Nos primeiros anos do século XXI, o historicamente tardio e restrito ensino superior brasileiro (cujas primeiras universidades datam dos anos de 1930 e que absorvia apenas 7% da população entre 18 e 24 anos em 1995), passou por transformações significativas. Entre 1991 e 2012, por exemplo, o número de instituições de ensino superior (IES) praticamente triplicou (Ristoff, 2014, p. 724), enquanto o número de matrículas totais passou de um milhão e meio para sete milhões (Neves e Martins, 2016, p.104-105). Em 2015, o sistema passou a abranger 22% da população entre 18 e 24 anos no país (Salata, 2018, p. 226).
Durante a primeira década dos anos 2000, essa expansão foi caracterizada, entre outros fatores, por um período de crescimento econômico, de multiplicação do emprego formal e de ganhos de renda entre as camadas baixa e média-baixa. Esse quadro de estabilidade e crescimento favoreceu a elevação das taxas de acesso às IES em meio aos perfis “não tradicionais” de universitários no país, tais como os jovens negros, estudantes de baixa renda ou os/as filhos/as de pais com baixa escolaridade (Bonaldi, 2018, Lima, 2020, Salata, 2018).
Contudo, a partir da crise econômica e política, iniciada em 2015, o quadro social e econômico deteriorou-se consideravelmente por meio de fenômenos como o aumento do desemprego e da informalidade, a estagnação da renda média e o recrudescimento das desigualdades, o pessimismo com o futuro do país e a descrença generalizada nas instituições políticas. Apesar de algumas oscilações, esses fenômenos ainda parecem matizar o cenário nacional.
Nesse contexto, o que estaria acontecendo com jovens de camadas populares que buscam acesso ao ensino superior em nossa atual paisagem social e econômica? Essa é a pergunta que Adriano Senkevics e Marília P. de Carvalho têm buscado responder em seus últimos textos, redigidos a partir da Tese de Doutoramento de Senkevics, orientada por Carvalho na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo2. O artigo dos autores, encontrado neste volume do periódico, é parte dessas publicações que reelaboram as conclusões e os resultados da Tese.
No início do texto, os autores guiam leitores e leitoras das áreas da educação entre alguns dos referenciais contemporâneos de uma área de estudos vizinha (a área de estudos sobre o trabalho), consolidando nosso entendimento sobre fenômenos como a “precarização” das condições ocupacionais, a “uberização” das posições de trabalho e a “viração” como técnica de vida, ou seja, a adoção comum e recorrente de expedientes improvisados e provisórios para obtenção de renda nas camadas populares. Esses fenômenos de precarização, uberização, viração e empreendedorismo “por necessidade” afetam diretamente os percursos e as expectativas (ocupacionais e educacionais) dos jovens e de seus grupos familiares nessas camadas. Logo, a interlocução entre as áreas da educação e do trabalho possibilita a apreensão, segundo o argumento dos autores, de dois tipos de lógicas de orientação ou de justificação das estratégias e percursos educacionais entre estudantes pobres que tentam acessar diferentes tipos de IES.
Nesse quadro, ao apresentar e discutir os resultados de duzentos questionários e vinte entrevistas com alunos de “cursinhos pré-vestibulares comunitários” em Brasília/DF, os autores observam a escolha e a alternância dos/as entrevistados/as entre dois princípios de orientação ou de justificação de suas estratégias e percursos educacionais.
O primeiro deles seria a lógica do mérito, isto é, a escolha de cursos e IES tradicionais, a partir das quais esses jovens esperam superar os percursos ocupacionais comuns em seus meios familiar e social. A lógica do mérito é orientada ou justificada, pelos entrevistados, por meio das crenças (declaradas por eles) no esforço e no mérito individual como móvel suficiente para acessar os cursos e as IES de maior reputação.
O segundo tipo de orientação ou de justificação, observada pelos autores, seria a lógica da viração ou pragmática. Nesse caso, o jovem parece transpor diretamente a lógica da “viração”, internalizada no mundo do trabalho precarizado3, para a elaboração de suas estratégias e percursos nos campos educacional e universitário. Dessa maneira, a qualidade social e acadêmica do curso e da IES são relativizadas em benefício de escolhas e estratégias pragmáticas e de menor prazo, isto é, que possam assegurar o ingresso mais rápido no ensino superior como um dos expedientes que esse jovem adota para melhorar (ainda que marginalmente) suas chances no mercado de trabalho.
A discussão do material de pesquisa descreve os percursos e pontos de vista desses jovens, por meio de comparações entre entrevistados que internalizam uma dessas duas lógicas. A “moratória diante do trabalho” concedida ou negociada junto aos grupos familiares, as dinâmicas não lineares de transição para a vida adulta e as hesitações entre a ‘individualização da culpa” ou a “corresponsabilização” pelo ‘fracasso’ são alguns dos temas discutidos ao longo do texto. Essas e outras temáticas, também discutidas no artigo, nos conduzem a apreender os percursos, as expectativas e os pontos de vista desses jovens no momento exato em que eles e elas vivenciam o dilema pulsante entre as lógicas do mérito e da ‘viração’, equilibrando-se entre os fatos e acontecimentos de suas vidas educacionais e ocupacionais. Em suma, a leitura do texto informa e estimula pesquisadores e pesquisadoras nas áreas da educação e do trabalho: vale a pena conferir o artigo publicado neste volume.