INTRODUÇÃO
Este artigo tem como objetivo analisar as concepções de tempo integral e educação integral presentes nas atuais políticas educacionais brasileiras. Para tal, foram selecionados os seguintes recortes: (1) o acompanhamento da sexta Meta do Plano Nacional de Educação (PNE) (2014-2024) realizado por meio de dados publicados pelo Censo escolar de 2018 e 2019 e (2) três ações voltadas à oferta do tempo integral, oferecidas nos âmbitos nacional, estadual e municipal. Metodologicamente, foram adotadas as pesquisas bibliográfica e documental, observando que a “pesquisa documental é muito próxima da pesquisa bibliográfica. O elemento diferenciador está na natureza das fontes” ( OLIVEIRA, 2007 , p. 70).
Os temas da educação integral e do tempo integral vêm progressivamente ganhando espaço nas políticas educacionais brasileiras. Segundo Moll (2012) , essa agenda vem sendo fortalecida desde a promulgação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional de 1996 e ganhou dimensão nacional na década passada, com a criação do Programa Mais Educação (PME)1 . Enquanto ação indutora de políticas de ampliação da jornada escolar, esse Programa trouxe aos sistemas estaduais e municipais a necessidade de oferecer tempo integral em suas escolas e o desafio de atender às demandas inerentes a essa oferta.
Em um contexto mais recente, o destaque desses temas nas políticas educacionais pode ser observado na sexta Meta do novo PNE (2014-2024) que estabelece, até 2024, a oferta do tempo integral em 50% das escolas públicas (BRASIL, 2014). Diante dessa projeção, destaca-se que União, estados e municípios vêm desenvolvendo ações em prol da oferta do tempo integral na educação básica, seja na forma de políticas mais permanentes ou de programas mais pontuais.
Nessa agenda, a educação em tempo integral vem sendo interpretada como uma estratégia em prol da melhoria do ensino público, com o potencial de ampliar experiências e oportunidades educativas. No entanto, diante da realidade de muitas redes de ensino brasileiras que ainda carecem do básico para ofertar a jornada regular, é inevitável a indagação sobre que tipo de educação em tempo integral vem sendo colocada em prática pelas políticas educacionais e, ainda, se esse tempo a mais está sendo realmente organizado a favor de uma educação de qualidade.
Também é possível observar que diferentes políticas e programas2 adotam em seus textos proposições para a escola de tempo integral, que associam a ampliação do tempo à ideia de educação integral. No entanto, não é possível afirmar que a simples ampliação do tempo escolar possa garantir a melhoria da aprendizagem e, tampouco, o desenvolvimento integral dos estudantes. Para tal, outros fatores são importantes, como os sentidos que as políticas atribuem às ideias de tempo integral e de educação integral. Afinal, as práticas consubstanciadas não podem ser separadas de suas orientações políticas, sociais e econômicas.
De posse dessas escolhas, este artigo apresenta inicialmente as concepções associadas aos temas da educação integral e do tempo integral identificadas na pesquisa bibliográfica. Em seguida, apresenta dados acerca da evolução da sexta meta do PNE (2014-2024) e algumas ações desenvolvidas no âmbito da União, estado e município. Por fim, diante dos dados identificados nas pesquisas bibliográfica e documental, busca identificar e analisar de que forma(s) essas ações podem indicar algumas das concepções em curso nas políticas educacionais brasileiras.
TEMPO INTEGRAL E EDUCAÇÃO INTEGRAL NAS POLÍTICAS EDUCACIONAIS
No Brasil, as ideias de educação integral e de tempo integral frequentemente encontram-se associadas às políticas educacionais. No entanto, para uma melhor compreensão sobre esses temas, faz-se importante uma distinção: apesar de os termos “tempo integral” e “educação integral” serem frequentemente associados, eles possuem significados diferentes. Nesse sentido, enquanto se tem uma definição em âmbito legal3 sobre tempo integral, a educação integral apresenta diferentes concepções em disputa ( COELHO, 2009 ):
Em termos sócio-históricos, podemos compreendê-la a partir das matrizes ideológicas que se encontram no cerne das diferentes concepções e práticas que a constituíram e vêm constituindo ao longo dos séculos. Mas também podemos discuti-la levando em consideração tendências que a caracterizam contemporaneamente, como a que se apresenta no binômio educação/proteção, educação integral/currículo integrado ou educação integral/tempo escolar, por exemplo ( COELHO, 2009 , p. 83).
Considerando essa polifonia, compreende-se que a educação integral se refere a um tipo de abordagem educacional, fundamentada em uma determinada concepção filosófica e/ou prática pedagógica. Assim, compreende-se que seu “[…] conceito é abrangente e, dependendo do contexto em que é usado, revela as disputas que essas concepções e práticas comportam” (COELHO; BRANCO; MARQUES, 2010, p. 357). Destaca-se, ainda, que no contexto atual, tem sido associada a duas concepções principais: educação integral enquanto formação escolar e enquanto proteção integral ( COELHO, 2009 ; COELHO; BRANCO; MARQUES, 2010; GUARÁ, 2009 ).
Em relação ao tempo integral, destaca-se que, mesmo havendo uma definição legal, sua oferta também pode assumir diferentes significados ( CAVALIERE, 2007 , 2009 , 2013 ). Cavaliere (2007) , ao pesquisar sobre as concepções de escolas de tempo integral, identificou quatro grandes linhas de pensamento: (1) uma concepção assistencialista, (2) uma concepção autoritária, (3) uma concepção democrática e (4) uma multissetorial. A primeira linha de pensamento foi identificada como uma escola que atende “desprivilegiados”; a segunda associou o tempo integral a uma forma de prevenção à violência; a terceira associou a ampliação do tempo a uma maior exposição dos estudantes a situações culturais e sociais, que permitam ampliar seus conhecimentos e contribuir para a sua emancipação; por fim, a quarta e última identificou a oferta da ampliação do tempo escolar como uma das possibilidades de ações multissetoriais, que possam atender às novas demandas da educação atual.
Essas diferentes concepções evidenciam, além das tensões associadas à tarefa de definir o sentido social da ampliação do tempo escolar, a existência de diferentes modelos de escolas, orientados por pressupostos que permitem as mais variadas configurações de organização escolar.
Nesse bojo, posteriormente, Cavaliere (2009 p. 53) identificou a existência de dois modelos de oferta do tempo integral, que denominou de escolas de tempo integral e alunos em tempo integral . Enquanto o primeiro prioriza a oferta do tempo integral para toda a escola — e com isso tende a investir em sua estrutura curricular, administrativa e pedagógica, a fim de atender as necessidades específicas à ampliação do tempo de permanência do aluno no espaço escolar, o segundo prioriza o aluno em tempo integral , em que a escola permanece organizada em turnos, e amplia a sua jornada e o seu espaço por meio de parcerias com o seu entorno e com diferentes organizações multissetoriais.
Nesse contexto, destaca-se que, mesmo partindo de uma definição legal, na prática o tempo integral pode se organizar sob diversas estruturas, com condições mais ou menos favoráveis, motivado por intenções que nem sempre se apresentam como complementares.
PROJEÇÕES E PERSPECTIVAS PARA A META 6 DO PNE (2014-2024) NAS POLÍTICAS EDUCACIONAIS
O tempo integral está previsto na Lei nº 13.005/2014, que institui o PNE, por meio da Meta 6 — que visa a oferecer educação em tempo integral em, no mínimo, 50% das escolas públicas, de forma a atender, pelo menos, 25% dos(as) alunos(as) da educação básica (BRASIL, 2014).
Para compreender a evolução da Meta 6, procurou-se por dados recentes, obtidos por meio do Censo Escolar (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira/Inep), adotando como recorte temporal o período de 2018 e 2019. Esse período foi escolhido por apresentar dados que permitem perceber como essa evolução se deu desde 2014 até os dias atuais. Dessa forma, com base nos dados e gráficos fornecidos pelo Censo Escolar ( BRASIL, 2019 , 2020 ), foi possível identificar que de 2014 a 2018 houve uma pequena redução de matrículas em tempo integral nas creches. Já na pré-escola, o percentual manteve certa estabilidade, conforme é possível observar no gráfico 1 .
No mesmo período, foi possível perceber uma redução maior do percentual de estudantes do ensino fundamental, que permaneceram sete horas diárias ou mais em atividades escolares, em relação à educação infantil. Destaca-se que a oferta de matrículas de tempo integral foi maior na rede pública e menor na rede privada, conforme pode ser observado no gráfico 2 :
No ensino médio, pôde ser observado um aumento de alunos matriculados em tempo integral. Novamente, o percentual de matrículas da rede pública foi significativamente maior do que o da rede privada, conforme identificado no gráfico a seguir.
No ano seguinte, em 2019, o Censo escolar indicou a existência de 6 milhões4 de matrículas de estudantes em tempo integral, na educação básica. Com base no Censo Escolar, esse número corresponde a 13,9% do total de alunos5 da educação infantil ao ensino médio. Diante desse percentual, evidencia-se que uma parte significativa de estudantes permanece sem acesso ao tempo integral e que, para o país atingir em 2024 a Meta projetada de 25% de matrículas, ainda falta uma longa caminhada.
Em 2019 o segmento da educação infantil manteve a estabilidade no percentual de matrículas em tempo integral e o censo registrou que, dos 3,8 milhões de matrículas em creches, 56,4% são de tempo integral, representando um total de 2,1 milhões de crianças. Já na pré-escola, foram identificadas 5,2 milhões de matrículas de sete horas ou mais na jornada escolar,
No Ensino Fundamental, observa-se que a proporção de matrículas de tempo integral nas escolas públicas de ensino fundamental foi de 10,9% do total (2.536.040 alunos). Novamente, foi possível perceber que a oferta de matrículas é menor na rede privada do que na rede pública.
Em relação ao ensino médio, o Censo Escolar evidenciou que, em 2019, o percentual de alunos frequentando a escola por sete horas diárias ou mais chegou a 10,8%. Aqui também a proporção de matrículas de tempo integral é maior na rede pública do que na privada — que mesmo com uma oferta maior do que a encontrada no Ensino Fundamental não chega perto de se igualar à oferta na rede pública, conforme por ser observado na tabela abaixo.
Fonte: Elaboração própria com base nos dados do Censo de Educação Básica
Fonte:
Inep/2020
Os dados apresentados demonstram que o ensino médio e o ensino fundamental mantêm índices mais baixos de matrícula em tempo integral, enquanto a educação infantil apresenta um percentual mais significativo. Evidenciam ainda um decréscimo no percentual de matrículas em tempo integral, no ensino fundamental. Nesse cenário, observa-se que, para atingir o previsto na sexta Meta do PNE, faz-se necessário mais investimentos nessa direção, a fim de fortalecer o desenvolvimento de políticas públicas comprometidas com a oferta de escolas de tempo integral. Observa-se, ainda, que o que está sendo realizado até o momento representa um montante expressivo de matrículas, mas insuficiente diante da demanda levantada pelo Plano Nacional de Educação (2014-2024).
Diante desses resultados, fez-se necessária a indagação sobre como esses números se traduzem na prática e como os diferentes entes federados têm se organizado para essa oferta. Assim, buscou-se compreender a materialidade desses dados, por meio de uma pesquisa sobre as atividades em curso nos diferentes entes federados, que contribuem para o alcance da sexta Meta do PNE (2014-2024).
POLÍTICAS DE EDUCAÇÃO INTEGRAL E TEMPO INTEGRAL NA UNIÃO, ESTADO E MUNICÍPIO DO RIO DE JANEIRO
Buscou-se, a seguir, apresentar algumas das ações da União, do estado e município do Rio de Janeiro em prol da oferta da educação em tempo integral na educação básica, indicando suas principais características e documentos normativos. Diante de diferentes experiências de políticas de tempo integral, optou-se por pesquisar aquelas desenvolvidas no território do Rio de Janeiro, considerando sua relevância histórica com o tema ( COELHO, 2009 ).
A UNIÃO, O PROGRAMA NOVO MAIS EDUCAÇÃO E O PROGRAMA DE FOMENTO À IMPLEMENTAÇÃO DE ESCOLAS EM TEMPO INTEGRAL
No âmbito nacional, após a extinção do Programa Mais Educação (PME), foi lançado pelo governo federal o Programa Novo Mais Educação (BRASIL, 2016a). Esse Programa foi criado pela Portaria nº 1.144 de 2016, com o objetivo de “melhorar a aprendizagem em língua portuguesa e matemática no ensino fundamental, por meio da ampliação da jornada escolar” (BRASIL, 2016a). Além dessa Portaria, o Programa Novo Mais Educação é regido pela Resolução FNDE nº 17 de 2007 e um documento orientador publicado pelo MEC em outubro de 2016.
Destaca-se, em seus documentos normativos, que o Programa apresenta a vinculação entre a melhoria da aprendizagem e a ampliação da jornada escolar, mas não indica uma preocupação com a formação integral dos estudantes. Em relação ao tempo integral, esse Programa visa à complementação da carga horária com cinco ou quinze horas adicionais por semana no turno e contraturno escolares (BRASIL, 2016a). Essa redação permite que a escola se organize em tempo integral ou em jornada ampliada, uma vez que para configurar o tempo integral são exigidas sete ou mais horas diárias de atividades escolares.
Diferentemente do PME, o Programa Novo Mais Educação (PNME) não tem entre os seus objetivos a oferta de tempo integral e muito menos de educação integral. O que esse Programa apresenta é uma complementação da jornada escolar, por meio de aulas de português e matemática e de atividades de artes, cultura, esportes e lazer. Destaca-se, entre seus objetivos, uma preocupação com o abandono escolar e com a reprovação e a distorção idade/ano. Nota-se, também, o direcionamento às populações mais vulneráveis, mantendo uma perspectiva de ampliação da jornada escolar para alguns alunos, mas não para todos. Por fim, cabe destacar que esse Programa representa uma ruptura com a ação do governo federal anterior e que sua estrutura apresenta diferentes fragilidades que tornam a sua continuidade incerta (COELHO; ROSA; AMARAL; SILVA, 2018).
Além do PNME, destaca-se, no âmbito da União, o Programa de Fomento à Implementação de Escolas em Tempo Integral. Instituído pela Portaria nº 1.145, de 10 de outubro de 2016, esse Programa tem como objetivo:
Art. 1 - […] apoiar a implementação da proposta pedagógica de escolas de ensino médio em tempo integral das redes públicas dos estados e do Distrito Federal.
§ 1º A proposta pedagógica das escolas de ensino médio em tempo integral terá por base a ampliação da jornada escolar e a formação integral e integrada do estudante, tanto nos aspectos cognitivos quanto nos aspectos socioemocionais, observados os seguintes pilares: aprender a conhecer, a fazer, a conviver e a ser (BRASIL, 2016b).
Percebe-se que, ao contrário dos documentos normativos do PNME, nessa Portaria o tempo integral é mencionado com clareza. Da mesma forma, é possível identificar um destaque para a formação integral e integrada do estudante. Ainda na Portaria nº 1.145, observa-se, em seu art. 2º, que seu objetivo geral visa a apoiar a ampliação da oferta de educação em tempo integral no ensino médio nos estados e Distrito Federal, por meio da transferência de recursos para as Secretarias Estaduais de Educação que participarem do Programa.
Em relação a esses dois programas, ressalta-se que: enquanto a ação voltada ao ensino fundamental destina-se basicamente à aprendizagem de português e matemática; a ação voltada ao ensino médio inclui a ideia de formação integral, mencionando aspectos cognitivos e socioemocionais. Da mesma forma, em relação ao tempo escolar, destaca-se que o PNME menciona a oferta de jornada ampliada, enquanto o Programa destinado ao ensino médio faz menção à oferta de tempo integral. Portanto, mesmo que essas ações estejam, a priori , voltadas para o cumprimento da sexta Meta do PNE (2014-2024), é notável que possuem orientações diferentes entre si.
O ESTADO DO RIO DE JANEIRO E A EDUCAÇÃO INTEGRAL PARA O ENSINO MÉDIO
A proposta de Educação Integral para o Ensino Médio foi iniciada em 2012. Essa ação foi estabelecida em uma parceria entre a Secretaria de Educação do Estado do Rio de Janeiro (SEEDUC), o Instituto Ayrton Senna, a empresa Procter & Gamble Industrial e Comércio Ltda. (P&G) e a Companhia de Desenvolvimento Industrial do Estado do Rio de Janeiro (CODIN). De acordo com a Resolução SEEDUC nº 4.842 de 3 de dezembro de 2012, essa parceria surgiu inicialmente com o propósito de desenvolver um ensino médio experimental com uma visão pedagógica diferenciada, a favor da formação plena do aluno e sua autonomia.
Em 2013, essa parceria foi formalizada por meio da Resolução Conjunta SEEDUC/SEDEIS, nº 1.034/2013, e se consolidou com a experiência-piloto do Colégio Estadual Chico Anysio — localizado no bairro do Andaraí, Zona Norte da capital do Rio de Janeiro. Esse colégio prevê suas atividades para uma jornada das 7h às 17h.
A proposta de Educação Integral para o Ensino Médio tem como idealizador o Instituto Ayrton Senna, que direciona o seu discurso a favor da formação integral e a define como uma educação para a vida, capaz de formar jovens autônomos e responsáveis. Para tal, intenciona articular a aprendizagem cognitiva com a aprendizagem socioemocional. Sua organização curricular se baseia na ideia de competências e os componentes curriculares são organizados em Áreas de Conhecimento e Núcleo Articulador . Por fim, destaca-se que essa proposta diz adotar um conceito de educação integral que prevê, mas não se restringe, à ampliação do tempo de aula.
Após essa experiência-piloto, a Educação Integral para o Ensino Médio foi levada para outras unidades da rede estadual, que passaram a ser orientadas por esse modelo pedagógico. No âmbito da rede de ensino, essa proposta diz trabalhar com novos modelos de gestão, acompanhamento, avaliação e formação, indicando que se diferencia — ao menos no plano discursivo — das demais escolas da rede estadual de educação. Por fim, nota-se que, de acordo com esse mesmo instituto, atualmente essa proposta de trabalho está presente em 35 escolas da rede.
O MUNICÍPIO DO RIO DE JANEIRO E A POLÍTICA DE TURNO ÚNICO
Na cidade do Rio de Janeiro, a política do turno único teve início com a promulgação da Lei Municipal nº 5.225 de 2010. Essa Lei adotou a ampliação da jornada escolar para 7 horas diárias, estabelecendo em seu art. 1º que o turno único deve se estender a toda a rede de ensino público municipal, no prazo de dez anos. A Lei nº 5.225 prevê que a permanência dos alunos na escola, para além das sete horas, pode ser optativa às famílias dos estudantes. Destaca-se, também, em seu art. 2º, o direcionamento do turno único às escolas localizadas em áreas de baixo Índice de Desenvolvimento Humano (IDH).
De acordo com os arts. 1º e 2º da Resolução nº 1.178 de 2 de fevereiro de 2012, os alunos das escolas em tempo integral devem permanecer nas unidades escolares durante sete horas e vinte minutos diários, com um total de 35 (trinta e cinco) tempos de 50 (cinquenta) minutos de aula, incluindo as refeições e o recreio. As matrizes curriculares devem incluir as disciplinas da base nacional comum curricular, e uma parte diversificada com aulas de língua estrangeira, sala de leitura e estudo dirigido. Aquelas atividades que vão para além das sete horas, são denominadas de atividades de contraturno e podem se organizar em aulas de reforço escolar e outros componentes, não obrigatórios.
Na Resolução nº 1.317 de 28 de outubro de 2014, que dispõe sobre a organização das escolas do sistema público municipal de educação, é possível identificar a concomitância da oferta do horário parcial e integral na rede pública de ensino, reforçando a previsão de expansão dessa oferta, contida na Lei municipal nº 5.225.
Destaca-se, nesse contexto, que a política de turno único diz prever: (1) a construção de novas escolas, (2) a reorganização da matriz curricular, (3) a criação de novos cargos públicos para atuar nas escolas de tempo ampliado e (4) uma proposta de educação de tempo integral, para toda a rede de ensino — e não somente a um grupo específico de estudantes.
CONCEPÇÕES DE EDUCAÇÃO INTEGRAL E TEMPO INTEGRAL NAS POLÍTICAS EDUCACIONAIS: TENSÕES E DESAFIOS ENTRE AS ESCOLAS QUE TEMOS E AS ESCOLAS QUE QUEREMOS
As pesquisas bibliográfica e documental permitiram identificar que as políticas de tempo integral, embora tenham em comum algumas diretrizes, se apresentam de maneiras distintas — tanto em suas orientações quanto em suas organizações. Dessa forma, diante dos resultados dessas pesquisas, apresentam-se algumas reflexões sobre as concepções de tempo integral e de educação integral que podem ser identificadas nas políticas educacionais atuais.
A primeira concepção que se destaca, relaciona-se aos modelos de oferta de tempo integral identificados por Cavaliere (2009) . Ao observar a redação da Meta 6 do PNE (2014) e sua indicação para o aumento da oferta de tempo integral em 50% das escolas públicas, de forma a atender, pelo menos, 25% dos(as) alunos(as) da educação básica, percebe-se um claro direcionamento para o modelo de alunos em tempo integral . Uma vez que a previsão do quantitativo de matrículas é significativamente menor do que a previsão do quantitativo de escolas que deverão se comprometer com essa oferta, percebe-se uma orientação para que esse tempo a mais seja oferecido a determinados estudantes, e não à escola como um todo. Assim, parte significativa das escolas pode permanecer organizada em turnos, e, através de programas e de atividades no contraturno, ampliar a jornada escolar de alguns de seus alunos.
Dessa maneira, considerando que no Brasil o binômio quantidade- qualidade é um desafio histórico ( ALGEBAILE, 2009 ), esse modelo de oferta pode representar, na prática, uma possibilidade para que os sistemas de ensino consigam ampliar suas matrículas em tempo integral, sem que seja necessário, para tal, investir em mudanças e melhorias substanciais e estruturais em suas escolas — o que pode acabar favorecendo aquilo que Algebaile (2009) identificou, na expansão da escola pública brasileira, como “ampliação para menos”.
O predomínio desse modelo, em que o estudante está matriculado em tempo integral, mas a escola permanece organizada em turnos, também pode ser evidenciado na diminuição de matrículas em tempo integral no ensino fundamental, de 2014 a 2018. De certo que para fazer uma afirmação mais precisa sobre os reais motivos dessa redução seria necessária uma investigação mais profunda e detalhada. Mas, de uma forma geral, é possível inferir que pode ter contribuído para esse resultado o encerramento, em 2016, do Programa Mais Educação (PME) — que se orientou pelo modelo de oferta de alunos em tempo integral . Na medida em que o PME foi um Programa indutor, que organizava o tempo escolar em turno e contraturno e fazia uso de voluntários e parceiros, o seu encerramento pode ter representado uma ruptura dessa oferta em diferentes escolas e entes federados que não se organizaram para atingir a Meta 6, com políticas próprias, de forma mais permanente e estruturada.
Diante desse resultado, também é possível supor que esse declínio não teria sido tão significativo caso o quantitativo de matrículas em tempo integral em 2014 e 2015 correspondesse, em sua maioria, a iniciativas que se apresentam na forma de políticas públicas e não de programas de caráter especial — que induzem à oferta do tempo integral, mas não promovem alterações mais profundas nas escolas e nos sistemas de ensino. Assim, compreende-se que a queda observada, no período de 2014 a 2018, pode estar relacionada à fragilidade das matrículas associadas a esse modelo de oferta — uma vez que o aumento do tempo escolar por meio de parcerias e voluntariado dificilmente vem acompanhado de uma estrutura física e pedagógica permanente, ficando mais suscetíveis às condições adversas.
No que tange ao ensino médio, cabe destacar que o aumento de matrículas de tempo integral pode estar associado à Reforma do Ensino Médio, instituída pela Lei nº 13.415/2017. No entanto, diante da experiência do PME, é possível inferir que esse aumento pode não se efetivar se essa Reforma não for acompanhada de políticas que invistam, efetivamente, nas redes públicas de ensino — especialmente nas redes estaduais, o que inclui o investimento em suas estruturas físicas e seus profissionais da educação.
Nota-se que o modelo de política de turno único desenvolvido pelo município do Rio de Janeiro parece ser mais alinhado à consolidação da agenda do tempo integral na educação básica, dado que se configura como uma política pública, regulamentada em Lei e prevista para toda a rede — e não somente para algumas parcelas vulneráveis. Contudo destaca-se um possível tensionamento nessa política já que, de acordo com a Lei Municipal nº 5.225/2010, mesmo previsto para toda a rede, deve haver um direcionamento do turno único às escolas que estejam em áreas de baixo IDH.
Nesse sentido, ao realizar um estudo sobre escolas de tempo integral no município do Rio de Janeiro, Cavaliere (2013 , p. 238) destaca o caráter de “política especial” que a ampliação do tempo assume quando é associada às escolas com menos recursos e aos alunos em condições de vulnerabilidade educacional e social. De acordo com a autora,
As políticas especiais, em geral implementadas sob a forma de projetos, destinados a setores específicos da população, podem ser vistas como uma forma de discriminação positiva, que tenta concentrar recursos, ideias e energias nas escolas e alunos com maior dificuldade. Entretanto, ao serem destinados aos segmentos da população que apresentam problemas sociais e escolares graves, essas políticas tendem a afastar, das escolas afetadas, os alunos em melhores condições sociais e escolares (COSTA, 2008). Esse fenômeno, de homogeneização das populações atendidas pelas escolas alvo das políticas especiais, pode autoalimentar os problemas existentes e exercer força antagônica às mudanças esperadas ( CAVALIERE, 2013 , p. 252).
Observa-se que a perspectiva que associa tempo e educação integral às políticas especiais e às populações mais vulneráveis pode ser identificada nos documentos orientadores das ações desenvolvidas pelas três esferas da federação. Porém considera-se que essa associação aparece com mais ênfase nas ações da União e do estado do Rio de Janeiro, que se mostraram mais focais, organizadas em programas e parcerias que, ao funcionarem, permitem a ampliação das matrículas de tempo integral, mas que, do contrário, podem representar uma redução dessas matrículas.
Libâneo (2012) aponta um dualismo na escola pública, pensada por um lado como uma escola de conhecimento para os ricos e por outro lado como uma escola de acolhimento social para os pobres. Diante desse dualismo, nota-se, nas políticas educacionais de tempo integral, uma associação entre a ideia de ampliação da jornada escolar e a ideia de proteção das crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade social. Nesse sentido, é relevante considerar que, mesmo sendo obrigação da escola oferecer proteção aos seus estudantes, sua função social vai muito além da proteção integral. Afinal, para superar o dualismo perverso apresentado por Libâneo (2012) , a escola pública não pode se limitar ao acolhimento social, devendo se constituir em um espaço privilegiado de formação e conhecimento.
Nesse âmbito, nota-se uma tensão entre a educação integral enquanto formação escolar e a educação integral enquanto proteção integral , uma vez que o tempo integral pode ser fundamental para a proteção de muitas crianças e adolescentes, mas sua oferta por si só não é garantia de uma formação mais completa, nem tampouco de um desenvolvimento integral. Quando a educação integral é interpretada unicamente como proteção social, sua operacionalização pode acabar prescindindo da figura do professor, pois, para viabilizar essa proteção, outros sujeitos podem ser acionados. Em um cenário em que o ensino ofertado no tempo integral passa a ser de responsabilidade de outras pessoas, que não dos(as) professores(as), autores como Coelho e Hora (2013) alertam para a configuração de um contexto de precarização do trabalho docente, por meio do uso de voluntários e parceiros.
Uma vez que, nas políticas atuais, o tempo integral pode apresentar diferentes organizações e formatos, a reflexão sobre o que se deseja com a oferta desse projeto de escola pública é necessária, pois, conforme indagam Coelho e Hora (2013 , p. 230) “[…] o que se entende hoje por educação integral: atividades regulares e complementares, acontecendo em turno e contraturno, com profissionais formados para tal tarefa e outros sujeitos cuja formação não específica pode gerar um trabalho igualmente pouco específico?”.
Esse cenário também evidencia que:
Há neste sentido um grande campo de disputas, e, claro, com a presença de conflitos entre os diversos sujeitos que buscam situações distintas com o mesmo “mote” — inserção no mundo do trabalho. Ou seja, professores na rede pública querem melhores salários e recursos materiais, enquanto oficineiros em situação de desemprego querem legitimar suas práticas ( COELHO; HORA, 2013 , p. 232).
Nesse contexto, nota-se que as condições que se apresentam como solução para a ampliação do tempo escolar esbarram nas mesmas limitações encontradas no processo de ampliação da “escola de massa” ( LELIS, 2012 ). Acredita-se, dessa forma, que para a ampliação da jornada escolar poder, efetivamente, transcender essas limitações e contribuir para uma educação de melhor qualidade não é possível prescindir da ação docente e das condições em que se dá o trabalho educativo.
Por fim, observa-se que a concepção de educação integral associada à parceria entre a SEEDUC e o Instituto Ayrton Senna parece se distanciar de uma perspectiva que prioriza a proteção social e se aproximar de uma perspectiva de formação integral. Da mesma forma, parece operar em um modelo de escola de tempo integral . No entanto, mesmo se aproximando dessas concepções, essa experiência tem como base a parceria público privado e, dessa maneira, carrega um forte
tensionamento ao permitir a participação de diferentes atores na oferta da educação pública — evidenciando um contexto de privatização e de precarização e, em última instância, dividindo com essas empresas e instituições o poder de definir como a educação pública e cidadã deve ser construída. Além disso, não é possível afirmar que, caso essa parceria venha a ser findada, essas escolas permanecerão em tempo integral e com uma perspectiva de educação integral.
Assim, o que essa experiência do estado do Rio de Janeiro revela é que, atualmente, essa oferta tem deixado de ser somente de responsabilidade da escola e de setores de governo ligados à educação e vem se tornando uma ação intersetorial viabilizada por meio de diferentes parcerias ( GABRIEL; CAVALIERE, 2012 ).
Diante dos dados apresentados pelo Censo de 2018 e 2019 e dos exemplos de políticas adotadas pelos diferentes entes federativos, evidencia-se que permanecemos abaixo, tanto quantitativa quanto qualitativamente, do desejado para a oferta do tempo integral. Do mesmo modo, é possível notar que as políticas contemporâneas se orientam mais à ampliação da jornada escolar do que ao desenvolvimento integral. Nesse sentido, para que o país atinja a Meta 6 estabelecida no PNE, de forma a construir uma educação de qualidade, acredita-se ser desejável a criação e/ou fortalecimento de ações mais contundentes e eficazes, na forma de políticas públicas comprometidas com a escola de tempo integral e com a formação integral dos estudantes.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
De posse dos resultados das pesquisas bibliográfica e documental, é possível inferir que, uma vez que diferentes concepções de educação estão em disputa nas políticas educacionais, a simples ampliação do tempo não é suficiente para garantir o rompimento com o dualismo perverso da escola pública ( LIBÂNEO, 2012 ) e nem a melhoria na qualidade do ensino e da aprendizagem. Tampouco pode ser interpretada como garantia de uma educação integral. Também cabe destacar que a queda nas matrículas de tempo integral no ensino fundamental, indicada pelo Censo Escolar, revela em última instância a fragilidade dessa oferta quando orientada pelo modelo de alunos em tempo integral .
Nesse bojo, é importante observar que, a depender das estruturas que estejam em jogo nas políticas e nas práticas, o tempo a mais pode potencializar problemas já existentes, nas escolas e nas redes, ao invés de mitigá-los. Da mesma maneira, evidencia-se que, a fim de superar o estigma de ação pontual e assistencialista, a oferta do tempo integral precisa caminhar junto às políticas públicas, de forma a contar com um maior amparo no financiamento e no âmbito legal. Em suma, a fim de atingir o cumprimento da sexta Meta do PNE (2014-2024) é desejável “que se salte do que hoje é a educação em tempo integral […] para se alcançar o patamar de uma política pública de educação muito mais consolidada do ponto de vista econômico, político e pedagógico” ( MAMEDE, 2012 , p. 240).
Diante das escolas que temos encontrado e mirando naquelas que queremos, destaca-se que a construção de uma educação em tempo integral, comprometida com a formação integral, exige dos sistemas de ensino a superação de muitos problemas — como a precarização envolvida no uso de trabalho voluntário e de parcerias público-privadas na educação pública —, assim como o investimento na carreira docente e na estrutura física e pessoal das unidades escolares. Portanto, uma vez que diferentes políticas engendram diferentes ofertas de educação em tempo integral, considera-se que para que esse tempo adicional esteja associado a uma perspectiva de educação integral, é fundamental o compromisso, por parte dos municípios, estados e União, com a consolidação de políticas públicas amparadas por financiamento próprio e capazes de atuar de forma estrutural e permanente a favor das escolas de tempo integral .
Por fim, constata-se que para as políticas educacionais atuarem a favor da concepção de educação integral enquanto formação escolar, determinadas organizações para o tempo integral devem ser evitadas, como aquelas que preveem a ampliação do tempo por meio da utilização de voluntários em oficinas no contraturno ( ALMEIDA, 2013 ). No sentido oposto, acredita-se que essas políticas devem investir na composição do quadro docente e profissional, e atuar em prol do desenvolvimento de um currículo escolar que favoreça o desenvolvimento integral discente.