“ The Conscience of a Progressive ” é o mais recente livro publicado por Steven J. Klees, professor de Política Educacional Internacional da Universidade de Maryland, nos Estados Unidos, e o primeiro para uma audiência não especializada. O título é uma resposta provocativa a duas obras importantes para a política norte-americana contemporânea: “A Consciência de um Conservador”, de 1960, escrito pelo então senador Barry Goldwater, uma das vozes da onda conservadora que ressurgiu no país nessa década; e o best-seller “A Consciência de um Liberal”, de 2007, de autoria do economista e ganhador do Prêmio Nobel Paul Krugman, um dos representantes atuais da escola keynesiana.
Autointitulando-se progressista, Klees propõe apresentar os valores dessa visão societária e suas respostas aos principais problemas sociais, contrapondo-os às perspectivas conservadora e liberal no contexto norte-americano. Em 11 capítulos, com menções a diversos autores e obras, discorre sobre educação, economia, capitalismo, desenvolvimento internacional, pobreza e desigualdade – temas com os quais trabalha há décadas, e compartilha algumas considerações sobre saúde, meio ambiente, violência, gênero, raça e etnia, movimento LGBT e deficiências. Similar a um tratado geral, ele confere ao texto aspectos de memorial ao agregar a esses tópicos passagens pessoais interessantes de seus cerca de 45 anos de trajetória profissional.
Logo de início, o autor alerta que emprega os termos conservador e neoliberal como sinônimos. Se sua opção não gera, de antemão, estranhamento ao leitor brasileiro, ele pode não se dar com o termo liberal, cujo significado guarda variações mais conflitantes nos dois cenários nacionais e merece ser brevemente esclarecido. No Brasil, associa-se o termo liberal a uma perspectiva à direita do espectro político ou, de modo objetivo, ao próprio neoliberalismo. Nos Estados Unidos, inversamente, convencionou-se filiar o liberalismo à sua variante social, às políticas de bem-estar, sobretudo a partir dos anos 1930, como plataforma do Partido Democrata. Como reflexo do apoio ou oposição ao New Deal, desde então, consolidou-se no país o binômio liberal/conservador ou democrata/republicano como expressão da polarização esquerda/direita. Os progressistas, segundo o autor, não se sentem representados por esta clássica divisão.
CAPITALISMO E OUTRAS OPRESSÕES
Em termos ideológicos, para Klees, a discordância basilar entre conservadores, liberais e progressistas reside no fato de os primeiros representarem a visão política e econômica dominante, que prega a incompetência do governo e entende problemas sociais como falhas inevitáveis do capital. Livre mercado e setor privado são as respostas para reparar quaisquer desses danos, entre eles a desigualdade. Liberais, por sua vez, defendem a intervenção estatal na economia, proteção social e promoção de igualdade de acesso e oportunidade, mas sugerem ações compensatórias, para mitigar prejuízos, que legitimam a prerrogativa do mercado. O pensamento progressista considera a condição estrutural e sistêmica dos problemas sociais. São resultado de escolhas políticas e econômicas que, subjugando países em desenvolvimento à agenda neoliberal, enfraquecendo seus governos nacionais e expandindo o poder corporativo e financeiro global, moldaram o desenho atual do mundo: níveis de desigualdade que superam os do início do século passado e alguns bilionários concentrando a mesma quantidade de riqueza que a maior parte da população.
Tais distinções fundamentais se replicam nas temáticas específicas abordadas, já que as marginalizações presentes nestas são fruto da interseção entre capitalismo e outras estruturas opressivas da sociedade, como patriarcado, racismo e homofobia. Conservadores, no geral, refutam políticas que desafiam as instituições tradicionais: são contra aborto, movimento feminista, ações afirmativas ou a causa LGBT; desacreditam a crise ambiental; defendem a guerra e a saúde como responsabilidade individual e não do Estado. Liberais costumam contrariar essas percepções e são a favor de liberdades individuais e proteção social estatal, mas com propostas de efeitos limitados. Para a crise ambiental, por exemplo, sugerem soluções tecnológicas e taxas fixas de emissão de poluentes. Progressistas se opõem a conservadores e tendem a se distanciar de liberais por reconhecerem suas políticas como cooptadas pelo mundo corporativo. As mudanças necessárias devem ser radicais. A crise ambiental, para eles, não é apenas um entre muitos assuntos em pauta, passível de resolução via controle de emissões, mas um chamado para a sobrevivência planetária e humana.
EDUCAÇÃO EM DISPUTA
A educação, um dos principais campos de atuação do autor, é a temática à qual mais se dedica no texto, reservando a ela três capítulos. A obra traz um amplo panorama da política educacional dos Estados Unidos nas últimas décadas, que serve de importante referencial para interessados no debate sobre a privatização da educação. A partir dos anos 1980, a guinada neoliberal significou uma cartilha de reformas educacionais voltadas a solucionar o suposto fracasso escolar da nação frente aos demais países. Defendida por conservadores e abraçada por muitos liberais, essa agenda foi integrada por políticas de escolha escolar e testagem de estudantes e professores.
No âmbito da escolha escolar, têm destaque os vouchers públicos oferecidos aos pais e as charter schools , escolas públicas geridas por instituições privadas. Ambos são criticados por progressistas por diversas razões, entre elas a retirada de recursos de escolas públicas, o aumento da segregação e da desigualdade educacional e as vulnerabilidades de famílias pobres para exercitarem sua escolha. A obsessão pela testagem massiva, por sua vez, foi acompanhada pela responsabilização de escolas e professores pelo desempenho de estudantes, com vinculação salarial, bonificações e penalizações. A crítica progressista aponta que esse esforço, além de reduzir a educação a um único critério mensurável, levou a distorções e enxugamentos curriculares para atender com mais ênfase às disciplinas testadas, ao controle excessivo da atuação e à perseguição de professores e à desprofissionalização da educação.
Rejeitada por progressistas, a maior participação de instituições privadas, com ou sem fins lucrativos, na oferta, planejamento ou gestão da educação pública é apoiada por conservadores e por grande parte dos liberais. Segundo Klees, essa estratégia substitui o desenvolvimento de boas políticas “pelos caprichos da caridade ou pelo pensamento estreito da obtenção de lucro”. Nos Estados Unidos, vale lembrar que fundações privadas como as das famílias Broad, Gates e Walton têm se destacado no direcionamento da política educacional. No contexto global, a difusão da privatização é creditada a muitos atores, primordialmente o Banco Mundial, sobretudo a partir dos anos 1960, quando a educação de países em desenvolvimento entrou na pauta de acordos internacionais. Klees é enfático: não basta definir metas globais para a educação se, entre outras condições, faltam recursos diversos a países pobres e o apoio financeiro de nações desenvolvidas assemelha-se à esmola.
TEORIA PROGRESSISTA DA MUDANÇA
Contestando o TINA ( There Is No Alternative ), slogan conservador associado à ex-primeira ministra britânica Margaret Thatcher, Klees lembra que o capitalismo é uma invenção recente – e cruel – da humanidade. Ser progressista é acreditar que essa criação não é o fim da história ou das ideologias e que pode ser reformada ou, mais radicalmente, como ele prefere, superada. A seus alunos, costuma citar a escritora Ursula Le Guin: “Vivemos no capitalismo. Seu poder parece inevitável. Assim o era com o direito divino dos reis.”
As mudanças que advertem como urgentes incluem três eixos: ambientes de trabalho mais respeitosos e verdadeiramente participativos; uma nova política, com participação popular em decisões tomadas de baixo para cima; e a renúncia ao autointeresse, à ganância e à crença no crescimento econômico como potencialmente infinito. Transformar a educação é estratégia fundamental para alcançar todos eles. A pedagogia crítica, originada no trabalho de Paulo Freire, e sua capacidade de expor e desafiar as relações de poder e desigualdade, é um dos caminhos apontados. Otimista, a teoria da mudança de Klees ainda reserva espaço a um ator central: os movimentos sociais. Fazendo referência a várias iniciativas de economia socialista e solidária, moedas sociais, cooperativismo, organização de trabalhadores, políticas participativas e de renda básica, implementadas em diversos países, ele defende a articulação entre essas experiências para a criação de alianças que superem fronteiras temáticas e espaciais.
Conservador, liberal ou progressista, essas e tantas outras terminologias que compõem o espectro político, invariavelmente, são criações artificiais para facilitar a compreensão do mundo. Suas limitações são amplamente conhecidas e debatidas e arrisca-se produzir um guia caricaturizado ao descrevê-las para o público geral. A obra de Klees escapa a esse risco. Além de sistematizar seus principais valores e políticas no contexto norte-americano, facilitando a apreensão de suas interposições e distanciamentos, sua força analítica particular está em, ao mobilizar tais concepções, evidenciar que sua substância constitutiva é das mais singelas: ideias. Ideias também são invenções humanas e é preciso entender seus pontos de partida e lógicas internas para poder colocá-las em diálogo e enfrentamento. Dizer-se progressista nos Estados Unidos – e não só lá – é também sacar o manto do consenso neoliberal que desautoriza e silencia a existência de outras realidades possíveis. Há outros caminhos societários a escolher ou, como Klees finaliza o livro, “não é preciso ser assim”.