Narrativa, historiografia e educação em direitos humanos
Este texto é fruto do cruzamento de preocupações oriundas de três áreas do conhecimento: o Direito, a História e a Educação1. Vale narrar como chegamos à sua proposição. Inicialmente, o projeto de pesquisa que dá suporte a esta investigação se centrava na busca dos temas do gênero e da sexualidade nos currículos de graduação em Direito do estado do Rio Grande do Sul. Nossa hipótese, que logo se confirmou na análise de um corpus composto por currículos de cursos de Direito no estado, era de que esses temas estariam prioritariamente inseridos nas disciplinas que versam sobre direitos humanos, ou em seções sobre direitos humanos no programa de algumas outras disciplinas, como direito de família (ao se abordarem tópicos como casamento e filiação, por exemplo). A análise desses programas, bem como a leitura das referências bibliográficas aí indicadas, levou-nos a um percurso maior do que o esperado na avaliação dos modos de ensinar direitos humanos. Sendo assim, deixamos de 1lado, por ora, as preocupações com os temas do gênero e da sexualidade, e nos defrontamos com o grande tema dos direitos humanos. Mas não perdemos de vista um dos objetivos do atual projeto de pesquisa: investigar possíveis nexos entre o ensino de direitos humanos nas carreiras jurídicas e a produção de demandas e sentenças nos tribunais gaúchos em que a resolução de conflitos no âmbito do gênero e da sexualidade aponta para o arcabouço teórico dos direitos humanos.
Este texto, então, se ocupa da educação em direitos humanos. Preocupa-se em analisar os programas das disciplinas e a bibliografia que compõem esses cursos. Tanto nos programas como na quase totalidade dos manuais investigados, recortamos um tópico sempre presente: o ensino de direitos humanos comporta sempre largos capítulos dedicados à história dos direitos humanos pelo mundo e através dos tempos. É aqui que o texto se encontra com a historiografia e mesmo com o campo da teoria da História: as estratégias de que se lança mão para contar a história de algo trazem profundas implicações na definição desse algo. A narrativa da história dos direitos humanos incorpora importante dimensão pedagógica; pois, ao traçar o percurso histórico dos direitos humanos, em boa parte já se define o que são os direitos humanos e o que eles podem vir a ser em nossa sociedade. Ao traçar a origem e o "desenvolvimento" histórico de "algo", de modo bem claro damos os principais contornos do que é esse "algo". Por exemplo, ao se servir de categorias como "nossa sociedade", podemos narrar processos particulares a certos povos e culturas, mas que se tornam globais e universais, impondo-se a outros povos e países que não tiveram a "sorte" de ter um protagonismo no campo dos direitos humanos. Dessa forma, por vezes, mesmo plenos de boas intenções, aqueles que narram a história dos direitos humanos estão legitimando a imposição de marcas particulares de uma cultura sobre outras. O que se afirma universal é, em matéria de direitos humanos, a perspectiva hegemônica na disputa, aquela que "venceu" e se estabeleceu como a verdade histórica.
Lembrando a preocupação inicial do projeto de pesquisa que deu origem a este texto, a estreita vinculação de gênero e sexualidade aos direitos humanos, acionada nas demandas judiciais e nas sentenças para resolução de conflitos referentes a esses temas, fica sujeita em parte a essa forma de narrar a história dos direitos humanos. E aqui o tema do nosso texto se aproxima da área da educação, completando o tripé que anunciamos de início, pois implica lidar com o modo de dispor os conteúdos de direitos humanos nos currículos dos cursos de Direito. A todo momento, em nossa pesquisa, defrontamo-nos com essa cartografia que mostra os lugares onde os direitos humanos aparecem nos currículos (por exemplo, quando se fala dos direitos de família e dos direitos individuais, ou quando se fala do direito internacional e dos tratados internacionais) e os lugares onde os direitos humanos não aparecem nos currículos dos cursos de Direito (por exemplo, quando se fala do direito econômico, do direito empresarial ou do direito tributário2). Esse jogo de mostrar e esconder tem evidentes implicações pedagógicas, e nos leva à noção de currículo, central em Educação. O currículo pode ser entendido como um percurso ofertado aos estudantes, que lhes apresenta a pertinência de alguns temas e conexões (direitos humanos tem a ver com a luta feminista pela equidade de gênero, ou direitos humanos tem a ver com a luta contra o racismo e outras formas de intolerância) e a ausência ou pobreza de conexões possíveis (direitos humanos não têm a ver com as regras do comércio internacional, direitos humanos não tem a ver com o lucro das empresas, direitos humanos não tem a ver com situações de desigualdade social entre os contratantes). Dessa forma, assumimos que a ignorância não é um subproduto da falta de conhecimento, mas algo ativamente produzido pelos desenhos curricula-res, em particular por conta desse jogo em que determinadas conexões são produzidas, e outras, escondidas ou secundarizadas, fornecendo o campo do conhecimento possível.
Em nossa compreensão, o Direito se apresenta como um produto social, em estreita conexão com as relações de poder existentes a cada momento histórico na sociedade, e não como um dado a priori, conforme discutido por Bourdieu (2009). A ciência jurídica não é um sistema fechado e autônomo cujo desenvolvimento possa ser compreendido por sua dinâmica e racionalidades próprias. O postulado de uma autonomia absoluta de pensamento e de ação para o Direito funda-se na atualização reiterada da teoria pura de Kelsen (2009[1934]), que afirma um corpo doutrinário e de regras completamente independente dos constrangimentos e das pressões sociais, sendo o Direito fundamento de si próprio. Em sentido diverso, consideramos que o Direito não goza do status de ser indiferente à história. As práticas do Direito estão implicadas em cada momento histórico com os mecanismos disciplinares e normalizadores, o que não elimina a possibilidade de se produzir uma construção jurídica como exercício de práticas não normalizadoras (FONSECA, 2012, 35). De acordo com Kant de Lima (2008, p. 13), o "mundo do direito" se constitui em domínio afirmado como esfera à parte das relações sociais, onde só penetram aqueles fatos que, de acordo com critérios formula-dos internamente, são considerados jurídicos. Observa Bourdieu (2010) que o campo do direito, por suas práticas e discursos, universaliza determinadas representações da normalidade ao canonizar determinadas práticas. Nesse sentido, ao mesmo tempo em que normaliza, exclui outras possibilidades dissidentes, não conformadas às regras. Essa universalização não se dá somente quando as conflitualidades são atravessadas pelo sistema de justiça, em processos judiciais, mas também quando é exercido o monopólio do direito de dizer a "verdade", segundo uma determinada compreensão peculiar aos seus agentes e teóricos, que se movem no terreno das certezas e dos valores absolutos, segundo a própria tradição do saber jurídico no Brasil (KANT DE LIMA, 2008, p. 13).
Feita essa introdução, apresentamos o modo de organizar o texto. No próximo item, desenhamos os traços essenciais do modo pelo qual foram coletados os manuais que compõem o corpus em análise. A seguir, tomando por base esses manuais de referência sobre os direitos humanos, presentes na bibliografia dos programas dos cursos de graduação em Direito, expusemos o panorama geral de como, nesses livros se conta a história dos direitos humanos. A partir desse painel de informações, apresentamos três marcas frequentes no modo de narrar a história dos direitos humanos: o estatuto da fonte histórica, a noção de evolução histórica e a pretensão de neutralidade. Ao final, explicitamos algumas considerações, ainda marcadas pela provisoriedade, dada a enorme dimensão do campo de pesquisa.
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