INTRODUÇÃO
A estratégia do governo federal em descentralizar recursos para os programas educacionais, voltados ao Ensino Básico, depende do interesse e da capacidade estatal dos entes subnacionais em implementá-los. Para que o dinheiro transferido produza resultados concretos para as comunidades beneficiadas, é preciso que estados e municípios possuam estrutura administrativa para realizar a compra de bens e contratar serviços ou, pelo menos, prestar assistência técnica às comunidades para que elas mesmas construam soluções para seus problemas comuns. Além disso, também precisam considerar legítimas as demandas dirigidas ao Estado e concordar quanto à necessidade de desenvolver políticas (ARRETCHE, 2006). Contraditoriamente, a parcela da população que mais necessita do poder público para superar a situação de exclusão social, a fatia que foi vítima historicamente de discriminação na distribuição de serviços e recursos públicos, costuma residir em cidades pequenas e com baixa capacidade estatal. Nessas situações, a estratégia de descentralização de recursos pode não ser eficaz para beneficiar tais comunidades.
O artigo analisa a questão a partir da experiência do Programa Dinheiro Direto na Escola (PDDE). Com base em dados do Censo da Educação Básica (BRASIL, 2019) e em informações de saldo e repasse de valores realizados pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), em 2019, este artigo avalia a eficácia do PDDE em comunidades indígenas, quilombolas e assentamentos. A razão para selecionar o PDDE deve-se ao modelo simplificado de execução do programa, que dispensa processos licitatórios, e ao fato de ele se direcionar a todas as escolas do ensino básico. São poucas as exigências para que as escolas tenham direito a receber os recursos: a administração estadual ou municipal deve realizar adesão ao programa, atualizar anualmente o cadastro e enviar ao FNDE a prestação de contas sobre como foram usados os recursos. Diante do modelo simplificado de execução, não há razão para os municípios e estados não aderirem a ele e, tampouco, tendo recebido o dinheiro, não o empregarem. A capacidade administrativa exigida é mínima, pois mesmo a prestação de contas é um processo simplificado, completamente automatizado. Além disso, a flexibilidade do PDDE permite que as comunidades escolares empreguem o dinheiro para adequar material didático e desenvolver atividades didático-pedagógicas compatíveis com as características socioculturais do corpo docente e discente. Em razão de sua flexibilidade, o programa não chega a ser uma política do governo federal voltada para um público específico. No entanto, o PDDE pode ser usado para reforçar as ações locais, inclusive iniciativas da própria comunidade escolar.
O objetivo do texto é discutir se esse modelo de descentralização de recursos contribui para melhorar a realidade de comunidades tradicionais, historicamente excluídas do acesso aos recursos e serviços públicos. A hipótese é que essas comunidades consideradas prioritárias se encontram situadas em municípios com baixa capacidade estatal e que, por essa razão, apresentam maior dificuldade em desenvolver políticas educacionais diferenciadas. Mesmo programas com um modelo operacional simplificado, como o PDDE, podem não produzir resultados concretos, pois esbarram no interesse dos gestores locais em implementá-los e também na limitada capacidade estatal dos entes federados.
Para o desenvolvimento dessa hipótese, o texto dialoga com a teoria do Estado racial (GOLDBERG, 2002). O Estado racial consiste não somente nas agências, burocracias e legislações, mas também nos princípios, nos valores, nas políticas, nas instituições e nos indivíduos que permitem e viabilizam a administração estatal. Pode-se acionar essa teoria para pensar a formação da identidade nacional, os fluxos populacionais, a construção de instituições, aparatos e funções estatais. O Estado não é somente racial no sentido de que atua diretamente na regulamentação de uma população em um determinado território, mas também pode ser um estado racista ao garantir inclusões e exclusões diferenciadas aos grupos raciais do seu território. Em outras palavras, o Estado racial pode ser descrito como racista porque ocupa uma posição estrutural na produção e reprodução de desigualdades, na constituição e efetivação de espaços e lugares racialmente formados, nos acessos e restrições, nas possibilidades e no gerenciamento da vida e nas concepções e modos de representação da vida.
Portanto, ao se discutir a execução do PDDE junto a comunidades indígenas, quilombolas e assentamentos, o objetivo não é somente avaliar a estrita e supostamente técnica capacidade estatal do município, mas, sim, levar em consideração a passividade e omissão do Estado em suas dimensões federal, estadual e municipal frente à não execução do programa. Obviamente, não se trata de desresponsabilizar os atores sociais que estão na ponta da execução do programa, mas de se questionar o quanto há de omissão por parte do Estado em decorrência de a não execução do orçamento ocorrer justamente em comunidades racializadas de indígenas, quilombolas e população assentada, esta última composta em sua ampla maioria por pessoas não brancas.
O desenvolvimento de políticas específicas para as comunidades tradicionais exige maior coordenação e cooperação dos três níveis de gestão para executá-las; em outras palavras, exige maior esforço da administração pública para compreender a especificidade dos públicos assistidos e para pensar soluções locais. Clarice Cohn (2005), ao estudar a educação indígena, observa que os indígenas no Brasil são uma pluralidade de etnias e culturas, falam mais de uma centena de línguas e, para que tivessem acesso a um ensino diferenciado, seria necessário adequar materiais e currículos específicos, treinar profissionais, etc.; enfim, para tanto se exigiria o desenvolvimento de uma metodologia de ensino e de um material didático compatíveis com a cultura, a língua e os processos de educação e aprendizagem específicos de cada nação indígena. A antropóloga observa que algumas línguas indígenas são ágrafas e, para que possam ser incluídas no ensino formal, é preciso criar uma grafia própria. Acrescenta que é difícil registrar por escrito conhecimentos que, “originalmente, não são congelados em forma de texto, mas, ao contrário, recriados continuamente na produção oral” (COHN, 2005, p. 490).
Desafios semelhantes aos que estão enunciados, para efetivar educação diferenciada, específica e intercultural para os indígenas, repetem-se em relação aos quilombolas e a outras comunidades tradicionais. A situação dos quilombos é ainda mais grave que a indígena, pois a legislação que trata da questão fundiária dos territórios dos quilombos é recente. Como destacam alguns autores, o termo “quilombo” praticamente desapareceu da legislação brasileira para reaparecer somente na Constituição de 1988. O silêncio foi acompanhado pela ausência de políticas reparatórias ou indenizatórias que garantissem a posse dos territórios em que residiam, assim como pela falta de acesso a serviços públicos básicos. Nos anos 1990, houve intensa discussão sobre o conceito expresso na Constituição, “remanescentes de quilombos”3, porque se relacionava ao direito territorial. A legalização dos territórios ocupados passou a depender da comprovação da descendência de quilombos, até que o Decreto nº 4.887/2003 (BRASIL, 2003) regulamentou o procedimento necessário para titulação das terras; no entanto, obstáculos burocrático-administrativos continuam a atrasar e dificultar o reconhecimento e a demarcação das comunidades quilombolas, tanto que, em levantamento realizado por Santana (2018), foi apontado que apenas 1,96% das comunidades quilombolas tiveram seus títulos de terras emitidos pela União.
Por essa razão, a oferta da educação diferenciada nessas escolas é uma aspiração que se relaciona à resistência por permanecerem em seus territórios e pelo reconhecimento de sua identidade étnica. A educação diferenciada é uma forma de a comunidade manter vivos os vínculos identitários entre seus membros e lutar pela permanência nos territórios onde moram. Assim como os indígenas, as comunidades quilombolas reivindicam educação diferenciada, que respeite suas tradições, que incorpore o saber da comunidade e as suas manifestações culturais e que contribua para promover o respeito à diversidade cultural e racial. De modo geral, pode-se afirmar que o funcionamento das escolas se entrelaça com a luta por reconhecimento da cultura e do modo de vida das populações tradicionais.
Embora suas reivindicações sejam extremamente justas, considerando que se trata de um público historicamente discriminado e vítima de violentos processos de conflito pela posse da terra, para atender suas demandas é necessário maior esforço da máquina administrativa do Estado para construir uma educação diferenciada. São comunidades que estão espalhadas por todo o território nacional, algumas com população muito pequena, o que torna o processo ainda mais complexo para que a gestão pública faça funcionar uma escola e desenvolva material didático-pedagógico específico para um número reduzido de estudantes. No entanto, são cidadãos brasileiros que têm o direito a usufruir de um ensino público e de qualidade, que respeite a sua língua, tradição e cultura, conforme prevê a legislação. A questão que o texto levanta, portanto, é se os programas universais de descentralização de recursos do governo federal serão suficientes para compensar o déficit de capacidade estatal dos entes federados e garantir um ensino de qualidade, ou se seria melhor desenvolver programas educacionais específicos, de forma a atender as reivindicações dessas comunidades.
A transferência de recursos não garante que o dinheiro seja empregado, tampouco que seja usado para garantir um ensino diferenciado. O dinheiro transferido pode simplesmente ficar parado em contas das secretarias de educação, prefeituras, ou mesmo das escolas, sem ser usado e sem resultar em benefícios concretos. A capacidade estatal é apenas uma das variáveis a interferir na possibilidade de os recursos se transformarem em bens e serviços para as comunidades. A transferência de recursos também depende da anuência das administrações estaduais e municipais em desenvolverem políticas específicas e reconhecerem o direito dessas comunidades de residirem nos territórios que ocupam. Portanto, tão importante quanto a capacidade estatal, o reconhecimento do direito a um modo diferenciado de existência das comunidades indígenas, quilombolas e assentadas também é tema central para uma efetividade do Programa. Arruti (2009) ressalta, por exemplo, que comunidades quilombolas foram, historicamente, discriminadas pelas populações e pelos governos locais - a afirmação também se estende para os indígenas e assentados. Evidência disso é o tratamento que recebem ao recorrerem à justiça pela documentação de suas terras.
É necessário reconhecer que a grande maioria das comunidades quilombolas foi excluída da educação formal, assim como da participação nas esferas de tomada de decisão, de debate ou mesmo, em alguns casos, foi excluída da simples sociabilidade municipal, em função de processos de segregação profundamente arraigados (ARRUTI, 2009, p. 29).
Por essa razão, a transferência de dinheiro pode não ser uma estratégia governamental eficaz para modificar a situação de exclusão e garantir o acesso universal ao ensino básico e de qualidade para comunidades tradicionais. Para haver a transformação da realidade dessas comunidades, é preciso que o governo se comprometa com os resultados. São populações que exigem maior esforço administrativo do Estado para alcançá-las e maior articulação entre os entes federados para prover serviços de qualidade, conforme suas necessidades. Como diz Amélia Cohn (1999), não é apenas a pobreza que deve ser enfrentada, as políticas precisam ser construídas na perspectiva de superar as desigualdades sociais; por isso, é necessário haver uma mudança na maneira de tratar a questão social. No caso, uma das formas para se alcançar esse objetivo é o desenvolvimento de programas e políticas sociais que levem em consideração a especificidade das mencionadas comunidades.
A descentralização sempre foi associada a formas mais ágeis, democráticas e eficientes de gestão. Possibilita maior controle da sociedade sobre a execução dos recursos e proximidade com as demandas específicas das localidades beneficiadas. No entanto, a descentralização joga para a ponta o desafio de executar o programa, como se a etapa de execução fosse elementar. Não é demais repetir a tese de Hill (2006), segundo a qual, na execução, surgem inúmeras situações, conflitos e negociações não previstas pelos formuladores da política, que terão que ser resolvidos pelos implementadores. No caso brasileiro, há municípios com baixa capacidade estatal que foram elevados à condição de entes federados autônomos, mas que não possuem sequer condições para manter o funcionamento de uma burocracia mínima. Além disso, por trás das questões técnico-burocráticas que podem dificultar o funcionamento de escolas situadas em comunidades historicamente discriminadas e marcadas pela carência econômica, pode haver também a concepção racializada de que uns devem ser bem assistidos pelos programas governamentais, enquanto outros não merecem o mesmo tratamento, ficando presos a um círculo vicioso de pobreza e ineficiência. Se o Estado desempenha uma função estrutural na produção e reprodução de desigualdades, o seu descompromisso com resultados na execução de determinados programas talvez não devesse ser visto somente pela ótica da capacidade estatal e sua eficiência, mas pensado em conjunto com a categoria que historicamente serviu para delimitar as fronteiras do Estado: a racial.
CAPACIDADE ESTATAL E QUESTÕES RACIAIS
Historicamente, o Estado brasileiro se constituiu excluindo parcela considerável de sua população. As populações isoladas no interior do País foram deixadas à margem do acesso a serviços públicos básicos, como educação, saúde, previdência, dentre outros. A razão, em parte, explica-se pela variável capacidade estatal: não se pode desconsiderar que, para alcançar essas populações isoladas4, seria necessário esforço maior da máquina do Estado para levar serviços públicos e adequá-los às características socioculturais das inúmeras nações que habitam seu território. Em um país com dimensões continentais como o Brasil, foi difícil para o Estado até mesmo estabelecer canais de comunicação com populações distanciadas dos grandes centros políticos e econômicos. No entanto, a ausência do Estado entre populações mais longínquas do centro explica-se não somente por uma dimensão geográfica, como também por uma visão de mundo que não reconhece a existência do outro. Indígenas e quilombolas, por exemplo, não tiveram suas existências plenamente reconhecidas, sendo seus territórios pensados como "terras vazias", não habitadas, aquém da modernidade e do desenvolvimento; portanto, "terras vazias" à disposição dos grandes projetos do capitalismo transnacional. A essa representação da territorialidade quilombola e indígena como "terras vazias" somaram-se também representações sociais que não reconheciam a plena humanidade desses sujeitos, relegando-os a uma zona não humana ou sub-humana, não sendo, assim, pensados como possíveis beneficiários de determinadas políticas públicas. Não se trata apenas de dispor de recursos financeiros necessários, mas não suficientes, para garantir a eficácia e efetividade das políticas. É preciso considerar as concepções e os modos de representação da vida que estão em jogo. Por que se naturaliza a exclusão de determinados grupos sociais? Por que a exclusão de outros não causa desconforto? O que está em jogo quando se aceita a precariedade de uns e não se aceita a precariedade de outros?
Frantz Fanon (2006, 2008) deparava-se com reflexões semelhantes quando formulou a ideia de maniqueísmo do mundo colonial. Para ele, o homem branco habitava a zona do ser, enquanto o homem negro habitava a zona do não ser. Portanto, parece que, antes de uma discussão sobre capacidade estatal ou, até mesmo, status de cidadania, uma questão primeira se coloca: a ontologia do negro, do quilombola, do indígena e do assentado. Seriam esses habitantes da zona do ser? Desfrutariam do mesmo status de humanidade? Essas reflexões levam a uma análise mais profunda dos programas estatais, em geral, e do PDDE, em particular, entrelaçando os conceitos de capacidade estatal e Estado racial para avaliar o alcance das políticas públicas educacionais em comunidades indígenas, quilombolas e assentamentos.
Embora se possa deparar com vestígios da teorização sobre o Estado racial numa grande tradição de pesquisadores (DUSSEL, 1994; WINANT; OMI, 1994; MILLS, 1997), essa teoria é encontrada de forma mais sintetizada por Theo Goldberg (2002). A principal contribuição dessa teorização é o reconhecimento da centralidade da raça na constituição dos Estados modernos. Não somente as instituições estatais stricto sensu, mas também as legislações, os programas, as políticas, os princípios, os valores e os próprios agentes públicos são racializados. A evidência mais explícita de um Estado racial é a sua participação na produção e reprodução da identidade nacional, controlando, por exemplo, os fluxos demográficos e sua participação ativa na construção da nacionalidade. Via de regra, esse processo histórico foi acompanhado de inclusões, preferências, bem como de exclusões, o que permite dizer que o Estado não é somente racial, mas também racista. O Estado também é racista porque desempenha um papel central na produção e reprodução das desigualdades, na constituição de espaços e lugares racialmente formados, nos acessos e nas restrições etc. (GOLDBERG, 2002). Na história da formação da república brasileira, foi evidente a participação do Estado nos processos de exclusão e segregação das populações indígenas e quilombolas, bem como das populações de assentados, em sua ampla maioria formada por pessoas não brancas.
Importante ressaltar que o Estado racial não é uma instância separada e distante dos sujeitos. Ao contrário, a efetividade de seu poder social dá-se em virtude de uma simbiose com os sujeitos sociais. Pode-se ver sua efetividade ao atuar no processo de construção dos sujeitos, sem necessidade de se constituir como uma força externa ou uma imposição institucional. Em outras palavras, o Estado racial atua na constituição das subjetividades dos indivíduos, fazendo com que sejam sujeitos do Estado e, ao mesmo tempo, sujeitos ao Estado (GOLDBERG, 2003).
Entender a dimensão simbiótica entre os sujeitos sociais e o Estado racial é fundamental para se compreender o próprio olhar naturalizado sobre a capacidade estatal frente às comunidades indígenas, quilombolas e assentadas. Afinal de contas, talvez, de acordo com as representações sociais hegemônicas, esses sujeitos não tenham nascido para percorrer a trajetória escolar e contribuir com a produção de conhecimento que se dá nas universidades, por exemplo, ou não tenham nascido para contribuir com a vida pública e/ou econômica do País. São essas reflexões que levam a pensar que o tema da capacidade estatal está imbricado com a dimensão racial.
Via de regra, as discussões sobre capacidade estatal não estão articuladas com a dimensão racial, sugerindo que o Estado seria uma instância neutra racialmente. Foi isso que prevaleceu durante a vigência do mito da democracia racial e ainda hoje se perpetua, uma vez que nem todos estão convencidos do peso estrutural da raça na vida social. O Estado concebia-se como racialmente neutro, supunha condições igualitárias de concorrência e não diferenciava o público das suas políticas, o que resultou, em muitos casos, na reprodução ou até mesmo no aumento das desigualdades raciais.
Aguiar e Lima (2019) realizaram ampla revisão da literatura produzida no Brasil e no exterior sobre a capacidade estatal e concluíram que o aspecto mais enfatizado dos estudos é a dimensão burocrática, que ressalta a necessidade do Estado de dispor de “um quadro de profissionais qualificados, com perspectivas de carreira, que compartilham uma dada percepção acerca dos objetivos e da desejabilidade de intervenção” (AGUIAR; LIMA, 2019, p. 8). Outras dimensões exploradas nos estudos brasileiros sobre o conceito, conforme esses autores, são a relacional - a habilidade das burocracias estatais de se conectarem com diferentes grupos ou mobilizarem recursos políticos; a de coordenação - a competência para interagir e construir políticas em conjunto com entes governamentais, ou destes com representantes da sociedade civil; e, por fim, a capacidade de construir consensos, negociando diferentes interesses e construindo políticas em comum. No entanto, há autores (CARBONETTI, 2012; HANSON; SIGMAN, 2013) que separaram da dimensão técnico-administrativa a fiscal - que se relaciona com a competência para arrecadar tributos necessários para cobrir suas despesas e realizar investimentos; e a coercitiva, que significa o poder do Estado em dispor de força militar para garantir segurança e fazer respeitar o ordenamento jurídico.
Gomide e Pires (2014) reúnem essas várias dimensões em dois eixos principais: o técnico-administrativo (que diz respeito à competência dos agentes de Estado para elaborar, implementar e coordenar políticas públicas) e o político, que “refere-se às habilidadesda burocracia do Executivo em expandir os canais de interlocução, negociação com os diversos atores sociais, processando conflitos e prevenindo a captura por interesses específicos” (GOMIDE; PIRES, 2014, p. 20). Kjaer, Hansen e Thomsen (2002) resumem essas dimensões com outras palavras, mas de maneira semelhante, em duas grandes variáveis: estrutura e agência. Na primeira dimensão, os recursos e a organização burocrático-administrativa do Estado; na segunda, os aspectos relacionais, a competência de dialogar com diversos atores, desenhar políticas e construir arranjos institucionais.
No conjunto de variáveis que podem influenciar o Estado na elaboração e gestão de políticas públicas, merece atenção a proposição de Carbonetti (2012), quando diz que poucos exploraram de que forma os recursos naturais, a geografia e o clima se relacionam aos aspectos institucionais para ampliar ou não a capacidade estatal. Ele explica que dispor de recursos naturais, por exemplo, possibilita ao Estado ser autônomo numa economia globalizada, assim como os capitais humano e social facilitam que a administração pública selecione profissionais habilitados para integrar a burocracia e obter a participação da sociedade na gestão e execução de políticas. Por outro lado, essas mesmas variáveis podem dificultar o funcionamento da máquina estatal.
Inquestionavelmente, todas essas dimensões elencadas pela bibliografia para pensar a capacidade estatal são fundamentais. Entretanto, causa surpresa a ausência de considerações sobre raça como uma das dimensões do conceito. Carbonetti (2012) trata indiretamente da questão racial ao incluí-la como um componente de capital social, este, sim, constituinte de capacidade estatal. Argumenta que quanto mais divisões raciais há numa sociedade, maiores serão os desafios para desenvolver o capital social. No entanto, ele não se atém ao problema do quanto a própria burocracia do Estado pode não ser politicamente sensível para pensar ações específicas para públicos racializados, ou seja, ele não dá a devida atenção às dimensões valorativas e raciais que direcionam a ação dos atores e, assim, do próprio Estado.
No Brasil, historicamente, o Estado nacional sempre teve dificuldade em desenvolver políticas sociais específicas para as chamadas populações tradicionais, principalmente aquelas afastadas geográfica e simbolicamente do centro. A extensão territorial do Brasil, a diversidade de nações que o integram e a dispersão da população foram fatores que, inevitavelmente, geraram um custo para implementar políticas sociais. A esses fatores vieram se somar outros de ordem valorativa, associados ao processo de formação da sociedade brasileira, que gerou um imenso contingente de excluídos: pequenos agricultores expulsos de suas glebas, negros, indígenas, migrantes, entre outros grupos que sequer têm sua existência e territorialidade reconhecidas. A visão de mundo hegemônica no Brasil produziu não somente uma narrativa que identificava a territorialidade de indígenas, quilombolas, populações rurais como um vazio, portanto, à disposição da expansão do capitalismo, como muitas vezes identificava tais populações como uma massa amorfa de campesinos. Somente nos anos 1980, as reivindicações por direitos de cidadania dessas populações começaram a emergir no cenário político, a partir da ação dos movimentos sociais que marcaram a abertura do regime militar e estabeleceram a agenda política que iria pautar a primeira eleição para governadores, após o golpe militar, e a elaboração do texto da nova Constituição Federal (1988). No bojo das mudanças, desenvolveu-se um marco legal para garantir o acesso dessas populações à educação pública de qualidade.
Marco legal e os desafios para implementá-lo
Houve dois processos que foram concomitantes, a partir da década de 1980: o de descentralização de políticas sociais e a produção de marco regulatório a fim de garantir os direitos das minorias. Com a aprovação do texto constitucional de 1988, foram publicadas leis e normas infralegais com o objetivo de garantir a permanência das comunidades quilombolas e indígenas em seus territórios, e a produção de políticas específicas que reconhecessem a influência dos elementos culturais desses povos na formação da sociedade brasileira. No campo da educação, a legislação editada traçou as diretrizes para a educação diferenciada, ou seja, bilíngüe (no caso dos indígenas), intercultural, ministrada por professores especializados, com material didático e currículos específicos, organizada em períodos flexíveis e com metodologias de aprendizagem próprias. Os conteúdos a serem estudados deveriam contribuir para fomentar práticas antirracistas e emancipatórias e reforçar a identidade desses povos, a fim de produzir o que se convencionou chamar de “descolonização dos currículos” (GOMES, 2018).
A LDBEN, Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional n° 9.394/96 (BRASIL, 1996), veio reforçar os princípios presentes no texto constitucional sobre a educação escolar indígena. Concedeu liberdade para as comunidades indígenas definirem, conforme as suas particularidades, seus próprios projetos político-pedagógicos. Estabeleceu que o conteúdo referente à história e cultura afro-brasileira e dos povos indígenas fosse ministrado no âmbito de todo o currículo escolar, destacando-se a importância dos povos negros e indígenas nas áreas social, econômica e política, pertinentes à história do Brasil. Semelhantes garantias foram estendidas à população rural: conteúdos curriculares e metodologias apropriadas, organização escolar própria, adequação do calendário escolar à natureza do trabalho na zona rural etc.
O Plano Nacional de Educação, Lei 10.172/2001 (BRASIL, 2001), fixou metas e objetivos específicos em relação à educação indígena, dentre eles, a universalização do ensino fundamental, a estruturação didático-pedagógica das escolas (em regime de colaboração com os estados), a institucionalização de setores indígenas exclusivos para cuidar da educação indígena nas secretarias de educação, dentre outras ações. Não foi tão detalhista quanto a lei relativa às comunidades quilombolas, mas reforçou a diretriz presente no texto da LDBEN ao recomendar a inclusão, nos cursos de formação dos profissionais de educação, de conteúdos que contemplassem as manifestações artísticas e religiosas do segmento afro-brasileiro. Para os estudantes da zona rural, previu formas mais flexíveis de organização escolar, adequada formação de professores, oferta de ensino à distância para jovens e adultos, reorganização de redes de escolas agrotécnicas e a preservação das escolas rurais. A legislação infralegal veio complementar o texto da LDBEN, como a Resolução CNE/CEB nº 8 de 2012 (BRASIL, 2012), que definiu as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Quilombola na Educação Básica.
O Quadro 1apresenta um resumo do conjunto da legislação nacional que contemplou os segmentos indígenas, quilombolas e a população do campo. Esse ordenamento jurídico acabou ensejando a produção de normatizações estaduais, a fim de adequar os preceitos nacionais às particularidades locais. São normas e procedimentos que detalham como as escolas indígenas e quilombolas vão ser integradas ao sistema estadual de ensino. Além disso, a última edição do Plano Nacional de Educação, Lei 13.005/2014 (BRASIL, 2014), regulamentou que estados e municípios, ao elaborarem seus planos de educação, contemplassem as necessidades específicas das populações do campo e das comunidades indígenas e quilombolas, assegurando a equidade educacional e a diversidade cultural.
Portanto, desde os anos 1980, houve expressiva produção de legislação nacional e estadual a fim de assegurar a educação diferenciada e com qualidade para as populações tradicionais. Entretanto, teria todo esse conjunto de legislação produzido resultados concretos?
Cohn (2005) argumenta que, embora a legislação seja definida em âmbito federal, o funcionamento das escolas depende das gestões estaduais e municipais, que irão regulamentar e regularizar a situação de professores indígenas como profissionais contratados e o funcionamento dos prédios escolares. Araújo (2019) descreve sua experiência como professora entre os povos Tuxá da Aldeia Mãe e Indígena Pataxó Coroa Vermelha, na Bahia, e pondera que, embora exista mobilização da comunidade indígena e esforço do corpo docente para produzir educação específica e intercultural, permanecem muitas dúvidas e lacunas sobre como realizá-la:
Os professores usam muito os termos: educação ‘diferenciada’, ‘específica’, ‘intercultural’ e dizem trabalhar esses princípios, porém, na prática, as experiências apresentadas pelas escolas, objeto desta pesquisa e por outras, fruto da minha caminhada frente a educação escolar indígena, ainda são muito fragilizadas, fragmentadas, pontuais (ARAÚJO, 2019, p. 49).
Um relatório produzido pelo Conselho Indigenista Missionário - CIMI - (2018), vinculado à Conferência dos Bispos do Brasil, relata as condições adversas de funcionamento das escolas indígenas em todo o País. As dificuldades são muitas: falta o reconhecimento oficial das unidades de ensino (o que é importante para que tenham acesso aos recursos públicos); falta a ampliação do número de vagas; o funcionamento das salas de aula é improvisado; os prédios escolares estão em péssimo estado de conservação; há ausência de transporte escolar, dentre outros problemas. O relatório resume que “as escolas, em geral, encontram-se em péssimas condições de infraestrutura e de saneamento básico. Os prédios mal conservados, com os telhados furados, as paredes apodrecidas. Não há material escolar, nem cadeiras e mesas” (CIMI, 2018, p. 108).
Esses depoimentos levam a questionar se a estratégia do governo federal, concentrada na edição de políticas normativas e na descentralização de recursos por meio de programas universais, seria eficaz para garantir o ensino público de qualidade e diferenciado para as populações tradicionais. Grande parte das pesquisas realizadas sobre a educação indígena e quilombola não tratou dessa questão e está concentrada em responder a três pontos principais:
a) se o marco regulatório que prevê o ensino da História e cultura afro-brasileira e indígena está sendo cumprido, ou seja, se as escolas e cursos de formação de professores incluíram nos conteúdos programáticos temas relacionados às contribuições africanas e indígenas na formação da sociedade brasileira (NASCIMENTO, 2017; MARQUES, 2018; CUSTÓDIO, 2019);
b) se as metodologias, os conteúdos e as estratégias didáticas adotadas em escolas indígenas e quilombolas possibilitam a construção e afirmação da identidade dos povos tradicionais, se há espaço para a construção de ensino-aprendizagem intercultural (COHN, 2005; OLIVEIRA; NASCIMENTO, 2012; CARRIL, 2017; SILVA et al., 2017; ARAÚJO, 2019);
c) se as escolas indígenas e quilombolas contribuem para fomentar uma contracultura que venha desestabilizar ou questionar os padrões sociais vigentes de forma a possibilitar o processo de emancipação de indígenas e quilombolas e incentivar a organização política (CHATES, 2011; MIRANDA, 2012; ALVES, 2017; SANTANA; MAGALHÃES, 2017).
Embora esses sejam aspectos importantes, poucos são os artigos que discutem a questão da evasão escolar, do rendimento escolar, da defasagem idade-série e outros temas relacionados à falta de políticas específicas para tais segmentos populacionais. A maioria das pesquisas concentra-se no âmbito das políticas de reconhecimento, mas poucas verificaram a eficácia de políticas redistributivas, ou seja, se as condições mínimas para o funcionamento das escolas situadas em comunidades indígenas, quilombolas e assentamentos estão sendo asseguradas, se essas comunidades estão dispondo de acesso ao ensino público e de qualidade. Esses são aspectos que serão tratados no próximo tópico, a partir da experiência do PDDE.
O acesso das escolas indígenas, quilombolas e em assentamentos ao PDDE
Segundo o Censo Escolar 2019, publicado em 2020, há no Brasil 140.242 escolas públicas em situação ativa; dessas, 114.295 são assistidas pelo PDDE. Para receber recursos do programa, a escola precisa possuir uma Unidade Executora (UEx), ou seja, uma organização social devidamente registrada (conselho escolar, associação de pais e mestres, caixa escolar etc.), ou ser representada por uma Entidade Executora (EEx) - Secretaria Estadual de Educação ou Prefeitura -, quando atender a menos de 50 alunos. Além disso, o município precisa ter feito adesão ao programa, e a escola deve atualizar seu cadastro anualmente e estar em dia com a prestação de contas.
Existem, no País, 10.416 escolas situadas em comunidades indígenas, quilombolas e assentamentos, que o Censo Escolar (2019) agrupa na categoria “localização diferenciada”, correspondendo a todas as escolas registradas oficialmente como situadas em comunidades tradicionais. A distribuição dessas escolas pode ser conferida no Quadro 2.
Das 10.416 escolas, 2.993 (28,7%) não possuem UEx, tampouco recebem recursos por meio da prefeitura ou secretaria estadual. Elas simplesmente não participam do PDDE e de nenhuma de suas ações agregadas (Mais Educação, Ensino Médio Inovador, Escola Acessível, PDDE Água, PDDE Campo, Escolas Sustentáveis), conforme dados do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE). O fato de não possuírem UEx impossibilita que recebam recursos das ações, mesmo quando são representadas por EEx. Importante destacar que muitas políticas educacionais do MEC passaram a adotar, a partir de 2008, o PDDE como forma de transferir recursos para as escolas, em razão do modelo simplificado de execução. Por isso, se as escolas não possuem UEx, automaticamente se pode deduzir que foram alijadas de políticas, como, por exemplo, o Mais Educação, voltado para a promoção do ensino integral; e o Plano de Desenvolvimento Escolar - PDE Escola, programa de apoio à gestão escolar, voltado para a melhoria do Índice de Desenvolvimento da Educação Básica -IDEB - e da gestão escolar, entre outras.
A falta de UEx significa que as escolas ficam impossibilitadas de receber transferências diretas do governo federal, embora o fato de possuírem UEx ainda não seja condição suficiente para terem acesso aos recursos do PDDE. Se a escola não atualizar o cadastro ou ficar inadimplente com prestação de contas, ela também não tem direito ao PDDE e a ações agregadas. Conforme o FNDE, em 2019, 670 das escolas presentes nas comunidades quilombolas, indígenas e assentamentos estavam nessas condições. Assim, somando-se as escolas que não têm UEx/EEx, as que estão inadimplentes e as que não atualizaram o cadastro, chega-se a 3.663 (ou 35,5%) unidades educacionais em comunidades indígenas, quilombolas e em assentamentos que não foram contempladas pelo programa, prejudicando 285 mil alunos (Tabela 1).
FEDERAL | ESTADUAL | MUNICIPAL | TOTAL | Matrículas | ||
---|---|---|---|---|---|---|
Urbana | INDÍGENAS | 0 | 14 | 4 | 18 | 2.481 |
QUILOMBOLAS | 0 | 12 | 23 | 35 | 11.544 | |
Rural | ASSENTAMENTOS | 3 | 138 | 1.078 | 1.219 | 99.120 |
INDÍGENAS | 0 | 760 | 1.000 | 1.760 | 124.414 | |
QUILOMBOLAS | 1 | 59 | 571 | 631 | 48.264 | |
TOTAL | 4 | 983 | 2.676 | 3.663 | 285.823 |
Fonte: MEC/FNDE e MEC/INEP Censo Educação Básica, 2019.
As unidades que foram atendidas pelo PDDE, em 2019, somam 6.753 escolas que, juntas, receberam R$ 28,3 milhões, beneficiando 656 mil alunos (Tabela 2). Destas, entretanto, ainda houve 366 unidades que não tiveram direito à parte fixa, apenas tiveram acesso ao valor por aluno, pelo fato de serem representadas por EEx e não possuírem sua própria entidade.
ESTADUAL | MUNICIPAL | TOTAL | TRANSFERÊNCIAS (R$) | Matrículas | ||
---|---|---|---|---|---|---|
Urbana | INDÍGENAS | 21 | 11 | 32 | 174.404,11 | 6.961 |
QUILOMBOLAS | 43 | 113 | 156 | 1.231.591,30 | 54.348 | |
Rural | ASSENTAMENTOS | 166 | 3.129 | 3.295 | 13.968.285,88 | 321.639 |
INDÍGENAS | 738 | 818 | 1.556 | 5.257.454,08 | 114.806 | |
QUILOMBOLAS | 41 | 1.673 | 1.714 | 7.696.974,63 | 158.305 | |
TOTAL | 1.009 | 5.744 | 6.753 | 28.328.710,00 | 656.059 |
Fonte: MEC/FNDE e MEC/INEP Censo Educação Básica, 2019.
Os valores não transferidos de recursos do PDDE relacionam-se de diversas maneiras com capacidade estatal, não apenas no que se refere à dimensão burocrático-administrativa do Estado, mas também à parte que trata de capital social, isto é, o quanto a organização e a participação da comunidade podem ajudar a administração pública a alcançar melhores resultados (CARBONETTI, 2012). A ausência de transferências de recursos por meio do PDDE é um indicador dessa variável, pois uma das razões para a escola não participar do programa é não possuir entidade representativa. As secretarias de educação também desempenham importante papel, incentivando-as a formar sua própria UEx e orientando-as sobre como gerir os recursos e realizar a prestação de contas. A carência de uma equipe administrativa nas secretarias, que conheça o programa e seja capaz de prestar assistência técnica aos gestores escolares, influencia a regularidade das transferências federais. Dessa forma, é possível que a capacidade estatal de estados e municípios guarde forte relação com a eficácia do PDDE.
A Tabela 3 detalha um cálculo aproximado do total de recursos do PDDE que as escolas quilombolas, indígenas e em assentamentos deixaram de receber, em 2019, por não possuírem entidade representativa. O cálculo foi feito a partir das normas que regem o PDDE, Resolução do FNDE nº 10, de 18 de abril de 2013 (BRASIL, 2013). Aproximadamente R$ 16 milhões deixaram de ser transferidos pelo governo federal - um recurso que está assegurado por lei a todas as escolas públicas do ensino básico - Lei 11.947, de 16 de junho de 2009 (BRASIL, 2009). Ressalta-se que, nesses valores, está contabilizado apenas o montante a que as escolas teriam direito como PDDE Básico, não tendo sido consideradas as ações agregadas, cujos valores per capita são bem mais expressivos5.
Valor Fixo (a) | Per capita (b) | Qnt. Alunos (c) | Qnt. Escolas (d) | c *b | d*a | Total R$ | ||
---|---|---|---|---|---|---|---|---|
Urbana | Com UEx | 1.000 | 20,00 | 3.406 | 9 | 68.120,00 | 9.000,00 | 77.120,00 |
Sem UEx | 0,00 | 40,00 | 10.619 | 44 | 424.760,00 | 424.760,00 | ||
Rural | Com UEx | 2.000 | 20,00 | 30.632 | 295 | 612.640,00 | 590.000,00 | 1.202.640,00 |
Sem UEx | 0,00 | 60,00 | 241.166 | 3.315 | 14.469.960,00 | 14.469.960,00 | ||
TOTAL | 285.823 | 3.663 | 15.575.480,00 | 599.000,00 | 16.174.480,00 |
Fonte: MEC/FNDE e MEC/INEP Censo Educação Básica, 2019.
* O valor do PDDE básico é feito pela soma do valor fixo e per capita (Resolução do FNDE nº 10/2013).
O volume de recursos em caixa das escolas é outro indicador importante para avaliar a capacidade da comunidade escolar em usar os recursos transferidos. Em dezembro de 2019, ainda restavam nas contas bancárias das EEx e UEx R$ 26 milhões - aproximadamente 92% dos valores repassados naquele ano (Tabela 4). O maior índice de inexecução era das secretarias estaduais de educação, que guardavam em caixa quase dez vezes o valor correspondente ao que tinham direito, alcançando a quantia de mais de R$ 8 milhões. As escolas e suas entidades apresentavam menor inexecução (59%). Em média, cada entidade possuía R$ 3.554,68 de saldo bancário, sendo que o valor máximo chegava a R$ 287.395,50 na conta de uma prefeitura municipal em Pernambuco.
Transferência (R$) | Saldo (R$) | Inexecução (%) | |
---|---|---|---|
Prefeituras | 6.180.670,00 | 5.665.872,00 | 92% |
Secretarias Estaduais | 840.930,00 | 8.014.512,50 | 953% |
UEx | 21.307.110,00 | 12.517.593,70 | 59% |
TOTAL | 28.328.710,00 | 26.197.978,20 | 92% |
Fonte: MEC/FNDE e MEC/INEP Censo Educação Básica, 2019.
*O saldo considerado em contas bancárias das escolas refere-se ao mês de dezembro de 2019.
Dentre as que receberam recursos, 30% das UEx possuíam mais de 100% do valor de repasse do PDDE em conta bancária naquele ano. E, dentre as escolas que recebiam o PDDE por meio das secretarias de educação e prefeituras, o índice de inexecução acima de 100% do valor anual do PDDE chegava a 40%. Saldo superior ao repasse é possível, pois as UEx e EEx podem acumular recursos de um ano para o outro e também os rendimentos financeiros.
Ressalta-se que o volume de recursos por aluno repassados às secretarias estaduais e prefeituras é pequeno - R$ 40,00, se escolas urbanas; e R$ 60,00, se rurais, sendo que as escolas que recebem por esses entes não podem ter mais que 50 alunos. Se a frágil burocracia das prefeituras pequenas pode encontrar dificuldades em executar o PDDE, no caso das secretarias estaduais de educação não há que se falar em capacidade estatal, porque elas possuem estrutura administrativa para realizar licitações e compras6. No entanto, a pergunta inevitável é: por que não usaram o dinheiro para melhorar a estrutura física das escolas ou adquirir material didático-pedagógico?
Conforme o Censo da Educação Básica (2019), as escolas situadas em comunidades indígenas, quilombolas e em assentamentos dispõem de estrutura física muito precária. São pequenas, possuem em média de três a quatro salas, a maior parte está instalada em prédio escolar, mas o prédio tem estrutura de galpão, rancho ou barracão para 30% das escolas indígenas e para 11% das escolas em assentamentos. As escolas indígenas são as que possuem estrutura mais precária: 41% não têm água potável, 34% não têm energia elétrica, apenas 57% têm banheiro e 80% não dispõem de acesso à Internet. São poucas as escolas com biblioteca, refeitório e laboratório de informática (Table 5).
ASSENTAMENTOS | % | INDÍGENAS | % | QUILOMBOLAS | % | |
---|---|---|---|---|---|---|
Funciona em prédio escolar | 4.094 | 91% | 2.413 | 72% | 2.450 | 97% |
Funciona em galpão | 482 | 11% | 1.004 | 30% | 106 | 4% |
Água potável | 3.707 | 82% | 1.994 | 59% | 2.228 | 88% |
Água da rede pública | 890 | 20% | 352 | 10% | 859 | 34% |
Energia da rede pública | 3.861 | 86% | 1.755 | 52% | 2.404 | 95% |
Energia inexistente | 398 | 9% | 1.144 | 34% | 55 | 2% |
Banheiro | 3.956 | 88% | 1.915 | 57% | 2.401 | 95% |
Biblioteca | 572 | 13% | 307 | 9% | 352 | 14% |
Cozinha | 4.115 | 91% | 1.972 | 59% | 2.405 | 95% |
Refeitório | 784 | 17% | 389 | 12% | 401 | 16% |
Laboratório de Informática | 597 | 13% | 225 | 7% | 338 | 13% |
Internet | 1.537 | 34% | 647 | 19% | 954 | 38% |
Internet banda larga | 978 | 22% | 393 | 12% | 712 | 28% |
Média de Salas utilizadas | 4 | 3 | 4 |
Fonte: MEC/INEP Censo Educação Básica, 2019.
Também são poucas as que se utilizam de material pedagógico específico voltado para o seu público: 29% das escolas indígenas; 13% das situadas em quilombos; e 17% das localizadas em assentamentos. Esse indicador deixa claro que a proposta do ensino diferenciado, conforme descrita na legislação, está distante de acontecer (Tabela 6). A informação do Censo reforça o argumento de que as aulas são ministradas apenas na língua portuguesa para 25% das escolas indígenas.
Material pedagógico | ASSENTAMENTOS | INDÍGENAS | QUILOMBOLAS | ||||
---|---|---|---|---|---|---|---|
Count | % | Count | % | Count | % | ||
MATERIAL PEDAGOGICO INDIGENA | Não | 3.242 | 72% | 1.029 | 31% | 1.832 | 72% |
Sim | 37 | 1% | 983 | 29% | 17 | 1% | |
Não informada | 1.235 | 27% | 1.354 | 40% | 687 | 27% | |
MATERIAL PEDAGOGICO ETNICO | Não | 3.135 | 69% | 1.896 | 56% | 1.526 | 60% |
Sim | 144 | 3% | 116 | 3% | 323 | 13% | |
Não Informada | 1.235 | 27% | 1.354 | 40% | 687 | 27% | |
MATERIAL PEDAGÓGICO CAMPO | Não | 2.510 | 56% | 1.757 | 52% | 1.590 | 63% |
Sim | 769 | 17% | 255 | 8% | 259 | 10% | |
Não Informada | 1.235 | 27% | 1.354 | 40% | 687 | 27% | |
EDUCACAO INDIGENA | Não | 4.510 | 100% | 113 | 3% | 2.533 | 100% |
Sim | 4 | 0% | 3.253 | 97% | 3 | 0% | |
LINGUA INDÍGENA | Indígena | 1 | 0% | 119 | 4% | - | 0% |
Indígena e Portuguesa | 0 | 0% | 2.299 | 68% | 1 | 0% |
Fonte: MEC/INEP Censo da Educação Básica, 2019.
No entanto, em razão da flexibilidade do PDDE, o dinheiro do Programa poderia ser usado na aquisição de material didático-pedagógico, livros para biblioteca, aquisição de filtros para água, equipamento para laboratório de informática, pequenas melhorias no prédio escolar, entre outras ações. O não uso dos recursos aponta para a possibilidade de que a capacidade estatal das prefeituras seja uma de suas possíveis explicações, pois, de fato, grande parte dessas escolas se localiza em municípios pequenos, com economia frágil, que não arrecada sequer para sustentar sua folha de pagamento.
Capacidade estatal dos municípios
Para medir a capacidade estatal, na dimensão burocrático-administrativa, foi usado o Índice Firjan de Gestão Fiscal (IFGF), mas, principalmente, um de seus indicadores: o que avalia a autonomia. O índice foi desenvolvido pela Federação das Indústrias do Estado do Rio de Janeiro (Firjan) e possui abrangência nacional e comparação anual. Os dados são retirados dos resultados oficiais, declarados pelas prefeituras à Secretaria do Tesouro Nacional, e disponibilizados ao público pelo Sistema de Informações Contábeis e Fiscais do Setor Público Brasileiro (Siconfi). O índice é composto por quatro indicadores:
) Autonomia - mede a capacidade do município em financiar a estrutura administrativa; é calculado pela receita local menos estrutura administrativa, dividido por receita corrente líquida;
) Gastos com pessoal - mede o grau de rigidez do orçamento; é calculado pelo gasto com pessoal dividido por receita corrente líquida;
) Liquidez - mede o cumprimento das obrigações financeiras; é calculado pelo valor de caixa subtraído do resto a pagar, dividido por receita corrente líquida;
) Investimento - mede a capacidade do ente federado em gerar bem-estar e competitividade; é calculado pelo volume de investimentos divididos pela receita total.
Para os objetivos desta pesquisa, foi observado o IFGF, focando-se, principalmente, no indicador Autonomia, pois interessa saber a capacidade ou a incapacidade do município de sustentar a burocracia profissional, capaz de realizar a execução dos programas e a gestão dos recursos transferidos. O índice Autonomia verifica a relação entre as receitas oriundas das atividades econômicas do município e os custos necessários para manter a câmara de vereadores e a estrutura administrativa da prefeitura. Varia de zero a um, sendo que, quanto mais próximo de zero, menor a capacidade do município em gerar receitas locais suficientes para custear sua estrutura administrativa. Para a pesquisa, foram considerados os últimos valores publicados: IFGF 2019, ano base 2018. Embora algumas das escolas selecionadas para a presente pesquisa pertençam à rede estadual de ensino, 80,8% estão na rede municipal7, o que possibilita usar o referido indicador.
Também foi empregado o Índice Firjan de Desenvolvimento Municipal (IFDM), de caráter socioeconômico. Neste caso, o objetivo não é medir a capacidade estatal, mas verificar a influência da variável socioeconômica no uso dos recursos. O IFDM classifica todos os municípios brasileiros segundo três áreas: emprego e renda, educação e saúde (Quadro 3). Os dados são obtidos a partir de informações dos ministérios do Trabalho e Emprego, da Educação e da Saúde. A partir deles, os municípios são agrupados nas categorias baixo (0 a 0,4), regular (0,4 a 0,6), moderado (0,6 a 0,8) e alto (0,8 a 1). Para a análise, foram considerados os últimos dados publicados: IFDM 2018, ano base 2016.
Fonte: FIRJAN. Disponível em: http://publicacoes.firjan.org.br/ifdm2018/11/#zoom=z, p. 11. Acesso em: 24 jan. 2019.
As escolas estão concentradas em 1.623 municípios, distribuídos por região da seguinte forma: 45,9% no Nordeste; 18,5% no Norte; 13,2% no Sudeste; 11,6% no Sul; e 10,8% no Centro-Oeste. Há informação de IFGF e IFDM para, respectivamente, 1.546 e 1.594 cidades. Dos municípios, 82% possuem IFGF crítico ou em dificuldade, em que se concentram 83,4% dos estabelecimentos de ensino (Tabela 7). Ao focar o indicador Autonomia, verifica-se que a gestão de 76,1% das cidades foi classificada como crítica ou em dificuldade, onde estão localizadas 81,1% das unidades de ensino estudadas. Isso significa que são entes federados que não geram receitas suficientes para arcar sequer com os custos de suas estruturas administrativas; por isso, deduz-se que sejam burocracias frágeis, que funcionam por meio de contratos temporários, com baixos salários e profissionais pouco qualificados. São também municípios mais dependentes das transferências do governo federal e, por essa razão, deveriam utilizar todo o recurso dos programas de descentralização. No entanto, não é esse o resultado encontrado, como foi demonstrado antes: UEx e EEx apresentaram expressivos saldos bancários em contas específicas do PDDE. Ressalta-se que a média do IFGF - Autonomia ficou em 0,2986, abaixo da média nacional, considerada muito baixa pela Firjan, que foi de 0,3855.
CRITICA | EM DIFICULDADE | BOA GESTÃO | EXCELÊNCIA | |||||
---|---|---|---|---|---|---|---|---|
Assentamentos | 3.155 | 30,3% | 470 | 4,5% | 183 | 1,8% | 445 | 4,3% |
Indígenas | 2.469 | 23,7% | 252 | 2,4% | 121 | 1,2% | 229 | 2,2% |
Quilombos | 1.972 | 18,9% | 133 | 1,3% | 110 | 1,1% | 183 | 1,8% |
Total | 7.596 | 72,9% | 855 | 8,2% | 414 | 4,0% | 857 | 8,2% |
IFDM (N= 10.019) | ||||||||
BAIXO | MODERADO | REGULAR | ALTO | |||||
Assentamentos | 28 | ,3% | 2.694 | 25,9% | 1531 | 14,7% | 56 | 0,5% |
Indígenas | 133 | 1,3% | 2.357 | 22,6% | 752 | 7,2% | 36 | 0,3% |
Quilombos | 21 | ,2% | 1.527 | 14,7% | 878 | 8,4% | 6 | 0,1% |
Total | 182 | 1,7% | 6.578 | 63,2% | 3.161 | 30,3% | 98 | 0,9% |
IFGF (N= 9.722) | ||||||||
CRITICA | EM DIFICULDADE | BOA GESTÃO | EXCELÊNCIA | |||||
Assentamentos | 2.626 | 25,2% | 1.170 | 11,2% | 305 | 2,9% | 152 | 1,5% |
Indígenas | 1.759 | 16,9% | 922 | 8,9% | 350 | 3,4% | 40 | 0,4% |
Quilombos | 1.501 | 14,4% | 712 | 6,8% | 142 | 1,4% | 43 | 0,4% |
Total | 5.886 | 56,5% | 2.804 | 26,9% | 797 | 7,7% | 235 | 2,3% |
Fonte: Firjan e MEC/INEP, Censo da Educação Básica, 2019.
O desempenho do IFDM é um pouco melhor que os outros indicadores: 42% dos municípios estão classificados como de baixo ou moderado desempenho e concentram 65% das unidades de ensino estudadas. No entanto, o IFDM médio das cidades onde se localizam as escolas indígenas, quilombolas e de assentamentos é de 0,62, enquanto o nacional fica em 0,6678. Entretanto, esse indicador considera também dados da educação, mas, para muitas dessas escolas, não há informações dessa natureza.
Ao analisar o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB) 2019, indicador que compõe o IFDM, há informação de IDEB para 13,7% das escolas nos anos iniciais do ensino fundamental e 10,1% para as dos anos finais. As poucas escolas avaliadas ficaram com IDEB médio de 4,43 (no fundamental, anos iniciais) e 3,79 (no fundamental, anos finais), abaixo da média nacional, que foi, respectivamente, de 5,9 e 4,9 (Tabela 8).
A falta de informações sobre o IDEB também é um dado que aponta para a ausência do Estado nessas comunidades, pois o indicador serve para o MEC definir políticas públicas e priorizar o público beneficiário de programas. Se as escolas não participaram do IDEB (N=10.416)8, significa que a realidade dessas unidades de ensino, pelo menos no que se refere a rendimento escolar, não será levada em conta no planejamento das políticas públicas. Ressalta-se ainda que, na análise, não foram considerados os dados do ensino médio, pois apenas 14% das escolas oferecem essa etapa, embora seja esta uma reivindicaçãoantiga dessas populações como forma de garantir a permanência dos jovens nos territórios9.
FUNDAMENTAL ANOS INICIAIS | FUNDAMENTAL ANOS FINAIS | |||||||||
---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|
Média IDEB | Válido | % | Missing | % | Média IDEB | Válido | % | Missing | % | |
ASSENTAMENTOS | 4,57 | 771 | 17,1% | 3.743 | 82,9% | 3,98 | 585 | 13,0% | 3.929 | 87,0% |
INDÍGENAS | 3,66 | 162 | 4,8% | 3.204 | 95,2% | 3,01 | 104 | 3,1% | 3.262 | 96,9% |
QUILOMBOLAS | 4,48 | 499 | 19,7% | 2.037 | 80,3% | 3,70 | 365 | 14,4% | 2.171 | 85,6% |
TOTAL | 4,43 | 1.432 | 13,7% | 8.984 | 86,3% | 3,79 | 1.054 | 10,1% | 9.362 | 89,9% |
Fonte: MEC/INEP Censo do Ensino Básico, 2019, e IDEB 2019.
O IFDM leva em consideração os dados do município, mas pode ser que a realidade das comunidades seja ainda mais crítica. Um indicador que reforça esse argumento é o que trata da distorção idade-série para o ensino fundamental; ele mede a proporção de alunos com mais de dois anos de atraso escolar. Conforme dados do INEP (BRASIL, 2019), 23,4% dos alunos que estudam em escolas localizadas em assentamentos estão fora da idade escolar; nas escolas indígenas, são 38,9%; e 21,5% concentram-se em escolas situadas em quilombos. A média desse indicador para os municípios onde estão as escolas indígenas, quilombolas e em assentamentos é de 22,4%; já a média do mesmo indicador focalizando apenas o grupo de escolas-alvo desta pesquisa sobe para 27,92%. Há escolas, nesse grupo, que chegam a apresentar 97,6% de distorção idade-série, estando praticamente todos os alunos fora da idade escolar (Tabela 9).
Variável | Média | Mínimo | 1º. Quartil | 2º. Quartil | 3º. Quartil | Máximo |
---|---|---|---|---|---|---|
Distorção idade série (município) | 22,40% | 1,20% | 14,90% | 22,50% | 29,80% | 62% |
Distorção idade série (escolas) | 27,92% | 0% | 12,20% | 25% | 39,90% | 97,60% |
Fonte: MEC/INEP Censo do Ensino Básico, 2019, e Indicador idade-série 2019.
No Brasil, a taxa de distorção idade-série, em 2019, foi de 16,2%, portanto, bem melhor que a média dos municípios que abrigam escolas indígenas, quilombolas e assentamentos. A taxa desses municípios está abaixo da nacional, mas consegue ainda ser pior quando são focadas apenas as escolas selecionadas para este estudo, como demonstra a Tabela 9.
Foram realizados vários testes de correlação entre inexecução dos recursos (como variável dependente) ou saldos bancários e IFGF e IFGM, e não foram encontrados valores que indicassem forte correspondência. O índice IFGF - Autonomia é indicador importante de capacidade estatal, embora não represente o conceito em todas as suas dimensões. As escolas selecionadas para o estudo estão concentradas nos municípios com baixos IFGF, conforme demonstrado; mas é preciso considerar outros indicadores de capacidade estatal que também vão interferir, como a experiência de organização da comunidade e o controle social, por exemplo. Além desses, devem-se considerar, ainda, variáveis como a estabilidade de funcionamento das escolas (conflitos pela posse da terra, variações climáticas e outros fatores que podem suspender as aulas) e o interesse político das administrações municipais e estaduais em prestar assistência técnica aos gestores escolares. Ressalta-se, ainda, que os índices foram calculados para os municípios, e os dados de saldo e repasse foram extraídos por escolas, que tendem a ter indicadores de desempenho piores que seus próprios municípios.
Um exercício de comparação do desempenho das escolas indígenas, quilombolas e assentamentos em relação aos municípios onde estão localizadas (N=1.623) pode ser feito usando-se os indicadores de distribuição do saldo do PDDE per capita, em 2019. As referidas escolas apresentaram valores superiores aos observados em seus respectivos municípios, ou seja, a inexecução dessas escolas foi pior que as demais escolas dos mesmos municípios, demonstrando que não é apenas a variável capacidade estatal que influencia os resultados. A média de saldo do PDDE das escolas com localização diferenciada, por exemplo, ficou em R$ 114,29, enquanto a média de todas as escolas dos municípios foi de R$ 12,52 (Tabela 10). Em 60% dos municípios, as escolas quilombolas, indígenas e em assentamentos apresentaram média de saldo superior em relação ao conjunto das escolas de seus respectivos municípios.
Escolas índígenas, quilombolas e em assentamentos | Todas as escolas | ||
---|---|---|---|
Número | 1.623 | 1.623 | |
Média | 114,29 | 12,52 | |
Mediana | 18,70 | 10,24 | |
Mínimo | 0 | 0 | |
Máximo | 17.566,62 | 98,87 | |
Percentis | 10 | ,22 | 3,27 |
20 | 2,03 | 5,09 | |
30 | 6,54 | 6,59 | |
40 | 12,63 | 8,30 | |
50 | 18,70 | 10,24 | |
60 | 27,91 | 12,51 | |
70 | 38,85 | 14,99 | |
80 | 61,18 | 18,00 | |
90 | 159,27 | 24,46 |
Fonte: MEC/FNDE, 2019.
Dessa forma, os dados permitem deduzir que outras variáveis interferem, além de capacidade estatal, possibilitando levantar a hipótese de critérios raciais. O fato de o Estado não priorizar essas comunidades ou não despender o esforço administrativo necessário para fazer funcionar o programa educacional acaba por indicar uma ação racialista, de discriminação, pois os alunos dessas escolas não têm direito aos benefícios de um programa que é universal, assegurado por lei - Lei nº 11.947/2009 (BRASIL, 2009). Como afirma Dye (2013), política pública também é o que um governo escolhe ignorar.
Outro resultado que reforça o argumento de que há outras dimensões de capacidade estatal a influenciar nos resultados dos programas são os dados brutos de saldo e repasse, agrupados por IFG - Autonomia (Tabela 11). Verifica-se que quanto mais aumenta a autonomia administrativa do município e quanto mais o município arrecada o suficiente para cobrir suas despesas administrativas, maior é o volume de saldo, assim como a média de saldo bancário por escola, amplificando a inexecução dos valores transferidos. Os resultados, portanto, vão no sentido inverso à hipótese inicial. Quanto mais rico o município enquanto maior a autonomia administrativa e financeira, menor é o interesse em gastar os recursos do governo federal - embora o índice de inexecução seja muito alto para todas as escolas situadas em comunidades indígenas, quilombolas e em assentamentos.
IFGF- Autonomia | Qnt. Escolas | Saldo | Saldo Médio R($) | Transferência R($) | Inexecução (%) |
---|---|---|---|---|---|
Crítica | 7.596 | 17.324.258,29 | 3.273,67 | 19.763.228,83 | 87,7% |
Em dificuldade | 855 | 2.242.970,32 | 3.424,38 | 2.406.664,24 | 93,2% |
Boa Gestão | 414 | 1.582.859,27 | 5.089,58 | 1.433.454,89 | 110,4% |
Excelência | 857 | 3.903.419,63 | 5.740,32 | 3.221.977,53 | 121,1% |
S/Inf. | 694 | 1.144.470,69 | 2.649,24 | 1.503.384,51 | 76,1% |
Total | 10.416 | 26.197.978,20 | 3.554,68 | 28.328.710,00 | 92,5% |
Fonte: MEC/FNDE e Firjan.
Os resultados de inexecução dos recursos indicam que as transferências não podem ocorrer sem que sejam acompanhadas de uma política acordada pelos três níveis da federação, principalmente quando se trata de populações carentes, que exigem maior atenção e esforço do Estado para desenhar soluções específicas para suas realidades. Grinet al. (2019) argumentam que quanto maior é o nível de capacidade estatal dos municípios, “maiores serão as possibilidades de que possam definir suas agendas de governo com autonomia e independência das intromissões e condicionamentos dos níveis superiores de governo” (GRIN et al., 2019, p. 3). O modelo federativo confere igual autonomia política aos três níveis de governo, nenhum está subordinado ao outro; por isso, para desenvolver políticas públicas em escala nacional, são necessárias interação e pactuação de ação concertada. Há situações que surgem na etapa de execução que precisarão ser negociadas pelos entes, que não poderão ser deixadas a cargo dos gestores de escolas.
Dessa forma, a edição de marco regulatório, como o existente no caso das comunidades tradicionais, embora importante para o reconhecimento da questão indígena, quilombola e do campo, não é suficiente para se realizar na prática, mesmo quando acompanhada da transferência de recursos. É preciso que o Governo, reunindo-se com representantes dos poderes municipais e estaduais, e com entidades representativas da sociedade, desenhem estratégias específicas, estabeleçam metas e prazos a fim de garantir a “educação diferenciada”. Além disso, ressalta-se o desafio em realizá-la, pois que seexigirá conhecimento específico dos servidores públicos que irão prestar o serviço e o desenvolvimento de pedagogia e material didático próprios. Parafraseando Peter Evans (1993), a expansão das atribuições e incumbências do Estado não se reflete em aumento de capacidade estatal, que tende a crescer de forma mais lenta que a ampliação das tarefas, pois demanda período de aprendizagem, de elaboração de soluções administrativas, técnicas e, no caso, técnicas pedagógicas. Secchi (2012) explica que é na fase da implementação que os burocratas exercem maior influência nos resultados das políticas, pois eles irão interpretá-las, podendo direcioná-las para resultados diferentes daquilo que foi inicialmente programado: “A autonomia de implementação dos streetlevelbureaucrats pode ir de um nível de superconformidade, no caso em que os funcionários decidem implementar ao pé da letra uma orientação política, a níveis de total desobediência às regras” (SECCHI, 2012, p. 85).
No entanto, conforme destacado, o problema na execução do Programa parece não se resolver na dimensão técnico-burocrática. A passividade do Estado em relação à inexecução dos programas públicos, em geral, e do PDDE, em particular, pode ser informada pela racialidade do próprio Estado. A precariedade das instalações físicas, a ausência de material didático adequado, os índices elevados de distorção idade-série nas escolas em comunidades indígenas, quilombolas e em assentamentos face à disponibilidade de recursos financeiros parecem não causar surpresa aos gestores públicos, nem à sociedade mais ampla. Esse estado de normalização da pobreza e precariedade talvez possa dizer muito a respeito das representações sociais hegemônicas dessas populações.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A análise de um programa governamental, aparentemente pouco complexo para sua execução, como o PDDE, permite que se façam importantes reflexões sobre a efetividade de políticas de descentralização, a capacidade estatal e as práticas racialistas do Estado brasileiro.
Os dados demonstram que a simples edição de novo marco regulatório não é suficiente para garantir os resultados de uma política de educação diferenciada e intercultural. A precariedade de funcionamento das escolas e a ausência de material didático específico denunciam a falta de compromisso da gestão pública em garantir o acesso à educação básica com qualidade para as crianças quilombolas, indígenas e de assentamentos. Mesmo quando há recursos federais disponíveis, essas populações não são beneficiadas pelos programas. A situação agrava-se ainda mais quando se sabe que não foi apenas ao PDDE Básico que elas não tiveram acesso, mas também a diversas outras políticas do Ministério da Educação, que, desde 2007, passaram a usar o modelo de descentralização de recursos do PDDE.
Portanto, a transferência automática de valores públicos não significa que chegarão ao público mais necessitado. É preciso acompanhar e monitorar a execução e acordar, entre os níveis de governo federal, estadual e municipal, os resultados a serem atingidos. Embora imprescindível, não basta somente a existência de corpo técnico-burocrático qualificado e disponibilidade fiscal, é preciso haver uma orquestração política para que as políticas obtenham êxito. As vantagens idealizadas da descentralização podem não se realizar se não houver conexão entre a política e a realidade local. Muitas vezes, supõe-se que os agentes responsáveis pela execução tenham compreendido as dimensões técnico-administrativas e que tenham um compromisso com os objetivos macros da política - o que pode não acontecer na prática. No caso do PDDE, pressupôs-se que haveria interesse dos gestores públicos e das comunidades escolares em constituírem a UEx e aderirem ao programa; no entanto, a pesquisa revelou que nem sempre isso ocorre.
Os gestores locais podem avaliar que os custos para implementar o Programa são maiores que os ganhos políticos, simplesmente escolhendo ignorar, dessa forma, as necessidades das populações tradicionais. A ação intencional do Estado ou a inação levam ao mesmo resultado, ou seja, a uma atitude racialista, que contribui para reforçar a situação de exclusão social e discriminação racial a que historicamente essas populações estiveram sujeitas. As dificuldades para chegar aos territórios distantes, onde muitas vezes residem essas populações, ou para elaborar material didático específico, ministrar aulas em seus idiomas, selecionar professores habilitados - tudo isso pode ser um obstáculo para se realizar uma política diferenciada e intercultural, mas não justifica a ausência do Estado. Pode-se falar em ausência no sentido de que, embora exista o programa educacional, embora exista orçamento para beneficiar as escolas situadas em comunidades tradicionais, o programa não é eficaz, o dinheiro não se transforma em benefícios concretos para a comunidade. Por isso, considera-se que os estudos sobre capacidade estatal podem ser complexificados ao se introduzir a dimensão racial. Não é uma mera fatalidade o fato de que as escolas indígenas, quilombolas e de assentados estejam em municípios com índices mais negativos de competência estatal, resultando em um índice elevado de inexecução financeira, exatamente nos contextos sociais que mais precisam de recursos. É estarrecedor constatar que justamente os municípios e as escolas que mais precisam de recursos são os que não os acessam, ou, que tendo recebido o dinheiro, não o utilizam. Em outras palavras, o estarrecedor é constatar que, mesmo quando o dinheiro existe, ele não é utilizado.
Conjugado às explicações centradas na ideia de capacidade estatal, que chamam atenção para as dimensões técnico-burocráticas, fiscais e políticas (construção de consensos), destaca-se também a dimensão racial do Estado. Com isso, não se quer dizer que o Estado, diante de uma ou outra comunidade indígena ou quilombola ou de assentados (majoritariamente formada por não brancos), agiu de maneira explicitamente racista. Porém, é preciso chamara atenção para a passividade e, até mesmo, a omissão do Estado diante da existência de um círculo vicioso de pobreza e ineficiência que atinge as escolas dessas comunidades. A ausência ou baixa qualidade no serviço público educacional ofertado pelo Estado parece naturalizada. É justamente a normalização dessa realidade que permite falar da participação do Estado como ator estruturante da vida social, ao delimitar suas fronteiras, ao definir quem está incluído ou excluído, ao contribuir para a produção e reprodução das desigualdades sociais.
Programas universais de descentralização de recursos não são suficientes para lidar com realidades complexas como a experimentada pelas escolas situadas em comunidades indígenas, quilombolas e em assentamentos. Quando o Estado não chega com suas políticas - não só física, mas simbolicamente -, cabe a esse mesmo Estado escutar os atores sociais envolvidos e avaliar sua prática, a fim de buscar novas soluções técnico-administrativas e políticas. A superação da posição racialista que, historicamente, marcou a atuação do Estado brasileiro só se dará a partir de uma postura propositiva, com a elaboração de políticas diferenciadas e a pactuação de metas e prazos pelos entes federados.