1 Introdução
As primeiras incursões da Química no Ceará, ao que tudo indica, aconteceram no magistério. Os seus fundamentos começaram a ser introduzidos nos colégios públicos e privados do estado, a iniciar pelo Colégio Estadual do Ceará, atual Liceu do Ceará, fundado em 1845, seguido do Colégio da Imaculada Conceição, instituição privada fundada em 1865, ambos na capital, Fortaleza (SILVA et al., 2011).
Não se tem certeza de quando o ensino de Química foi inserido “[...] no currículo acadêmico dos mencionados estabelecimentos, da mesma forma como se desconhece a formação dos professores que ministravam essa disciplina [...]” (SILVA et al., 2011, p. 27), que se apresentava com pouca visibilidade em relação à predominância dos estudos da Matemática, Português e Latim, por exemplo. Esse cenário local espelhava o cenário nacional, pois a expansão científica do país não foi absorvida pelo currículo escolar na mesma frequência.
No âmbito da educação superior, o estudo da Química no estado do Ceará se deu a partir dos cursos de graduação ofertados pela Faculdade de Farmácia e Odontologia (1950), a Escola de Agronomia (1950) e a Faculdade de Medicina do Ceará (1951), que, somando-se à Faculdade de Direito (1946), deram origem à Universidade do Ceará (UC) em 1954, federalizada em 1965, quando passou a ser denominada de Universidade Federal do Ceará (UFC). Os responsáveis por ministrar os conteúdos químicos nesses cursos eram os próprios profissionais das áreas da Saúde e Agronomia, sendo uma realidade comum no âmbito nacional. Essa situação perdurou durante um longo período no país, mesmo depois da criação e expansão dos primeiros cursos de Química.
A questão da formação docente, nesse contexto, ficou relegada, pois era almejada a formação de químicos que atendessem aos interesses industriais em potencial expansão no Ceará, e não à formação de professores. Com a Reforma de Francisco Campos, em 1931, que tornou obrigatório o ensino de Química “[...] nas duas séries finais da etapa fundamental e nas duas séries da etapa complementar para o ingresso nos cursos superiores de medicina, farmácia, odontologia, engenharia e arquitetura” (MESQUITA; SOARES, 2011, p. 165), a formação de professores de Química passou a ser alvo de discussões no país, resultando em diferentes projetos formativos, que ainda influenciam as atuais licenciaturas.
Na década de 1930, foram criados os primeiros cursos destinados à formação de professores de Química no país. Conforme Mesquita e Soares (2011), até 1965 só existiam 13 desses cursos ofertados por universidades públicas e privadas em todo o país. Com base em dados do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP), os autores apontam que um desses primeiros cursos foi ofertado pela UFC em 1958.
No entanto, a pesquisa que deu origem a este estudo, fruto de uma dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação da UFC, verificou que o referido curso foi criado e entrou em funcionamento somente no ano de 1962, sob a responsabilidade da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (FFCL) da UC. O que ocorreu em 1958 foi a criação do Instituto de Química e Tecnologia (IQT) da UC (SILVA, 2020).
Assim, questiona-se: como se deu o processo de criação da primeira licenciatura em Química do Ceará? Que concepção de docência fundamentou e ainda fundamenta o currículo do curso? Buscando responder a esses questionamentos, este estudo investigou as origens e o desenvolvimento do referido curso, ofertado pela UFC, identificando avanços e obstáculos em relação à formação pedagógica dos seus estudantes.
2 Metodologia
O estudo, de abordagem qualitativa, foi desenvolvido a partir da pesquisa documental e da História Oral (HO) como técnica. Essa junção deu-se pelo entendimento de que:
Os arquivos escritos dificilmente deixam transparecer os tortuosos meandros dos processos decisórios. Muitas decisões são tomadas através da comunicação oral, das articulações pessoais; o número de problemas resolvidos por telefone ou pessoalmente não para de crescer. Para suprir essas lacunas documentais, os depoimentos orais revelam-se de grande valia. (FERREIRA, 2002, p. 324).
Assim, a HO permite o resgate do indivíduo como sujeito histórico pertencente a esse processo, dando vez e ecoando as vozes que não foram ouvidas e que a história ainda não contou (FIALHO et al., 2020). A pesquisa foi submetida ao Comitê de Ética da UFC, sendo aprovada com o Parecer nº 3.710.975 e Certificado de Apresentação de Apreciação Ética nº 24730619.9.0000.5054, tendo como campo social a UFC - campus do Pici, em Fortaleza, responsável por ofertar a primeira licenciatura em Química do estado do Ceará.
Os dados foram gerados em dois momentos distintos: no primeiro, foi realizada a busca por documentos escritos referentes ao curso de licenciatura em Química na própria coordenação do curso, localizada nas dependências do Departamento de Química Orgânica e Inorgânica (DQOI) da UFC, Bloco 940, no campus do Pici, em Fortaleza. Alguns documentos foram fornecidos por uma das professoras entrevistadas, que atuou como coordenadora do curso logo no início da sua criação. Foram encontrados diversos documentos institucionais não digitalizados, mas apenas 55 diziam respeito à licenciatura em Química.
No segundo momento, foram realizadas entrevistas com ex e atuais professoras do curso que vivenciaram, durante algum período, sua criação e/ou reestruturação. Fez-se uso da entrevista reflexiva, caracterizada “[...] pela disposição do pesquisador de compartilhar continuamente sua compreensão dos dados com o participante” (GATTI, 2018, p. 7), sendo reflexiva “[...] tanto porque leva em conta a recorrência de significados durante qualquer ato comunicativo quanto pela busca de horizontalidade” (SZYMANSKI, 2018, p. 15).
Inicialmente, foram considerados os nomes de nove professores e professoras do curso, entre aposentados e em atividade, dos quais quatro não aceitaram ser entrevistados. Dos cinco restantes, viu-se, após contato inicial via telefone, e-mail ou presencial, que apenas três professoras, de fato, eram potenciais participantes da pesquisa por terem vivenciado mais experiências na criação e nas reformulações da licenciatura em Química da UFC. As três professoras, portanto, foram as interlocutoras deste estudo, sendo duas professoras aposentadas e uma em atividade, identificadas aqui por nomes fictícios em alusão a químicas negras que contribuíram com o desenvolvimento desta ciência no Brasil e no mundo.
A primeira entrevista, de forma individual, foi com Alice, 56 anos, professora titular do curso de licenciatura em Química da UFC, em plena atividade de ensino, pesquisa e extensão no DQOI desde 1997. A entrevista com as outras duas professoras ocorreu de forma coletiva, conforme solicitado por elas. Marie, 69 anos, foi professora da UFC entre 1976 e 1999, onde, na ocasião, ministrou as disciplinas de Prática de Ensino de Química no curso de licenciatura entre 1991 e 1998. Já Joana, 73 anos, foi professora da UFC entre 1976 e 1998, vivenciando experiências conjuntas com a professora Alice. Joana teve importante atuação na implantação e desenvolvimento da licenciatura noturna, sendo a sua primeira coordenadora.
As narrativas desse processo representam uma produção discursiva resultante de registros da oralidade de sujeitos históricos e sociais. Com a autorização das interlocutoras, as entrevistas foram gravadas em formato de áudio, transcritas e, na sequência, encaminhadas para as respectivas entrevistadas para serem corrigidas e validadas. Após esse processo, deu-se início à análise dos dados, sendo feita a opção pela apresentação e discussão dos acontecimentos históricos sobre o curso numa perspectiva cronológica, conforme apresentados a seguir.
3 Da Escola de Agronomia ao Instituto de Química e Tecnologia
Apresentando um currículo consistente em estudos da Química, a Escola de Agronomia (EA) da UC passou a agrupá-los em departamentos no ano de 1938, resultando no Departamento de Química (que integrava Química Analítica e Orgânica) e no Departamento de Química Agrícola (que integrava Química Agrícola e Tecnologia Rural), sob a coordenação dos professores Ésio Pinheiro e Agenor Maia Ferreira, respectivamente (SILVA et al., 2011).
As instalações da EA abrangiam os laboratórios de Química da universidade, com destaque para a atuação do professor Manuel Mateus Ventura, catedrático da cadeira de Química Agrícola, entendida como o nascimento da Bioquímica no estado do Ceará. Ainda que o seu trabalho não tenha relação direta com a formação de professores de Química, foi a partir de suas ações que a Química se consolidou no Ceará, resultando na criação dos cursos de bacharelado e licenciatura tempos depois.
Devido aos seus estudos na Química, o professor Ventura foi convidado pelo então reitor da UC, professor Antônio Martins Filho, para criar o primeiro Instituto da universidade, denominado de Instituto de Química e Tecnologia (IQT), concretizado em 1958. Esse fato permitiu que ocorressem várias mudanças na Química no Ceará, contemplando, inicialmente, o desenvolvimento de pesquisas e, posteriormente, o seu ensino.
Em 1961, foi criada a FFCL da UC, considerando as necessidades regionais em matéria de professores de nível médio, especialistas em educação e pesquisadores, sendo responsável por formar quem tinha interesse pelo magistério, representando um marco histórico na organização e implantação desses cursos no estado em consonância com o que vinha acontecendo no cenário nacional.
Ainda em 1961, foram iniciadas as primeiras atividades de ensino no IQT, antes dedicado apenas à realização de pesquisas, agora com aulas de Fundamentos de Química ministradas pelo professor Antônio Enéas Mendes Bezerra para estudantes do ensino médio da época que tinham interesse em prestar exame de admissão para a primeira turma de graduação em Química do estado do Ceará, na própria UC, em 1962 (SILVA et al., 2011). Assim feito, a primeira turma foi ofertada e teve os seus primeiros formados em 1965, na modalidade de bacharelado, e poucos foram os que desejaram cursar a licenciatura na sequência, cujos primeiros licenciados datam de 1967.
Em 1963, a UC estabeleceu que os seus Institutos básicos iriam ministrar as disciplinas básicas para os seus respectivos cursos de bacharelado, e a FFCL iria ministrar as disciplinas pedagógicas para aqueles que queriam seguir a carreira do magistério. De início, o IQT teve o seu funcionamento com um corpo docente reduzido, fazendo com que várias disciplinas ficassem com o próprio professor Ventura, tais como Química Inorgânica, Físico-Química e Bioquímica.
O que se sabe desse período é que a Química no estado do Ceará foi moldada pela pesquisa e pelo ensino desenvolvidos por bacharéis direcionados à indústria. Alguns desses profissionais não dispunham de uma formação técnica e prática da Química, mas, mesmo assim, faziam as atividades deles requeridas, já que parte dos processos desenvolvidos na indústria não demandava de alta qualificação profissional e a quantidade de profissionais químicos no estado era muito baixa.
4 A licenciatura diurna articulada ao bacharelado: o início da formação docente
A base do currículo dos cursos de Química em discussão era o conhecimento do químico bacharel, cuja matriz curricular era composta por dois ciclos: um correspondia ao primeiro ano, com as disciplinas básicas de Cálculo, Física, Química Geral e Biologia Geral, Introdução à Estatística e Química Orgânica I; e outro, chamado de ciclo profissional, correspondia ao restante do curso, englobando as disciplinas diretamente ligadas à atuação profissional do químico. Após a conclusão do bacharelado, aqueles que desejavam exercer a docência cursavam as disciplinas pedagógicas na FFCL, conforme o currículo 3 + 1 da época, alimentando uma formação tecnicista.
Durante um longo período, o curso vivenciou uma série de dificuldades para se manter em funcionamento, como ausência de materiais e equipamentos de laboratório, infraestrutura para salas de aula e laboratórios para as aulas práticas, poucos professores para a licenciatura e baixo número de estudantes interessados em ingressar na graduação em Química.
Foram criados diversos projetos, nacionais e internacionais, pelos professores do curso visando obter verbas para agregar melhorias ao trabalho dos professores e à formação dos estudantes. Com isso, esperavam-se aumento da carga horária experimental, melhoria da performance dos egressos tanto no mercado do trabalho quanto na pós-graduação, diminuição da taxa de evasão e crescimento pela procura nas vagas do vestibular para ingresso no curso.
Os esforços para melhorar o curso mediante os projetos criados não tinham, minimamente, a finalidade de valorizar a formação docente, já que o que se buscava eram investimentos para a pesquisa pura, isto é, para o desenvolvimento de ciência e tecnologia, mesmo na época existindo a modalidade de licenciatura diurna. Dessa forma, a questão da formação docente dos estudantes ficou relegada.
Logicamente, aumentar a qualidade da formação química dos estudantes era essencial para o desenvolvimento profissional, mas tais ações já reforçavam a perspectiva de formação prática do curso. A socialização de uma identidade (DUBAR, 2020) docente dissociada do bacharelado não era posta em pauta, pois o que se tinha era o atrofiamento da formação docente à medida que se investia na formação química para pesquisas em laboratório dissociadas de discussões sobre o seu ensino.
Havia o reconhecimento de que “[...] os alunos do curso de Química eram considerados fracos” (JOANA, 2020, entrevista), inclusive por outros departamentos da universidade, e nesse momento passou a desenvolver atividades ligadas ao ensino a fim de melhorar essa situação, a iniciar pela oferta de cursos de férias voltados para os alunos com maiores dificuldades de aprendizagem, pois era grande o número de discentes reprovados em diversas disciplinas do curso. A busca pela implantação de bolsas para os universitários também foi descrita pela professora como sendo uma alternativa para “[...] aumentar a qualidade do curso, fazendo com que os alunos pudessem se dedicar mais” (JOANA, 2020, entrevista) aos estudos.
A referida professora destacou ainda que o curso diurno tinha poucos estudantes e muitos se evadiam, além de outros que, por serem discentes que trabalhavam e não podiam se dedicar integralmente aos estudos, acabavam acumulando reprovações e entravam em processo de jubilamento. Diante desse cenário, a professora Joana (2020, entrevista) disse que surgiu a ideia de criar a licenciatura noturna, caso contrário, os cursos diurnos iriam fechar.
Ao que se vê, a criação da licenciatura noturna foi uma ação que não tinha a finalidade principal de melhorar a oferta de formação de professores de Química para as escolas de educação básica no estado, mas proteger o bacharelado diurno, pois a presença de estudantes que trabalhavam e não podiam se dedicar integralmente ao curso prejudicava a sua qualidade e colocava em discussão as condições que o curso possuía para continuar existindo.
Diante dessa realidade, a dissociação das modalidades diurnas de licenciatura e bacharelado deveria ocorrer, em que a licenciatura se tornaria um curso noturno e o bacharelado em Química continuaria sendo ofertado no período diurno. A professora Joana (2020, entrevista) destacou que essa migração do curso diurno para o noturno faria com que os universitários que tinham reprovações conseguissem concluir o curso - embora fossem demorar um pouco mais, ou seja, não seriam jubilados - e, ao mesmo tempo, agregaria melhorias ao bacharelado diurno por diminuir seus índices de reprovações.
A criação da licenciatura noturna não foi um processo fácil, uma vez que não teve efetiva participação dos professores dos dois Departamentos de Química da universidade. As dificuldades e os desafios presentes nos processos de criação e implantação da licenciatura noturna não foram exclusivos da UFC. Estudos como os de Massena (2010) e Tres (2018) revelam que os embates e as disputas de poder balizaram a criação de outras licenciaturas noturnas em Química no país.
5 O fim da licenciatura diurna e o início da licenciatura noturna
Em um cenário de criação de várias licenciaturas noturnas no país em decorrência da Lei nº 8.539, de 22 de dezembro de 1992, o curso noturno de licenciatura em Química da UFC foi criado em 22 de setembro de 1994, mediante a Resolução nº 39 do Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão (CEPE) da Universidade.
Conforme Silva et al. (2011), as licenciaturas diurna e noturna em Química da UFC sempre apresentaram uma carga horária menor em relação ao bacharelado, indicando uma tendência de que a formação docente seria um espelhamento do bacharelado, mas menos exigente do que ele em virtude de os estudantes não poderem se dedicar integralmente aos estudos, como acontecia com os discentes do bacharelado. A professora Marie (2020, entrevista) confirmou esse entendimento ao afirmar que, na criação da licenciatura noturna, foi pensado “[...] ser um curso mais leve”, mas que não deixasse de trabalhar o conhecimento químico dos universitários.
Em contraponto, a professora Joana (2020, entrevista) disse que a licenciatura noturna:
Foi moldada totalmente diferente da diurna. A diurna era mais voltada para o aluno bacharel. Se você quisesse fazer a licenciatura plena durante o dia era só fazer cinco disciplinas pedagógicas, que aí se tornava professor, o que não tinha nada a ver. Quando foi pensada a noturna, foi trabalhada mesmo para que o estudante aspirante ao magistério racionaria para fazer a construção do conhecimento químico.
A perspectiva de formação de professores de Química narrada pela professora Joana (2020, entrevista), em contraposição à matriz curricular do curso, apresenta divergências sobre a finalidade da licenciatura noturna. Se esta foi pensada para romper ou minimizar a presença da racionalidade técnica vigente até então, pouco ou nada foi modificado, pois a matriz curricular continuou apenas com um baixo número de disciplinas pedagógicas, mas com uma nova distribuição para que não se concentrassem apenas no final do curso.
Importa destacar que as licenciaturas diurna e noturna não possuíam um Projeto Pedagógico de Curso (PPC), criado somente em 2005, e escolher determinadas disciplinas para serem cursadas na formação de professores de Química não representa um ato neutro, desvinculado dos acontecimentos sociais, históricos, culturais e políticos de uma época, pois o currículo é um documento que expressa relações de poder (MOREIRA, 2021).
No caso do curso analisado, a escolha desses conhecimentos, ao que se vê, deu-se a partir de uma redoma entre os professores do próprio DQOI, em sua essência, bacharéis e ligados à pesquisa de laboratório. Unidades acadêmicas como a Faculdade de Educação (Faced) não participaram dos processos de criação e reformulações das licenciaturas diurna e noturna em Química, o que poderia ter contribuído com melhorias para a formação docente dos estudantes. O currículo do curso buscou aproximar a formação do licenciado ao bacharelado, mas não permitiu que a licenciatura tivesse o mesmo prestígio social e acadêmico.
A busca por estudantes para ingressar na licenciatura noturna em Química foi um trabalho constante desenvolvido pela professora Marie (2020, entrevista), que passou a convidar constantemente “[...] alunos que frequentavam o campus do Pici para se matricularem no curso”. Atrelado a isso, a professora buscou conquistar o que, na época, era chamada de “[...] bolsa de trabalho, para que os alunos pudessem se dedicar mais ao curso” (MARIE, 2020, entrevista).
Um relatório expedido no ano 2000 pelo Ministério da Educação (MEC), através de uma Comissão de Especialistas em Ensino de Química (CEEQ) que avaliou todos os cursos de Química da UFC, alertou para a necessidade de melhorias na formação dos professores do curso em relação à parte pedagógica, visto que a formação científica de alta qualidade desses professores era desproporcional à formação pedagógica, apontada pelo relatório como sendo frágil (SESU, 2000).
A professora Alice (2020, entrevista) narrou que o currículo 3 + 1, que influenciou a licenciatura noturna, durante um longo período:
Sobrecarregava demais a disciplina de Prática [de Ensino]. Como ela é oferecida para alunos do último ano, onde somente neste momento as disciplinas didático- -pedagógicas entravam, a disciplina de Prática atuava como um sensor em termos de conteúdos.
Ou seja, não havia uma integração entre conhecimento pedagógico e conhecimento específico da Química na maior parte da graduação, o que ocorria, basicamente, no final do curso, nas disciplinas de Prática de Ensino de Química. Diante desses acontecimentos, o que se verifica é que se objetivou a busca pela construção de um curso noturno com identidade própria, mas o retorno foi um currículo reproducionista do pensamento tecnicista na formação de professores vivenciado desde a licenciatura diurna.
6 O surgimento do primeiro PPC
A criação de um PPC para a licenciatura em Química se deu por cumprimento à Resolução nº 1, de 18 de fevereiro de 2002, e à Resolução nº 2, de 19 de fevereiro de 2002, do Conselho Nacional de Educação (CNE), que instituíram as primeiras Diretrizes Curriculares Nacionais para a formação de professores da educação básica no Brasil, bem como a carga horária mínima desses cursos. Nesse período, a UFC criou um Grupo de Trabalho das Licenciaturas (GTL) para discutir e elaborar orientações institucionais que subsidiassem a criação do PPC de todas as licenciaturas da Universidade (SILVA; CARNEIRO, 2021).
Talvez, inexistindo tal obrigatoriedade, sua criação teria sido adiada por mais alguns anos, já que não foi verificada uma preocupação específica do DQOI, responsável pelo curso, em produzir essas mudanças. A professora Alice (2020, entrevista) narrou que, para a construção desse documento, “[...] houve um esforço conjunto do Departamento para sua elaboração, e esse PPC norteou as diretrizes do curso até bem pouco tempo atrás”.
Na apresentação do PPC é descrito “[...] o compromisso do Curso em não apenas ensinar Química, mas, sobretudo, despertar os alunos para suas vocações docentes, para que sejam capazes também de ensinar a ensinar” (UFC, 2005, p. 3). O entendimento docente expresso nesse trecho é de docência como vocação, e não como profissão. Vocacionar uma profissão, que é construída socialmente, é, ao mesmo tempo, desprofissionalizá-la e desconstruir sua identidade, que “[...] pode ser compreendida como movimento, como processo de construção dinâmico e mutável, protagonizado por sujeitos situados historicamente” (GUIMARÃES; COSTA, 2022, p. 7).
Os itens que integram o PPC esboçam que, a princípio, a formação dos licenciandos seria ressignificada ao agregar elementos da docência em consonância com as demandas da sociedade para um trabalho docente mais inclusivo, crítico e dissociado do pensamento bacharelesco, porém, caindo em armadilhas criadas pelo próprio documento, nota-se que esse discurso não consubstanciou o currículo proposto, sendo mais um discurso envernizado que propalou o que a legislação vigente requeria na época.
No curso, o Estágio Curricular Supervisionado até então não tinha uma legislação que normatizasse o seu funcionamento. As ações direcionadas aos momentos entendidos como sendo de estágio estavam ligadas mais às atividades de pesquisa do que às de ensino. O estágio de ensino ficava sob responsabilidade da disciplina de Prática de Ensino de Química.
Com a criação do PPC, houve melhorias na configuração do estágio e das disciplinas de Prática de Ensino de Química, ficando dissociadas, mas passaram a ser vistas como redentoras da formação pedagógica dos estudantes, pois eram as únicas disciplinas integradoras dos conhecimentos pedagógicos e químicos existentes no curso. No entanto, o PPC expressa uma percepção de estágio como um momento de reprodução daquilo que os estudantes irão observar nas escolas de educação básica, isto é, como um momento de prática dissociado da teoria, e não como um momento de práxis docente (SILVA et al., 2021).
Além das disciplinas obrigatórias, o PPC estabeleceu 37 disciplinas optativas que poderiam ser cursadas pelos estudantes. Assim como visto na matriz curricular de 1995, a de 2005 continuou direcionando aos estudantes da licenciatura disciplinas optativas ligadas ao bacharelado. Estas, inclusive, poderiam ser cursadas no período diurno, não havendo disciplina direcionada ao ensino ou à docência, muito menos ofertada por outras unidades acadêmicas, como a Faced. O distanciamento da licenciatura em Química com a Faced, por sinal, ocorre até o presente momento, fato reconhecido pela professora Alice (2020, entrevista), que se queixou desse distanciamento, ao mesmo tempo que reconheceu a parcela de culpa do próprio curso por essa situação.
As transformações no PPC não evidenciam rupturas nem estagnação de antigas práticas pedagógicas na licenciatura em Química da UFC. Ao que se vê, mediante alterações curriculares, o curso ainda não conseguiu se desvincular de suas fortes dependências do bacharelado em razão de sua identidade profissional ainda ser espelhada na identidade bacharel.
A socialização que permitiria o desmembramento dessa situação não ocorreu de forma orgânica (DUBAR, 2020), dificultando conceber a docência como uma profissão com saberes, conhecimentos, fazeres próprios e, portanto, distintos da profissão do químico bacharel. Afinal, conforme Maldaner (2020, p. 45), “[...] é diferente saber os conteúdos de química, por exemplo, em um contexto de química, de sabê-los em um contexto de mediação pedagógica dentro do conhecimento químico”.
7 Perspectivas e desafios: para onde vai a formação docente?
O exercício da docência demanda conhecimentos próprios desta profissão, ultrapassando o simples entendimento de que, no caso da Química, basta ter domínio do seu conteúdo para que o professor desempenhe suas funções com êxito. No curso investigado, viu-se que foram poucas as tentativas de elevar a qualidade da formação docente, pois, mesmo com a criação do seu único PPC no ano de 2005, a licenciatura noturna ainda é influenciada pelo pensamento bacharelesco dos antigos cursos diurnos.
No ano de 2013, ocorreram alguns ajustes na matriz curricular da licenciatura em Química, mas não resultaram na criação de um novo PPC. Esses ajustes chegam a ser quase imperceptíveis na formação dos estudantes em razão de nada de substancial ter sido feito para assegurar uma identidade própria e sólida ao curso. Com maior destaque, o que se viu foi a diversificação de disciplinas optativas da área da Educação, antes voltadas, basicamente, apenas para a formação química.
A priorização de estudos e pesquisas em Química dissociados de discussões sobre o seu ensino na licenciatura em Química é, em parte, influenciado pelo Programa de Pós-Graduação em Química do próprio DQOI, que, desde a sua origem, deixou de lado a área de Educação Química. Apenas recentemente essa área foi contemplada no Programa, mas são raros os professores que apresentam vínculos com ela, os quais, inclusive, são vínculos ainda iniciais. Como exemplo, a professora Alice (2020, entrevista), que atua no programa, disse estar orientando alguns estudantes de mestrado na área e que deseja ofertar disciplinas de Educação Química no Programa futuramente, mas a sua relação principal é com pesquisas fora dessa área.
Durante a realização desta pesquisa, um novo PPC estava sendo elaborado para a licenciatura em Química, ao qual não foi possível ter acesso pelo fato de não ter sido finalizado naquele momento. No entanto, a professora Alice (2020, entrevista) declarou que o novo documento está buscando prezar melhorias na formação pedagógica dos estudantes. Com um projeto pedagógico mais coerente para um curso de formação de professores, espera-se que mudanças sejam gestadas e permitam que os discentes se identifiquem como docentes de Química.
Destaca-se que, em 2015, foram instituídas novas Diretrizes Curriculares Nacionais para a formação de professores da educação básica no Brasil através da Resolução nº 2, de 1º de julho, revogada pela Resolução nº 2, de 20 de dezembro de 2019, que define as atuais Diretrizes Curriculares Nacionais para a formação inicial docente e instituiu a Base Nacional Comum (BNC) para a formação inicial de professores da educação básica, a chamada BNC-Formação, duramente criticada pela comunidade acadêmica e associações científicas por estar alinhada a uma proposta neoliberal para a educação brasileira, fragilizando a formação de professores e o seu trabalho (SILVA; CARNEIRO, 2022).
A licenciatura em Química da UFC, no entanto, ainda não considerou essas mudanças em seu currículo, o que é esperado ter ocorrido na criação do novo PPC. Ao mesmo tempo, essas diretrizes se apresentam como mais um desafio a ser enfrentado pelo DQOI, caso o Departamento busque, de fato, conceber uma formação docente crítica e reflexiva aos estudantes, especialmente se contrapondo à pedagogia das competências que está fundamentando a BNC-Formação, dificultando pensar a formação de professores para além da racionalidade técnica.
8 Considerações finais
Em uma análise geral, constatou-se que o curso de licenciatura em Química da UFC, ao longo de sua trajetória, pouco se preocupou com questões ligadas à identidade e profissionalização docente dos estudantes, tendo sido pensado mais como um espelhamento do curso de bacharelado do que, de fato, como um curso de formação de professores. Os documentos analisados e os depoimentos das professoras revelam um distanciamento entre a formação pedagógica e a formação específica dos discentes.
O currículo da licenciatura em Química, desde a modalidade diurna, tem profissionalizado os estudantes mais para a pesquisa em química pura, desprofissionalizando-os para o ensino e, consequentemente, para a docência, o que poderá trazer prejuízos à construção da identidade profissional docente dos estudantes, que, em breve, trabalharão como professores de Química da educação básica.
Com a criação da licenciatura noturna, mudanças significativas, mesmo que tímidas, só foram notadas em 2005, mediante o seu primeiro PPC. Em 1995 e 2013, não foram encontrados documentos que permitissem uma análise mais profunda desses períodos, pois o que se sabe é que em ambos não foram criados outros PPCs. Em 2013, sequer foram encontrados documentos sobre as mudanças ocorridas, com exceção da matriz curricular, que não sofreu alteração nas disciplinas obrigatórias.
Em síntese, a criação e as reformulações da licenciatura em Química ocorreram sem muitas preocupações em inserir a comunidade acadêmica que integra o curso nas discussões, tais como os próprios estudantes e outras unidades acadêmicas da UFC. Isso representa a departamentalização de ações que deveriam ser democráticas e contemplar toda a comunidade acadêmica, pois se trata de um curso de formação de professores, cujas disputas de poder irão reverberar diretamente na atuação dos discentes quando estiverem trabalhando na educação básica. A concepção curricular estruturante do curso, que é tecnicista, foi evocada pela influência dos seus próprios professores formadores, que são, hegemonicamente, vinculados às pesquisas dissociadas de discussões sobre ensino e educação, mesmo os que são licenciados.
A partir do que foi discutido neste estudo, entende-se que o curso de licenciatura em Química da UFC foi moldado em consonância com a conjuntura vivenciada na época, que demandava mais químicos para a indústria do que professores para a educação básica. Ainda que tenha passado por mudanças em seu currículo, o que ficou foi o entendimento institucional da racionalidade técnica.
Espera-se que outros desdobramentos surjam quanto ao curso de licenciatura em Química da UFC, diante da construção do novo PPC, para que a formação pedagógica dos estudantes seja melhorada e ganhe destaque no currículo e nas práticas pedagógicas de seus professores formadores. Novos desafios surgem ao curso diante da BNC-Formação, de 2019, elaborada para direcionar o currículo dos cursos de licenciatura no Brasil sob a lógica neoliberal, o que irá demandar um esforço coletivo do DQOI para criar estratégias que visem trazer o mínimo de danos possível à formação pedagógica dos estudantes do curso mediante sua implantação no PPC. Mesmo diante dos problemas existentes, o curso tem condições de elevar a sua qualidade, gerando uma identidade docente profissional própria.