Introdução
No Brasil, na década de 1930, tanto em São Paulo como no Rio de Janeiro, transformações urbanas ocorriam mediante as prerrogativas da higiene pública do início do século XX (Chalhoub, 1996, 2012; Rago, 2014; Freire, 1979; Hochman, 1998; Luz, 1982). As maiores cidades brasileiras tentavam reproduzir a urbanidade europeia, logicamente de forma limitada, por outras condições objetivas. Essa representação moderna de cidade encontrava seus defensores no país, com conglomerados populacionais que almejavam se diferenciar do cenário rural e dos subúrbios urbanos a partir do século XX (Mehrtens, 2010; Morse, 1965). Novos discursos e práticas que levavam aos prazeres individuais, ao conforto e aos divertimentos conduziam as cidades para projetos de modernização.
Para Le Goff (2013), o termo ‘moderno’ assinala a tomada de consciência de uma dada sociedade em relação a uma ruptura com o passado. Ressalta, ainda, que os países atingidos pelo colonialismo europeu precisaram enfrentar a questão do atraso no século XX, por isso o anúncio do ‘moderno’ estava paralelo à afirmação da identidade nacional. Em um processo de identificação, com negação e oposição entre antigo e novo, a ‘modernização’ teve certas características que, para Le Goff (2013), separam uma ‘modernização equilibrada’, onde o êxito da penetração do ‘moderno’ não destruiu o antigo, como, por exemplo, no Japão; de uma ‘modernização por tentativas’ que procurou conciliar antigo e novo não de forma equilibrada, mas parcial, como no caso do continente africano. Neste último exemplo, a afirmação da modernidade se refere, sobretudo, a uma consciência do progresso, a um plano em elaboração identificado como conquista de um grupo, de uma elite, de círculos restritos, mesmo quando suas práticas alcançam populações mais amplas, no que se denomina de ‘modernização em tentativas’ (Le Goff, 2013). Além disso, precisamos compreender que um processo de modernização exerce diferentes impactos em diversos grupos sociais da cidade, pois o moderno tem um sentido multifacetado ao passo que as mudanças estabelecidas em dados espaços e tempos abarcam ‘maneiras plurais de apreensão’ das transformações em curso (Cerasoli, 2004).
Portanto, neste cenário de pluralidade e contradições, se por um lado havia projetos modernizadores inspirados nos países industrializados, do outro, a partir dos anos 1920 e 1930, haveria também anseios por uma representação mais genuína de ‘brasilidade’ (Weinstein, 2015), ancorada na mestiçagem (Romo, 2007), o que provocou, por exemplos, a exaltação do samba (Hertzman, 2009) e a oficialização da capoeira (Fonseca & Vieira, 2014).
No período, os conflitos raciais, por exemplo, emergiam na produção dos intelectuais modernistas que, por conseguinte, propagavam discursos de otimismo e valorização da mestiçagem (Stepan, 2005; Schwarcz, 1993, 1999). Estas interpretações de uma geração de intelectuais, representada principalmente pela produção intelectual de Freyre (1959), caracterizavam-se pela crítica a posturas racistas, mas ao mesmo tempo construíam uma identidade brasileira que almejava tornar-se mais homogênea, pois clamavam por um otimismo, por um país do futuro. Assim, Gilberto Freyre, como representante mais proeminente desta geração de intelectuais brasileiros, promovia uma identidade nacional a partir de uma conciliação pacífica entre modernidade e cultura popular, omitindo os conflitos, tensões e violências a partir do preconceito racial (Bastide & Fernandes, 1971). Há, contudo, no pensamento social brasileiro um conjunto diverso de intérpretes da obra de Gilberto Freyre (Ricupero, 2011), onde se ressalta a crítica à tese sociológica do autor em relação à mestiçagem, pois ela omitia os conflitos e esvaziava a contradição entre os grupos antagônicos, que nunca se chocavam e sempre se conciliavam em uma enganosa ‘democracia racial’ (Fernandes, 1972; Mota, 1994).
Seguimos o mesmo itinerário da crítica, mas em um recorte de objeto original, delimitado pelas práticas e representações que envolviam os discursos de médicos e da imprensa sobre a educação física dos jovens em um Brasil urbano, ressaltando tensões e conflitos.
Temos como hipótese que os discursos sobre a educação física da juventude tentavam homogeneizar os comportamentos juvenis, afirmando uma identidade brasileira. Entretanto, contrariavam a mestiçagem, pois criticavam ou silenciavam sobre práticas corporais mais populares e com identificação cultural africana.
O que problematizamos, enfim, são as representações sobre a educação física da juventude urbana em relação aos discursos ‘modernos’, tanto no que diz respeito aos princípios conciliatórios da mestiçagem, como também em suas contradições evidenciadas por discursos médicos e jornalísticos que pretendiam moldar os comportamentos juvenis.
Esta problematização é original na medida em que não se limita em vislumbrar continuidades entre discursos pautados pela modernidade e práticas de educação física, mas, pelo contrário, almeja interpretar suas contradições, pois, como nos ensina Certeau (2011), as práticas obedecem a critérios, classificam-se segundo categorias e visam a objetivos que mudam. Essas questões revelam uma formalidade das práticas, sendo assim, uma das tarefas do historiador seria medir os distanciamentos, ou as relações, entre as formalidades das práticas e das representações (Certeau, 2011).
Na busca de respostas, limitamos nossa investigação na observação de práticas de educação física dos jovens evidenciadas por periódicos médicos e pela imprensa nas duas maiores cidades brasileiras, São Paulo e Rio de Janeiro, com o objetivo de compreender as especificidades de uma juventude urbana no período. As especificidades deste discurso voltado a uma juventude urbana paulista e carioca são colocadas em evidência por seu contraste com outras localidades brasileiras e com as juventudes representadas por outros grupos sociais e étnicos1.
Em relação ao recorte temporal, interessa-nos, em particular, a década de 1930, que no Brasil, se não representou as primeiras iniciativas de construção da nação, certamente caracteriza-se como um período de intensos debates, possibilitando a análise de diferentes identidades sobre o país que se chocam no campo da cultura. As fontes foram coletadas nos acervos da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo e da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. O corpo documental foi composto por artigos médicos dos periódicos Imprensa Medica, Boletim da Academia Nacional de Medicina e de notícias de jornais citadinos, principalmente, do Jornal do Brasil, do O Paiz e do Correio Paulistano.
Na escolha das fontes, priorizamos jornais de grande circulação que tivessem uma íntima relação com a questão urbana, que enfatizassem a cena das cidades mais populosas do país, como o Rio de Janeiro, centro da estrutura político-administrativa do país na década de 1930, e São Paulo, centro econômico que mantinha uma política de imigração muito intensa no período, para assim observar as representações sobre as juventudes brasileiras marcadas pela urbanização. Nestas cidades, em um contexto de modernização, os principais jornais alcançavam leitores de diferentes extratos sociais e campos profissionais, pois se tornaram suporte na construção da visibilidade de inúmeras práticas culturais (Luca, 2005; Cruz, 2000; Martins, 2011), com um crescente destaque para as notícias esportivas (Hollanda & Melo, 2012). Já os periódicos médicos escolhidos revelariam representações da produção científica brasileira sobre as juventudes urbanas, representando, desta forma, um discurso racionalizado pela ciência médica que era tido como um conhecimento reconhecido para se pensar uma intervenção pragmática em relação à cultura juvenil.
Na análise documental, três evidências ancoraram a interpretação de tensionamentos gerados pela instituição de modos de comportamento da juventude considerados pertinentes às práticas modernas de educação física: a) os silêncios em relação à capoeira identificada como educação física e as insistentes associações entre capoeira, delinquência e vadiagem, bem como o debate sobre o papel da medicina e da educação física em relação à criminalidade da juventude pobre; b) a necessidade de controle do comportamento juvenil para evitar o ócio e moldar a sexualidade; c) a defesa do discurso científico como legitimo nas escolhas pertinentes à educação física a partir da representação da moderação, o que gerou críticas à popularização dos esportes entre jovens, sobretudo o futebol (Kittleson, 2014; Goldblatt, 2014).
A construção da juventude em um país ‘moderno’ e a educação física
Juventude é um vocábulo muito associado a práticas centradas no corpo, como as danças, ritmos, esportes (Groppo, 2000; Brown, 2019), mas também era mobilizado para se referir a um grupo etário que deveria ser alvo de pedagogias e higienes (Soares & Gleyse, 2006) em diversas instituições como as escolas, os parques, fábricas e moradias. No Brasil, em específico, reformas sociais promoviam uma série de mudanças em relação aos divertimentos dos jovens e às suas práticas. Para Rago (2004), tratavam-se de novas regras e modos de viver, nos quais os padrões considerados civilizados de comportamento e de convívio social progressivamente adotados no universo das elites deveriam ser exportados para todos os grupos sociais, e por isso produziam tensões e conflitos.
Desta forma, erradicar hábitos populares vistos como atrasados ou perigosos era equivalente a fomentar preceitos ‘modernos’ de higiene e civilidade (Rago, 2014; Stephanou, 1999; Rocha, 2003, 2017). Dentre as transformações urbanas pensadas para atingir tal objetivo, “[...] programas de lazer com objetivos pedagógicos explícitos cresceram significativamente, ao mesmo tempo em que se enrijeceu o discurso sobre o ócio, estigmatizado como ameaçador e perigoso” (Rago, 2004, p. 428).
As grandes cidades, como São Paulo e Rio de Janeiro, entre outras, davam vazão, através de políticas públicas e de iniciativas privadas, a estas transformações materializadas na representação de cidade moderna. Este Brasil urbano encontrava-se envolto por estas mudanças na higiene pública, na arquitetura, na cultura material, mas também, de forma paradoxal, não se afastava de uma cultura tradicional ligada ao campo (Lima, 2008), à fazenda, ao rural e aos hábitos populares. Assim, a partir de muitos hibridismos, conciliações e conflitos, a identidade brasileira era reconstruída (Oliven, 2001).
Naquele período, discursos pautados por um viés cientificista conviviam com as tensões da observação de práticas cotidianas com outras origens, como a cultura africana e a tradição do interior que destoavam daquela identidade de Brasil urbano, deslocando-a para um universo de isolamento e abandono, no qual as representações modernas eram inacessíveis. Ao pensarmos em um país que buscava sua identidade entre o regional e o nacional, entre o científico e o político, seria difícil o estabelecimento, a análise, ou a descrição de uma identidade nacional homogênea (Lesser, 2015; Anderson, 2013). Desse modo, nossa observação e análise precisam ser delimitadas pelas características desejadas pelos discursos médicos e jornalísticos sobre uma juventude brasileira urbana identificada com projetos de modernização e suas respectivas contradições.
Ao estudar a juventude no mesmo período, Savage (2009) explica-nos que na Europa ocidental e nos Estados Unidos a ideia de juventude como uma fase distintiva da vida estava ainda se consolidando. Com isso, Estados nacionais começaram a produzir discursos sobre esta fase da vida, marcadamente preocupados com a delinquência juvenil. Nesse sentido, a pesquisa de Savage problematizou como o Reino Unido, os Estados Unidos da América, a França e a Alemanha tentaram conceituar, definir e controlar a juventude do último quartel do século XIX até a metade da década de 1940. Assim, ser jovem não era apenas um dado biológico ou uma faixa etária determinada, mas envolvia uma cultura de juventude que se estabelecia. Em específico, na década de 1930, para Savage (2009), a juventude era criada a partir de contextos nacionais diferenciados, com determinadas especificidades, mas com um sentimento em comum, ligado à necessidade de uma posição política a ser defendida como motivo de polarizações e violências. A pergunta mais frequente entre os jovens da Alemanha, França e Reino Unido era de que lado você está?
No Brasil, no mesmo período, a juventude também reproduzia disputas políticas em suas parcelas urbanas. Por exemplo, entre os jovens integralistas e a juventude comunista ocorriam diversos embates, que não eram simples reproduções dos conflitos europeus, pois jovens liberais, católicos, protestantes, modernistas e conservadores não permitiam um contorno simplesmente dicotômico entre os polos, mas complexos reajustes políticos. A década de 1930, no Brasil, foi um período de conflitos e conciliações em uma política marcada por ambiguidades no governo varguista (Williams, 2001).
Embora em uma história política, as juventudes comunista, integralista e cristã representassem parcelas relevantes de atuação dos jovens na década de 1930, interessa-nos, neste estudo, como a imprensa jornalística e os médicos representavam a juventude em seus aspectos culturais em relação ao que se convencionou chamar neste período de ‘educação física’, um vocábulo que congregava naquele tempo uma pedagogia desenvolvida para a infância e juventude pautada nas práticas de esportes, jogos e ginásticas2. Isso, entretanto, não significa que as questões políticas não se articulem com estas representações culturais, como no caso da juventude hitlerista alemã3 que tinha em sua essência a prática diária de exercícios físicos.
Portanto, mesmo sem desconsiderar os aspectos políticos, nosso olhar será direcionado primordialmente para o campo cultural, evidenciando a partir das fontes os discursos médicos e jornalísticos que representavam particularmente um projeto de educação das juventudes que defendia a construção de uma sociedade moderna e higienizada.
Este projeto educacional dos jovens estabelecia-se mediante uma imprecisa definição de juventude no período4, mas já associava as palavras jovem, mocidade e juventude às demandas que envolviam a educação, o fortalecimento da raça, a educação física, a criminalidade e a sexualidade.
Além disto, na defesa de uma pedagogia voltada aos corpos que cumprissem critérios de racionalidade, cientificidade e educação moderna, outras práticas distantes destas características eram silenciadas ou associadas à juventude pobre e estigmatizada (Arend, 2011). Por exemplo, mesmo com a legalização da prática da capoeira na década de 1930 e sua valorização como referência nacional (Fonseca & Vieira, 2014; Pires, 2010), do culto à mestiçagem racial do povo brasileiro e da necessidade de busca de identidades próprias mediante o ‘moderno’ nos anos de 1930 (Schwarcz, 1993), a educação física da juventude evidenciada e apoiada pela imprensa era marcadamente inspirada nos modos de vida europeu e norte-americano. Por isso, a capoeira na imprensa era constantemente associada ao jovem pobre, à vadiagem e violência, sem a representatividade que a prática tem nos dias atuais em relação à identidade brasileira, e sem nenhum tipo de vínculo com uma educação física considerada científica ou racional. Vemos isso, por exemplo, na notícia publicada no jornal A Batalha com o título ‘Roubou o homem que o protegera’:
Homtem, estava na Central do Brasil o sr. Pereira do Nascimento, quando viu o rapaz, em companhia de vadios a jogar capoeira. Chamou um policial e mandou prendel-o. [...] Ao ser interrogado ali, declarou chamar-se José da Silva, ter 17 annos, sem profissão e residência (Roubou..., 1932, p. 3).
Neste excerto, a imprensa, a partir de um evento em particular, associa a vadiagem, a capoeira e a juventude. Sobre a juventude pobre pesavam estigmas que não eram confirmados pelas escassas estatísticas do período. Para acessarmos estas representações em seus próprios termos, apresentamos resumidamente um longo debate na Academia Nacional de Medicina com sede na cidade do Rio de Janeiro. Na ata da sessão realizada no dia 29 de outubro de 1936, um debate sobre a deliquência infantil no Brasil fomentou discursos antagônicos entre os médicos, o que se evidenciam correntes médicas com visões políticas heterogêneas. É interessante observar que mediante muitas soluções sugeridas para o controle da criminalidade, argumentos de intervenção médica e biológica eram contrapostos com a necessidade de uma intervenção pedagógica que envolvia a educação física. A discussão foi gerada pela comunicação oral do Dr. Leonildo Ribeiro, que tinha o título de ‘Aspectos médicos do problema da delinquencia infantil’, publicada na íntegra no Boletim daquela instituição médica. Ribeiro (1936) aludia que
A medicina está sendo chamada a representar papel cada vez mais importante na defesa da sociedade e, mais especificamente, na obra contra o crime, em que estão empenhados os especialistas de toda parte, tendo em vista que a criminalidade cresce, continua e assustadoramente, nos centros mais cultos do mundo. Foi um medico de gênio, Lombrosso, quem primeiro demonstrou ha mais de cincoenta anos, que se a idéa de crime estava ligada á de saúde perfeita de seu ator, para que elle pudesse ter noção de responsabilidade, era urgente modificar nesse sentido as leis penaes, visto como grande parte dos criminosos é evidentemente constituida de indivíduos anormaes ou doentes, não podendo ter, por isso mesmo, consciencia do mal que estavam praticando. Punil-os, simplesmente, além de ser, em certos casos, uma heresia scientifica, era medida deshumana, sem finalidade pratica, na defesa da sociedade (Ribeiro, 1936, p. 842-843).
O Dr. Leonildo Ribeiro, ainda em meados da década de 1930, defendia uma naturalização do comportamento social ancorado na biotipologia italiana, que tinha como expoente o Dr. Cesare Lombroso (Silva, 2014). A partir da biotipologia seria possível, no entendimento do pesquisador, previnir a criminalidade identificando distúrbios biológicos na infância e adolecência. Tratava-se de construir taxionomias sobre tipos étnicos e físicos. Ribeiro (1936, p. 846) continua sua defesa:
Começaram então a surgir, por toda parte, depois da guerra, as instituições de estudo e observação da infância e da adolescência. Nos Estados Unidos, appareceram os laboratorios de pesquizas juvenis e as clinicas psychologicas infantis. Clarepede, na Suissa, funda o primeiro consultorio medico-pedagoco, no qual realizou uma obra de repercussão mundial. A Belgica inicia a reforma completa de sua legislação sobre a criança, colocando-se na vanguarda dos povos europeus, pelas suas novas leis nesse sentido. Mais recentemente, na Allemanha e na Austria, os partidarios da doutrina de Freud installaramconsultorios de pedanalyse e, na Italia, surgem os Institutos de Biotypologia, sob a influencia das novas idéas da escola constitucionalista de Viola e Pende.
Havia na década de 1930, segundo Savage (2009), uma preocupação crescente dos governos do Estados Unidos da América e dos principais países da Europa ocidental com o controle dos índices de criminalidade, o que ocasionou o desejo de maior controle e observação da juventude pobre. No Brasil, parcela dos médicos teve a iniciativa de dialogar com estes estudos, porém, sem se pautar em estatísticas confiáveis, mas em discursos morais sobre a juventude (Morelli, 2018). Mesmo assim, o Dr. Ribeiro esboçou possíveis soluções para a deliquência no país a partir de suas peculiaridades, como a desnutrição e a referida inferioridade física herdada geneticamente. Ele sentencia:
Fica assim evidenciado que a solução do problema, no Brasil, da infancia abandonada e deliquente differe, em alguns de seus aspectos, da que lhe foi dada em outros paizes, mesmo entre aquelles que mais se aproximam de nós. De que valeria internar uma dessas pobres crianças, mesmo em instiuições admiravelmente apparelhas para realizar sua educação physica e profissional? O resultado seria, a meu ver, completamente nullo e até em certos casos prejudicial (Ribeiro, 1936, p. 856).
Ao relativizar os benefícios da educação e da educação física sobre a saúde das crianças e jovens, Ribeiro defendia os limites de uma intervenção educacional, pois, para ele, o comportamento delinquente tinha também uma explicação biológica e não pautada no contexto cultural de inserção da juventude. Contudo, essa ideia não era comungada por toda a classe médica. Assim respondeu o presidente da sessão na Academia Nacional de Medicina, Manoel de Abreu,
Não creio, apesar das opiniões abalisadas expostas pelo nosso colega, que sejam as infecções que determinam, positivamente indice elevado de deliquencia dessas creanças. Parece-me que é a miséria, causadora da doença e, ao mesmo tempo, da deliquencia - a grande miséria! (Academia Nacional de Medicina, 1936, p. 858-859).
O discurso do Dr. Abreu corroborava com uma parcela significativa da medicina brasileira que defendia não existir inferioridade racial por parte das populações pobres no país, mas más condições de saúde, provocadas pelo abandono e isolamento por parte das políticas públicas (Hochman, 1998). Assim, o debate sobre as populações resultou em maior influência de uma vertente preocupada com reformas sociais a partir da década de 1930 (Stepan, 1998, 2005). O pronunciamento do Dr. Manoel de Abreu também incentivou outros interlocutores que apoiaram e criticaram as pesquisas do Dr. Leonildo Ribeiro. Assim pronunciou-se o Dr. Pedro Pernambuco:
Sabemos hoje, de acordo com a Medicina Legal infantil e com os ensinamentos de todos quantos se dedicam a esses assuntos da Medicina infantil, que a criminalidade, em geral, se processa depois dos 18 anos, sendo raros os casos em que praticam delitos creanças aquem dessa edade, hipotese em que os delitos são sempre determinados por dois fatores essenciaes: primeiro: uma educação ativamente má; e, segundo, perturbações de natureza organica ou psiquica, que condicionam o delito (Academia Nacional de Medicina, 1936, p. 862).
O Dr. Pernambuco defende a tese de Ribeiro apresentando uma estatística não publicada no estudo de que 70% dos jovens com menos de 18 anos cometiam crimes ou delitos por uma condição de debilidade mental ou doença psicológica (Academia Nacional de Medicina, 1936). Tratava-se de uma tese de medicalização dos crimes e delitos praticados por jovens, ao passo que se as causas da delinquência fossem provocadas por doenças mentais, o problema estaria mais no campo médico do que no educacional. Assim, permitiria uma penetração ainda maior dos discursos médicos em políticas públicas eugênicas direcionadas à juventude (Souza, 2008). Entretanto, a tese era de difícil defesa, e o Dr. Ribeiro não confirmou as estatísticas do Dr. Pernambuco, mas interpelou:
Vamos admitir que sejam 50% as causas sociaes e que as causas de natureza biológica representem os outros 50%. Já que não podemos enfrentar de maneira decisiva as causas de natureza social, enfrentemos as biologicas, que na minha opinião são as mais faceis de ser abordadas e mais directamente vencidas, e termos, assim, diminuido em grande parte uma percentagem enorme de criminalidade infantil, que aumenta systematicamente em todos os grandes centros cultos do mundo (Academia Nacional de Medicina, 1936, p. 866).
A preocupação com a juventude era patente entre os médicos brasileiros na década de 1930, contudo a criminalidade estava longe de ter maior incidência entre os jovens até 18 anos. Embora houvesse poucas estatísticas sobre o crime no Brasil na década de 1930, dados do Estado de São Paulo, verificados em 1936 e publicados pelas autoridades governamentais no jornal Correio Paulistano, revelavam que havia maior ocorrência de práticas ilegais por parte de homens de 26 a 45 anos (Prisões, 1937).
Todavia, a preocupação dos médicos não residia apenas com a educação dos jovens pobres. No mesmo sentido, era preciso também defender a educação física dos jovens de classes média e alta. Nesse caso, sem os estigmas da inferioridade racial e biológica, tratava-se de selecionar a melhor educação física para a juventude. O tema era importante, pois entre os anos de 1920 e 1940 a população brasileira passou de 30,6 milhões para 41,1 milhões, sendo que os menores de 20 anos correspondiam a 54% do total naquele período (Fausto, 2002). Ou seja, cuidar da juventude era reformar a sociedade do futuro em termos considerados ‘modernos’, a partir da racionalidade e da ciência, pelo menos no ponto de vista médico. Também considerou o Dr. Ovidio Meira:
Sob este ponto de vista, Sr. Presidente, declarei que, no Rio de Janeiro, são abandonadas não só as creanças indigentes, mas as da classe media e as ricas. Esse abandono seria, talvez, facilmente corrigivel sem grande onus, pois não ha no Rio de Janeiro, um club esportivo que não tenha favores especiaes dos governos. De sorte que, dividindo-se o ano letivo em dois periodos, um de educação intelectual e outro de educação physica e civica, esses grandes centros esportivos serão naturalmente compelidos, ou a desistir dos favores que gosam, ou a ceder as suas sédes para educação dessas creanças, estabelecendo-se frequencia obrigatoria e compulsoria, salvo para aquelas que tivessem que sahir do Rio de Janeiro, obrigando-os, entretanto, a frequentar outros centros (Academia Nacional de Medicina, 1936, p.860-861).
Parece-nos que o Dr. Meira compreendia que a ocupação dos tempos do jovem fosse uma tarefa importante para o controle do comportamento juvenil em todas as classes sociais. Era impreterível evitar o ócio também dos jovens das classes média e rica. Dessa forma, as práticas modernas de educação física eram consideradas ferramentas importantes de uma educação moral capaz de limitar o comportamento jovem nos mais diferentes aspectos.
Essas prerrogativas são observadas quando, por exemplo, o tema que afetava a juventude era a sexualidade nas revistas médicas. Para, enfim, evitar uma gravidez indesejada, ou mesmo a própria relação sexual na adolescência, as armas modernas da medicina não se referiam mais à moral religiosa, mas a uma moral médica pautada no controle científico dos corpos. Nela utilizava-se também como estratégia a educação física, que possibilitava a ocupação dos tempos da juventude, evitando o ócio. Assim se pronunciou o Dr. Neves Manta na revista Imprensa Medica no artigo ‘Prophylaxia das paixões prematuras’, em 1932:
Cumpre fazer-se, portanto, antes de mais nada, a prophylaxia da cópula prematura, evitando assim juncções de corpos tenros e em evolução! Mas como fazê-lo? Nas forças estheticas encontrará a Hygiene os meios para uma prophylaxia perfeita. Não só ahi: nos exercícios physicos e nos jogo pueiris encontrará tambem derivativos admiraveis para o desnorteio das manifestações eróticas subinstictivas (Manta, 1932, p. 342).
Da mesma forma o Dr. Clovis Muzzel Faria, em 1937, aconselha o controle da masturbação juvenil através do incentivo às práticas esportivas:
Poderemos empreender um rapido estudo da masturbação dividindo-se em dois casos gerais: a masturbação na idade juvenil e a sua na idade adulta. Preferimos falar em masturbação juvenil, porque é geralmente na puberdade que se faz sentir com mais intensidade. [...] Aos paes e educadores que devem estar suficientemente preparados em materia de sexualidade para que sua missão seja perfeita, cabe saber evitar que o educando se masturbe em excesso. Não incutindo idéas perniciosas no jovem com são as de que ficará louco, tuberculoso, impotente, etc., que só servem para aumentar a angustia do masturbador e que é precisamente o que se deve evitar, pois, são taes teorias que tornam o individuo neurastenizado e com um sentimento de culpa que o acompanhará a vida inteira, porem, fazendo que sua atenção seja orientada para outros fins como são o sport, a arte, etc (Faria, 1937, p. 483-484).
A palavra de ordem na medicina era a moderação, e evitar excessos em tudo era um princípio que orientava o campo educacional em relação ao corpo. Ao invés da condenação moral própria da educação religiosa em relação à masturbação, a medicina do início do século XX optava pela moderação. Para alcançar este objetivo, da mesma forma, era preciso ocupar o tempo do jovem a partir de estímulos de pedagogias voltadas aos corpos, como as realizadas nos esportes. Mas a moderação também era a regra para a prática da educação física tanto para a medicina brasileira (Amorin, 1931) como para médicos e educadores franceses (Gleyse & Soares, 2012).
Se para os médicos era importante que os exercícios fossem pautados na ciência e tivessem como princípio a moderação e a negação dos exageros, no campo dinâmico da cultura muitas formas de educação física tinham visibilidade na imprensa. Essa diversidade, contudo, tinha certos limites por parte da impressa escrita, sobretudo pelos jornais das cidades de São Paulo e Rio de Janeiro. As práticas associadas à educação física eram particularmente oriundas de determinadas culturas e, fosse nas escolas, nos clubes esportivos ou nas praças das cidades, havia uma centralidade em práticas modernas identificadas pelos esportes ingleses, pelos jogos infantis e pedagógicos de origem norte-americana e pelas ginásticas europeias.
Noções similares podem ser encontradas entre os membros da comunidade teuto-brasileira em diferentes Estados do sul e sudeste do país. Ao considerarem que “A força da juventude garante o futuro de um povo” (Thümmel, 1929, p. 14), os teuto-brasileiros estabeleciam os exercícios físicos como o caminho para o robustecimento da população jovem. Atividades como nadar, pedalar, remar, e mesmo a prática de alguns esportes eram justificadas como elemento importante da formação da juventude em razão de seus efeitos sobre aspectos morais e físicos, em textos frequentemente assinados por indivíduos vinculados ao movimento ginástico na Alemanha.
Porém, havia a transgressão por parte dos jovens, pois nem sempre a educação física era moderada ou higiênica. Assim, ressignificações de práticas de educação física geravam tensões. Esse cenário não era exclusivo do contexto brasileiro, e outros estudos evidenciam estas contradições entre uma educação física ligada ao ‘moderno’, ao científico, em contraposição com práticas tradicionais ou desviantes como, por exemplo, o estudo de Kirk e Twigg (1993), que descreve as resistências em relação à ginástica sueca por conta de sua previsibilidade e monotonia na Austrália, na década de 1930; e o estudo de Dittrich (2014), sobre as contradições entre práticas educacionais tradicionais e uma educação física moderna na Coréia.
No Brasil, as contradições de uma educação física moderna podem ser observadas na publicação de constantes críticas à popularização de alguns esportes. A partir de escolhas identitárias, realizadas tanto por médicos como pela imprensa das maiores cidades brasileiras, a educação física, mesmo se estabelecendo de maneira mais ampla, não podia ser atrelada a uma cultura da improvisação ou do divertimento desinteressado, pois assim seria associada ao popular. Para os discursos ‘modernos’, mas também moralistas, de médicos e jornalistas, isso seria desvirtuar seus princípios pedagógicos e científicos. Mesmo como representantes da modernidade, algumas práticas esportivas sofreram ressignificações, por isso passaram a receber algumas críticas e questionamentos na imprensa. Carlos Fernandes, no artigo ‘Cultura physica’, no jornal O Paiz, ponderava:
Não sei se chegámos a compreender que o aprumo, a destreza e airosidade britannica, apesar do whisky e do tabaco, se derivam quasi que exclusivamente daqueles sadios hábitos de exercitação muscular. Seja como fôr, adoptámos aquelles jogos, nacionalizámos a peteca, e chegamos ao exagero de erigir o football como mania pandemica, que se manifesta em accessos hebdomadários de ameaçador e contagioso delírio. Assim estamos fabricando uma geração masculina de cangurus, pelo tamanho excessivo das pernas como já temos uma enorme plêiade de guaribas, pelo comprimento demasiado dos braços - os remadores.[...] Todavia é mister não confundir educação physica com desportos. Estes caracterizam-se pela sua finalidade recreativa, que póde chegar ao athletismo ou ao comprometimento da saúde, da harmonia physiologica. Aquella visa precisamente auxiliar, estimular e manter a eurythimia do corpo humano (Fernandes, 1930, p. 1).
Carlos Fernandes alertava para a invasão dos esportes no cotidiano das cidades. O texto representa uma linha de pensamento que via os esportes como ameaça no campo educacional na mesma perspectiva do médico Dr. Carlos Sussekind de Mendonça, em ‘O sport está deseducando a mocidade brasileira’, de 1921. Mendonça (1921) inferia que a prática de esportes trazia mais malefícios do que benefícios (Santos, 2010; Dalben & Góis Junior, 2018), na medida em que ocasionava, em tese, uma excessiva fadiga corporal que desequilibrava o organismo, sendo, portanto, anti-higiênica. Como aludia o artigo denominado ‘Um grande passo para o aperfeiçoamento de nossa gente’, de Nelson Lourenço, publicado no jornal O Paiz, em 1930, dizia que
Houve uma época em que os diretores dos collegios comprehenderam a necessidade da gymnastica, quando mais não fosse para apresentar nos dias de festa, aquella celebre parte dos exercícios physicos. Mas, quem passou por esses eatabelecimentos de ensino há de estar lembrado que essa gymnastica era habitualmente praticada, uma ou duas vezes por semana, em local improprio e em impropria hora. [...]
Mas, eis que o football surgiu. Trazia todas as qualidades que um povo, descendente em sua grande maioria, de latino e índio, exigia. Era violento. Emocionava. E do modo por que foi compreendido, não requeria perseverança para aprendel-o. Era só jogar. [...] Mas football é sport, e sport não é cultura physica. Longe estava ele de representar a nossa urgente necessidade. [...]
O sport só póde ser olhado como causa do avigoramento do corpo, e consequentemente da raça, quando praticado com moderação e racionalmente. [...]
O que não é mais possível, é continuarmos na vertiginosa descida em que vamos. O football causou em nosso meio uma verdadeira revolução social. As revoluções sociais originam, no principio, atropelo, excesso, balburdia, após tudo isto, vem a condição melhor (Lourenço, 1930, p. 4).
Essas críticas evidenciam também que as práticas não eram controladas pelos discursos ‘modernos’, pois no campo dinâmico da cultura gozavam de maior autonomia, sendo apropriadas pelos jovens.
Concomitantemente, os ataques moralistas aos esportes suscitavam também seus defensores, oriundos de diversos grupos sociais. Revistas especializadas, influenciadas por instituições de fomento ao esporte, como a YMCA [Young Men Cristian Association], ‘Associação Cristã de Moços’ do Rio de Janeiro, tomaram partido no debate, defendendo os esportes como estratégia de higienização e educação da juventude. Um exemplo era a revista Sport Illustrado, que em 1938 publicou a seguinte passagem:
Paizes adiantadíssimos passaram a inverter grandes somas no incentivo e pratica sportivos e como consequência de medidas governamentais, a própria legislação desses paizes se fixou no aproveitamento desse vasto campo que é o sport para tornal-o columna mestra da hygienisação, digamos, assim, de sua juventude. [...] nosso Ministerio da Educação, bem como a Prefeitura Municipal, prescreveram exigências utilissimas sobre o assumpto. Surgiram os gymnasios de sports, as quadras, os campos e as piscinas em uma infinidade de educandarios. Com isso a contingencia de instructores capazes, technicos e categorizados. Fugiu-se do empyrismo para a acção scientifica, methodisada e consciente (Os sports, 1938, p. 3).
As polêmicas residiam também no debate sobre o melhor instrumento de uma educação física para os jovens. Como desdobramento, de um lado, produziu-se uma idealização do valor do esporte. De outro, percebe-se forte suspeita de que ele estimularia excessos que comprometeriam a integridade dos jovens. Netto (1933), por exemplo, assume uma posição conciliatória entre ginástica e esportes, e essa perspectiva parece ter sido mais influente quando observamos as práticas evidenciadas pelos jornais, tanto em São Paulo como no Rio de Janeiro, sugerindo que esportes e as ginásticas tornaram-se estratégias menos concorrentes ao longo da década de 1930, dando espaço para uma educação física eclética, congregando diferentes tradições europeias e norte-americanas. O posicionamento de Américo Netto não era trivial, e se analisarmos sua rede de sociabilidades, observaremos que ele, primeiramente, esteve envolvido na criação da ‘Escola de Educação Física de São Paulo’; era secretário geral do ’Departamento de Educação Física do Estado de São Paulo’; tinha relações com a filial paulista da ‘Associação Cristã de Moços’, entidade de grande relevância na promoção de esportes norte-americanos e ingleses; atuou como representante paulista do movimento olímpico brasileiro; e trabalhava na publicação da revista Educação Physica (1932-1945), primeira publicação periódica especializada no gênero. Ou seja, era um agente histórico importante no que se referia à institucionalização de uma área profissional no país, a agora educação física com letras maiúsculas, como disciplina escolar e também curso superior. Desse modo, se ao longo da década de 1930 foram garantidas as questões objetivas para seu oferecimento nas escolas de São Paulo e Rio de Janeiro, agora era necessário demonstrar os benefícios de sua implantação. Na tentativa de aproximar-se deste cotidiano da educação física da juventude, deparamo-nos com as festividades e comemorações organizadas por entidades do campo educacional que objetivavam levar à comunidade os resultados do trabalho pedagógico desenvolvido. É neste âmbito que a juventude em desfile ganha destaque. Nas palavras do Prof. Hollanda Loyola sobre ‘O dia da raça’, na cidade do Rio de Janeiro,
É o dia da Raça, o desfile da mocidade do Brasil. Desde cedo atordoam os ares e o toque festivo dos clarins e o cavo cadencia os tambores; dos mais longínquos recantos da cidade apresentam-se grupos alacres de jovens que se destinam à grande concentração; a música marcial das canções patrióticas, os vivas de alegria que se cruzam e se confundem, as milhares de bandeiras que drapejam farfalhantes dão ao ambiente um entusiasmo febril, comunicativo, que empolgava, galvaniza. Toda a cidade está em festa, reina alegria por toda a parte. [...]. Os jovens de cabeça erguida, atitude correta, passo firme, marcham garbosamente sorridentes e belos, disciplinados e convictos, numa esplêndida visão do que será o Brasil glorioso de amanhã. [...]. Um povo desfila! Com efeito, ao contemplar-se, nesses desfiles esplendorosos, a nossa vibrante juventude patrícia, esses corpos flexíveis e harmoniosos, sadios e fortes, queimados de sol e estuantes de vida, sente-se que uma raça se define, e a nação adquire uma consciência, anônimo professor de Educação Física coroação de seu esforço, a tua maior colaboração para a grandeza da pátria. Eu te felicito, exuta comigo! (Loyola, 1941, p. 9).
Hollanda Loyola era um professor importante na publicação da revista Educação Physica (1932-1945) e tinha uma atuação política engajada na ‘Ação Integralista Brasileira’ que, como já dissemos, era uma corrente política que tinha inspirações fascistas, contudo com muitas características próprias (Simões, 2009).
Em São Paulo, em 1938, a comemoração do ‘Dia da raça’ também ganhou espaço na imprensa da cidade, reunindo 10 mil jovens (Dez mil..., 1938).
O mesmo incentivo ocorreu no Rio de Janeiro, por iniciativa da prefeitura, motivado pela influência de intelectuais defensores de uma modernidade pedagógica que se tornaram dirigentes educacionais na cidade, como Fernando de Azevedo e Anísio Teixeira. O Rio de Janeiro consolidou um projeto de educação física que ressaltava a convivência dos jovens com práticas e jogos ao ar livre como modelo de desenvolvimento da saúde. Nesta perspectiva, a professora norte-americana Lois Williams teve papel central. Ela trazia dos Estados Unidos sua formação na área, sendo influente na organização da Educação Física como disciplina escolar na rede pública de ensino e na atualização de professores oriundos da Escola Normal.
A senhora Williams chega ao Brasil por intermédio da seção feminina da Associação Cristã de Moços (YMCA), e logo insere-se no círculo da Associação Brasileira de Educação. Posteriormente, ocupa cargos públicos na prefeitura do Districto Federal, com uma posição importante na área, na gestão de Anísio Teixeira. O Jornal do Brasil deu destaque, em 1932, em uma reportagem intitulada ‘Para fortalecer a raça’, a uma demonstração pública de educação física na Quinta da Boa Vista, organizada pela professora. No documento fica evidente a importância dos jogos pedagógicos em seu projeto educacional (Para fortalecer..., 1932).
A experiência de Lois Willians no Rio de Janeiro evidencia que a ginástica europeia não era a única fonte de prática de educação física, sobretudo, a partir da década de 1930. A influência norte-americana parece ser importante (Schneider et al., 2016), não somente no contexto das escolas presbiterianas ou metodistas, mas inclusive em algumas escolas públicas, como as do município do Rio de Janeiro. Nesse caso, especificamente, a influência do movimento educacional conhecido como ‘Escola Nova’, inspirado pelas ideias de John Dewey e em pedagogias norte-americanas dos jogos, dos parques infantis, dos playgrounds, revelaram-nos uma articulação entre um projeto higienista brasileiro e várias vertentes que tinham em comum a intervenção sobre a juventude.
Muito deste investimento sobre a juventude teve apoio do governo centralizador de Getúlio Vargas. Mesmo com uma posição autoritária, Vargas soube seduzir muitos intelectuais brasileiros (Micelli, 2001) para a atuação nos campos da saúde e educação. Com a contribuição dessa intervenção governamental, projetos direcionados à juventude incentivaram algumas transformações no cotidiano das cidades que eram percebidas pelos cronistas da época. Um exemplo é o artigo ‘1830-1930’, de Gomes Ribeiro, publicado no jornal O Paiz em 1930. Nas suas palavras,
[...] 1830-1930 - Qual será a mentalidade reinante de hoje a um século? Eis uma pergunta que nos vem naturalmente ao espirito, ao compararmos o homem, e sobretudo a mulher, de 1930 com o homem e a mulher de 1830. [...] A doença do espirito reflectiu-se no corpo. Desconheciam-se a gymnastica e a hygiene; uma reflorescencia de mysticismo medieval declarou guerra ao corpo: morrer jovem e tysico era gloria summa dos poetas românticos [...] Todos quizeram viver, com mais hygiene e maior conforto. Applicaram á indusria as conquistas da sciencia; augmentou-se a riqueza, desenvolveu-se o progresso. Viajou-se muito; os povos conheceram-se uns aos outros, repartindo entre si o que tinham de melhor. [...] A mulher é hoje um sêr pensante... Não teme a saúde, antes se robustece pela cultura physica. Faz gymnastica, disputa provas de natação, e, por isso vence os homens, em concursos para empregos publicos e particulares. Não fica mais a suspirar á lua, como as Ophelias de 1830 (Ribeiro, 1930, p. 3).
Para Gomes Ribeiro, a higiene e a educação física representavam as conquistas de um mundo ‘moderno’ orientado pelos auspícios da ciência e da saúde, possibilitando até mesmo a conquista de espaços originalmente masculinizados, como o esporte, por parte das mulheres, sem, contudo, mencionar os objetivos eugenistas que envolviam a disseminação da educação física entre elas (Goellner, Votre & Pinheiro, 2012). De certo, o depoimento de Gomes Ribeiro parece também demasiadamente otimista em relação às transformações proporcionadas pelo projeto de país ‘moderno’ ou, pelo menos, de cidade moderna.
Considerações finais
Enfim, ao problematizar a educação física da juventude urbana na década de 1930, observamos que os discursos ‘modernos’ de médicos e da imprensa nas cidades do Rio de Janeiro e São Paulo tinham o objetivo de legitimar práticas direcionadas ao corpo que, entretanto, deveriam ser embasadas em conhecimento científico e em uma moral da moderação. Dessa forma, ganhava destaque no Brasil uma educação física delimitada pelas orientações oriundas de uma educação europeia e norte-americana. Entretanto, a necessidade de legitimação desta educação física evidencia também tensões geradas pelos silêncios e/ou pelas críticas a outras práticas que tinham maior identificação com os divertimentos desinteressados, com a improvisação, como a popularização de alguns esportes como o futebol, ou mesmo com práticas tradicionais, como a capoeira.
Esses dados evidenciam também contradições provenientes do próprio discurso ‘moderno’ brasileiro, que oscilava entre representações de um Brasil caracterizado pela mestiçagem, como uma cultura conciliadora e uma ‘democracia racial’ particularmente brasileira na linha de Gilberto Freyre, e os discursos pautados pelo científico e pela grande imprensa, com uma representação de Brasil ‘moderno’ que silenciava e/ou criticava práticas populares ou oriundas da cultura africana e da tradição rural, pois tentava moldar as juventudes urbanas em um projeto modernizador mecanicamente identificado com os países industrializados.
Contudo, a despeito de parcela dos discursos de médicos e cronistas, as práticas ganhavam uma dinâmica própria e contextualizada. Desse modo, em uma modernização plural, havia tensões entre o ‘moderno’ e o tradicional, entre diversos grupos culturais e étnicos, que em alguns casos produziam tentativas de conciliação ou segregação que afetavam a educação física da juventude conforme seus próprios defensores. Em outras palavras, a educação física dos jovens era ressignificada por diversos grupos, como cristãos, integralistas e comunistas, que disputavam influência sobre os círculos de jovens formados pelo interesse naquelas práticas. Concluímos que a busca de uma brasilidade na década de 1930, com a valorização da mestiçagem, não afetou de forma uniforme a educação física da juventude.