As reflexões acerca das relações entre religião e educação, ainda que significativas para o campo da sociologia da educação, parecem ser um capítulo pouco atraente para seus pesquisadores. Tema clássico no interior da sociologia e preocupação constante entre autores consagrados como Max Weber, Émile Durkheim, Pierre Bourdieu, entre outros, a religião tem perdido lugar, no campo educacional brasileiro, para investigações igualmente relevantes como a do currículo, formação de professores, gênero e/ou direitos humanos. Não obstante, trata-se de um assunto que revela aspectos expressivos e fundamentais do comportamento individual e grupal, assumindo diferentes facetas a partir do cruzamento de variáveis sociológicas, como origem social, gênero, etnia/raça, bem como geração e local de moradia. Ademais, em países com forte tradição religiosa, como o Brasil, em que elementos culturais são absorvidos por traços de uma religiosidade perene, cumpre investigar as formas que essas relações assumem nas maneiras de ser, agir e pensar de sua população.
Segundo estudiosos (PIERUCCI, 2008; SANCHIS, 2001, 2008; PIERUCCI; PRANDI, 1997, 2008; MONTERO, 2006; TEIXEIRA, 2003; BIRMAN, 2001, 2012; NOVAES, 2012; GIUMBELLI, 2011), o brasileiro vem expressando uma dinâmica religiosa intensa, com grande circulação interna entre denominações de cunho evangélico, bem como apresentando uma capacidade de repensar a cristandade, abandonando cultos católicos em direção a igrejas pentecostais ou neopentecostais, afirmando uma forte religiosidade, ainda que mais individualizada e afeita a interesses mundanos. De acordo com os últimos dados do Datafolha (2013), por ocasião da visita do Papa Francisco ao Brasil, 57% dos brasileiros disseram ser católicos; 19%, evangélicos pentecostais; 9%, evangélicos não pentecostais; e 3%, espiritualistas (Folha de S. Paulo, Especial, 22 de julho de 2013).1
As mulheres seguem sendo as mais religiosas; são as que mais transitam entre as religiões e, assim sendo, frequentam com mais assiduidade os cultos religiosos. Entre os jovens, a dinâmica é diversa; eles vêm perdendo a religiosidade que marca nossa cultura, principalmente nos centros urbanos, e o número daqueles que se dizem sem religião está entre os menos favorecidos e, paradoxalmente, entre os que possuem maiores títulos universitários. Todavia, os dados permitem afirmar que o brasileiro continua cultuando uma viva religiosidade e sobretudo cristã (NERI, 2011).
Assunto de cunho pessoal e muitas vezes carregado de simbolismo subjetivo, a religião é objeto insidioso e de difícil acesso ao pesquisador. Muitas vezes, em situação de entrevista ou questionário, a população se vê constrangida ao abordar sua crença e/ou sincretismos, dado que ela pode descortinar uma prática desvalorizada ou até proibida entre seus pares. Por certo, a religião, como qualquer outra variável de natureza sociológica, revela aspectos das hierarquias e controles sociais que o senso comum acaba por ocultar.
Assim sendo, creem-se oportunas a leitura, a análise e a síntese do conjunto de estudos analisados neste artigo, a fim de aprender com eles um pouco mais sobre as disposições religiosas da população brasileira e as estratégias voluntárias e/ou involuntárias de uma socialização que a predispõe a uma aberta cultura religiosa, quase uma segunda natureza, que se revela de maneira subliminar, no entanto constante. A leitura e análise desses documentos também podem nos informar sobre o que ainda nos falta conhecer sobre esse tema na área da educação.2
A pesquisa com os per iódicos
Num total de doze revistas (Quadro A), seis na área da educação, duas em sociologia, três em antropologia e uma em história, somaram-se 149 artigos e quinze resenhas (Quadro B).
A área da antropologia é a que possui a mais vasta produção, chegando a um total de 93 escritos,3 sendo 42 deles apresentados pela revista Religião e Sociedade. Por outro lado, a área da história se apresentou a menos produtiva, com um total de apenas seis escritos. Em sociologia, encontraram-se 24 documentos e, em educação, 26. Para a montagem do argumento, dar-se-á destaque apenas aos artigos, de forma a melhor circunscrever a produção de maior relevância sobre o tema que se propõe conhecer. Crê-se que, dessa forma, conseguir-se-á fazer uma apreensão próxima ao que se tem de mais novo e representativo na interface educação e religião entre os pesquisadores brasileiros.
A primeira leitura a partir do material levantado permitiu que se criassem três amplas categorias de análise. A intenção foi classificar os artigos de forma a organizar um mínimo de coerência interna entre eles. Muitos poderiam ser enquadrados em mais de uma categoria, mas o importante é sinalizar as ênfases de cada um deles. A primeira das categorias engloba artigos que refletem sobre as muitas Confissões Religiosas que convivem no Brasil. Trata-se dos estudos acerca da Igreja Católica, Igrejas Evangélicas, pentecostais ou neopentecostais, e Outras Religiões, tais como candomblé, kardecismo, umbanda, judaísmo, pajelança e budismo (49 artigos).4 O segundo grupo enquadra os textos acerca das relações entre a Dimensão Pública e Privada das Religiões, com artigos agrupados sob a subcategoria Política e Religião, Globalização e Pluralismo Religioso e Ensino Religioso (44 artigos). Por fim, há o grupo de artigos que traçam um panorama sobre Práticas e Comportamentos Religiosos, que versam sobre as comunidades religiosas e os métodos inovadores de divulgação da fé, principalmente através do turismo e da mídia (22 artigos).5
Confissões religiosas
A categoria aqui denominada Igreja Católica possui um número expressivo de artigos: vinte. Decerto tal interesse traduz a hegemonia desse grupo religioso no Brasil durante muito tempo, deixando marcas na cultura e nas formas de proselitismo. É visível que a preocupação da maioria das reflexões retrata a perda de fiéis (MAUÉS, 2003; CAMURÇA, 2010; SOUZA, 2007) e as consequentes estratégias de manutenção dos mesmos a partir de movimentos específicos como a Teologia da Libertação (SOFIATI, 2013), as Comunidades Eclesiais de Base (LEVY, 2009) e a Renovação Carismática Católica (MIRANDA, 2010). Grosso modo, é possível concluir que os pesquisadores percebem a história da identidade religiosa brasileira como profundamente dinâmica, que sofre desdobramentos marcantes com a chegada de missionários e imigrantes no Brasil até o presente momento (ALMEIDA, 2007; GONÇALVES, 2008; MONTERO, 2012 b; COLLEVATTI, 2009; ARAUJO, 2013). Para esses estudiosos, o catolicismo no país se apresenta enraizado, fazendo com que seu arsenal simbólico esteja presente tanto em religiões nacionais como estrangeiras (kardecismo, judaísmo, budismo); não obstante, estão atentos a estratégias de manutenção de fiéis (SANCHIS, 2001).
No que concerne à categoria denominada Igrejas Evangélicas, somam-se treze artigos. Os temas que mais se destacam são: a) a influência das igrejas evangélicas pentecostais no comportamento e na visão de mundo dos fiéis; b) em seguida, o interesse passa para as lideranças pastorais; e, por fim, c) artigos que analisam a presença/influência das igrejas evangélicas pentecostais na esfera pública.
De forma geral, os textos procuram compreender mecanismos de controle do comportamento individual e grupal da população evangélica, seja acerca da dimensão da homossexualidade (NATIVIDADE, 2006) e lazer (MESQUITA, 2007), seja no enfrentamento de adversidades (RIAL, 2008). Num esforço de síntese, a força da identidade coletiva pentecostal é discutida por Prandi (2008) e Algranti (2008). Um segundo grupo de artigos sobre as Igrejas Evangélicas se concentra na análise de personagens que representam lideranças em suas comunidades. Além da biografia dessas figuras, também se estuda o legado deixado por elas (CAMPOS, 2008; MAFRA et al., 2012). Ainda nessa direção, Campos (2011) nos ensina, a partir das figuras de Silas Malafaia e Ana Paula Valadão, que o carisma pentecostal pode ser aprendido e herdado; por fim, a força das lideranças é confirmada com a presença das redes transnacionais em Porto Alegre, Buenos Aires e Montevidéu, analisadas por Alves (2012).
O último grupo de artigos relaciona as igrejas evangélicas com sua presença na esfera pública; a produção do capital social ou uma rede de contatos é tema da discussão do artigo de Lehmann (2007) e a influência da denominação religiosa no momento do voto eleitoral é assunto discutido por Smiderle (2011); de forma mais ampla, por meio de dois estudos de caso, Birman (2012) conclui que houve uma reconstrução das fronteiras do religioso nas igrejas evangélicas, dado que, em seus cultos, práticas como magia, milagres e a sacralização de discursos passam a ser centrais entre seus fiéis.
A respeito da terceira categoria, denominada Outras Religiões, foram encontrados dezesseis artigos. Eles podem ser subdivididos entre: a) aqueles que tratam da temática das religiões de matrizes afro-brasileiras; b) trabalhos que se centram na questão espírita; e, por fim, c) estudos que retratam questões relativas a diferentes religiões.
As reflexões que discorrem sobre religiões afro-brasileiras ocupam-se com suas manifestações em espaços socioculturais diversos e suas dificuldades de adaptação (HALLOY, 2004; BAPTISTA, 2008; PALMIÉ, 2007), confirmando as relações de correspondência entre história local e religiosidade dos grupos. Destacam-se ainda o processo de legitimação do espiritismo como uma religião, bem como a sua diferenciação de um "baixo espiritismo" (GIUMBELLI, 2003). Segundo Lewgoy (2004, 2008), os grupos de estudos espíritas possuem grande influência na formação da identidade de seus frequentadores, tendo as figuras de João de Deus, bem como de Divaldo Franco, como emissários de um forte movimento de migração religiosa.
Em síntese, é possível observar que o interesse dos pesquisadores nesse tópico é a compreensão de uma identidade religiosa brasileira que ultrapassa fronteiras e constrói uma imagem que não tem mais o cristianismo como religião central, embora possua pontos de convergência com ele. As religiões de matrizes africanas ganham maior espaço por serem hoje reconhecidas como parte integrante da cultura/identidade nacional. O espiritismo aparece como fonte e modelo legítimo de uma religião que vem sendo exportada para outros lugares do mundo, principalmente onde há comunidade de brasileiros. No tocante às religiões com menos adeptos, elas são também aquelas sobre as quais os pesquisadores menos se debruçam, mas corroboram a compreensão da intensa dinâmica religiosa brasileira.
Dimensão pública e privada da religião
No que se refere ao tópico Dimensão Pública e Privada da Religião, englobamos os artigos que versam sobre Política e Religião, Globalização e Pluralismo Religioso e Ensino Religioso. Trata-se de uma tentativa de aproximar as questões mais contemporâneas que mobilizam os pesquisadores e que despertam o tom mais ideológico e conflituoso que a interface religião e educação evidenciou nos últimos anos.
Sobre política e re ligião
No que se refere à categoria Política e Religião, ao todo foram encontrados vinte artigos. Esse grupo pode ser subdividido entre: a) aqueles que tratam de aspectos históricos do processo de laicidade no Brasil, na Europa e na América Latina, fatos reveladores de uma época marcada pela modernidade e pelas democracias nacionais; b) um segundo subgrupo de pesquisas que salientam a contínua interface religião e política no Brasil; e, em terceiro lugar, c) estudos de caráter histórico e filosófico de natureza ampla e teórica. Para os interesses da reflexão, a atenção será especificamente aos tópicos a e b, pois eles marcam o matiz das discussões das demais categorias de análise deste estudo. São eles que anunciam a tensão relativa à articulação entre as esferas - educação e religião - e suas especificidades históricas.
Partindo do interesse de compreender o debate acerca da religiosidade e o processo de secularização e, em seu interior, o processo de laicização da sociedade e instituições brasileiras, observou-se inicialmente que há muito a bibliografia vem se ocupando desses temas. A complexidade das relações entre política e religião no Brasil data dos primórdios da proclamação da República, em finais do século XIX (MONTERO, 2012a; GIUMBELLI, 2008; LEITE, 2011), e permanece presente até hoje nas nossas Constituições e em nossas práticas institucionais (BARRETO, 2007; BOYER, 2008; CORTEN et al., 2007). Se existe certo desconforto por parte dos pesquisadores ao verificarem a frequente e ardilosa relação entre elas (SMILDE, 2012; GIUMBELLI, 2008; BURITY, 2008; BARRETO, 2007), seria forçoso lembrar, por outro lado, que analistas apontam que a articulação entre essas esferas sempre esteve presente nas formações sociais de maneira bastante generalizada (MONTERO, 2012a; CORTEN et al., 2007; NOVAES, 2012; PORTIER, 2011). Para eles, as formas de articulação entre política e religião e, por certo, os processos de laicização nunca foram lineares e homogêneos, sempre estando dependentes da história sociocultural de cada localidade. Assim, de certa forma, seria esperado que os impasses relativos à presença ou ausência de elementos religiosos no interior de instituições públicas fossem recorrentes no Brasil.
Nessa direção, as considerações de Martuccelli (2010) podem nos auxiliar. Isto é, refletindo sobre os Estados nacionais latino-americanos, o autor aponta a forte tradição de um poder indicativo, poder sui generis e modelado em uma administração estatal e ou governamental. Segundo
Martuccelli (2010), o poder indicativo se revela com a função central de anúncio de normas mais do que propriamente com a fiscalização de princípios que administram suas organizações. Assim sendo, na tradição do poder indicativo, a capacidade de anunciar propostas/leis dissocia-se frequentemente da capacidade efetiva de imposição ou cobrança das mesmas (MARTUCCELLI, 2010, p. 157). O caso da laicidade das instituições brasileiras poderia ser um exemplo de prescrição governamental à qual a população não atribuiu legitimidade.
É possível também observar que a bibliografia revela uma discussão acerca do futuro da religiosidade do brasileiro, dado que, num período de três décadas, o número de pessoas que declaram professar uma crença vem declinando, aliado ao significativo trânsito entre religiões (ORO; URETA, 2007), o que demonstraria pouco apego aos dogmas e mais apreço por uma religiosidade individual e subjetiva. Os embates atuais sobre as células-tronco e/ou o aborto, por exemplo, também são matéria dos artigos, numa espécie de tentativa de ambientar a religiosidade católica em tempos contemporâneos.
Em síntese, esse grupo de reflexões aponta que a articulação entre religião e política deriva de um processo histórico circunscrito e, portanto, deve-se fugir dos essencialismos que as expressões laicidade e religiosidade podem conter. Tratando-se de um tema desafiante, a interface entre as esferas impõe um espaço amplo para reflexões de natureza histórica e cultural (MONTERO, 2012a). O processo de secularização e a laicidade das sociedades deveriam ser compreendidos como fatos sociais dependentes de condicionamentos socioculturais (BURITY, 2008), muitos deles devedores de identidades étnicas (BOYER, 2008; NOVAES, 2012), ou mesmo como espaço de disputa entre interesses sociais diversos (MACHADO, 2012; WEREBE, 2004).
Sobre globalização e religião
A categoria Globalização e Religião apresenta um total de doze artigos. O grupo de textos explora o panorama religioso em condição de modernidade, bem como as implicações que esse novo momento histórico acarreta no campo das diferenças culturais e étnicas. Trata-se de um debate amplo, que auxilia a circunscrição da tensão e dos conflitos de interesse no que concerne aos direitos sociais, tanto no âmbito da educação formal como na esfera do político.
Esses artigos poderiam ser subdivididos em três subgrupos: a) o primeiro enquadra as discussões sobre pluralismo, trânsito religioso, individualismo religioso e sincretismo ou misturas de fé; b) o segundo subgrupo aborda questões relativas à tolerância e à diversidade religiosa ou cultural; e, por fim, c) um subgrupo que considera discussões mais dispersas e teóricas. Aqui o destaque será apenas aos itens a e b.
Grosso modo, as discussões apresentam o fenômeno religioso como algo dinâmico e em constante mutação. Uma pulsação latente que se revela no pluralismo e ou sincretismo de fé e crenças. Segundo autores, as pesquisas estatísticas e ou surveys são incapazes de expressar a ativa e enérgica religiosidade do brasileiro (NEGRÃO, 2008; ALMEIDA, 2004). O trânsito entre agrupamentos religiosos, a participação esporádica entre vários agrupamentos de fé, a pluralidade de crenças nos ambientes familiares, evangélicos e católicos, bem como católicos e de tradição afro, construiriam um espaço de religiosidade diversa, híbrida e/ou sincrética (FRIGERIO, 2008; NEGRÃO, 2008; ALMEIDA, 2004). Por outro lado, a modernidade traria em seu bojo uma série de transformações em que a religiosidade institucionalizada e, portanto, mais tradicional, estaria sendo minada por uma expressão mais subjetiva e individualizada (MACHADO, 2010; ZEPEDA, 2010; SCHWADE, 2011; ALMEIDA, 2004). De certa forma, o conjunto desses artigos tangencia as discussões travadas no bloco Política e Religião, pois avalia o quanto a ideia da pluralidade religiosa implica uma maior tolerância cultural e ética diante de uma religiosidade hegemônica, reflexão necessária e oportuna para os ambientes escolares (ANDRADE, 2011). Novamente as questões difusas de caráter político enquanto defesa da liberdade, democracia e tolerância, bem como questões de caráter mais formal, com a presença de partidos e lobby, destacam certa novidade no universo em tela.
Sobre ensino religioso
Não obstante, o presente conjunto de artigos difere bastante dos anteriores. Ou seja, como era esperado, a categoria de artigos intitulada Ensino Religioso é o assunto que desperta maior atenção entre os sociólogos da educação. Diferente das discussões já consideradas, matéria de interesse sobretudo de antropólogos e/ou sociólogos da religião, os dez artigos aqui encontrados possuem espaço garantido em revistas da área da educação. Nesse grupo, destaca-se um autor, Luiz Antonio Cunha (2006, 2007, 2009, 2012, 2013), professor titular da Universidade Federal Fluminense e Universidade Federal do Rio de Janeiro, que apresenta cinco artigos sobre o tema, quatro solo e um em coautoria.
A tônica da discussão concentra-se na ambiguidade da lei e incisos relativos ao ensino religioso nas escolas públicas brasileiras. Cury (2004), Pauly (2004), Cunha e Fernandes (2012), Fischmann (2009) e Cunha (2009) discutem o movimento pendular entre a presença difusa e/ou explícita da religião católica nas escolas. Os textos também abordam à exaustão o embaraço epistemológico, político e religioso do processo de laicidade do Estado, a partir das muitas constituições brasileiras (1891-1934-1969-1988-1997), a formação de lobbies religiosos nas bancadas legislativas (DICKIE; LURI, 2007; CAMPOS, 2011), a emergência de organizações de natureza civil, mas com presença expressiva nas decisões relativas às políticas públicas sobre o ensino religioso e, por fim, mas não por ordem de importância, a edição de material didático para as escolas sobre o tema (GIUMBELLI, 2012).
Assim sendo, cumpre salientar que as reflexões acima: a) sinalizam, de maneira pertinente, uma preocupação com o proselitismo religioso da religião hegemônica no Brasil, ou seja, a cristã; b) denunciam a prática aberta de assimetrias entre as religiões; c) demonstram a força e a influência do campo religioso no universo educacional brasileiro; bem como d) evidenciam uma forte orquestração política e religiosa para a manutenção dessas práticas.
Contudo, seria oportuno revelar que, ainda que seja importante a problematização desse embaraço histórico e epistemológico verificado na interface religião e educação no Brasil, as discussões não levam em consideração a perspectiva processual e cultural do fenômeno religioso brasileiro. Isto é, observa-se uma visão que acaba por reificar os sentidos das noções de laicidade e secularização, desconsiderando as condições de caráter sócio-histórico que se vivencia no Brasil. Julga-se que uma leitura mais dinâmica e socioantropológica desse processo poderia trazer luzes sobre os entraves, dificuldades e tensões nesse campo de investigação.
Ademais, estudos realizados no interior da escola tendo como sujeitos da pesquisa professores (CAVALIERE, 2006; VALENTE, 2015), bem como investigações realizadas com estudantes do curso de pedagogia (KNOBLAUCH, 2014), vêm demonstrando que as interferências religiosas no universo educacional brasileiro vêm se mantendo, em função não só de todas as razões acima reveladas, mas também da participação dos agentes escolares prenhes de uma religiosidade sincrética, que admitem e legitimam valores religiosos no interior da escola.
Sobre práticas e comportamentos religiosos
Vale sinalizar, contudo, que, ainda que a grande maioria dos artigos encontrados no período entre 2003 a 2013 se enquadre nas mudanças pelas quais a dimensão religiosa vem passando no último quartel do século - ou seja, seu pluralismo, sincretismo e mesmo a fragilização da experiência totalizadora das religiões -, cumpre lembrar que a modernidade convive com fortes comunidades de fé de maneira ainda bastante tradicional. Esse seria o caso do último conjunto de artigos, categorizados como Práticas e Comportamentos Religiosos e seus métodos de divulgação.
Ou seja, são reflexões que se dispuseram a pensar sobre a capacidade de os grupos influenciarem seus fiéis a partir de uma série de estratégias de controle. Difusas ou voluntárias, tais estratégias de iniciação, interiorização e/ou prescrição movem muitos indivíduos na direção de uma fé que fortalece traços étnicos, culturais e/ou identitários (TOPEL, 2003; RICKLI, 2004; DROOGERS, 2008; FERREIRA, 2009; CAMPOS, 2011; SEGATO, 2007). De uma maneira mais explícita, outro grupo de artigos considera a força da religião no controle de comportamentos e nas práticas cotidianas, reforçando a ideia de comunidade de sentido, que algumas religiões ainda possuem na contemporaneidade (LUNA, 2008; THEIJE, 2008; BIRMAN; MACHADO, 2012; MENESES; GOMES, 2011).
No que se refere a novas estratégias de divulgação das religiões, vale ressaltar que se trata de um tema emergente. Quatro artigos destacam o turismo religioso no Brasil e sua dimensão festiva e mercadológica. São, na maioria das vezes, estudos etnográficos em festividades como a Semana Santa em Tiradentes, Minas Gerais (CAMURÇA; GIOVANNINI, 2003), a Festa do Divino Espírito Santo, no Rio de Janeiro (GONÇALVES; CONSTINS, 2008), e o Círio de Nazaré, no Pará (LOPES, 2011). Somado a esse trio, um artigo se debruça sobre os caminhos de peregrinação que hoje atraem diferentes tipos de turistas (STEIL; CARNEIRO, 2008). Outro ponto em comum que se destaca nesses artigos é a circulação, a peregrinação e as relações sociais, três elementos inequivocamente coletivos, mas que prescrevem simultaneamente uma forma de agenciamento identitário e de busca pelo verdadeiro eu.
No que concerne aos estudos sobre imagens, somam-se temas variados como: os ex-votos, pequenos quadros, no século XVIII (ABREU, 2005); o surgimento de uma nova tradição religiosa que combina elementos católicos com indígenas (SEVERI, 2008); a exposição estética de imagens (LATOUR, 2008); e, por fim, a produção e reprodução de santinhos de papel ou compósitos de imagem-texto, retratada no artigo de Menezes (2011).
Entre as estratégias que fazem uso da música, a questão da etnia e da aceitação da negritude nas comunidades evangélicas é abordada no texto de Pinheiro (2007). A complexidade identitária de Mr. Catra, funkeiro carioca, mostra como a religiosidade pode coexistir com aquilo que é considerado profano, como a erotização do corpo, o uso de substâncias ilícitas e a manifestação política, no estudo de Mizrahi (2007). O papel central dos hinos ou cânticos no Santo Daime e a forma como seus adeptos percebem suas construções é temática de Rehen (2007). Por fim, o texto de Rosas (2013) expõe os bastidores das disputas por espaços públicos entre as igrejas evangélicas e suas forças na mídia brasileira.
Considerações finais
De um total de 149 documentos encontrados entre 2003 a 2013, em periódicos de estrita seleção, foi possível examinar de maneira mais detida 115 deles. A análise registrada dividiu-os em três categorias e, então, procurou mapear os interesses temáticos e os impasses históricos da interface religião e educação no Brasil, sinalizados por pesquisadores da área, nos últimos dez anos. Contudo, o restante dos 34 outros textos, por tratarem de temas distantes dos objetivos deste estudo, serão apenas registrados em subgrupos no final deste artigo, a fim de informar o leitor sobre sua variedade.
Por outro lado, para finalizar essa iniciativa, procurou-se também sistematizar a leitura dos mesmos textos a fim de contribuir para a compreensão das disposições religiosas dos brasileiros, bem como dos processos socioinstitucionais que corroboram essa singularidade. Este artigo, privilegiando a interface religião e educação, busca compreender nossas maneiras de ser e agir na dimensão do sagrado, na tentativa de subsidiar outras investigações na área.
Desta feita, a leitura final dos artigos auxilia-nos a compreender que o campo das religiões no Brasil vem respondendo gradualmente às inflexões dos tempos modernos. Ou seja, o fenômeno da mundialização da cultura atravessou as práticas religiosas institucionais e individuais, sinalizando uma nova configuração entre seus agentes e valores. Ao mesmo tempo em que se observa um maior trânsito de fiéis entre as religiões tradicionais, verifica-se também um maior pluralismo, maior individualismo nas escolhas e, por fim, uma circulação e tolerância a novas formas do sagrado. Ademais, paralela a essa movimentação de fiéis, identifica-se ainda a permanência de grupos religiosos conservadores que mantêm um rígido controle de seus adeptos, uma forma de advertir que, em condição de modernidade, a religião atua tanto como solvente (WEBER, 1991) quanto como cimento das relações sociais (DURKHEIM, 2009). A religião continua influenciando as práticas de cultura do brasileiro (SETTON, 2012).
De certa forma, as conclusões auxiliam-nos a compreender a tensão dessa interface - religião e educação -, notadamente a tensão entre a esfera dos valores religiosos e a da vida privada. Se inicialmente a leitura revela uma reconfiguração das práticas religiosas, a saber: identifica uma rede de sentidos ora menos ou mais institucionalizadas, não deixa de apontar a intensidade da religiosidade do brasileiro; por outro lado, os mesmos textos indicam que, numa tentativa de reconquistar espaço, tanto as igrejas evangélicas como a Igreja Católica vêm assumindo práticas mais agressivas para ocupar ou se manter no cenário religioso, recorrendo muitas vezes a estratégias de ordem político-institucional.
As ações de grupos confessionais - visíveis no espaço público na ocasião das eleições, mobilizados em bancadas e lobbies - corroboram um imaginário coletivo religioso em disputa. Promovendo uma confluência entre as esferas do político na sua dimensão pública e a esfera do privado, os agentes religiosos ocupam um espaço no debate acerca do direito às diferenças e ao multiculturalismo, ora demandando políticas públicas como a luta pelo ensino religioso nas escolas, ora advogando espaço nas reflexões acerca da saúde pública, por exemplo, nas questões relativas ao aborto ou às células-tronco. As controvérsias entre religião e política parecem atravessar essas dimensões, mobilizando questões morais, éticas e até mesmo a garantia de um Estado laico.
Visualiza-se uma reconfiguração do religioso que aponta para uma maior complexidade das relações institucionais e individuais dessa dimensão. Ao mesmo tempo em que as religiões perdem força na construção da identidade dos indivíduos, em função do pluralismo e trânsito religioso dos fiéis, essas mesmas instituições buscam esquadrinhar visibilidade midiática e legitimidade ao adaptar-se às demandas existenciais da modernidade, bem como procuram defender seus interesses nas instâncias políticas democráticas. Mobilizados, articulados e bem relacionados, os grupos evangélicos e católicos aos poucos conquistam espaço político que a maioria da população secularizada, decerto, deixa à deriva.
De fato, a síntese que se pode fazer dessas leituras aponta para uma nova estruturação do campo religioso brasileiro, em que é visível certa fissura entre os grupos institucionalizados desse universo e as práticas de seus fiéis. Menos religião e mais religiosidade, dado que as religiões institucionalizadas não vêm conseguindo assegurar à população conforto espiritual e respostas às questões individuais. Contudo, dado que a ausência de respostas é uma condição e uma tradição da maior parte das instituições sociais brasileiras (MARTUCCELLI, 2007), cabe ao próprio indivíduo buscar soluções para seus problemas existenciais. Assim, duas noções que dialogam, mas que não expressam o mesmo sentido, como religião e religiosidade, devem fazer parte do instrumental conceitual de novas investigações. Seguindo os ensinamentos de Simmel (2011), entende-se aqui religião como um aparato institucional de uma crença; por outro lado, considera-se religiosidade toda forma de espiritualidade presente em muitos indivíduos, que não deriva de uma religião específica, apresentando-se, pois, com conteúdos diversos não necessariamente institucionalizados.
Por fim, analisando os artigos a partir do enfoque da sociologia da educação e da sociologia da cultura, é forçoso enfatizar ainda o caráter interdisciplinar que a discussão em tela impõe. Considerando a esfera da religião como uma relevante agência produtora de valores disposicionais e educativos, não é possível separá-la de uma diversidade de maneiras de ser, agir e pensar da condição moderna. Dessa forma, as áreas da educação e da cultura devem muito às discussões estabelecidas nas investigações da antropologia, sociologia e história. Sem a articulação e a leitura articulada desses textos, não teria sido possível identificar a dinâmica cultural perene da dimensão religiosa no Brasil. Em outras palavras, ao lado da fragilização das religiões institucionalizadas, é possível verificar a manutenção de uma forte religiosidade de nossa população. Os estudiosos da sociologia da educação, portanto, deveriam explorar melhor esse campo de investigação. Assim sendo, os pesquisadores que enfrentam o debate sobre laicidade e ensino religioso deveriam dar mais atenção à configuração cultural brasileira e a uma religiosidade que a atravessa há anos.