Introdução
O objetivo deste artigo é analisar a posição assumida pela universidade na economia do conhecimento, destacando elementos que concorrem para a compreensão de como, na sociedade globalizada, a atuação dessa instituição vem se mostrando estreitamente associada aos princípios da economia. O esforço interpretativo do texto é dirigido para a análise da configuração do papel da universidade na economia do conhecimento, considerando sua inserção no campo mais amplo da educação superior, partindo do pressuposto de que, nos tempos atuais, esse campo lida com uma dimensão econômica sem precedentes em qualquer outro momento de sua evolução.
Na sociedade contemporânea, a educação superior conta com uma expressiva variedade de instituições que possuem propostas, funções, perfis e vocações distintas, mostrando-se como um fator de grande relevância no processo de transformação social. Nesse complexo cenário, a universidade se distingue das instituições não universitárias pelo seu compromisso social com a geração do conhecimento novo, o que contribui para seu reconhecimento como locus privilegiado da produção e inovação do saber.
Apesar das grandes contradições que podem ser verificadas em sua origem e evolução, a universidade ainda é concebida como a instituição que, no mundo contemporâneo, revela a capacidade de promover a integração de conhecimentos, cultura, valores, povos, bem como de propiciar o respeito pelas diferenças e especificidades de cada nação. Sob esse ângulo, tem cumprido um papel social que permite reconhecê-la como um centro de intensa e verdadeira atividade intelectual. Do ponto de vista histórico, a universidade é reconhecida como a instituição responsável pela organização do acervo de conhecimentos produzidos pela humanidade, discutindo formas geradas pela sociedade para produzir, transformar e transmitir esses mesmos conhecimentos. Em seu percurso tem assumido a missão de concentrar esforços, visando à produção de saberes nos mais variados campos da vida humana - cultural, econômico, social, político, etc. -, ao mesmo tempo que apresenta alternativas para preservá-los. Nesse duplo movimento estabelece relações diversas que revelam seu compromisso com determinado projeto de sociedade.
Todavia, na nova ordem mundial, a universidade desenvolve seu trabalho em um contexto competitivo no qual a produção do conhecimento é fortemente envolvida pela economia do conhecimento, e acontece em uma sociedade sem fronteiras. Os dilemas enfrentados por essa instituição ganham centralidade em um contexto no qual verificam-se movimentos de grande alcance como o processo de mundialização e acumulação flexível do capital. Esse cenário impõe às universidades, especialmente às públicas, a definição de outros papéis que sofrem as reverberações dos princípios da economia, os quais vêm influenciando significativamente a educação superior mundial.
Como campo mais amplo no qual se insere a universidade, a educação superior mostra-se interdisciplinar, razão pela qual demanda que sua investigação aconteça à luz de matrizes teóricas vinculadas a diferentes áreas do conhecimento. Partindo dessa premissa, a discussão feita nesse artigo fundamenta-se no pensamento sociológico de Pierre Bourdieu (1930-2002), particularmente na noção de campo, conceito que assume centralidade na obra do autor. A reflexão sistemática da contribuição sociológica desse autor leva ao reconhecimento de que o conceito de campo constitui uma referência teórica relevante para o exame da educação superior, visando compreendê-la como um espaço competitivo formado por instituições de natureza bastante heterogêneas e diversificadas. Entretanto, admitindo que a compreensão da dinâmica da educação superior implica recorrer a múltiplos referenciais teóricos, a reflexão proposta compartilha da posição de Bourdieu (2004, p. 66) contra o que ele denomina escravismo teórico-metodológico na análise de qualquer fenômeno social: “De minha parte, mantenho com os autores uma relação muito pragmática: recorro a eles como ‘companheiros’, no sentido da tradição artesanal, como alguém a quem se pode pedir uma mão nas situações difíceis.”.
Partindo do princípio de que uma análise é, ao mesmo tempo, explicativa e interpretativa, estruturalmente o texto está organizado em quatro partes. A primeira discute a noção de campo, reconhecendo-a como importante instrumento teórico-metodológico para a investigação da educação superior. A segunda contextualiza o campo da educação superior, considerando que suas múltiplas realidades demandam a compreensão dele como um complexo espaço que comporta uma pluralidade de instituições e atores que possuem interesses distintos em sua dinâmica. A terceira destaca a centralidade da universidade como uma instituição que, em sua construção histórica, tem assumido o propósito de fundamentar seu trabalho na produção do conhecimento, na pesquisa e na inovação, mas que, no mundo atual, tem passado por reformas orientadas pela visão gerencialista. A quarta e última parte discute a universidade na economia do conhecimento, problematizando a validação da lógica de mercado associada, notadamente, a essa instituição e, de maneira mais geral, à educação superior, fenômeno que acaba comprometendo a concepção desta última como um bem público. Nesse contexto, destaca a disputa pelo conceito de world-class universitie com base na premissa de que, na economia do conhecimento, esse modelo de instituição vem sendo construído à luz de padrões e critérios traduzidos em rankings internacionais, produzidos em um mundo cada vez mais competitivo, globalizado e orientado pelos princípios da economia.
Conceito de Campo como Recurso Metodológico para Estudo da Educação Superior
A opção pela noção de campo teorizada por Bourdieu (1983) para examinar a educação superior parte do reconhecimento desta como um espaço social no qual os agentes e as instituições que o formam estabelecem, simultaneamente, relações de cumplicidade e concorrência, visto que possuem interesses distintos em sua dinâmica. Também considera que a teoria dos campos muito pode ajudar no exame crítico da educação superior, uma vez que esta conta com um conjunto de instituições universitárias e não universitárias dotadas de perfis bastante heterogêneos e diversificados.
Bourdieu (2004) formula o conceito de campo a partir de sua teoria social, cuja construção tem como base um conhecimento denominado por ele de praxiológico. Pressupondo que o mundo social existe como vontade e representação, o autor sustenta que a postura praxiológica percebe a realidade social à luz de uma dupla estruturação:
[...] do lado objetivo, ela é socialmente estruturada porque as propriedades atribuídas aos agentes e instituições apresentam-se em combinações com possibilidades muito desiguais [...] do lado subjetivo, ela é estruturada porque os esquemas de percepção e apreciação, em especial os que estão inscritos na linguagem, exprimem o estado das relações de poder simbólico: penso, por exemplo, nos pares de adjetivos: pesado/leve, brilhante/apagado, etc. (BOURDIEU, 2004, p. 161).
Nessa lógica, os agentes constroem a realidade social, individual e coletivamente, a partir de categorias que não são produzidas por eles única e exclusivamente, mas como resultado de um longo e lento processo inconsciente de incorporação das estruturas objetivas. Significa que os grupos sociais são portadores de convenções e valores socialmente compartilhados. Na visão do autor, na construção da realidade social os atores se envolvem em lutas e transações com a finalidade de impor sua visão, partindo sempre de pontos de vista, interesses e princípios que definem sua posição no espaço social.
Dentre os vários conceitos formulados pelo pensador francês para explicitar sua visão sobre o mundo social, dois ganham centralidade: campo (BOURDIEU, 1983, 1992, 2004) e habitus1. Partindo da premissa de que esses dois conceitos são indissociáveis, ele afirma que “o objeto próprio à ciência social não é nem o indivíduo [...] nem os grupos enquanto conjuntos concretos de indivíduos, mas a relação obscura entre o habitus [...] e os campos.” (BOURDIEU, 1992, p. 102). Ainda conforme o autor, quanto mais complexa é uma sociedade, mais ela se encontra diferenciada em campos distintos - político, científico, cultural, educacional, filosófico, artístico, etc. Cada um desses campos é dotado de uma dinâmica própria e especificidades responsáveis pela estruturação da ação dos agentes sociais. Transitar no interior de determinado campo requer do agente que ele procure ajustar sua maneira de pensar, perceber e agir àquilo que objetivamente esse mesmo campo exige.
Devido à sua natureza, o campo mostra-se dinâmico e contínuo, mesmo que isso varie conforme os momentos de determinada configuração social ou, ainda, de uma sociedade para outra, no caso do contraste de umas com as outras. Sob esse ângulo, trata-se de um espaço de relações em movimento, que acaba apresentando aos seus agentes a possibilidade de nele travarem uma luta. Em razão disso, o campo pode ser compreendido:
[...] como um espaço social dotado de estrutura própria - relativamente autônoma sobre outros campos sociais - e de objetivos específicos que lhe garantem uma lógica particular de estruturação e funcionamento. Embora se relacionem entre si, os campos são dotados de uma hierarquia interna, o que faz com que seus objetos de disputas e interesses particulares sejam irredutíveis às lutas e interesses de outros campos (AUTOR, 2013, p. 81).
Como há, sempre, um objeto em disputa no interior de cada campo, as relações objetivas que o configuram podem ser de aliança e/ou conflito, de concorrência e/ou cooperação entre posições diferenciadas, socialmente definidas. Objetivamente, essas posições ganham força independente das características dos agentes que as ocupam. É nesse contexto interpretativo que a reflexão proposta nesse artigo compreende as relações estabelecidas entre as instituições e atores que dinamizam o campo da educação superior.
Na visão de Bourdieu (1983), os campos possuem determinadas propriedades que permitem o estabelecimento de leis mais gerais que regem o seu funcionamento em cada sociedade, bem como explicam porque há regularidades comuns entre eles. Dentre essas propriedades, destacam-se: (i) relativa autonomia de um campo em relação aos demais espaços sociais, a qual depende do valor que o capital2 adquire em cada um deles; (ii) ainda que possuam suas peculiaridades, os campos não se comportam de maneira estanque e isolada, o que possibilita aos agentes determinado nível de mobilidade para transitar entre os vários espaços sociais; (iii) todos os agentes que participam de um campo possuem em comum certo número de interesses essenciais. “Para que um campo funcione, é preciso que haja objetos de disputas e pessoas prontas para disputar o jogo, dotadas de habitus que impliquem no conhecimento e no reconhecimento das leis imanentes do jogo, dos objetos de disputas” (BOURDIEU, 1983, p. 90). Mesmo havendo uma variedade de campos em cada sociedade, suas propriedades contribuem para a compreensão de que no interior dele os atores sociais e as instituições participam de uma luta.
Na prática, o nível de reconhecimento da autonomia de cada campo define o tipo de jogo e as condições de luta apresentadas aos agentes, bem como as regras às quais serão submetidos. Sob esse ângulo, ao participarem do campo eles precisam conhecer e reconhecer as regras e leis que estruturam o jogo, o que explica porque a luta não acontece em um vazio3, mas em um espaço social de posições que, de maneira objetiva, traduzem a natureza e a especificidade do objeto em disputa.
Como todo campo se estrutura, simultaneamente, por luta e consenso, os agentes que participam da disputa que nele ganha concretude partilham os mesmos pressupostos que constroem a lógica de seu funcionamento. O compartilhar de interesses justifica a existência de determinado campo, o que explica a cumplicidade objetiva subjacente a todas as disputas nele e pressupõe um acordo entre os agentes em luta sobre o que merece ser disputado. Isso explica porque entender “a gênese social de um campo, é apreender aquilo que faz a necessidade específica da crença que o sustenta, do jogo de linguagem que nele se joga, das coisas materiais e simbólicas em jogo que nele se geram.” (BOURDIEU, 1983, p. 69). A transposição desse pressuposto, de caráter geral, para a dinâmica do campo da educação superior leva ao reconhecimento de que nesse campo também há “um estado de relação de força entre os agentes ou as instituições engajadas na luta [...] que, acumulado no curso das lutas anteriores, orienta as estratégias ulteriores.” (p. 90). Significa que, na educação superior, os atores e as instituições lutam para conquistar e/ou assegurar determinadas posições frente às demais, visando manterem-se no jogo do qual participam.
Cenário mais Amplo do Campo da Educação Superior
Em cada momento histórico, os seres humanos pensam e materializam uma educação que dê significado à sua vida e os ajude a construir explicações sobre a realidade social, face à teia de relações que estabelecem entre si. Ao incorporar essa dimensão social, a educação superior se caracteriza como expressão de práticas culturais diversas que contribuem para criar significados para cada grupo humano que as produzem. Com base nessa premissa, o estudo da educação superior requer considerá-la a partir de sua inserção no contexto mais amplo da educação como prática social e de sua concepção como um complexo campo que comporta interpretações interdisciplinares. Desse campo mais amplo, tanto o segmento público como o segmento privado são compreendidos como um subcampo do primeiro, partindo-se do pressuposto de que entre ambos se estabelecem, simultaneamente - como propõe a teoria dos campos -, relações, por exemplo, de cooperação e/ou conflito.
Nessa perspectiva, o campo da educação superior se configura como um espaço social que revela múltiplas realidades, construídas a partir da dinâmica instalada por um expressivo e diversificado conjunto de instituições universitárias e não universitárias. Em seu interior “os atores e as instituições lutam, considerando as regras definidoras da disputa, os diferentes níveis de força e as possibilidades de sucesso” (AUTOR, 2013, p. 85). Dotadas de características bastante peculiares, sejam públicas ou privadas, essas instituições mostram um perfil bastante heterogêneo. Todavia, de acordo com o referido autor, em muitos casos, ainda se constata um discurso ideologizado de tratá-lo como “único” quando, na realidade, é possível identificar nele instituições com dinâmicas, práticas de gestão e vocações acadêmicas extremamente complexas e variadas.
O exame do campo da educação superior requer a consideração dos contextos políticos, econômicos, sociais e culturais que marcam as intencionalidades, a materialização de suas políticas e a compreensão de sua relação com o sistema educacional mais amplo. Para tanto, é preciso um esforço interpretativo em uma dupla direção: (i) análise da trajetória e atuação da universidade, bem como dos diferentes formatos institucionais que, juntos, compõem esse campo; (ii) compreensão de como os atores e as instituições concretizam determinados fins educacionais, levando em conta que isso ocorre em um espaço social de disputas que podem variar de intensidade e duração, dependendo do contexto no qual se manifestam.
Em nível mundial, nas últimas cinco décadas, a educação superior tem passado por consideráveis transformações em sua dinâmica e configuração, as quais contribuem para a instalação de uma tipologia variada de instituições com características e práticas acadêmicas bastante distintas. Disso resulta que o campo se caracteriza, sobretudo, por uma morfologia institucional extremamente diversificada. Entretanto, quando o foco de análise recai sobre a especificidade da universidade, também é possível perceber significativas diferenças em relação a esse tipo de instituição.
O perfil acadêmico das universidades varia em função de uma multiplicidade de critérios, como áreas do conhecimento, diversidade de cursos e programas desenvolvidos, marcas distintivas que constroem frente às demais, projetos de internacionalização, produção científica e imagem que desejam promover e manter publicamente. Mas não se trata apenas de questões instrumentais ou técnicas, nem de recursos materiais e humanos altamente especializados, nem, muito menos, de meras estratégias de marketing. Há questões políticas e lutas culturais e científicas mais amplas que a própria noção de campo exige que sejam convocadas (AUTOR; BORGES; AFONSO, 2019, p. 232).
Essas e outras diferenças explicam porque, na atualidade, existem nos vários continentes sistemas de educação superior de portes diferenciados, sendo que vários deles contam com milhares de instituições e milhões de estudantes (ALTACH, 2006). Na heterogeneidade institucional que constitui a marca distintiva desses complexos sistemas transita uma pluralidade de atores internacionais, regionais, nacionais e locais.
Dentre estes, destacam-se [...] Estado, policy makers, reitores, docentes, estudantes, organismos internacionais, associações de dirigentes de instituições públicas e privadas, entidades acadêmicas, agências de fomento à pesquisa, centros de estudos, sindicatos patronais e de trabalhadores. [Esses] podem ser classificados em três grandes categorias: (i) atores ligados ao Estado, que representam a esfera burocrática; (ii) atores sociais do próprio campo da Educação Superior, que objetivam fortalecê-lo; (iii) atores de outros campos sociais com interesse no que é oferecido/disputado no campo em estudo - ciência, títulos, inovação, patentes, formação acadêmica, prestígio profissional e institucional, etc (AUTOR, 2021, p. 39).
O campo da educação superior demanda sua compreensão como algo dinâmico, complexo e de natureza histórica e social, razão pela qual sua abordagem passa, necessariamente, pela consideração do tempo e do espaço nos quais são formuladas e implementadas suas políticas. Em função de sua importância para o projeto de desenvolvimento de qualquer nação, ele vem recebendo grande atenção por parte de pesquisadores, entidades e instituições governamentais. Esse nível de reconhecimento tem sido observado, dentre outros, pelo grande aumento da produção científica sobre o tema, nas últimas décadas, a partir da conexão de diferentes áreas do conhecimento. Em seu conjunto, os estudos realizados têm procurado abordá-lo tanto do ponto de vista de suas temáticas como de sua distribuição espacial no mundo.4 Em decorrência disso, tem crescido significativamente a preocupação com sua função, dinâmica e evolução, por parte de muitos estudiosos vinculados às diversas áreas da pesquisa (AUTOR, 2013).
Nessa perspectiva, a compreensão de questões geradas no interior do campo da educação superior demanda investigações interdisciplinares que buscam construtos teóricos e metodológicos em várias Ciências Sociais e Humanas - Sociologia, Ciência Política, História, Pedagogia, Economia e Administração. Todavia, de acordo com Altbach (2006), se, por um lado, esse esforço interdisciplinar contribui para a instalação de muitos núcleos de pesquisa, em várias partes do mundo, por outro aponta determinadas dificuldades para o estabelecimento de uma metodologia suficientemente adequada ao estudo das singularidades da educação superior. A despeito disso, como resultado desse esforço interdisciplinar tem sido ampliada a produção de olhares variados acerca da realidade da educação superior, contribuindo, sobremaneira, para aumentar a atenção ampla e generalizada sobre o tema. Esse nível de percepção existe a partir da compreensão de sua inserção no campo educacional mais amplo, no qual vários atores e instituições assumem posições diferenciadas, em relação a um campo específico (BOURDIEU, 1983).
A partir da década de 2000, uma gama de pesquisas desenvolvidas em distintas regiões do planeta sobre a educação superior revela, dentre outros elementos, sua expansão quantitativa e o reconhecimento do aumento de sua importância na nova ordem mundial (ENDERS, 2002; GARCÍA GUADILLA, 2004; RAMA, 2006; TROW, 2011), buscando explicitar os elementos orientadores dessa expansão, as relações que a estruturam e o modus vivendi das instituições. Os resultados dessas e de outras pesquisas convergiram para o reconhecimento de que, em diversas regiões do mundo, o acesso a esse nível educacional ainda não é garantido para expressivas parcelas da população. Esse fato justifica a necessidade de, na sociedade contemporânea, continuarem sendo realizados estudos que ampliem as interpretações sobre a natureza das instituições que compõem o campo da educação superior, suas funções e seus componentes-chave.
Nesse contexto cabe também destacar que, no mundo globalizado, os interesses de diferentes atores, como, por exemplo, instâncias governamentais, comunidade de pesquisadores vinculados a diferentes matrizes epistemológicas e diversos organismos internacionais5 - associados às suas distintas concepções de realidade, vão determinar uma diversidade de interpretações e formas de abordar o campo da educação superior. Notadamente, os organismos multilaterais têm exercido considerável influência na formulação de uma agenda internacional para esse campo, empreendendo ações que fazem com que suas propostas circulem em âmbito mundial, regional e nacional. Em determinados casos, estimulam estudos comparativos e propõem políticas nas quais “fica evidente a visão reducionista à dimensão econômica, focada exclusivamente na relação custo/benefício.” (AUTOR, 2013, p. 39). Ao revelarem grande interesse pela educação superior, esses organismos também tendem a reconhecê-la como um espaço social construído a partir de embates e lutas, influenciando na implementação de políticas educacionais neoliberais para o setor que, por sua vez, tem passado a ser transnacional.
Universidade: Concepção e Desafios na Sociedade Globalizada
Devido à natureza que possui e à sua elevada proatividade na produção do conhecimento, a universidade revela a possibilidade de autotransformar, mediante o desenvolvimento de capacidades diversas orientadas para a mudança. Sob esse ângulo, trata-se de uma instituição que “está fundada nas capacidades de autoadaptação e de adaptação a uma sociedade em mudança. O desenvolvimento de capacidades para a mudança significa o cerne para uma performance de sucesso” (CLARK, 2002, p. 23). Em consequência, a concepção de universidade implica o seu reconhecimento como responsável pela organização do acervo de conhecimentos produzidos pela humanidade, discutindo, ao mesmo tempo, formas para conservar, transformar e transmitir esses mesmos conhecimentos. Nesse duplo movimento estabelece relações que revelam seu compromisso com determinado projeto de sociedade. “A universidade é parte de um contexto global inclusivo que a determina e que, dependendo de seu funcionamento e sentido, pode colaborar na manutenção ou na transformação da sociedade. (WANDERLEY, 2003, p. 76). Em seu percurso histórico, mostra que sua missão primeira é concentrar esforços, visando à produção de conhecimentos nos mais variados campos da vida humana - cultural, econômico, social, político, etc. -, apresentando alternativas para preservá-los.
Ao assumir centralidade no campo da educação superior, a universidade vem sendo objeto de um número expressivo de pesquisas, merecendo destaque aquelas que discutem os usos dessa instituição (KERR, 2005; SCOTT, 2006). Particularmente, o clássico estudo do primeiro autor mencionado, realizado ainda no início da década de 2000, mostrou que algumas universidades já optavam, à época, pelo estabelecimento de relações com as demandas econômicas e políticas que passaram a alterar sua própria natureza institucional. Sem dúvidas, desde então, o alinhamento do trabalho dessa instituição às demandas do mercado tem se intensificado e mostrado novos nuances
Em sua gênese e trajetória histórica6, a universidade tem se constituído como a porta de entrada e o espaço privilegiado para construir o caminho e a busca das soluções para os desafios postos, ao longo do tempo, para sociedade. Assim, tem assumido vital importância no crescente processo de desenvolvimento intelectual da humanidade, condição que preservou ao longo dos séculos, desde sua institucionalização, aos dias atuais. “A universidade é o verdadeiro centro da atividade intelectual onde o processo educativo progride mais do que em qualquer outra instituição [...]. É o único lugar onde assuntos proibidos ou suspeitos podem ser discutidos com certa impunidade.” (GILES, 1987, p. 63).
Frente às mudanças que sofreram a partir da segunda metade do século XX, as universidades contam com um sistema de governança estruturado a partir de três vértices - Estado, mercado e corporações acadêmicas, podendo serem estas últimas concebidas “como níveis e formas da autoridade acadêmica que variam significativamente entre as nações [e que] nada mais é [são] do que grupos de interesses.” (CLARK, 1983, p. 110). Considerando a relação entre os três vértices mencionados, na atualidade, o campo mais amplo no qual se insere a universidade vem passando por grandes transformações que ocorrem em contextos emergentes, os quais se mostram associados à complexidade desse mesmo campo. De acordo com Morosini (2014, p. 386), esses contextos podem ser compreendidos como “configurações em construção na educação superior observadas em sociedades contemporâneas e que convivem em tensão com concepções pré-existentes, refletoras de tendências históricas.”.
Os contextos emergentes da educação superior demandam seu entendimento levando em conta diversos fatores, como os efeitos da globalização sobre a configuração dos sistemas universitários dos países e a evolução desses mesmos sistemas, em várias partes do mundo. Além disso, é importante considerar o estágio de evolução dos referidos sistemas na virada do século XX para o XXI, visto que suas configurações revelam uma historicidade própria, ainda que vários deles tenham passado a sofrer a influência direta de processos mundiais mais amplos. Dentre esses, destaca-se o Tratado de Bolonha7 que, devido ao seu alcance, afeta significativamente o campo da educação superior mundial.
Nos contextos emergentes, novas agendas têm passado a figurar nas investigações sobre educação superior, merecendo destaque: arquiteturas acadêmicas (FRANCO, 2012); repercussões da gestão empresarial na organização da universidade (MOHRMAN; BAKER, 2008); critérios globalizados de excelência para a construção do conceito de world class-universities (ALTBACH, 2004); internacionalização (KNIGHT, 2012); sistemas diferenciados de acesso (TROW, 2011); transnacionalização dos sistemas universitários (HAZELKORN, 2013). Todavia, se esses temas se mostram recentes, seu exame requer associação com outros latentes no campo, como expansão, avaliação, financiamento e políticas de democratização/inclusão. O enfrentamento de questões diretamente ligadas a esses temas mostra que a sociedade contemporânea aponta grandes desafios para a educação superior, como, por exemplo, o que se refere às estratégias definidas pela universidade para atender as demandas locais em um mundo globalizado.
Como um processo que possui suas raízes históricas na sociedade industrial, a globalização tem levado os países a se tornarem, cada vez mais, interligados em suas relações culturais, econômicas, comerciais e financeiras, as quais acabam influenciando na estruturação da educação superior contemporânea. Nesse contexto, constata-se “a existência de sistemas nacionais de ensino nos diversos continentes e, simultaneamente, a constituição de uma esfera transnacional na qual se movimentam milhares de instituições, milhões de estudantes, e a presença de uma pluralidade de atores” (MARTINS, 2015, p. 291).
Na sociedade globalizada, a educação superior produz e sofre os efeitos de determinadas tensões, as quais acabam provocando a necessidade de segmentá-la. Essa segmentação pode se traduzir, por exemplo, na clara distinção entre instituições que primam pela pesquisa articulada ao ensino e à extensão, e outras que tendem a realimentar o modelo napoleônico de ensino. No caso da universidade, as reformas pelas quais tem passado, nas últimas décadas, revelam que há em seu interior a tendência de coexistência de lógicas reveladoras de certo nível de hibridismo capaz de influenciar a transformação do seu papel. Na visão de Franco (2012), esse hibridismo revela sua concretude à medida que existe uma:
[...] universidade global que responde ao mercado e ganha espaço nas suas denominações de neoprofissional, neonapoleônica liberal-híbrida (pesquisa incipiente e foco na formação de profissionais), neohumboldtianas (orientação para a produção científico-tecnológica). A universidade é também entendida na perspectiva crítica de produtora de modelos culturais, mas com espaço para a interconectividade do conhecimento (FRANCO, 2012, p. 64).
Ao mesmo tempo em que amplia as trocas culturais, o fenômeno da globalização também revela ter características definidas no nível político-social, o que explica porque as reformas de grande alcance promovidas pelo Estado levaram-no a assumir o gerencialismo como novo padrão de gestão. O resultado disso é implantação de um modelo gerencialista que adota a eficiência e a produtividade como princípios para o controle e a defesa de um desempenho performático. Nessa perspectiva, ganha centralidade no discurso estatal a inovação e o aperfeiçoamento dos serviços mais centrados no cliente e não necessariamente no cidadão (NEWMAN; CLARKE, 2012). Concretamente, as implicações do modelo de gestão gerencial acabam repercutindo sobre um novo modelo de universidade, que passa a lidar com desafios e dilemas inerentes às ações que essa instituição define para figurar no competitivo campo da educação superior.
A forte presença do gerencialismo na ambiência universitária mudanças significativas nos valores das transformações impostas pelas reformas empreendidas, que passam a exigir da universidade funções incongruentes à sua missão histórica, bem como contribuem para desestabilizar sua institucionalidade que, embora se manifestando na atualidade, é resultado de um longo percurso histórico. O processo desestabilizador em questão está diretamente associado, dentre outros fatores, à intensidade da aplicação dos princípios da economia ao campo da educação superior. Dele resulta uma pressão da mentalidade privatista que defende a mercantilização do conhecimento científico, por meio de “uma pressão que visa reduzir a responsabilidade social da universidade à sua capacidade para produzir conhecimento economicamente útil, isto é, comercializável” (SANTOS, 2008, p. 31).
Disputa Pelo Conceito de World-class Universitie na Economia do Conhecimento
A economia do conhecimento se constitui como um fenômeno da sociedade global, podendo ser definida “como a mobilização das competências empresariais, acadêmicas e tecnológicas com o objetivo de melhorar o nível de vida das populações” (SQUIRRA, 2005, p. 262). Tendo passado a ganhar força ainda no final da década de 1990, esse tipo de economia estrutura-se com base em alguns critérios básicos, como, por exemplo, renda per capita/desenvolvimento humano e a capacidade de gerar conhecimentos, transformando-os em riquezas. Critérios como esses explicam porque a aplicação dos princípios do mundo da economia à educação superior provoca nesta última a instalação de uma nova epistemologia para a atuação da universidade nos contextos emergentes, traduzida em um modelo gerencial que passa a orientar a atuação dessa instituição no século XXI. “Esta epistemologia sustenta as razões pelas quais as universidades devem trilhar caminhos globais e internacionais, redesenhar seu perfil em direção aos mercados e desenvolver modalidades de capitalismo acadêmico.” (LEITE; GENRO, 2012, p. 764).
Na economia do conhecimento, as instituições que compõem o campo da educação superior estabelecem relações de luta e concorrência, visando maximizar determinados lucros simbólicos, associados às suas práticas. Nesse cenário, principalmente a universidade vem sendo induzida a orientar suas práticas observando primeiramente não as necessidades da sociedade e sim o cálculo empresarial e a rentabilidade de suas ações. Essa realidade contribui para alterar a própria natureza dessa instituição - voltada historicamente para a produção social do conhecimento -, à medida que ela tem passado a lidar com o dilema de atender novas orientações sinalizadas para o seu trabalho, as quais acabam se constituindo em antítese da real democratização de sua atuação.
Nos tempos atuais, devido à estreita relação que tem estabelecido com o mercado, a universidade passa a ser estimulada a gerar patentes em determinados setores, superando, em muitas situações, as próprias empresas (ALTBACH; SALMI, 2011). De um lado, isso atesta a exigência da reconfiguração do papel dessa instituição e, de outro, a concepção do conhecimento como uma mercadoria de grande valor na sociedade globalizada. A implicação direta disso é que o conhecimento tende a ser trabalhado pela universidade, visando, em primeira mão, às próprias necessidades do mercado e não o fortalecimento de sua identidade, construída ao longo do tempo. É nesse cenário que tem ganhado força, notadamente nas últimas duas décadas, a disputa pela construção do conceito de world-class universitie/WCU, em estreita associação com os princípios da economia do conhecimento.
As análises sobre o conceito de world-class universities requerem a compreensão de realidades extremamente variadas, considerando que, em diferentes regiões do mundo, algumas instituições o perseguem, na perspectiva de que ele assegure sua distinção diante das demais. Nesse contexto, a noção de campo (BOURDIEU, 1983) contribui para entender que a construção desse conceito acontece nas lutas estabelecidas na educação superior, considerando que sua configuração toma como referência básica critérios e padrões globais de qualidade. Todavia, apesar de desejada por diversos países, a própria formulação desse modelo de universidade envolve desafios, polêmicas e disputas. Ao analisar os interesses e dilemas inerentes ao processo, Altbach (2004, p. 3) chama a atenção para o fato de que, no mundo globalizado, há uma espécie de ambição pelo modelo de WCU: “todos querem uma (universidade classe do mundo ou mundial), ninguém sabe o que é, e tampouco alguém sabe como adquirir uma [...] nenhum país acha que pode viver sem uma”.
O cenário de competividade no qual se inserem as world-class universities requer das mesmas o atendimento a determinados quesitos que, na prática, apenas um seleto grupo dessas instituições pode atender. Um deles é que a produtividade de pesquisa revelada pelos professores que compõem os seus quadros se mostre associada, dentre outros, ao prestígio e às premiações institucionais que lhe são conferidas. Paralelamente, em decorrência do expressivo capital acadêmico que esses atores acumulam e que é gerado nos processos competitivos dos quais participam, é razoável supor que eles revelem a tendência a ocupar postos centrais em diferentes órgãos de fomento à pesquisa. Ao revelaram determinados atributos singulares que contribuem para serem reconhecidas frente às concorrentes, as universidades de classe mundial distinguem-se das demais por determinadas características. Dentre essas, destacam-se:
[...] professores altamente qualificados, resultados de excelência em pesquisa, qualidade no ensino e na aprendizagem, altos níveis de financiamento governamental e não governamental, estudantes internacionais e talentosos, liberdade acadêmica, estrutura de governança autônoma e instalações bem equipadas para ensino, pesquisa, administração e - muitas vezes - para alojamento estudantil (ALTBACH; SALMI, 2011, p. 3).
Ainda conforme os autores, a excelência alcançada pelas universidades em questão na pesquisa está associada ao desenvolvimento de projetos de investigação que obedecem aos padrões de qualidade internacional. Seus pesquisadores têm autonomia acadêmica na definição de prioridades, além de contar com financiamentos garantidos por recursos financeiros que podem resultar de investimentos públicos ou de parcerias público-privado, tendência bastante evidenciada nos países do hemisfério norte.
No modelo gerencialista, o sucesso da cultura competitiva está diretamente associado à motivação dos indivíduos para produzir qualidade voltada para o consumidor e para a busca da excelência que, por sua vez, tem como foco padrões e critérios globalizados. Em um considerável número de casos, isso leva à produção de rankings internacionais frequentemente associados à dinâmica das instituições que pretendem fazer parte do restrito e disputado grupo das world-class universities, como esclarecem Thiengo; Bianchetti e De Mari (2018, p. 1.044):
No caso dos rankings internacionais da educação superior, a rotulação apresentada para as instituições melhores ranqueadas é o status de UCM [universidade de classe mundial]. Essas instituições passam a ser utilizadas como medidas de produtividade, como formas de apresentação da qualidade. Assim, o rótulo de UCM significa, encapsulando ou representando um valor, a qualidade ou a validade de uma instituição dentro do campo de julgamento da educação superior em âmbito global.
Embora, na atualidade, exista mais de uma dezena de rankings globais da educação superior, as duas mais importantes e pioneiras classificações comparativas internacionais sobre o desempenho das universidades são reconhecidamente a “Academic Ranking of World Universities/ARWU” (Shanghai) e a publicação britânica “Times Higher Education World University Rankings (THE)”. No caso deste último, cuja primeira edição ocorreu em 2004, sua metodologia parte da organização de uma lista hierarquizada de 200 universidades, à luz de dois critérios básicos: continente e áreas do conhecimento: Artes e Humanidades, Ciências Sociais, Ciência, Tecnologia, Engenharia, Matemática e Medicina, com base em um total de 13 indicadores. Por sua vez, o ARWU teve sua primeira edição em 2003, embora já viesse sendo elaborado desde 1999. O critério adotado por esse ranking privilegia a quantidade de artigos publicados “nas revistas Science e Nature, citações de artigos de pesquisadores mensurados por Thomas Scientific, e por Science and Social Science Citations, professores que ganharam Prêmio Nobel, alunos distinguidos com Prêmio Nobel e (ou) Fiels Medals etc.” (MARTINS, 2015, p. 298).
Consultas à classificação feita pelos dois rankings mencionados mostram que, sistematicamente, a maioria absoluta das vinte instituições que vem alcançando a condição acadêmica de world-class universities, a partir da classificação feita por ambos, localiza-se nos Estados Unidos. Essa situação é explicitada pelos dados relativos ao ano de 2020, mostrados a seguir no Quadro 1.
Academic Ranking of World Universities/ARWU | Times Higher Education - THE | ||||
---|---|---|---|---|---|
Posição | Instituição | País | Posição | Instituição | País |
1 | Harvard University | EUA | 1 | University of Oxford | UK |
2 | Stanford University | EUA | 2 | California Institute of Technology | EUA |
3 | University of Cambridge | UK | 3 | University of Cambridge | UK |
4 | Massachusetts Institute of Technology - MIT | EUA | 4 | Stanford University | EUA |
5 | University of California, Berkeley | EUA | 5 | Massachusetts Institute of Technology - MIT | EUA |
6 | Princeton University | EUA | 6 | Princeton University | EUA |
7 | Columbia University | EUA | 7 | Harvard University | EUA |
8 | California Institute of Technology | EUA | 8 | Yale University | EUA |
9 | University of Oxford | UK | 9 | University of Chicago | EUA |
10 | University of Chicago | EUA | 10 | Imperial College of London | UK |
11 | Yale University | EUA | 11 | University of Pennsylvania | EUA |
12 | Cornell University | EUA | 12 | Johns Hopkins University | EUA |
13 | University of Califórnia, Los Angeles | EUA | = 13 | University of California, Berkeley | EUA |
14 | Paris-Saclay University | France | = 13 | Swiss Federal Institute of Technology Zurich (ETH) | Switzerland |
15 | Johns Hopkins University | EUA | 15 | University College of London (UCL) | UK |
16 | University College London (UCL) | UK | 16 | Columbia University | EUA |
16 | University of Washington | EUA | 17 | University of Califórnia, Los Angeles | EUA |
18 | University of California, San Diego | EUA | 18 | University of Toronto | Canadá |
19 | University Pennsylvania | EUA | 19 | Cornell University | EUA |
20 | Swiss Federal Institute of Technology Zurich (ETH) | Switzerland | 20 | Duke University | EUA |
Fonte: Disponível em: https://www.hotcourses.com.br/study/rankings/arwu.html Acesso em: 27 dez. 2020.
Como atestam os dados mostrados, em 2020, quinze das vinte universidades avaliadas como as melhores do mundo pelo ranking ARWU, correspondendo a 75,0% delas, estão situadas em território norte-americano. Das demais instituições, quatro (20,0%) são europeias - três do Reino Unido e uma da Suíça - e uma é do Canadá.
Os dados relativos ao segundo ranking THE - que avalia quase 1.400 universidades em 92 países -, corroboram a exclusividade das WCU no hemisfério norte, no mesmo ano. Além disso, apontam que praticamente dois terços delas - equivalente a quatorze (70,0%) situam-se nos Estados Unidos, enquanto as outras seis (30,0%) distribuem-se da seguinte forma: quatro no Reino Unido, uma no Canadá e uma na Suíça. Cabe observar que, no ano considerado, a metodologia utilizada por esse ranking levou à classificação de duas universidades mundiais na mesma posição (16ª) - University College London e University of Washington - estando a primeira situada no Reino Unido e a segunda nos Estados Unidos.
Como se constata, todas as 20 universidades classificadas pelos rankings ARWU e THE, como sendo as melhores do mundo, em 2020, situam-se em países ocidentais ou anglo saxões, concentração geográfica que revela determinada singularidade. Além disso, tal como o latim foi a língua predominante nas universidades medievais, a língua inglesa garante sua hegemonia junto à quase totalidade dessas instituições, prevalência defendida pela OCDE.
A linguagem da instrução é um forte determinante da escolha de destino dos estudantes. O inglês é a língua franca do mundo globalizado, com uma em cada quatro pessoas usando globalmente. Não surpreendentemente, os países onde o inglês é uma língua oficial […] são os principais países de destino da OCDE para estudantes internacionais (OCDE, 2017, p. 294 - tradução do autor).
Desse ponto de vista, é no domínio da língua inglesa que a hegemonia da globalização da erudição e das normas de disciplina para a produtividade tendem a ser estabelecidas/reiteradas no plano da internacionalização da educação superior. Todavia, como alerta Bourdieu (2002, p. 3), “o estabelecimento de um genuíno internacionalismo científico [...] é o começo do internacionalismo” [porque] a vida intelectual não é espontaneamente internacional”.
No competitivo campo da educação superior, a disputa pelo conceito de WCU vem apresentando fortes referências para o delineamento de um novo modelo de universidade, em várias partes do mundo, como, por exemplo, Ásia, Oriente Médio e Europa. “Enquanto China e Índia têm concentrado a atenção nos seus esforços para se posicionar de maneira competitiva nos rankings internacionais, não se pode deixar de assinalar as tentativas que a Arábia Saudita vem implementando.” (MARTINS, 2015, p. 302). Indubitavelmente, a luta desses e de outros países pela construção do conceito em world-class universitie se dá a partir de sua comparação com outros, tomando como referência indicadores globalizados de excelência, os quais traduzem prestígio acadêmico e social.
Para Thiengo, Bianchetti e De Mari (2018), os desdobramentos políticos e institucionais da busca pela construção das WUC podem ser agrupados em dois grandes eixos. Um deles diz respeito à emergência de iniciativas de excelência e ao acirramento da competitividade em diversos países, a partir da primeira edição do ranking AWRU, em 2003, O outro refere-se à orientação de políticas e decisões nacionais e institucionais, traduzidas nas ações de governos e universidades que passam também a usar rankings para contribuir, de maneira estratégica, para a formulação de suas políticas e para a tomada de decisões. Esses desdobramentos mostram-se associados, ainda, à definição de ações por vários países na lógica do discurso da colaboração/cooperação da academia internacional, que ganha força no contexto da competitividade inerente ao próprio campo da educação superior em diversas regiões do mundo, como ilustra Hazelkorn (2013, p. 14):
Rússia, Brasil, Chile, Singapura, Arábia Saudita, Cazaquistão, Mongólia e Qatar restringem suas bolsas de estudos estaduais a estudantes admitidos em universidades de alto nível em outros países; Índia, Rússia e Cingapura usam rankings como critérios de colaborações acadêmicas; Holanda e Dinamarca utilizam como critérios de imigração, aceitando estrangeiros que se graduam em universidades de alto nível.
Nesses países e nos demais, o processo de construção das world-class universitie passa a ser orientado por uma racionalidade instrumental, que se opõe àquela de natureza emancipatória das políticas e práticas da própria universidade, concebida à luz da constituição e missão histórica que possui. No âmbito dessa racionalidade instrumental, em níveis crescentes, há uma ameaça aos valores de autonomia e autogoverno das instituições universitárias, bem como de sua própria liberdade acadêmica. “E isso é o resultado da conjugação de fatores ideológicos (que atravessam contraditoriamente o próprio Estado) e que se alimentam de prioridades estabelecidas por organizações internacionais” (AFONSO, 2015, p. 278), como Banco Mundial, União Europeia e Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Por fim, cabe reiterar que as relações estabelecidas entre as WCU, bem como entre elas e outras instituições que configuram o campo da educação superior demandam sua compreensão no complexo espaço que comporta uma pluralidade de instituições com vocações bastante distintas e que, em seu conjunto, participam de um jogo para permanecer nesse mesmo campo, na perspectiva de conseguir se diferenciar das demais.
Conclusões
Considerando a discussão feita nesse texto, a noção de campo formulada por Bourdieu (1983, 2004) ajudou a criar as condições para a compreensão da intensidade dos desafios e dilemas enfrentados pela educação superior na economia do conhecimento. Contribuiu, também, para entender a expressiva competitividade nela instalada, pressupondo que na dinâmica que se estabelece entre as diferentes instituições que a formam estão presentes, simultaneamente, relações de conflito e cumplicidade, de cooperação e disputa. Além disso, fortaleceu a convicção de que, na economia do conhecimento, notadamente, as universidades procuram conquistar e/ou manter determinadas posições no cenário de disputas das quais participam. Esse fenômeno tem concorrido para que um seleto grupo de instituições - world-class universities - lute para ocupar posições na classificação feita pelos rankings internacionais, os quais são definidos por padrões e critérios globalizados.
O estudo da educação superior requer considerar tanto as políticas formuladas para o setor quanto as respostas que ele tem apresentado para as demandas sociais. Sua evolução histórica mostra que ela tem se constituído em um campo acadêmico de extrema complexidade, envolto por uma expressiva heterogeneidade institucional tanto na esfera pública quanto na esfera privada. Na atualidade, essa diversidade de formatos institucionais permite identificar em seu interior uma pluralidade de práticas e vocações acadêmicas.
Em consequência, nas últimas décadas, em todo o mundo, tem aumentado o interesse em tomar o campo da educação superior como objeto de investigação, na perspectiva de retratar sua dinâmica e especificidade. Na sociedade globalizada, seu exame requer especial atenção para as implicações dos princípios da economia sobre as práticas acadêmicas desenvolvidas pelas instituições que compõem esse campo, em especial, as universidades. Nesse contexto, é indispensável a reflexão sobre como tem sido exigida da universidade a associação do seu trabalho com a lógica que rege o campo da economia, em termos mais amplos.
Tendo por base a aplicação dos princípios do mundo da economia ao campo da educação superior, o que está em jogo no interior das instituições que compõem este último é a instalação de uma nova lógica que vem sendo construída nos contextos emergentes, que implica o fato de o conhecimento passar a ser encarado como uma mercadoria, em contraposição à sua concepção como bem público. Na prática, essa mudança de foco faz com que o conhecimento venha se constituindo como a principal força produtiva na sociedade globalizada, o que ocorre à luz das diretrizes apontadas pelos países mais desenvolvidos do mundo.
No contexto altamente competitivo da sociedade globalizada, a universidade se vê fortemente envolvida pela economia do conhecimento, que acaba apresentando desafios diversos a essa instituição. Dentre esses, um dos mais expressivos refere-se às ameaças que rondam a missão da universidade, construída historicamente e que se traduz em seu compromisso com a produção social do conhecimento, na perspectiva da busca de solução para os problemas apresentados à sociedade, em diferentes momentos de sua evolução.
No mundo contemporâneo, as disputas em torno do campo da educação superior são intensificadas, de maneira associada à economia baseada no conhecimento. As lutas que se instalam nesse campo acabam induzindo as universidades a buscarem o alinhamento do seu trabalho às diretrizes desse tipo de economia. Além disso, têm criado determinadas condições para o surgimento de novo modelo de universidade - world-class universities - que sendo avaliadas por meio de rankings internacionais, tendem a aderir a uma espécie de visão científica global.
Esse novo tipo de universidade busca conquistar padrões de excelência e performance institucional que se mostrem capazes de contribuir para que lutem, visando assegurar posições de distinção diante das demais. As disputas nas quais se envolvem legitimam um princípio básico de qualquer campo, segundo o qual as lutas obedecem a formas específicas “entre o novo que está entrando e que tenta forçar o direito de entrada e o dominante que tenta defender o monopólio e excluir a concorrência” (BOURDIEU, 1983, p. 88). Nesse contexto, a luta pelo conceito de world-class universitie ocorre de maneira relacional no campo da educação superior, considerando que cada instituição que dele participa sempre toma as demais como referência, ao procurar construir sua própria marca que, por sua vez, tem seu reconhecimento nos rankings internacionais. Subjaz à cultura da competitividade dessas universidades um modelo gerencialista de gestão que apresenta as referências básicas para a produção de rankings internacionais dos quais participam.
Por último, cabe ressaltar que em uma realidade marcada, sobretudo, por grandes transformações sociais, econômicas e políticas a educação superior sofre grandes mutações que ganham força em meio às contradições às incertezas dos contextos emergentes. Nesse cenário, têm sido promovidas reformas da educação superior que vem demandando a reestruturação dos sistemas universitários, levando-os a desenvolver práticas acadêmicas marcadas pela competitividade. Em seu conjunto, as instituições que formam o campo da educação superior engajam-se em disputas, adotando estratégias de luta, porém preservando relações de interdependência com as concorrentes.