazem significados implícitos da cultura que os produziram e os registros metacognitivos que acompanharam ou mobilizaram as práticas educativas (ESCOLANO BENITO, 2021). Ao associarmos, desta forma, o contexto e a cultura produzida, seja ela material ou imaterial, dialogamos a partir da perspectiva da História Cultural, cujos pressupostos teóricos e metodológicos nos dão suporte para identificar a realidade a partir da cultura, da produção de sentidos dos sujeitos do passado a respeito do mundo.
Desse modo, os objetos culturais passam a ser tratados como fontes, englobando diferentes produções dos sujeitos: a cultura letrada, a cultura popular, as manifestações sociais de grupo, o cotidiano, as crenças, os sistemas de educação, as normas, as condutas e a cultura material (FALCON, 2006). Nessa perspectiva, a escola também é um local e um espaço de produção de culturas: a história cultural da educação feita a partir da subjetividade, sustentada na materialidade, na narrativa dos sujeitos e nos usos institucionais - vestígios da realidade cotidiana das instituições.
Para Viñao Frago (1995), os elementos que constituem a escola devem ser entendidos na dinâmica da própria instituição, que instrui e institui modos de ser e de fazer. Percebemos a força da cultura escolar na produção de representações e práticas, nas lógicas de poder que permeiam currículos, arquiteturas e materialidades, nas condutas das relações interpessoais, na apropriação dos tempos escolares, na produção e reprodução de tradições e rituais que se estabelecem no interior das escolas, assim como na relação da escola com as demais instituições sociais. Falamos de culturas escolares, no plural, pois são os modos de organizar e significar a escola no mundo social.
Ademais, tecemos nossa discussão também a partir dos pressupostos de Escolano Benito (2017, )no que tange as três dimensões da cultura escolar3, ao optar por analisar a dimensão empírica da cultura escolar. É nesse âmbito das culturas escolares que se configura a cultura material amparada pelas práticas escolares, pois estas “[...] são um reflexo funcional e simbólico das formas de entender e governar a prática” (ESCOLANO BENITO, 2017, p. 120).
Na pesquisa da materialidade escolar se estabelece não apenas a relação passiva entre sujeitos e objetos escolares, mas também a forma ativa que essa materialidade contribui para as práticas escolares, ou, como afirma Souza (2007, p. 179): “[...] da articulação entre saberes, práticas e materiais escolares é que se concretiza o fazer pedagógico”. Alguns padrões dos elementos que compõem a cultura material escolar, como a ergonomia, o desenho e a funcionalidade colaboraram para determinar práticas corporais, gestuais, técnicas de cálculo, formas de escrita, grafismo e de oralidade, permitindo reforçar a ideia da importância desses materiais na constituição de uma cultura escolar.
Os objetos são vestígios que permitem ao historiador dialogar com o passado e, na perspectiva desta pesquisa, pensar numa narrativa histórica acerca dos processos escolares. Por escolarização, valer-se-á do sentido apresentado por Faria Filho (2004, p. 522), como o “[...] processo e a paulatina produção de referências sociais tendo a escola ou a forma escolar de socialização e transmissão do conhecimento, como eixo articulador de seus sentidos e significados”.
Nessa acepção, o conceito de cultura escolar é tratado como um elemento importante para o estudo da escolarização, visto que é a partir desse olhar conceitual que se permitem análises dos elementos que compõem o contexto educativo: “[...] os tempos, os espaços, os sujeitos, os conhecimentos e as práticas escolares” (FARIA FILHO, 2002, p. 17). Assim, se faz importante a articulação da representação de um espaço escolar específico, entendido como componente imprescindível para a escolarização com a construção de uma cultura e de uma materialidade próprias que permeiam esses locais.
As representações agem como uma maneira de classificar e organizar as percepções do mundo social, modelam a relação entre as práticas e os discursos que ocorrem em dados contextos sociais. Essas concepções tornam-se primordiais para a compreensão da configuração da escola, pois as diferentes representações auxiliam no entendimento e nas análises dos espaços, tempos e materialidades, bem como a inserção dos sujeitos em seus respectivos grupos sociais, nas formas como constroem, interpretam, significam e representam o contexto em que estão imbricados.
Ainda, conforme Chartier (1990), é importante considerar as representações do mundo social como esquemas determinados pelos interesses dos grupos que as constroem, visto que elas não são elementos que possibilitam um diagnóstico universal. Similaridades constituídas por um mesmo contexto hão de existir, mas as construções das representações partem das peculiaridades existentes em cada uma das instituições escolares, sendo que cada uma pertence a uma cultura própria.
Ao observarmos a cultura material da EGG, assumimos que a materialidade escolar também está relacionada com as práticas culturais. Tais práticas culturais relacionam-se com o espaço, obedecendo às leis desse lugar, sendo possível de serem localizadas, mapeadas e impostas. Assim, esta pesquisa estabelece a relação entre as ações concebidas em um contexto sociocultural com as práticas escolares. Essas práticas permitem entender o conjunto de fazeres que se estabelecem no interior das escolas, pressupondo a existência de saberes próprios que se constituem nesses locais e que os caracterizam como um espaço escolar (VIDAL, 2005).
Como arcabouço metodológico, nos pautamos na História Oral, cujas memórias de professoras e egressos constituíram uma fonte importante para a narrativa histórica que apresentamos na próxima seção. Foram entrevistadas duas professoras, Jacira Koff Saraiva e Jaqueline Gedoz Vita, além de três egressos, Elisangela Bernardi, Roberta Rodrigues Ciepelevski e Paulo José da Costa. A História Oral utiliza-se dos aportes das memórias que emergem das narrativas para que possam ser compreendidas como documentos e, assim, serem analisadas, interpretadas e contextualizadas. As memórias se inserem em uma forma de conceber a História que não possui linearidade, pois são compostas de diversas tramas de lembranças que podem estar entrelaçadas ou embaralhadas, como são permeadas pelas escolhas pessoais de cada sujeito acerca do que deseja evidenciar ou omitir.
Determinamos como opção metodológica a transcrição direta dos testemunhos, sem adequação para a linguagem escrita. Assim, destacamos que em determinados pontos isso pode evidenciar a fragilidade no domínio da linguagem ou no modo de expressão por parte dos entrevistados. Para minimizar tais aspectos, realizamos uma “conferência de fidelidade”, baseada em Alberti (2013). Desse modo, foram entregues aos entrevistados uma via impressa de sua entrevista, para que pudessem realizar a leitura da íntegra e suprimir, alterar e/ou acrescentar as informações que julgassem necessárias e importantes ao seu depoimento.
Também nos pautamos pela Análise Documental histórica, cujas fontes são os documentos institucionais e ordinários, como registros fotográficos, cadernos de alunos e materiais didáticos pesquisados no Acervo Institucional da EGG e no Arquivo Histórico Municipal João Spadari Adami de Caxias do Sul. Os documentos históricos, em sua essência, são registros textuais e visuais representativos, preservados por sujeitos, sociedades ou instituições que estão permeados por relações de poder e intencionalidades. Nesse sentido, consideramos que nenhum documento é neutro, todos possuem especificidades, e, por esse motivo, sua apreensão como uma verdade absoluta é impossível, pois é necessário compreender o documento no contexto da conjuntura histórica em que foi produzido (LE GOFF, 2013).
Portanto, o estudo está divido em três seções. Nas considerações iniciais apresentamos o objetivo do estudo, o recorte espaço-temporal adotado, a metodologia mobilizada e os diálogos teóricos estabelecidos para as análises realizadas na segunda seção. A segunda seção, intitulada A cultura material nas memórias de professoras e egressos do ensino primário, analisa que objetos fizeram parte de uma cultura material escolar da EGG que possibilitam conjecturar todo um conjunto de normas e regras que definiram conhecimentos, condutas e disciplinas nos processos de escolarização, e por fim, as considerações finais apresentando os principais achados da investigação.
A CULTURA MATERIAL NAS MEMÓRIAS DE PROFESSORAS E EGRESSOS DO ENSINO PRIMÁRIO
No período investigado, o estado brasileiro viveu o apogeu da ditadura civil militar, marcada pelo desenvolvimento de práticas que visavam o fortalecimento do culto aos símbolos, às tradições nacionalistas, o estímulo da obediência, da disciplina, das regras e condutas, buscando promover um espírito nacional, bem como um modelo de socialização. Em Caxias do Sul, durante grande parte dos anos 70, as escolas municipais atendiam aos anseios fundamentais de ensinar a ler, escrever e fazer os cálculos matemáticos básicos.
Todavia, no final dos anos 80, acompanhando o movimento de abertura da ditadura civil militar, entra em discussão a possibilidade de inclusão nos currículos escolares de uma concepção pedagógica mais humanística, preocupada com o desenvolvimento psicológico, emocional, intelectual, social e moral. Ademais, se buscava instigar a curiosidade científica e o interesse humanístico, proporcionando aos alunos um sentimento de conscientização sobre os problemas sociais vivenciados no contexto (VALDEMARIN, 2006).
Desse modo, a EGG começou a ser entendida como uma demanda entre os moradores do Bairro Cristo Redentor em Caxias do Sul ainda no início dos anos 70, porém foi constituída em 1974 pelo poder executivo em detrimento das necessidades apresentadas pela comunidade, na época representados pelo presidente da Associação de Moradores, Ernesto Romualdo Rissi. Dessa forma, o Prefeito Mario Bernardino Ramos delegou as funções de organização para o funcionamento e a distribuição dos materiais didáticos à secretária da Educação e Cultura, Santina Barp Amorin (EGG, 1974). Nesse cenário, a EGG iniciou suas atividades, situada à Rua Angelina Michelon, s/n, numa casa7 de dois pisos, composta por um amplo salão que
[...] se cogitou de fazermos uma divisória, porque a peça era um pé direito bastante alto em função do morro, né, porque ela foi construída no barranco e todo aquele salão aberto, então se cogitou fazermos as divisórias, não me lembro o material, mas naturalmente algo só para dividir mesmo, em três salas (SARAIVA, entrevista, 2017).
Como mencionado por Saraiva, a EGG foi inicialmente organizada com divisórias de madeira improvisadas e composta por três salas de aula, um banheiro, uma sala de direção e uma de professores (EGG, 1974). Ressaltamos que muitas instituições educativas desse período instalavam-se em casas improvisadas, prédios alugados pelo governo, possuíam poucos recursos financeiros, espaços e materiais, salas de aula, professoras e alunos.
Ao tratar da adaptação e improvisação dos espaços escolares, Faria Filho e Vidal (2000) ressaltam que, entre os anos de 1950 e 1960, o governo brasileiro acabou simplificando e economizando nas construções dos prédios escolares, indicando alterações nas concepções educativas sobre estes espaços e, portanto, da função e posicionamento da escola primária na sociedade. Assim, os espaços escolares foram pensados como ambientes funcionais, e arquitetados para uma educação rápida e eficiente que, além da sala de aula, possuía locais específicos para acolher os docentes e os funcionários.
Cabe ressaltar que no município de Caxias do Sul, nesse período, “[...] à medida que a escola era construída, modificava a feição do bairro e trazia os pais para uma participação mais efetiva na vida da escola” (DALLA VECCHIA; HERÉDIA; RAMOS, 1998, p. 182). Além disso, a escola caracterizava-se como um espaço de referência para as reuniões dos moradores do bairro e suas associações, e tornava-se um polo catalisador comunitário, ou seja, num local de exposição de ideias e demandas da comunidade.
Nos seus primeiros anos de funcionamento, a EGG atendia uma média de 100 alunos na totalidade, de 1ª a 4ª séries, com três turmas pela manhã e três à tarde. A divisão dos alunos era feita em turmas por nível de graduação, e uma professora lecionava todas disciplinas para cada classe. Isso ficou evidente na narrativa de Bernardi (entrevista, 2017), ao mencionar que “[...] no começo, era uma prof. só que dava todas as atividades”, e também por Ciepelevski (entrevista, 2017), ao relatar que a partir da “[...] primeira série até a quarta série a gente era colocada em classes individuais com uma prof. por turma”.
Funcionando por dois anos nesse local improvisado, a EGG teve seu espaço adaptado para as aulas, pois inicialmente foi construído para moradia. Assim, funcionou com uma infraestrutura adaptada, poucas professoras, dificuldades financeiras, escassos recursos didáticos, contudo com iniciativa na busca de soluções materiais, espaciais e pedagógicas por parte do corpo docente. As famílias ajudavam como podiam, participavam das reuniões, e para Saraiva (entrevista, 2017), a EGG propiciou um bom ensino primário aos alunos “[...] dentro daquilo que a gente podia conseguir, que as famílias podiam dar, para favorecer a criança, a gente fazia o possível [...]”.
Importante destacar que o bairro Cristo Redentor, local em que a EGG se localiza, era uma área com baixa densidade populacional, com pouca infraestrutura e caraterísticas típicas de zona rural. Conforme a professora Saraiva (entrevista, 2017), existiam muitas “[...] estradas de chão e tinha alguns resquícios de campo, uns terrenos bastante grandes”, e não existiam estrutura elétrica e saneamento básico. Assim, o bairro Cristo Redentor também passou por mudanças e, nesse aspecto, a escola foi um dos pilares essenciais, pois os sujeitos que desenvolveram seus processos de escolarização nela foram os mesmos que compartilharam suas experiências fora dela.
Percebendo a necessidade de ampliação dos espaços, a comunidade novamente reivindica ao poder público a construção de um novo prédio escolar no ano de 1975. O novo prédio da Giuseppe Garibaldi atravessou períodos de atrasos em suas obras, decorrentes do aumento da demanda de alunos, resultado da ampliação populacional do bairro, bem como das necessidades de outras comunidades próximas. Por consequência, a construção foi atrasada, para que alterações fossem realizadas no projeto arquitetônico original, que seria de apenas um pavimento.
O novo prédio foi oficialmente inaugurado em seu novo endereço, próximo às antigas instalações, no dia 14 de novembro de 1976, às 10 horas. A solenidade iniciou com a execução do Hino Nacional Brasileiro, seguido do hasteamento das bandeiras do Brasil, Rio Grande do Sul e de Caxias do Sul, discursos do Prefeito, Mário David Vanin, da Secretária da Educação e Cultura em exercício, Eunice Cassarim, da diretora da EGG, Nivalda Clari de Stefani de Macedo, e apresentações artísticas e musicais dos alunos para os presentes. O encerramento da solenidade ocorreu com o pároco da igreja católica local abençoando a todos (EGG, 1974). Abaixo, apresentamos um registro da EGG em seu novo local de funcionamento:
As novas salas de aula da EGG eram compostas por duas janelas amplas, bem iluminadas, quadro negro e classes redondas de madeira. Além do espaço físico, a escola, como um conjunto educacional, necessitava de um sistema que compreendesse também os programas de ensino, os métodos didáticos, os materiais utilizados por meio de professores preparados e com condições para desenvolver seu trabalho. A EGG iniciou suas atividades em 1974 com um quadro de 10 funcionários, sendo 9 professoras e uma colaboradora para serviços gerais, número que aumentou ao longo dos anos 1980, chegando à totalidade de 23 funcionários, divididos entre direção, vice direção, bibliotecária, professoras de pré primário e primário. Ao considerarmos os espaços da EGG, precisamos atentar que suas características se assemelham às demais escolas da época: não mais à casa escola, mas a um edifício projetado para receber de forma adequada os alunos da zona urbana do município (DALLA VECCHIA; HERÉDIA; RAMOS, 1998).
Estes espaços educacionais são permeados pelas relações de poder, por “jogos de forças”, aspectos influenciados e influenciadores na constituição das identidades dos sujeitos escolares. Nesse sentido, a constituição do prédio escolar, sua arquitetura e seus elementos simbólicos, sua localização e relações com a comunidade, o modo como são dispostas as salas de aulas, a diretoria, a secretaria e a biblioteca, bem como os modelos e as distribuições dos móveis escolares e os tempos destinados para cada disciplina são influenciadores de práticas, condutas e de modos de ser e agir na escola (VIÑAO FRAGO, 2001).
Em relação aos recursos materiais na antiga instalação da EGG para planejamento e desenvolvimento das aulas, as professoras contavam com os materiais essenciais ao funcionamento dentro dos limites básicos. Deste modo, a escola possuía carteiras de madeira para comportar dois alunos em cada, quadros negros, cadernos e lápis. Os que possuíam melhores condições sociais e financeiras compravam, e os mais carentes recebiam gratuitamente do município, das próprias professoras, de doações provenientes de outros pais ou da comunidade (COSTA, entrevista, 2017). Além disso, também “[...] tínhamos o mimeógrafo, conseguimos um, onde as próprias professoras elaboravam seus materiais [...]” (SARAIVA, entrevista, 2017).
Para Viñao Frago (2000), ao analisar a memória de professores, é possível compreendermos o ser professor a partir da sua profissionalização, bem como a influência da cultura escolar em sua trajetória. Muitas professoras elaboravam seus materiais didáticos, adquiriam experiências pela observação de outras docentes, agregavam conhecimentos em leituras e, assim, foram constituindo-se e inventando modos, expressões e práticas docentes. Para Souza (2007), os materiais didáticos tornaram-se ferramentas necessárias às professoras primárias pelas possibilidades de concretizar suas práticas educativas, e assim, justificar seus resultados e atuações nos processos de escolarização.
Conforme a narrativa das professoras, a produção dos materiais didáticos para as aulas ficava inteiramente sob suas responsabilidades. A Secretaria Municipal de Educação e Cultura também promovia cursos nas escolas, em que as professoras deveriam participar, apresentando materiais impressos para o desenvolvimento de suas aulas e demonstrando uma grande preocupação com a alfabetização nas séries iniciais. Para Escolano Benito (2017), os efeitos das ações de uso, configuração física, organização espacial e simbologia da materialidade no contexto escolar permitem que se abordem dimensões da cultura escolar amparadas pela experiência e pela memória cultural. Ainda sobre as materialidades e os espaços físicos, Costa (entrevista, 2017) corrobora estas informações, destacando que
Tinha um quadro negro e um professor para cada turma. As classes sentavam dois ou três, geralmente era dois ali na mesma carteira, de madeira. Tinha a “tampinha” que você erguia e colocava teu material embaixo e os bancos de madeira.
Este modelo de carteira de madeira, onde se sentavam dois alunos, com uma tampa para guardar os materiais, foi adotado nas escolas primárias, num primeiro momento, pela economia de recursos financeiros (SOUZA, 1998). Estes modelos de carteira também foram utilizados pelas suas relações com a obediência ao tempo e ao espaço, vinculando-se aos preceitos da disciplina e respeito, mas também por proporcionar ao aluno sentar-se numa posição postural adequada. Estes modelos de carteira também sugerem que o ambiente escolar buscou um condicionamento dos comportamentos por meio da ordem, higiene, obediência e silêncio.
Para Souza (1998), materiais e mobiliário revelam hábitos, padrões e costumes sociais que se pretendiam disseminar nos sujeitos. A ordem e organização do espaço, dessa maneira, podem ser instituídas pela localização, forma e constituição do mobiliário ali presentes. Na Figura 2, os aspectos presentes numa das salas de aula da EGG, nas turmas de 1ª série do ensino primário:
De acordo com Escolano Benito (2017), os objetos materiais pertencentes à escola são produzidos socialmente e carregam traços do seu tempo histórico. Perceber as intencionalidades da materialidade escolar nos permite demonstrar indícios dos projetos atribuídos a essa instituição, e, portanto, ter conhecimento sobre esta cultura material escolar. Este campo tem se mostrado como uma importante ferramenta, ao permitir questionamentos sobre os significados que estes objetos possuem no cotidiano escolar para seus sujeitos, assim como suas diferentes atribuições, usos e desusos.
Assim, alguns dos espaços e as materialidades escolares evidenciados pela Figura 2 também emergem na narrativa de Bernardi, ao rememorar aspectos de sua sala de aula: “Eu me lembro que tinha as classes, na ocasião eram redondinhas com as cadeirinhas de madeira [...] tinham o quadro negro na frente [...]” (BERNARDI, entrevista, 2017). Para Castro e Gaspar da Silva (2011, p. 209),
Bancos e cadeiras ordenavam espaços e sujeitos dentro de um universo delimitado. Na escola, mesa e cadeira encontraram força singular que as transformaram em objetos com atuação direta na higiene do corpo, na disciplina, no conforto e na aprendizagem.
Esta disposição das classes redondas na sala de aula era comum apenas nas primeiras séries. A criação de móveis e materiais proporcionais à estatura dos alunos e à ordenação das classes, desta forma, buscou proporcionar espaços apropriados de ensino, respeitando a liberdade de ação do aluno. Conforme Bencostta (2013), o ensino primário possui algumas peculiaridades e necessidades específicas que devem ser observadas em relação aos alunos desta faixa etária, como os ângulos dos mobiliários e os instrumentos ondulados ou arredondados para evitar possíveis acidentes, e também que sejam leves e duráveis.
Entretanto, ao avançar para as séries seguintes, os alunos da EGG passavam das carteiras redondas para as carteiras individuais dispostas em fileiras. O uso das carteiras individuais inicia no século XX, nos grupos escolares, enfatizando que este modelo seria o mais adequado para os processos pedagógicos, morais e higiênicos. As carteiras individuais também possuíam o propósito de manter a distância entre os alunos, evitar o contato, a brincadeira, a distração, pois, desta forma, com cada aluno em seu espaço delimitado, era garantida a disciplina, a moral e a higiene (SOUZA, 1998). Esta disposição espacial e temporal
[...] é parte integrante da arquitetura escolar e se observa tanto na separação das salas (graus, sexos, características dos alunos), como na disposição regular das carteiras (com corredores), coisas que facilitam, além disso, a rotina das tarefas e a economia do tempo (ESCOLANO BENITO, 2001, p. 27).
É possível identificar que estas características materiais nas salas de aula também funcionavam como uma maneira de observar os alunos e de manter a disciplina nestes espaços. Para Dalla Vecchia, Herédia e Ramos (1998, p. 248), a disciplina na escola foi um valor sempre muito observado, sendo tratado como um “[...] elemento integrador do processo de aprendizagem”, trabalhada em sala de aula a partir da imposição de limites às crianças. Existia muito presente na comunidade - e consequentemente, dentro das escolas - a perspectiva de uma disciplina rígida a qual os alunos deveriam ser submetidos, e assim, a religiosidade, a honra, o trabalho e assiduidade eram valores reforçados por diferentes componentes da cultura material da escola.
A exposição do relógio na parede demarca a divisão do tempo de ensino para cada conteúdo, mesmo que apenas uma única professora fosse responsável pelo ensino de toda a turma. O tempo escolar acaba sendo expresso pela disciplina, e demonstra o respeito e a ordem imposta pelos horários em determinados momentos. Para Escolano Benito (2021), o tempo da escola servia para que as crianças internalizassem a cronologia destes espaços, em coações civilizatórias que objetivavam sobrepor um tempo social a um tempo individual. Assim, é uma forma do aluno aprender a concepção cultural do tempo que regulamenta a sociedade, no momento que as atividades que permeiam o cotidiano escolar estão determinadas pelo tempo, pelos controles de chegada e de saída, de início, de término (SOUZA, 1998).
Além disso, para Luchese (2015, p. 274): “O tempo era dividido em etapas a serem cumpridas num movimento progressivo, continuado, medido e quantificado. Os pulsares do ritmo escolar organizavam o tempo e disciplinavam os corpos infantis”. Desta forma, o tempo não estabelece apenas as relações sociais entre os sujeitos escolares, como também
[...] representa uma ordem que se experimenta e se aprende na escola. [...] o uso rotineiro, ritualístico e desgastante do tempo social padronizado na escola no sentido de formar homens capazes, racionais, laboriosos nos induzem a crer que a escola efetivamente não pretende apenas modelar dimensões cognitivas, mas organizar e sistematizar em tempos experiências, comportamentos, relações corpóreas e temporais da vida prática da criança e da juventude (CORREIA, 1996, p. 56-57).
O ritmo escolar, nesse sentido, também pode ser ditado a partir da organização curricular. O tempo escolar era organizado de maneira que as disciplinas previstas pelo programa escolar fossem cumpridas: Língua Portuguesa, Educação Artística, Educação Física, Matemática, Ciências Físicas e Biológicas, História, Geografia, Educação Moral e Cívica e Educação Religiosa eram componentes curriculares a partir da 4ª série (DALLA VECCHIA; HERÉDIA; RAMOS, 1998).
Muitas características apresentadas sobre os espaços, os tempos e as materialidades também são encontradas nos registros da agenda escolar de Ciepelevski na seção de deveres dos alunos. Em relação aos tempos, os alunos devem comparecer assídua e pontualmente a todas as atividades da escola. No que tange os espaços, deveriam zelar pela conservação do prédio, mobiliário, equipamentos, e ainda cooperar na manutenção da ordem e higiene. Para Escolano Benito (2021, p. 78), a escola é “[...] antes de tudo, é um espaço a ocupar e um lugar a frequentar”. Ademais, deveriam se comportar adequadamente no meio social para transmissão de uma boa reputação da escola perante a comunidade, bem como tratar com respeito a direção, as professoras, funcionários e seus colegas (EGG, 1988).
Na Figura 2, também podemos identificar a presença de toalhas penduradas sob o quadro negro. Conforme as narrativas de Ciepelevski e Bernardi, cada aluno da turma possuía uma toalha com seu nome, bordado, escrito, estampado servindo como uma espécie de guardanapo para hora do lanche ou merenda. Isso acontecia, pois a merenda escolar era servida na sala de aula em função da EGG não possuir um espaço adequado para o refeitório. A toalha também era utilizada para higiene pessoal após as aulas de Educação Física (CIEPELEVSKI, entrevista, 2017; BERNARDI, entrevista, 2017).
Para Dalla Vecchia, Herédia e Ramos (1998), a preocupação com a formação de valores além dos intelectuais era um aspecto importante disseminado nas escolas, sendo a educação voltada para a constituição de um sujeito obediente e civilizado. Logo, ao fomentar aspectos de higiene e de ordem, como o uso das toalhas, reforçava-se, dentro da sala de aula, valores que se deseja na sociedade caxiense.
Podemos pensar, também, nos espaços improvisados das escolas: a ausência de um local específico nos traz vestígios de rotinas adaptadas para manter a gramática da instituição. Para Viñao Frago (2001), os espaços e tempos escolares são importantes na conformação dos indivíduos, seja pelos gestos ensinados e aprendidos, seja pelas práticas e rotinas aos quais são submetidos. A falta de um espaço específico para as refeições apresenta diferentes maneiras de observar as rotinas e condutas escolares: “[...] mesmo que o espaço-escola se apresente como predeterminado histórica e institucionalmente, sua construção topocêntrica será internalizada e dinamizada pelos sujeitos que vivem no cenário” (ESCOLANO BENITO, 2017, p. 150).
Outro aspecto observado na mesma figura é a exposição de trabalhos confeccionados pelos alunos. Os alunos eram instigados pelas professoras a expor na própria sala de aula8, corredores e demais espaços escolares, os trabalhos desenvolvidos nas aulas com intuito de promover uma aparência estética agradável na instituição. Para Escolano Benito (2021), a produção das crianças, para além dos exercícios das disciplinas do currículo, trazem vestígios dos aspectos do contexto em que se realizou a socialização das crianças, e, portanto, da própria comunidade a qual a escola integra. Nesse sentido, além da preocupação com a beleza dos trabalhos e a estética escolar, as apresentações eram uma forma de exposição dos alunos perante a escola, mas, principalmente, da gestão da educação, da direção, das professoras, e seus feitos, de forma que os resultados apresentados pelos alunos poderiam refletir o bom desempenho do ensino das professoras e as orientações pedagógicas que seguiam (VEIGA, 2007).
Essas exposições foram uma importante característica da educação do município; o controle e a vigia sobre os programas de ensino se tornaram rígidos nesse período, sendo entregue aos professores e controlado pelas orientadoras pedagógicas: “[...] as professoras tinham que mostrar, todos os meses, boletins da merenda, planos, às vezes cadernos do aluno, ficha didática, cartazes...” (DALLA VECCHIA; HERÉDIA; RAMOS, 1998, p. 241).
Assim, em relação ao antigo espaço da EGG, alguns dos métodos de ensino e dos materiais didáticos acabam se ampliando em função das melhorias obtidas pela escola. As professoras confeccionavam seus materiais através do mimeógrafo, de lâminas para o retroprojetor9, de livros didáticos fornecidos pela Secretaria de Educação, e também pelas suas iniciativas na compra de livros e outros materiais. Além disto, muitos dos materiais que seriam utilizados no decorrer do ano eram solicitados aos pais para que efetuassem a compra antes do início do ano letivo (VITA, entrevista, 2017). Em muitas atividades realizadas
[...] a escola até fornecia revistas, jornais pra gente fazer os recortes né, mas a maioria das vezes, assim, já vinha na lista de material no início do ano letivo, ou as vezes no decorrer, quando precisava, os professores pediam pra a gente poder desenvolver as atividades, então a escola assim não tinha todo o material, tinha as coisas mais acessíveis, simples (CIEPELEVSKI, entrevista, 2017).
Ainda, conforme as rememorações das ex-alunas Ciepelevski e Bernardi, as professoras utilizavam diferentes recursos materiais em suas aulas no ensino primário, principalmente nas atividades que envolviam as disciplinas de português e de matemática, mediante impressos no mimeógrafo, na confecção de lâminas para o retroprojetor, no empréstimo de livros para leitura, com uso do
[...] papel-celofane, com giz para trabalhar a coordenação, os potinhos de tinta, as chamadas temperas né, daí tu molhava o dedo lá e desenhava, depois a gente trabalhava ali na primeira série com cartolinas, recortes de letras de revistas para formar as palavras. Nas aulas de matemática, a gente tinha um saquinho e cada um levava assim o seu feijão, o saquinho do feijão ou dos palitinhos para aprender a desenvolver assim a contagem, a fazer os cálculos, aí era dessa forma assim (CIEPELEVSKI, entrevista, 2017).
Considerar a necessidade de adequar a perspectiva metodológica da época à realidade dos alunos que frequentavam a escola nos permite pensar sobre as ações adotadas pelas professoras que se tornaram práticas cotidianas a partir de sua inserção no contexto escolar. Desse modo, para Escolano Benito (2017, p. 120), todos os “[...] objetos materiais, integrados nas estratégias empíricas do trabalho escolar de alunos e professores, são um reflexo funcional e simbólico das formas de entender e governar a prática”.
Algumas destas atividades descritas pelas ex-alunas estão registradas no Diário de Classe da Profa. Jaqueline, por meio de impressos mimeografados, direcionados a atividades de alfabetização, conforme a Figura 3, a seguir. O uso de exercícios que relacionavam elementos iconográficos com seus conceitos era uma estratégia comum em diversos materiais pedagógicos, destacando o caráter das orientações dos programas escolares no ambiente da sala de aula (PERES, 2016).
A utilização do mimeógrafo como recurso didático foi um importante avanço para os processos educativos, principalmente no ensino primário, visto que, dessa forma, as professoras possuíam autonomia na confecção e desenvolvimento de novos materiais, garantiam agilidade na distribuição das tarefas aos alunos, assim como possuíam uma forma de auxiliar individualmente a aprendizagem de cada aluno ao não depender apenas do quadro e do giz (SANTOS; MACHADO, 2018). Da mesma forma, as professoras não dependiam estritamente da ação da Secretaria de Educação para os materiais didáticos.
É importante salientar que Vita (entrevista, 2017) alerta que muitas das atividades didáticas e pedagógicas desenvolvidas e o uso de diferentes materiais no ensino primário da EGG eram condicionados à iniciativa pessoal de cada professora, pois o plano de ensino era repassado pela Secretaria de Educação e deveria ser cumprido no decorrer do ano letivo.
Para Viñao Frago (2000), as ferramentas, tecnologias, meios e dispositivos afetam diretamente o fazer docente - e instituem determinadas culturas escolares. Nesse âmbito, os professores são portadores de uma tradição que define determinadas condutas, práticas e maneiras de pensar. Compreendemos que as criações e inovações das práticas docentes estão ligadas aos diversos saberes que são constituídos e adquiridos nas instituições de formação, nas formações profissionais ou informais e também nas práticas do cotidiano escolar. Essas práticas docentes são individuais e particulares, pois dependem do modo que cada professor constrói, relaciona e mobiliza os diferentes saberes conforme as exigências apresentadas pela sua escola ou pela sua realidade profissional.
Para pensar nesse espaço que se desvela a partir dos elementos que ali eram colocados e relacioná-lo com padrões e condutas, é importante que aqui se fale não apenas da mobília, mas também de outros objetos que participaram na organização e composição do ambiente escolar: a existência dos materiais que permitiam a organização do cotidiano, assim como influenciaram as práticas e as condutas dos sujeitos que vivenciaram aquele contexto escolar.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nesta escrita, procuramos apresentar alguns vestígios que nos permitiram pensar na cultura escolar da EGG a partir de sua materialidade. Esses materiais servem como vestígios do cotidiano escolar, permitem construir uma narrativa a respeito da escolarização, da adaptação do ideal pedagógico, do modelo de ensino à realidade da escola pesquisada e de como os hábitos e costumes sociais que deveriam ser instituídos e disseminados eram representados por meio dos objetos materiais a que essa escola possuía (e muitas vezes, não possuía) acesso. Faz-se necessário refletir sobre como as representações de ordem, higiene e civilidade eram trabalhadas a partir do que se possibilitava aos professores e alunos.
Utilizar a perspectiva das três dimensões da cultura propostas por Escolano Benito (2017) permitiu subsídios para balizar as análises; olhar a cultura por meio da instância empírica, científica e política estimulou o cotejamento dos vestígios encontrados nas diferentes fontes documentais, resultando em novas perspectivas de interpretação, identificação de relações de poderes, influência dos materiais (e da falta deles) nas práticas escolares, nas representações que se formam pelos diferentes sujeitos que participaram daquele contexto escolar e das apropriações feitas pelos alunos e professores a respeito dos objetos escolares.
Compreender o cotidiano escolar, portanto, tornou-se uma aproximação com a perspectiva de que a cultura escolar é múltipla e determinada a partir da convergência de diferentes fatores, apresentados também por meio das narrativas de professoras e egressos da escola. Os vestígios nos permitem evidenciar que a EGG, apesar de enfrentar dificuldades econômicas nos seus primeiros anos de implementação, possuía uma variedade de materiais didáticos para as professoras utilizarem em suas aulas, e contava com uma estrutura física que permitiu que os processos de escolarização acontecessem de forma satisfatória, mesmo que, em alguns momentos, houvesse a necessidade de improvisação por parte dos professores.
Além disso, percebemos que a iniciativa de algumas professoras em buscar e criar subsídios pedagógicos e didáticos adicionais para as aulas foi importante para os processos de escolarização da EGG. Destacamos aqui a utilização de materiais como o papel-celofane, o giz de cera, as tintas de tempera, as cartolinas, os recortes de revistas e jornais, o uso de novas tecnologias para época como o retroprojetor e o mimeografo, bem como as suas apropriações a partir de leituras e observações de aulas de outras docentes.