TRADUÇÃO1
SIROTA, Régine. "Positions et dispositions de la sociologie de l´enfance- Retour sur le processus de socialisation". In: La différenciation sociale des enfants- Enquêter "sur" et "dans" les familles. DEPOILLY, Séverine et KAPKO, Séverine. Paris: Presses Universitaires de Vincennes, 2019, p. 30-52.
É no diálogo com o conceito de “socialização” que se construiu a sociologia da infância. Se muitos pesquisadores anglo-saxões4 assinalam desde as primeiras linhas de suas obras o quanto essa discussão foi construída, num primeiro momento, pelo questionamento radical de uma concepção de socialização considerada como um fenômeno “hiper-socializado”5 - quer dizer, extremamente determinista não deixando nenhuma margem de ação aos atores sociais - no campo francófono, foi numa discussão contínua que foram sendo construídas as diferentes etapas do estabelecimento desse novo campo da sociologia. Cléopâtre Montandon já se interrogava nesses termos teóricos sobre um retorno reflexivo sobre os primeiros anos da sociologia da infância: “Do estudo da socialização à sociologia da infância, trata-se de uma necessidade ou de uma ilusão epistemológica6?
Desde a emergência da sociologia da infância francófona nos anos de 1990, a questão da socialização da infância é colocada em termos de “fantasma esquecido”7 do campo da sociologia da educação ou como “terra desconhecida do sociólogo”8. Assiste-se desde então a um desdobramento desta problemática9 e ao seu entrecruzamento com as questões próprias a múltiplos campos, é o que testemunha por exemplo a publicação do número dos Cadernos de gênero consagrado, alguns anos mais tarde, aos “objetos da infância”10, considerando-os como um laboratório da identidade de gênero. Desse modo, são postas em evidência e discutidas as múltiplas modalidades da socialização, questão transformada em etapa incontornável e documentada especialmente nos manuais referentes aos estudos de gênero11 ou às idades da vida12. Procurar-se-á desenhar aqui as diferentes sequências desses estudos.
Dentre muitos dos textos que marcam a análise dessa questão aparece a expressão “a criança ator”. De onde vem esta expressão?
Evidente para alguns, surpreendente para outros, aparentemente paradoxal, esta expressão, que se tornou recorrente, é bastante recente; tentar-se-á aqui retraçar a emergência do ponto de vista de uma socióloga e, mais precisamente, do ponto de vista de uma socióloga da educação que se tornou socióloga da infância, em sublinhar - através da mudança de olhar sobre a criança que esta evolução supõe - os desafios13 aí ocultados e apreender as diferentes etapas da construção de uma sociologia da infância francófona.
Pode-se assim tomar como ponto de partida simbólico do questionamento sobre o lugar da infância um discurso pronunciado em 2011 na Academia Francesa, como instância oficial que é, por um filósofo que se interessa muito pela educação, Michel Serres. O discurso se intitula “Polegarzinha, os novos desafios da educação14”. A análise proposta pode ser considerada como o sintoma de mudança de olhar de uma sociedade sobre a infância e sua relação com a cultura.
Retomando elementos vindos de trabalhos de ciências humanas e sociais, esse discurso pontua com humor e acuidade as mudanças ocorridas na socialização contemporânea e suas consequências sobre o sistema educativo, daí a preliminar colocada por Michel Serres para introduzir e justificar seu propósito: “Antes de ensinar o que quer que seja, a quem quer que seja, é preciso ao menos conhecê-lo. Quem se apresenta hoje na escola, no colégio, no liceu, na Universidade?” Sua reflexão proveniente tanto da filosofia política, quanto dos trabalhos das ciências sociais, reúne um diagnóstico realizado por alguns pesquisadores em ciências sociais, como o historiador Antoine Prost que, desde as primeiras linhas de sua monumental história da educação, texto antigo, mas que já situava a questão, declara: “a crise do ensino é uma crise da socialização15. Essas análises pontuam a importância dessa mudança concernente ao estatuto da criança, assim como ao olhar dirigido sobre ela, o que leva os sociólogos a reconsiderarem as modalidades de sua socialização.
UMA MUDANÇA DE PERSPECTIVA
Aquilo que aparece atualmente como uma evidência não foi somente negligenciado, mas há muito tempo vem sendo objeto de uma outra visão. Essa mudança de perspectiva vem da crítica do conceito de “socialização” tal como a sociologia clássica utilizou durante muito tempo, de maneira explícita ou implícita. É difícil não retomar aqui a definição de infância proposta por Ferdinand Buisson e Émile Durkheim, no famoso Dicionário da Pedagogia16, para compreender como e sobre quais termos se opera a desconstrução do conceito de “socialização”, pois esta definição deixou traços profundos no conjunto da sociologia:
A infância é em tudo caracterizada pela inconsistência própria da sua natureza, que é a lei do crescimento. Ela apresenta ao educador não um ser formado, não uma obra pronta e um produto acabado, mas um devir, um começo de ser, uma pessoa em via de formação. Qualquer ponto do período infantil que se queira considerar, encontra-se sempre na presença de uma inteligência tão frágil, tão frágil, tão recentemente formada, de constituição tão delicada, desfrutando de faculdades tão limitadas e se exercendo por um tal milagre que não se pode impedir de tremer, desde que se pensa nisso, para essa deslumbrante e frágil máquina.
A concepção de infância subjacente a esta definição é a de uma infância frágil, maleável, de um ser a ser formado para um papel futuro. A criança é considerada antes de tudo como um vir a ser. O estado a ser criado parece estar em oposição àquele que é dado como ponto de partida. Isso conduziu, no quadro de uma visão estruturo-funcionalista, a uma análise do trabalho educativo e, geralmente, da socialização como algo que se realiza no seio de instituições como a família ou a escola. Isso leva a direcionar o olhar sobre os adultos responsáveis por essa educação e a desafiar a inconsistência e a maleabilidade da infância.
O que introduziram os sociólogos da infância
Na sequência de alguns trabalhos principalmente de historiadores e de psicólogos - para situar as perspectivas, limitar-se-á aqui a citar como personagens emblemáticos e midiáticos, Philippe Ariès17 e Françoise Dolto18 - operou-se uma mudança do olhar das ciências sociais sobre a infância19. Afirmou-se, na verdade, a necessidade de considerar a infância no presente, a criança como um “actual being” e não unicamente um “futur being”, e de levar a criança a sério, de considerá-la não somente como uma pessoa, mas como um ator ativo na criação do sentido das situações através de suas interações com os adultos e com outras crianças. Não se trata desde então de considerar unicamente o trabalho institucional dos adultos responsáveis pela infância. Essa ruptura se opera considerando:
- A infância, como um período da vida específico, uma forma estrutural, quer dizer, um período do ciclo de vida pelo qual passam todos os indivíduos de uma sociedade. Para evitar as ambiguidades, precisemos que a delimitação desse período geralmente adotada é a Convenção Internacional dos direitos da criança, seja de 0 a 18 anos (1989). Mas num contexto em que as idades da vida estão em mutação, marcado além disso pelo prolongamento da vida, o sequenciamento das idades torna-se problemático, levando à impossibilidade de pensar as diferentes idades independentes umas das outras e a uma certa mistura das fronteiras de idade e de seus modos de passagem: precocidade de um lado e prolongamento do outro se conjugam. Daí surge uma primeira série de questões: Quando começa, quando termina a pequena infância, infância, pré-adolescência, adolescência, juventude? Como se fabricam, se entrelaçam e são marcadas essas idades e passagens20? Considerar-se-á aqui, portanto, tanto o bebê a quem se oferece seu primeiro livro para utilizar em seu banho ou seu primeiro livro interativo, ou ainda se leva às oficinas de contação de histórias antes mesmo que saiba ler, como iniciação aos caminhos da leitura, quanto o adolescente mergulhado nos medos do espelho do banheiro.
A infância é considerada como uma forma estrutural, constante, mas variável no tempo e no espaço. No tempo, quer dizer, conforme os períodos históricos: que se pense nos múltiplos modos de fabricação do bebê da nossa sociedade contemporânea. E no espaço, pois a infância se conjuga ao mesmo tempo no plural, seja entre países do Sul e do Norte, nas formas familiares cada vez mais complexas e nas situações de desigualdades longe de terminar.
A infância permanece, portanto, como uma forma estrutural que, apesar das suas mutações, persiste em toda sociedade, e por meio da qual passam obrigatoriamente todos os indivíduos de uma sociedade, como afirma Jens Qvortrup21. Mas a infância também está presa numa sociedade em que as fontes do conhecimento e a difusão dos saberes e da cultura se multiplicaram, e suas modalidades de acesso se transformaram profundamente através da internet e das redes sociais.
- As crianças, como uma categoria social em si no quadro de uma sociedade que produz uma categoria social marcada pela especificidade do estatuto de “ego paradoxal”, para retomar a expressão da filosofia. Esta reconhecia ao mesmo tempo a fragilidade e a vulnerabilidade da criança exigindo proteção, mas também sua qualidade e seu estatuto de ator social, reconhecido juridicamente, por exemplo pela Convenção dos direitos da criança. Categoria qualificada de “bem raro”22, de “criança do desejo”23, de “Priceless Child”24 sobre a qual é dirigida uma atenção cada vez mais viva, engajando uma verdadeira “paixão da infância”25 e mesmo “um sagrado da infância”26. Figuras da infância principalmente ocidentais, é necessário precisar, que são difundidas e substituídas por organizações internacionais ou múltiplas ONG, introduzindo e recusando outras figuras da infância, como “a infância do desenvolvimento”27, através do estabelecimento de programas de ajuda ao desenvolvimento preso entre dinâmicas transnacionais e pressões locais.
Essa “criança da nação”, como qualificava Martine Segalen, ao se perguntar “a quem pertencem as crianças?”28 é, portanto, uma categoria social objeto de políticas públicas, sejam elas sanitárias, educativas ou culturais, às quais se agregam políticas comerciais postas em prática por indústrias culturais que redefinem as crianças como consumidores culturais, não mais em termos de democratização cultural, mas em termos de alvo de marketing. Este último se dirige cada vez mais diretamente à criança como categoria social específica, acentuando deliberadamente os efeitos de segmentação em termos de idade e de gênero.
O trabalho de transmissão cultural encontra-se portanto dividido entre um número de atores sociais bastante importante, num período em que é preciso assegurar a manutenção das taxas de natalidade nos países desenvolvidos ou controlá-las em outras regiões do mundo, e em que a generalização do trabalho das mulheres obriga a repensar o cuidado e sua repartição entre as diferentes categorias sociais vulneráveis e entre todas as idades da vida; é o que nos lembra Gösta Esping Andersen na sua segunda lição sobre o Estado-Providência29, em sua bela fórmula mais do que nunca atual: “A reforma da previdência começa pelos bebês”.
Esse período da vida durante o qual todo indivíduo é obrigado a se formar, durante o qual se exercem “o ofício de criança” e o “ofício de aluno”, ligado à uma escolarização obrigatória cada vez mais longa, assim como o ofício de “consumidor cultural”30, próprio à modernidade, conjuga exigências paradoxais de precocidade e de prolongamento de sua dependência.
- A criança, como um sujeito. Isso leva à uma experiência social bastante particular entre descoberta do mundo, transmissão e apropriação, colocando em jogo passado, presente e futuro, experiência que o sociólogo não considera mais como da alçada somente da psicologia e marcada por etapas imutáveis31. A criança é cada vez mais considerada como um “pequeno indivíduo”, sendo preciso compreender as provações de formação de si, num período marcado por uma certa desinstitucionalização e, para os sociólogos do individualismo, pela conquista de autonomia cada vez mais precoce32 num contexto muito mais complexo, que alimenta incertezas e riscos. Trata-se de apreender sua capacidade de ação, sua agency, quer se situe nos termos de uma sociologia anglo-saxã ou se situe nos termos da sociologia francesa, de considerá-la como um “ator”, quer dizer, de considerar como se constitui o “ofício de criança”, ao mesmo tempo na sua especificidade e nas suas variações.
Consequência: levar a infância a sério
A concepção de um processo de socialização unívoco não é mais aceitável se a criança for considerada como um ator. Ela não é mais considerada como passiva; é um ser no presente que se trata de levar em conta na multiplicidade dos contextos de sua socialização. Não simplesmente numa oposição dicotômica entre presente e futuro de um ser concebido unicamente conforme o seu desenvolvimento, mas na dimensão de um passado e de um futuro, como nos lembra um dos fundadores da sociologia da infância, Alain Prout33. Trata-se, portanto, de levá-la a sério, não somente com sua capacidade de agir, sua agency, como também de levar em conta o que sua presença produz como efeitos e consequências na própria construção do seu processo de socialização. Assim, o termo agency é dificilmente traduzível em francês34. Para caracterizar essa capacidade de agir, a noção foi com frequência transposta na sociologia francófona, através do termo “criança ator”, ou pela noção “ofício de criança” (retomando a expressão de Pauline Kergomard que se tornou clássica após o artigo de Jean-Claude Chamboredon e Jéan Prévost35). Essa capacidade de ação foi progressivamente posta em evidência pelas diferentes correntes teóricas que contribuíram para um retorno geral do ator na sociologia francófona, do interacionismo ao individualismo, passando pelo construtivismo.
Alguns princípios parecem comuns entre sociologia da infância anglófona e francófona. Cléopâtre Montandon assim os resume em 199836:
a infância é uma construção social;
a infância é variável e não pode estar separada de outras variáveis como a classe social, o sexo e o pertencimento étnico;
as relações sociais das crianças e suas culturas devem ser estudadas em si mesmas;
as crianças devem ser estudadas como atores na construção da sua vida social e da vida dos que a rodeiam;
os métodos etnográficos são particularmente úteis para esse tipo de estudos.
Se se leva, portanto em conta, ao mesmo tempo a infância como forma estrutural, as crianças como categoria social e essa agency, então o esquema se complica e esses deslocamentos de raciocínio introduzem uma série de variações.
PRIMEIRA VARIAÇÃO. SOCIALIZAÇÃO INTERPRETATIVA E SOCIALIZAÇÃO VERTICAL INVERTIDA
O sociólogo não pode mais permanecer nos quadros institucionais e nas cenas principais. É preciso apreender esta agency e procurar identificar as consequências dessa capacidade de agir. Trata-se de tentar compreender a maneira como se modificam as relações sociais e de poder nas quais elas intervêm, modificando os parâmetros da situação.
Ao esquema vertical de socialização, a sociologia da infância vai opor e fazer suceder a visão de uma “socialização interpretativa” ou “reprodução interpretativa” - conforme a expressão do sociólogo americano William Corsaro37 -, nela a criança aparece não mais como uma tábula rasa, mas como um ator, um verdadeiro parceiro de seu processo de socialização. Pois as crianças são atores sociais, que participam das trocas, das interações, dos processos de ajustamentos constantes que animam, perpetuando e transformam a sociedade. As crianças têm, de acordo com essa definição, uma vida cotidiana que não pode ser reduzida à dos quadros instituídos, seja qual for a instituição ou a situação investigada. Sociólogos e antropólogos da medicina, como Alan Prout ou Myra Bluebond Langner, vão estar entre os primeiros a reconhecer isso, mostrando o quanto a ação da criança contribui para a manutenção da situação, por exemplo no quadro hospitalar. O trabalho que se tornou clássico da antropóloga Myra Bluebond Langner, The Private Worlds of Dying Children38, a propósito de crianças com leucemia e sobre a maneira como elas decodificam o mundo social que as envolve no hospital, coloca em evidência o trabalho social produzido pelas crianças para controlar a situação, trabalho que também permite aos adultos, pais, enfermeiras e médicos cuidar delas. É através da decodificação que as crianças fazem da situação, de sua interpretação do sentido dos exames e dos tratamentos, dos choros que se dissimulam ou dos presentes que se tornam muito numerosos, e enfim é através da atitude de “fingimento mútuo” (em relação à saída fatal) que elas adotam junto com os adultos, que se mantém a ordem social do hospital. É, portanto, a capacidade de agir das crianças que contribui para controlar a situação.
Paralelamente ao movimento de retorno do ator da sociologia geral, a criança é aqui conceitualizada como um ator integral, o processo de socialização sendo considerado num primeiro tempo a partir das teorias do interacionismo simbólico e das tradições interpretativas e fenomenológicas39.
Não há mais aqui simplesmente uma visão da socialização como uma transmissão vista como inculcação de valores e de normas de uma geração a outra e como transmissão de um patrimônio, mas uma percepção da criança como um ator, como um “ser no presente”, engajado numa troca entre gerações. Não estamos mais num esquema vertical descendente. Há um ir e vir e mesmo uma reversibilidade do processo de socialização, que coloca em questão o papel e o estatuto da geração responsável pelo processo de socialização, uma vez que “ofício de criança” e “ofício dos pais” se constroem em paralelo. “Socialização” e “parentalidade” seguem juntas, conceituadas em termos de processos contínuos e interdependentes. A concepção de uma transmissão vertical intergeracional pode ser radicalmente interrogada. Pois a relação intergeracional é questionada, a relação de autoridade se modificou, a negociação parece uma das formas mais importantes, sejam quais forem as declinações. Assim, um grande número de trabalhos fazendo referência aos usos da internet40 demonstra que não são simplesmente os adultos que introduzem a criança nas novas tecnologias e nos usos da internet, mas os membros de sua própria geração (irmãos e colegas) e que são frequentemente as crianças que são as iniciadoras das novas tecnologias na célula familiar. Conforme os meios sociais, a relação intergeracional varia: assim, nos meios favorecidos, em que a internet faz parte dos usos profissionais e pessoais dos adultos, são com mais frequência os adultos que introduzem, facilitam e supervisionam esse uso, enquanto nos meios populares, é a criança que se torna com frequência iniciadora desse uso. Nessa inversão da relação educativa, coloca-se particularmente em evidência o peso da “agency” e, portanto, seu papel como alavanca potencial da mudança social.
SEGUNDA VARIAÇÃO: SOCIALIZAÇÃO HORIZONTAL E GRUPO DE PARES
O fato de levar em conta práticas infantis e juvenis vai rapidamente introduzir outra visão de socialização desta etapa da vida, não mais em termos de socialização vertical, mas em termos de socialização horizontal, na qual o grupo de pares, o entre-crianças, além dos fenômenos geracionais, ganham cada vez mais importância na visão do sociólogo. Para analisar essa socialização, o sociólogo não vai mais explorar simplesmente a cena principal, como dizia Goffman, mas também o que se considerava como bastidores onde se desenvolvem essas sociabilidades. Em outros termos, passa-se:
da sala de aula não somente à recreação, mas igualmente aos tempos de lazer para compreender esse novo consumidor cultural;
da sala onde ficava a televisão familiar e se reagrupava a família ao “quarto da criança”, onde a criança aparentemente solitária navega numa pluralidade de mundos sociais;
da sala de refeições aos fast-foods, onde se experimentam e são compartilhados outros patrimônios culinários e outras normas de convivialidade e de partilha;
da biblioteca ao supermercado, onde se difunde uma cultura material que fornece os elementos de uma cultura de massa;
do jogo de amarelinhas ou de bolas de gude do pátio de recreação às partidas de futebol no térreo do imóvel ou na esquina da rua, onde se experimentam e são postos à prova múltiplos pertencimentos de faixa etária e de identidade de gênero.
Essas mudanças de olhar levam a um reconhecimento de formas de sociabilidade próprias às sociedades infantis e juvenis e, portanto, ao reconhecimento da criança como ator coletivo com suas próprias formas culturais. Estas introduzirão outras formas de transmissão. Das práticas legítimas às práticas ditas ilegítimas, da cultura paralela às práticas geracionais, não há mais simplesmente transmissão vertical, mas uma transmissão horizontal no nível do grupo de pares.
É a partir da análise dos processos culturais que sociólogos das mídias, sociólogos da cultura e especialistas dos Cultural Studies exploram as novas práticas e os novos mundos sociais nos/através dos quais os jovens se encontram e vão ao encontro da tribo dos nativos digitais. Alguns, como Dominique Pasquier retomando a expressão de Hannah Arendt, chegam até mesmo a falar de “tirania da maioridade”41, interessando-se pelos mundos sociais do adolescente - ou mais precisamente pela entrada na adolescência - através do uso da internet ou pelos novos ritos de passagem e do telefone celular42. Outros mobilizam a noção de “cultura do quarto”, amplamente utilizada pelos anglo-saxões, tal como Sonia Livingston43, e retomada mais recentemente pelos sociólogos francófonos.
No mundo anglo-saxão, o interesse por esta questão frequentemente acompanha o que os sociólogos chamam “um pânico moral” diante do medo de perda de controle dos universos culturais da infância. Se, para protegê-lo dos perigos da rua e da vida moderna citadina, a criança se encontra cada vez mais confinada no espaço do quarto, paradoxalmente seu universo claramente se estendeu muito mais através das múltiplas explorações que permitem a internet e as redes sociais44. O espaço-tempo da infância se modificou profundamente, daí a interrogação do sociólogo mexicano Nestor Canclini: “As crianças farão suas principais experiências formadoras em casa, na escola ou no quadro do ambiente urbano, ou a partir de agora vão adquiri-las no YouTube e nas redes sociais45?”
Trata-se, portanto, de compreender como se constroem essas culturas infantis, como se dividem essas culturas da infância e como se difundem essas culturas geracionais. Novos questionamentos emergem, complexificando ou rediscutindo as hierarquias culturais. Às análises se posicionando face a uma cultura considerada pelo alto, em termos de reprodução e de habitus ou de capital cultural, que discute o estatuto das culturas populares, sucedem análises do ecletismo cultural46 desses indivíduos plurais que se movem por diferentes cenas, nas quais constituem seus códigos culturais através de múltiplas caças culturais. Nesse tipo de análise que considera os processos culturais a partir de baixo, quer dizer, fora das hierarquias culturais, outras dimensões de análise são reintroduzidas, nas quais se misturam a diversão, o lúdico, o faz de conta. O sistema das legitimidades se mistura, o peso do grupo de pares e o peso da variável geração ganham cada vez mais importância - quer se considere a educação dita formal ou informal. Torna-se indispensável conjugá-los à complexidade da construção das identidades de gêneros e de classes. Atribuindo importância aos comportamentos econômicos e culturais dessa faixa etária, enquetes quantitativas longitudinais, como as conduzidas pelo Ministério da Cultura sob a direção de Sylvie Octobre sobre as práticas culturais, reintroduzem a infância como categoria social digna de ser objeto dos números, de sair da invisibilidade estatística e de enfim fazer parte do homo statisticus47. Permitindo enfim dispor a propósito dessa faixa etária de dados estatísticos de conjunto cada vez mais refinados, essas enquetes reintroduzem o peso da variável geração e rediscutem o peso das variáveis clássicas, tais como o pertencimento social ou de gênero, face aos usos e aos objetos das indústrias culturais, para se interrogar sobre a infância dos lazeres48.
Serão, portanto, colocadas em evidência as mutações das culturas da infância através dessas culturas midiáticas em convergência, que misturam, nas novas configurações, os objetos tradicionais da infância, como a literatura infantil, às tecnologias midiáticas mais modernas, em novos espaços e em novos calendários de consumo cultural. Pode-se tomar como exemplo aqui produtos derivados de Harry Potter que, no primeiro livro, associam filmes, jogos e disfarces, numa infinita declinação dessa cultura em convergência, como analisa Henry Jenkins49, ou o que Gilles Brougère50 chama de “roda cultural” a propósito de brinquedos como Barbie ou Pokemon.
TERCEIRA VARIAÇÃO. SOCIALIZAÇÃO E PRODUÇÃO DE SI, UM PEQUENO INDIVÍDUO FACE AO PUZZLE MODERNO DA TRANSMISSÃO
A construção de si durante a infância está submetida a uma colocação em forma social específica da modernidade, que complexifica e multiplica os atores da socialização e, paradoxalmente, remete a criança para si mesma. Certamente o sociólogo considera a criança como um ator social, mas presa em formas estruturais que contribuem para a construção da sua agency. A infância é assim considerada como presa numa sociedade de mercado, que se dirige com predileção à criança consumidora e, especificamente, à criança prescritora. Assim, a infância não é mais simplesmente um go-between presa num face a face entre instituições educativas e culturais, nas quais são transmitidos normas e valores - seja a família ou a escola, a biblioteca e o museu -, mas inserida no meio de uma sociedade de consumo em que se multiplicam os modos e as fontes de transmissão de valores e normas, seja pelas mídias ou pela publicidade. Multiplicações das tensões e das contradições caracterizam, portanto, essa socialização, que vai ao lado de uma desinstitucionalização51. Não estamos mais simplesmente num esquema vertical ou horizontal, mas no centro de um puzzle de formas de referência, no interior do qual se constroem a experiência cultural e social da criança e sua individualidade. Multiplicam-se, portanto, as possibilidades de socialização, enquanto se complexifica a construção das disposições desse pequeno indivíduo “plural”52.
Não se pode, com efeito, simplesmente considerar a criança ou o adolescente a partir de uma visão dicotômica que oporia à imagem da criança vulnerável e alienada, vítima de um mercado sem escrúpulos e fora de controle, à da criança super-herói, ator autônomo de suas escolhas, hábil desconstrutor das armadilhas do mercado e da publicidade. Passamos à uma visão muito mais complexa, em que o consumo infantil é visto ao mesmo tempo como um contexto e uma prática social em interação sutil com esse contexto. “As significações ligadas aos bens de consumo são ao mesmo tempo impostas às crianças, à infância e aos seus universos sociais e utilizadas pelas crianças como recursos que lhes permitem criar-se a si mesmas53”, como demonstram os sociólogos do consumo e das mídias Dan Cook54 ou David Buckingham55. A familiarização com os bens de consumo, com os bens culturais se faz através dos próprios usos nos diferentes grupos sociais e por processos de reapropriação individual.
Tal experiência social é certamente específica da infância, mas também comum à do indivíduo moderno, incerto, que muitos sociólogos definem como devendo produzir-se por si mesmo. Injunção que, se se aplica ao adulto, vale ainda mais para a criança. Pois o específico do “ofício de criança” é ter de produzir-se a si mesma como membro de nossas sociedades modernas, mas também a partir de um estatuto particular, o de “igual paradoxal”, como discute a filosofia política e como confirme e produz ao mesmo tempo o direito contemporâneo. Pois se a criança é desde então considerada como igual aos adultos que a criam e a educam, é esse igual paradoxal que tem necessidade deles para ser o que é56; assim ela se encontra presa numa tensão entre desabrochamento e desenvolvimento de si57, em que as crianças se formariam por si mesmas através de provações, numa educação que se tornaria em grande medida lúdica58.
A ênfase é, portanto, colocada sobre o lugar e a variação dos comportamentos culturais na apresentação de si, para si e para o outro, desses pequenos indivíduos plurais. Intervêm aqui ecletismo e privatização das práticas, individualização da constituição dos gostos e das preferências culturais, sem esquecer da diversidade e das desigualdades. Como afirmam muito claramente Jens Qvortrup, William A. Corsaro e Michel S. Honig, no seu manual The Palgrave Handbook of Childhood Studies59, trata-se aqui de apreender a infância no quotidiano, a infância banal, comum, e não a infância de laboratório ou a infância patológica, objeto de atenção e de políticas particulares. Não se trata também de direcionar as normativas do desenvolvimento da criança. Apesar disso, não se trata de colocar de lado as condições de vida estruturais, ao contrário, é preciso abordá-las em seus efeitos estruturais cotidianos, produtores de desigualdades e diferenciações sociais, sejam elas de classes, de raças, de gênero, de etnias de idades ou de desvantagens. Isso, num mundo globalizado onde, face às migrações e a um consumo generalizado, se complexifica a unidade do Estado-nação que não parece ser mais a única escala de análise pertinente.
Que se interrogue sobre os objetos da infância em termos de perpetuação e de acentuação dos estereótipos ou de mutações das práticas e das representações, a fábrica do gênero se encontra igualmente interrogada a partir dessas explorações, da mutação dessas atribuições e dessas transgressões.
Poder-se-á citar aqui o belo trabalho de etnografia de longa duração Unequal Childhoods, desenvolvido por Annette Lareau60, que trata das desigualdades da infância nos Estados Unidos enfatizando tanto as diferenças de raça quanto as de classe. A autora aborda o nível da vida cotidiana numa perspectiva bourdieusiana, distinguindo dois modelos de socialização - the accomplishment of natural growth, e the concerted cultivation - e os relaciona aos contextos socioculturais nos quais as crianças crescem. Pois a perspectiva da diversidade vista através das diferenças étnicas é uma perspectiva admitida sem dificuldades no mundo anglo-saxão. Assim, Allison Pugh61, estudando as crianças que se diferem do ícone da criança branca das classes médias, dedica-se à diversidade das infâncias. Classe social, raça e gênero vêm complexificar a análise. Não se trata aqui de justapor simplesmente desigualdade racial ou social ou de gênero para apreender a interseccionalidade, mas de compreender o que as crianças fazem dessas desigualdades, como elas afrontam o mundo através delas. Quais são suas experiências, suas representações, as significações que lhes atribuem, como delas se servem, como as negociam? etc. Esse questionamento a leva a colocar em evidência a maneira como as crianças não brancas, de baixos rendimentos, da periferia de Oakland utilizam com sutileza a cultura do consumo, na forma do que ela chama de “uma cultura da dignidade”, para gerenciar as diferenças sociais e construir ao mesmo tempo laços sociais entre crianças, entre crianças e adultos e ressignificar as diferenças de gênero e de classes.
Do mesmo modo, muitos trabalhos oriundos do Gender Studies redescobriram a infância como um laboratório da identidade de gênero, pois, seja na intimidade do banheiro, sobre os tapetes de jogos das salas da creche ou através do exibicionismo do pátio de recreação, se elaboram, através das transformações corporais, da aprendizagem do fazer-se notar e do uso dos objetos da infância, os atributos das identidades e das relações de gênero, seja dos meninos pequenos ou das meninas pequenas. A multiplicidade e a intensidade desses trabalhos permitiram à Claudia Mitchell e Jacqueline Reid Walsh, coordenar um inventário moderno - se não pós-moderno - por meio de uma bela enciclopédia da cultura das meninas62. Ao se interrogar sobre os objetos da infância em termos de perpetuação e de acentuação dos estereótipos ou de mutações das práticas e das representações, a fábrica do gênero também é questionada a partir dessas explorações, da mutação dessas atribuições e dessas transgressões.
Introduzir a infância no questionamento sociológico permite, portanto, colocar de maneira dinâmica a questão da socialização e, por exemplo, a questão das disposições culturais no sentido mais amplo, esclarecer calendários diferenciados e melhor compreender o agenciamento dos sexos e a movimentação de suas fronteiras e sua articulação com as diferenças sociais, sejam elas de classes ou étnicas.
QUARTA VARIAÇÃO. UMA SOCIALIZAÇÃO EM REVERBERAÇÃO
Ao lado das representações e das práticas dos atores, a fabricação social da infância também se apoia sobre discursos eruditos e teorias científicas. Assim, socialização e transmissões se constroem no espelho de suas próprias produções, nos jogos de traduções e de reverberações que passam de uma esfera social à outra: da esfera pública e política à esfera privada, da esfera científica à esfera midiática, da esfera midiática à esfera privada63. Esses jogos se encarnam em discursos ou dispositivos de formação, na formação do pessoal docente, da ação social ou do pessoal hospitalar, ou mesmo nos dispositivos arquiteturais que modelam quadros de vida ou objetos da cultura material64.
Tomar-se-á aqui a título de exemplo a socialização alimentar, pois esta se tornou um objeto de atenção dos sociólogos francófonos, mas também de vigilância e de crenças sociais que enfatizam particularmente a complexidade das condições de socialização das crianças. Esse campo se reconstrói no entrecruzamento de diferentes olhares65. Pois a educação alimentar se encontra presa na tensão entre discursos paradoxais oriundos de diferentes esferas: entre slogans e campanhas publicitárias incitando o consumo, centrados no divertimento e no prazer, e políticas sanitárias tentando difundir prescrições nutricionais e mensagens sanitárias para lutar contra a obesidade infantil. Daí esses slogans do PNSS (Plano Nacional Nutrição Saúde), dedicados simultaneamente ou sucedendo imediatamente às mensagens publicitárias do agroalimentar a favor daquilo que se qualificava comumente como junk-food: “Comer 5 frutas e legumes por dia”, “Comer e se movimentar”, “Para sua saúde, evite beliscar entre as refeições”, etc. Do mesmo modo, a literatura infantil recusa as figuras da gulodice e do controle do corpo66, construindo modelos particularmente normativos, que atribuem frequentemente às meninas o controle de sua linha e de seus desejos e aos meninos a satisfação de sua saciedade. Ora, as crianças adotam e rejeitam suas práticas alimentares não somente no contexto de uma sociedade de consumo, mas também no de uma sociedade de pares que fabricaria seus próprios códigos, regras e práticas. Elas estão inseridas em verdadeiros quadros vivos onde se acotovelam colegas e companheiros certamente, mas também pais, avós, professores, animadores de cantinas, vizinhas e vizinhos, irmãzinhas, irmãos mais velhos, multiplicando os diferentes códigos e os próprios usos nesses diferentes círculos sociais. As práticas alimentares da infância são rejeitadas nessas diferentes cenas sociais num entrelaçamento complexo, que multiplica as variações. Caleidoscópio que conjuga os desgostos ligados à cantina com as delícias nostálgicas dos pratos tradicionais da mesa da avó, e até mesmo os sabores do kebab compartilhados na rua entre colegas67. Encontram-se assim conjugadas atribuições de posições sociais, como idade e gênero, e mesmo atribuições étnicas, nas suas infinitas sutilezas entre posições estatutárias e posições eletivas. Pois preferências e gostos resultam de histórias individuais e coletivas nas quais muitas dimensões identitárias se colocam na cena pública ou se protegem e se dissimulam no interior da cena privada das guloseimas clandestinas68.
Isso quer dizer o quanto compreender a socialização da criança leva a multiplicar olhares e cenas para apreender a complexidade e as contradições, assim como as convergências, a fim de articular tanto socialização no cotidiano quanto políticas sociais ou discursos de experts, é o que tenta precisamente fazer a sociologia da infância.