Introdução
O ato de ensinar é muito antigo, como nos lembram Lessard e Tardif (2014, p. 255), “[...] uma das mais antigas profissões, tão antiga quanto a medicina e o direito. Realidade familiar a todos, o ensino foi durante muito tempo apresentado como uma vocação, um apostolado, um sacerdócio leigo”. A docência tem sido retratada como uma missão em resposta a uma vocação e não como uma profissão.
Ainda podem ser observados resquícios desse retrato distorcido. Nesse sentido, as experiências que os sujeitos adquirem durante sua Educação Básica, por no mínimo onze ou doze anos, fomentam a criação de concepções sobre como ocorre a atividade docente, configurando-se, ainda, para os que desejam tornar-se professores, como um período de socialização prévia (MARCELO, 2009; 2010). Esse caráter de familiaridade com a docência pode obscurecer a relação da sociedade com os docentes, de modo que se tende a propagar discursos de que basta saber algo para se tornar professor, o que implica admitir que não seja necessária qualquer formação específica para o exercício dessa profissão.
Tal compreensão desconsidera uma luta histórica para a melhoria da formação de professores e busca de valorização dessa profissão, bem como por representar um grande retrocesso, tendo em vista que os cursos de licenciatura, criados no Brasil há mais de setenta anos, já representavam uma atenção quanto à necessidade de formação específica para que as pessoas pudessem atuar como docentes na Educação Básica.
Especificamente, para a Química no Brasil, foi a partir da chamada Reforma Francisco Campos, em 1931, que se estabeleceu que a formação de professores para o nível secundário deveria ocorrer em Instituições de Ensino Superior. Por meio dessa mesma Reforma, essa Ciência, enquanto disciplina escolar, passou a ser obrigatória para as duas séries finais do atual Ensino Fundamental e para as duas séries da etapa complementar para o ingresso nos cursos de Medicina, Farmácia, Odontologia, Engenharia e Arquitetura (MESQUITA; SOARES, 2011). Em São Paulo, a formação de docentes passou a ser oferecida a partir da fundação da Universidade de São Paulo, em 1934.
Não é o caso de considerar a licenciatura como a panaceia para todos os males que assolam a Educação, especialmente, quando se considera que a atividade docente ocorre em um meio social e político, mas, certamente, ela representa um avanço, uma percepção da insuficiência do domínio do conteúdo específico para uma prática educativa adequada. Esses cursos constituem-se em um período de aprendizado e construção de significados em relação à profissão de modo sistematizado e reflexivo.
Por mais que décadas tenham se passado desde a instauração da primeira licenciatura, ainda hoje se reafirma a necessidade do olhar atento para essa formação inicial, pois é, também, nessa etapa formativa, que os professores têm acesso aos conhecimentos pedagógicos de modo sistematizado, os quais devem ser mobilizados para a condução de suas respectivas práticas profissionais. A ênfase no “também” se refere a nossa compreensão de formação profissional docente contínua, de modo que não se inicia, muito menos se encerra, na licenciatura.
Assim, propomo-nos, neste artigo, a contribuir com questões relativas à formação inicial, por meio do relato de uma investigação que teve como objetivo investigar as representações sociais sobre a docência e analisar sua influência na constituição da identidade profissional de licenciandos em Química. Essa pesquisa estruturou-se em torno do diálogo entre duas teorias: a das representações sociais (MOSCOVICI, 2001; 2012; 2013) e da identidade profissional de Claude Dubar (1992; 2005; 2009).
Vislumbrar os significados atribuídos pelos licenciandos à sua futura profissão é relevante, uma vez que essa visão é permeada por suas inúmeras concepções, que refletem as ideias desses futuros professores acerca dos processos de ensino e de aprendizagem, do papel social da docência, da relação que estabelecem com sua futura atividade profissional, o que pode refletir em suas futuras práticas, uma vez que “[...] as representações servem para agir sobre o mundo e o outro”(JODELET, 2001, p. 28).
O diálogo entre a Teoria das Representações Sociais e a identidade profissional, na perspectiva de Claude Dubar
A Teoria das Representações Sociais traz a concepção de representações, na qual a representação de um objeto não é um mero processo de reprodução e sim, a reinvenção do objeto. Nas palavras de Moscovici (2001, p. 63) “[...] representando-se uma coisa ou uma noção, não produzimos unicamente nossas próprias ideias e imagens: criamos e transmitimos um produto progressivamente elaborado em inúmeros lugares, segundo regras variadas”.
Construídas a partir da comunicação entre os sujeitos, por sua natureza, não podem ser criadas por um indivíduo isoladamente, mas apresentam um caráter social de construção, e, como resultado, guiam os indivíduos em suas práxis diárias. Com a construção da representação social, torna-se possível “[...] interpretar e conceber aspectos da realidade para agir em relação a eles, uma vez que a representação toma o lugar do objeto social a que se refere e transforma-se em realidade para os atores sociais” (WACHELKE; CAMARGO, 2007, p. 381). Portanto, a realidade construída por um grupo possivelmente irá diferir da construída por outro distinto e de seus respectivos comportamentos.
Por sua vez, a construção da identidade profissional, na perspectiva de Claude Dubar (1992; 2005; 2009), se faz na articulação entre atos de atribuição e atos de pertencimento. Os primeiros se referem ao olhar do outro, uma identidade conferida aos sujeitos pelas pessoas que interagem diretamente com eles e pelas instituições; em outras palavras, é a identidade para o outro. Complementarmente, os atos de pertencimento configuram-se como a identificação ou a recusa à identidade atribuída por outrem, podendo ser compreendidos como identidade para si ou identidade real.
A proposição de Claude Dubar se alicerça na compreensão da possibilidade do outro constituir-se como um espelho; do papel deste outro na constituição do nosso eu e se insere em uma corrente nominalista, a qual contempla a dinamicidade das situações vivenciadas, ao afirmar que existem modos de identificação essencialmente temporais e dependentes do contexto social no qual o sujeito esteja inserido. Assim, considera que a identidade está sempre em formação, em um processo permanente e dialético, e, por sua natureza, nunca é dada ou mesmo considerada como pronta ou acabada (PLACCO; ALMEIDA; SOUZA, 2012).
A valorização dos campos escolares e profissionais também é uma das marcas da proposição de Dubar, que, na visão do autor, legitimam as identificações dos sujeitos. A questão central está no trabalho. Dessa forma, a valorização da escolarização se dá no sentido de vislumbrá-la como uma preparação para o emprego. Além disso, Dubar (2005) nos lembra que a escolarização das crianças, embora desconectada do mundo profissional, é decisiva na construção de suas primeiras identidades sociais, a partir da categorização atribuída pelos demais alunos e professores.
No caso específico dos futuros professores, os licenciandos, que foram o público alvo desta investigação, entende-se que é possível a constituição da identidade profissional destes sujeitos, mesmo que, eventualmente, ainda não tenham uma atuação profissional efetiva como professores, por estarem em um processo de formação inicial para o exercício da profissão no curso de Licenciatura em Química. Essa proposição tem como referência que as identidades profissionais podem ser constituídas “[...] como uma projeção de si no futuro, a antecipação de uma trajetória de emprego e a elaboração de uma lógica de aprendizagem, ou melhor, de formação” (DUBAR, 2005, p.149). Há de se considerar que os aspectos extrínsecos à docência são fundamentais para essa construção, além da relação que estes sujeitos estabelecem com sua futura atividade.
Assim, um dos principais elos que une as duas teorias é a comunhão do pensamento de que não há dicotomia individual/social, vislumbrando-se as fronteiras entre essas dimensões como tênues e, assim, difíceis de se delimitarem. Nas palavras de Moscovici (2001, p. 62) “[...] a representação deve ser uma “passarela entre os mundos individual e social”; a construção de representações sociais é totalmente circunscrita pela intersecção entre o indivíduo e o social. Nesse sentido, reconhece-se, no social, enquanto espaço de alteridade, um espaço para a construção de representações sociais, bem como [...] condição necessária para o desenvolvimento simbólico e para o desenvolvimento do Eu” (JOVCHELOVITCH, 2007, p. 65).
Dialogando com esses pressupostos, podem-se compreender as representações sociais como produtos identitários. É a partir das representações construídas sobre o próprio grupo, da posição ocupada em relação a outros grupos, “[...] que os indivíduos apreendem sua diferença e sua semelhança em relação ao outro” (DESCHAMPS; MOLINER, 2009, p. 135).
Assim, nesse assemelhar-se e distinguir-se, as pessoas vão se constituindo, permeadas por representações. No núcleo figurativo dessas representações, constam aspectos que se constituem atribuições para os sujeitos que desejam fazer parte daquele grupo. Ao mesmo tempo, há uma negociação entre essas representações e aquilo que o indivíduo vai assumir ou não como pertença. Assim, a representação tem duplo papel: se constitui atribuição de um lado e pertença de outro, tendo em vista que as representações se constituem, com frequência, pertenças dos sujeitos (MIRANDA, 2018).
Percurso Metodológico
Os sujeitos que tiveram sua constituição identitária estudada são quatro estudantes do curso noturno de Licenciatura em Química de uma universidade pública paulista brasileira, egressos do sistema público de educação básica. Buscando garantir o anonimato dos estudantes, os chamamos por nomes diferentes dos que lhes foram atribuídos quando de seus nascimentos: Laura, Tarsila, Guilherme e Simone.
Laura, na ocasião em que foi entrevistada, uma jovem de 22 anos. Apesar de sua pouca idade, já acumulava algumas experiências profissionais relacionadas à Educação, a primeira delas como plantonista em um cursinho. Em 2013, atuou como professora de Química na rede estadual de São Paulo. Laura também trabalha como professora de inglês, desde 2014, em escolas de idiomas, além de aulas particulares, tanto de Química como de Inglês.
Tarsila, 33 anos, casada. Suas primeiras experiências profissionais foram na área administrativa, em empresas voltadas à saúde. A partir de 2013, Tarsila passou a estagiar em um colégio privado, cujo pagamento, por hora-aula, era superior ao praticado no âmbito do ensino médio das redes estadual e municipais paulistas.
Guilherme, 27 anos de idade. Sua primeira experiência profissional se deu durante o período em que cursava um preparatório para o vestibular, em um teleatendimento de um banco privado, em uma central de cartões. Já como aluno da Licenciatura, trabalhou como estagiário em colégios privados.
Simone, 23 anos. Até seu ingresso na Licenciatura, diferentemente dos outros sujeitos investigados, nunca havia trabalhado. A partir de então, Simone passou a adquirir diferentes experiências na área de educação, que vão desde ter atuado como plantonista no cursinho que havia frequentado a tornar-se, em poucos meses, professora do referido estabelecimento.
Na tentativa de estreitar o diálogo com os licenciandos, possibilitando compreender melhor sua constituição identitária e a influência das representações neste processo, buscamos um instrumento que permitisse ao sujeito narrar os aspectos de sua trajetória pessoal e escolar que considerasse importantes, com liberdade e sem interrupções. Por isso, optou-se pela utilização da entrevista. Mais especificamente, entrevistas semiestruturadas. Nessa técnica, embora exista um roteiro prévio de questões, podem ser propostas outras questões à medida que as informações vão sendo fornecidas pelo entrevistado (LÜDKE; ANDRÉ, 1986). As questões propostas neste instrumento estruturam-se em três eixos: trajetória na escola básica; trajetória na licenciatura e representação de escola e de professor.
As técnicas de análise foram inspiradas na Análise de Conteúdo proposta por Bardin (1977, p. 41), onde se busca “[...] o realçar de um sentido que se encontra em segundo plano”. Em outros termos, por meio desta análise, buscamos situar as informações obtidas pelas entrevistas em um contexto de representações sociais, atribuições e pertenças.
Dessa maneira, após a leitura da transcrição das entrevistas, as respostas passaram por correções linguísticas, porém, sem que fossem alteradas as ideias presentes nas respostas. Assim, optou-se pela transcriação (CAMPOS, 1992) dos trechos da entrevista, tendo em vista que a forma associada aos modos orais de comunicação poderia divergir a atenção do leitor do que é essencial - o conteúdo. A forma, dada a natureza de nosso estudo, não fez parte do escopo de análise.
Por meio deste primeiro contato com o material, emergiram as impressões iniciais que conduziram às demais etapas de análise dos dados, sob a luz dos referenciais teóricos eleitos, as representações sociais e a identidade profissional. Neste processo analítico, objetivamos evidenciar as
[...] ‘palavras identitárias’, as categorias pertinentes da experiência em cada uma das esferas de sua existência que o sujeito decide abordar. Pode-se, então, compreender como o sujeito construiu “mundos” que têm um sentido para ele e no seio dos quais podem se situar: mundos profissionais, culturais, religiosos, políticos, etc. [...]. classificar, não pessoas como sujeitos singulares, mas tipos de categorias e de argumentações, “ordens categoriais” e ‘universos de crenças’, formas de linguagem que podem ser reagrupadas em classes e interpretadas como formas identitárias. A sociologia compreensiva e analítica procede por ‘tipificação’ de discursos, de formas linguísticas, em campos determinados da atividade, mas o que é típico são as formas (discursivas, linguísticas, simbólicas) e não os sujeitos (DUBAR, 2009, p. 242).
Assim, conforme enfatizado por Claude Dubar (2009), não são os sujeitos investigados que estão sendo categorizados, mas sim as formas vislumbradas em seus discursos, não se objetivando reduzir os sujeitos a essa categorização. Nas palavras de Dubar (2009, p. 242), “[...] cada pessoa não pode ser reduzida a uma posição em uma classificação, seja ela qual for: por definição, ela pode sempre mudar, modificar-se a si própria (com a ajuda de um terceiro), evoluir, converter-se etc.”. Compreendemos, desse modo, a amplitude dos sujeitos em comparação à categorização da presente análise.
Nesse percurso analítico, elementos foram aproximados ou destacados, permitindo a organização dos dados em três categorias (MIRANDA, 2018): (i) “Representações sociais sobre a escola e constituição identitária”; (ii) “Atribuições dos ‘outros significativos’ e ‘outros generalizados’ (MIRANDA; PLACCO; REZENDE, 2018) e; (iii) “Representações sociais sobre ser professor e constituição identitária”. Esta última será alvo de discussão no presente artigo.
Nesta tradição, a pesquisa e o estudo têm a ver, em primeiro lugar, com a mudança de uma condição de existência do pesquisador, isto é, são uma questão existencial. Em segundo lugar, nesta outra tradição, não é apenas a relação entre conhecimento e verdade que desempenha um papel básico, a relação entre ética e verdade também o faz (MASSCHELEIN; SIMONS, 2014, p. 61).
Resultados e discussão
As representações sociais sobre ser professor desse grupo social apontam as relações que esses sujeitos estabelecem com a profissão, as quais são fortemente marcadas pelas experiências a que tiveram acesso. Essa representação abarca aspectos do trabalho, do modo de agir, da formação, evidenciando que os licenciandos percebem que o professor é um dos atores sociais que possibilitam a efetivação da função social da escola.
Os jovens entrevistados comungam da percepção de que a docência está muito além da relação com o conteúdo escolar, com a Química, estando ligada à formação mais ampla dos estudantes, como se vislumbra da fala de Guilherme: “[...] você tem um peso na formação dos alunos muito grande, não só ensinar o conteúdo de Química, mas os alunos absorvem outras coisas” (GUILHERME, 2016). Esses sujeitos também manifestam o desejo de que a escolarização faça sentido para os estudantes,
[...] meu papel como professora em uma escola, o que eu gostaria é que meu significado para os alunos transcendesse um pouco da questão só do conteúdo. [...] Talvez o sentido mais próximo que os alunos conseguem ver é passar no vestibular. Ninguém consegue pensar muito bem... ‘ah, eu estou lavando a minha louça... o detergente fez espuma... como ligar isso ao que eu aprendi em Química’, chuva ácida, poluição ambiental e várias outras coisas que a gente aprende não só relacionada à Química. Eu percebo que é muito difícil fazer essa ligação, eu acho que, quando a gente conseguir isso, vai conseguir fazer sentido para o aluno, sabe?! (TARSILA, 2016).
Tal sentido poderia ser atingido pela combinação de alguns fatores, na perspectiva dos licenciandos, a saber: a busca de um rompimento com a prática tradicional costumeira; a associação da Química ao contexto imediato dos estudantes, por meio de uma abordagem contextualizada e interdisciplinar; a valorização da experiência e, ainda, pelo acolhimento aos discentes.
As rememorações dos jovens sobre suas escolarizações são marcadas pela categorização daqueles que realizavam práticas diferentes das usuais como “bons professores”, como mostram as memórias de Guilherme sobre as aulas de Matemática de seu Ensino Fundamental (EF), enfatizando que tais práticas não eram muito frequentes em comparação às dos demais professores:
[...] até uma coisa que me marcou foi raro, considerando a situação de algumas escolas públicas, o professor de Matemática levava a gente para mexer em softwares, simulações com Matemática. Era uma abordagem bem diversificada no curso (GUILHERME, 2016).
Ao narrarem sobre si na posição de docentes, foi observada essa mesma ênfase. Na descrição de uma das aulas de Simone, isso fica mais evidente, a busca do rompimento com uma prática costumeira:
[...] eu puxo ‘Casos de família’, então tem um episódio em que a menina joga ácido na outra e água [pouca, o suficiente apenas para aumentar a ionização do ácido, liberando mais energia, calor, e aumentando a possibilidade de queimaduras], aumentou [o efeito] por quê?!. Quando, no meio da aula, eles se tocam que eu estou falando de ‘Casos de família’ e pergunto por que a água aumentou o efeito do ácido, eles estão estudando Química e não estão percebendo. E eles: ‘nossa, Simone, como?!’ Então, eu saio do tradicional, eles não percebem tanto que estão estudando e eu sempre tento trazer isso (SIMONE, 2016).
Esse trecho também marca a busca por associar a Química ao contexto imediato dos estudantes, em um aprendizado em que se utilizam exemplos extraídos de fontes dissociadas de uma intenção primária de ensino, tais como as novelas, os filmes e os programas de auditório, dialogando com uma das perspectivas apontadas pela literatura especializada no campo do ensino das Ciências da Natureza, no que se refere a um dos possíveis entendimentos do que seria contextualização no ensino de Química.
Torna-se importante mencionar a existência de uma pluralidade de compreensões acerca da contextualização, que vão desde o uso de exemplos presentes no dia a dia dos estudantes para apoiar determinada explicação a uma concepção da contextualização como princípio norteador do ensino de Ciências, conforme apontado por Wartha, Silva e Bejarano (2013). As diferenças entre essas concepções são importantes e estão diretamente ligadas ao modo como são concebidos os processos de ensino e aprendizagem. No primeiro modo, o contexto está subordinado ao conteúdo, tendência que se inverte na segunda perspectiva, que contempla implicações sociais, ambientais e políticas associadas à temática escolhida (WARTHA; SILVA; BEJARANO, 2013), de modo que o estudo ultrapasse os aspectos especificamente conceituais da Química.
Embora, considerando as demais perspectivas, a contextualização que Simone propõe em suas aulas seja relativamente simples, ao aproximar o ensino do contexto imediato dos estudantes, ela revela a tentativa de ensinar uma disciplina, comumente associada com dificuldades, de um modo prazeroso, no qual o aprendizado seja conduzido de forma natural. Outro aspecto realçado pelos licenciandos, o qual caminha nessa mesma direção da busca de um sentido, é uma aproximação com os pressupostos ligados à interdisciplinaridade.
Nas palavras de Ritter e Maldaner (2015, p. 210): “[...] as situações da vida não são disciplinares e, portanto, exigem temáticas e conceitos interdisciplinares”. Desse modo, a busca dos licenciandos pela aproximação da Química com a vida dos estudantes é amparada por uma perspectiva interdisciplinar, em que se interpretam os fenômenos interdisciplinarmente.
Para os entrevistados, é necessária uma articulação entre as disciplinas, como se observa nas falas de Tarsila e Guilherme: “[...] essa escola em que eu estudei era bem focada em Biologia mesmo, não tinha uma visão muito ampla, de como ela se relacionava aos conceitos de física e química” (TARSILA, 2016) e “Matemática, Biologia têm que estar de acordo com o que você vai ensinar em Química, porque, se todas as disciplinas não caminham juntas, os alunos ficam perdidos” (GUILHERME, 2016).
Nessa direção, nas Orientações Curriculares das Ciências da Natureza, Matemática e suas Tecnologias para o Ensino Médio (BRASIL, 2006), a interdisciplinaridade é apresentada sob ideais do trabalho coletivo e dos meios para sua efetivação,
A interdisciplinaridade supõe um projeto político-pedagógico de escola bem articulado, a parceria com os gestores, sendo essencial estabelecerem relações que envolvam saberes diversificados, os dos alunos e os das disciplinas, não como mera justaposição, propiciando um conhecimento do fenômeno na sua complexidade. Para isso, é importante que seja proporcionado tempo para encontros sistemáticos de professores por áreas de estudo, que contribuam para avaliar ações disciplinares e interdisciplinares, bem como para projetar novas ações, o que potencializa práticas de trabalho coletivo sobre contextos vivenciais ou temas sociais. Sem os encontros periódicos, tais práticas tendem a permanecer como episódios isolados, sem romper com a fragmentação e a linearidade da organização curricular (BRASIL, 2006, p. 133).
Assim, a interdisciplinaridade não busca criar novas disciplinas, mas sim, articulá-las (AULER, 2003; BRASIL, 2006). Para além da intersecção entre os conceitos nas diferentes Ciências, “[...] exige-se que a cultura da estrutura curricular nas escolas seja recriada e a pertinência dos conhecimentos e suas abordagens seja discutida, o que não significa negar o caráter das especificidades disciplinares” (RITTER; MALDANER, 2015, p. 210). Na fala dos licenciandos, essa articulação foi realçada. No entanto, não mencionaram a necessidade de compreender o currículo sob outra perspectiva, a necessidade da participação docente na criação dos currículos. Entretanto, mesmo sem uma defesa clara dessa participação, os jovens falam sobre realizar escolhas para a facilitar que seus alunos interpretem aspectos de seu contexto de vida, mesmo quando limitados pelo uso de uma apostila, de um currículo definido sem sua intervenção. Novamente, no relato dos estudantes, reafirma-se a busca por atribuir um sentido para além de um estudo que se encerra em si mesmo:
Eu olho o conteúdo da apostila e falo ‘olha pessoal, em funções inorgânicas, eu não vou ficar discutindo com vocês que sal tem caráter ácido ou básico’, eu vou explicar para vocês o que é mais pertinente. Ficar decorando coisas que não tem razão, não tem sentido? Não’. Com isso, eu faria com que eles se afastassem ainda mais da realidade; quanto mais a gente bitola o nosso curso, mais o aluno fragmenta aquilo da realidade em que ele vive (TARSILA, 2016).
Embora possa-se questionar a noção revelada pela análise das entrevistas dos licenciandos no que se refere a interdisciplinaridade e contextualização, por não dialogar com algumas das perspectivas atuais da pesquisa em Ensino de Ciências, ela reforça a percepção de que eles desejam romper com o isolamento, no qual os docentes costumeiramente se veem implicados, tendo em vista que as práticas interdisciplinares, dentre outras possíveis, possibilitam a promoção de momentos de encontro entre os docentes, resgatando, ainda, a participação docente na criação dos currículos, quando trabalhada de modo adequado.
Na representação sobre “ser professor” desse grupo social, a questão da experiência também se fez presente sob diferentes perspectivas. Na fala de Laura se manifesta quando ela atribui a ideia inicial de ministrar uma disciplina a partir do que foi proposto pelo livro didático à sua parca experiência de docência: “[...] eu estava dando uma aula, estava lá no cronograma: dar uma aula sobre substâncias e misturas; porque como eu nunca tinha planejado uma disciplina, eu vou fazer como está no livro, na ordem” (LAURA, 2016).
Krasilchik (1987), há cerca de trinta anos, já alertava sobre o uso de livros didáticos para suprir deficiências de formação e atenuar as difíceis condições de trabalho dos professores. O uso de livros didáticos como balizadores das práticas docentes é algo bastante discutido na literatura (KRASILCHIK, 1987; MEGID-NETO; FRACALANZA, 2003). Nesse sentido, Megid-Neto e Fracalanza (2003) problematizam essa questão, não atenuando os problemas associados ao livro didático, mas trazendo resultados de pesquisas em que os professores, durante o processo de organização, desenvolvimento e avaliação do trabalho pedagógico, usam uma variedade de livros didáticos e de outros materiais, tais como revistas de divulgação científica e livros paradidáticos. Esses resultados mostram que o professor deixa de usar o livro como manual.
Se, inicialmente, Laura seguiu todo o roteiro proposto pelo livro didático, tal como um manual, isso foi justificado pela jovem por ser essa sua primeira experiência como docente. No entanto, após iniciar a aula, a jovem percebeu os recursos físicos disponíveis no ambiente escolar e passou a utilizar o livro na perspectiva trazida por Megid-Neto e Fracalanza (2003), a qual sugere que o professor pode fazer uso do livro didático como material bibliográfico de apoio a seu trabalho, sendo essa apenas uma das ferramentas disponíveis para sua prática docente.
[...] eu comecei a dar aula e falei: não, eu não posso dar essa aula, a gente tem um laboratório maravilhoso, com um monte de coisas. Por que que eu vou dar uma aula sobre substâncias e misturas, que é experimental, na lousa?! Aí, a gente desceu na hora e foi muito legal (LAURA, 2016).
A experiência, mesmo que breve, nesse caso, está relacionada aos conhecimentos sobre a natureza do tema que estava sendo ensinado e ao tempo de reflexão sobre o melhor modo de abordá-lo.
Tarsila e Guilherme ressaltam a experiência como fundamental para a atuação docente. Guilherme, ao ser questionado como se via no papel de professor, disserta sobre não se sentir preparado para atuar profissionalmente, vislumbrando que a experiência será fundamental para o desenvolvimento de tal sentimento. Para o jovem, isso tem um peso ainda maior do que as disciplinas cursadas na formação inicial: “[...] a experiência como professor, eu acho que tem um peso maior” (GUILHERME, 2016).
Maurice Tardif, com base em entrevistas realizadas com centenas de professores sobre questões relacionadas ao saber profissional, durante cerca de vinte anos, afirma que, para os professores, os chamados saberes da experiência são considerados “[...] o coração de todos os outros saberes, na medida em que esses são, com o tempo, confrontados com as realidades do trabalho cotidiano, moldados e validados por elas” (TARDIF, 2012, p. 34). Assim, não é de se estranhar essa noção de Guilherme, pois ela dialoga com a perspectiva de centenas de professores espalhados por diferentes partes do mundo. Os saberes experenciais, na interpretação de Tardif, são
[...] o conjunto de saberes atualizados, adquiridos e necessários no âmbito da prática da profissão docente e que não provêm das instituições de formação nem dos currículos. Estes saberes não se encontram sistematizados em doutrinas ou teorias. São saberes práticos [...] (TARDIF, 2003, p. 48-49).
São esses saberes que permitem ao professor melhorar sua prática docente, ressignificando constantemente sua atuação. São saberes alimentados e reconstruídos durante toda sua vida profissional docente.
Assim, a atuação do professor se alicerça em tais saberes, bem como nos construídos na formação inicial, sendo importante a concepção de que esses saberes necessitam de uma constante reconstrução, o que pode ocorrer por meio da formação continuada que pode ser propiciada pela escola em que atua, ao favorecer a instituição de espaços coletivos de discussão sistemática entre seu coletivo de professores, ou em ambientes externos à escola, como cursos de extensão ou de pós-graduação. A formação continuada minimiza a solidão intelectual a que o professor da escola básica geralmente vem sendo condenado, no Brasil, possibilitando a esse professor “[...] continuar pesquisando, questionando sua área de conhecimento, buscando novas informações, analisando-as e incorporando-as à sua formação básica” (PLACCO; SILVA, 2007, p. 26).
Desse modo, a formação docente só pode ser compreendida como permanente (IMBERNÓN, 2009; NÓVOA, 1992; PLACCO; SILVA, 2007). Da fala de Simone, depreende-se uma busca pela formação permanente, de modo a atender às demandas de seus alunos, como ela as percebe:
Como professora, se um aluno fala que não está entendendo alguma coisa, eu mudo, busco melhorar. Se ele não está entendendo dessa forma, eu vou ver vídeo do Tito e Canto, para ver como eles fazem, assisto aulas de amigos meus, para poder aprender a dar aulas, eu quero aprender. Eu quero treinamentos, eu quero sempre melhorar a minha aula (SIMONE, 2016).
Seu desenvolvimento profissional também se dá a partir do seu olhar para o aluno; ao identificar situações em que há dificuldades de aprendizagem, busca se aperfeiçoar para modificar tal situação. O aperfeiçoamento responde a uma demanda externa.
Percebe-se, nos sujeitos investigados, uma noção de fluidez, de vislumbrar-se em constante construção, ou seja, se constituindo profissionalmente ao longo do tempo. Quando questionados sobre como se viam como professores, essa questão ganha ainda mais destaque. Nas palavras de Tarsila: “Ai, essa é difícil! Eu ainda estou me enxergando como professora, porque estou em constante movimento” (TARSILA, 2016).
Vislumbrar-se em movimento é fundamental na constituição do professor e em seu desenvolvimento profissional, especialmente na perspectiva de formação ao longo da vida. A formação do professor não se encerra na formação inicial, iniciando-se, inclusive, antes mesmo de seu ingresso na graduação. Assim, “[...] é importante considerar que os licenciandos estão constantemente expostos a fatores que podem fazê-los reconstruir suas representações sobre o que é ser professor” (MIRANDA; REZENDE; LISBOA, 2015, p. 2). A ocorrência dessa reconstrução é induzida pelas inúmeras situações em que os professores se veem implicados, sendo fomentada por inúmeros fatores, seja a escolarização, seja a atuação profissional.
Nessa perspectiva, a possibilidade de criação de diferentes representações sobre um mesmo objeto e, assim, se identificar de modo distinto também se fez presente na análise das entrevistas. Nesse processo, o eu aluno e o eu docente podem expressar-se de diferentes formas para estes sujeitos.
Ao se narrarem enquanto professores, pensando em seu eu docente, são realçadas questões estruturais, envolvendo a remuneração, a estrutura física do ambiente escolar, a ausência de materiais, as quais dificultam o trabalho docente. Por outro lado, ao narrarem a escola sob seus pontos de vista enquanto alunos, os licenciandos ressaltam inúmeros problemas da escola pública, associando-os quase que exclusivamente aos docentes, de modo que tais problemas parecem estar isolados dessas intensas questões.
Primeiro, a questão salarial. Eu tive sorte, sempre trabalhei em lugares que tinham boa remuneração, mas tenho amigos que trabalham em escolas que pagam muito pouco. Aí, você pensa: ‘caramba, vou perder o meu final de semana para ganhar isso?’ e, ainda chegar na sala de aula, tentar implantar uma coisa legal e não ter a mínima infraestrutura para isso [...] a própria escola − você não tem laboratório, não tem dinheiro, nada - o professor tem que fazer tudo sozinho (TARSILA, 2016).
Também compreendem a importância de uma rede de profissionais que apoiem a atividade docente, como o coordenador pedagógico, de modo a mediar as discussões: “[...] ele [o professor] poder contar com um coordenador que media as discussões sobre o que vai ser ensinado entre as áreas”[...] (GUILHERME, 2016), bem como na sugestão de outras formas de agir perante as situações reais da prática docente:
[...] na escola em que trabalho é tudo de forma recorrente, a coordenadora fala: hoje vou assistir sua aula, aí ok. [...] Mas, eu acho ótimo, porque, aí, depois, eles dão dicas, a gente faz um trabalho bacana. Isso nunca aconteceu, nunca em toda minha vida escolar ninguém assistiu aula de professor (TARSILA, 2016).
Essas percepções dialogam com a literatura especializada sobre a atuação do coordenador pedagógico: esse profissional possibilita "[...] a integração entre os diferentes atores da comunidade escolar [...]” (PLACCO; SOUZA; ALMEIDA, 2012, p. 766), o que facilitaria o estabelecimento de um projeto coletivo na escola.
Os relatos de Tarsila e Guilherme mencionados acima recortam as diferentes realidades a que foram submetidos, suas vivências enquanto docentes e estagiários em escolas com uma estrutura adequada, seja de remuneração, como de apoio pedagógico, contrapostas às vivências em escolas em que o apoio pedagógico nunca se fez presente de modo que fosse evidente para eles.
O distanciamento com que lidam com o eu professor e o eu aluno nos chamou a atenção. Dubar (2005) nos auxilia nessa compreensão, na medida em que nos coloca o processo de atribuição e pertença como subjetivo, de maneira que o sujeito se torna menos objetivo quando vê a situação centrada em si. Assim, enquanto atribuição é dada a um professor que tiveram, essa atribuição é afetada pela figura do professor, pela representação que se compartilha desse profissional, e o contexto não adquire visibilidade, o eu aluno não realça as questões contextuais, possivelmente, porque esses sujeitos compreendem que foram afetados por tal situação. Enquanto que se enxergam mais nitidamente enquanto professores inseridos em um contexto, uma vez que, nessa narrativa, ganha visibilidade a vasta trama que afeta a atuação dos docentes, percebida pelas referências feitas a um conjunto de questões estruturais, envolvendo a remuneração, a estrutura física do ambiente escolar, a ausência de materiais, as quais dificultam o trabalho docente.
Ainda sob uma perspectiva de diferenciação do eu aluno e do eu professor, Simone assevera uma clara distinção entre essas duas identificações: “[...] a minha posição de aluna sempre foi muito mais sensível do que a minha posição de professora” (SIMONE, 2016). A jovem percebe-se muito mais fragilizada enquanto aluna do que na posição de docente, o que possivelmente esteja ligado à representação sobre a docência dessa jovem: alguém forte, aberto e sempre disposto a buscar diferentes meios para que os alunos aprendam. Nessa disposição, enfatiza a importância do olhar atento para os alunos, um olhar para além das questões restritas ao conhecimento: “[...] eu me espelhei nesses professores: eu queria ser como eles [...] vários professores pegaram na minha mão, conversaram comigo, me deram abraços” (SIMONE, 2016). Se é a partir das representações sociais que os sujeitos agem, a representação social compartilhada por Simone sobre o professor retrata o acolhimento esperado desse profissional.
Nesta mesma perspectiva de acolhimento, os estudantes justificam seu insucesso em algumas disciplinas com base em questões afetivas, como quando Laura discorre sobre suas aulas de Matemática no Ensino Fundamental: “[...] eu lembro que deixei de lado, porque a professora era muito má comigo e a primeira nota baixa que eu tirei, me desestimulou a estudar Matemática” (LAURA, 2016). Por sua vez, em seu Ensino Médio, considera ter sido bem sucedida nessa mesma disciplina, por ter estabelecido outra relação afetiva com a professora:
[...] eu consegui ir aquele ano bem em Matemática, porque ela me motivava muito, ela gostava muito de mim [...] me ajudou muito, porque eu via que a professora gostava de mim, eu me motivava para fazer as coisas e ela se motivava para me passar lição e a me ensinar mais (LAURA, 2016).
Esses relatos nos auxiliam a compreender o papel do olhar do outro na constituição identitária. É por meio de tal olhar que o sujeito pode também se reconhecer. Essa inferência também ganha forma na narrativa de Simone sobre a relação estabelecida com seu professor de Química. Seu depoimento revela a necessidade de que suas capacidades fossem reconhecidas pelo professor para que, por meio desse olhar, ela também se reconhecesse:
Ele tinha uma forma de te estimular pelo desafio, era uma técnica dele. Na primeira reunião, minha mãe foi falar com ele que eu estava indo muito mal e ele disse que eu tinha extrema capacidade, só precisava de um start. Eu lembro que, no final do semestre, eu fiz uma prova, de tanto ele me provocar, ele pegou minha prova, olhou e disse: parabéns, você tirou 10 e saiu andando, eu tinha acabado de fazer a prova, ele não tinha nem o direito de corrigir, ele não podia nem corrigir, mas ele sabia que aquilo era importante para mim: ouvir da boca dele que eu tirei um 10. Depois, eu fui conversar com ele e aquela capa caiu, ele falou do curso técnico, [...] tanto que ele foi a primeira pessoa que soube que eu fui aprovada, eu fiz questão de contar para ele (SIMONE, 2016).
A combinação de características discutidas nessa categoria nos permite inferir que ser professor para esse grupo social é, assim como nos disse Tarsila, “estar em constante movimento”. E, nesse movimento, esses licenciandos negam algumas das características que vislumbram em seus antigos professores, como a falta de planejamento das aulas.
Buscando construir uma identidade profissional, esses jovens também ressignificam suas observações enquanto estagiários. Nesse sentido, Carvalho (2012) nos lembra que, embora o professor, ao frequentar os bancos escolares por, no mínimo, quase duas décadas, já tenha acumulado horas e horas de observação, é importante a percepção de que a “observação”, enquanto estudante da Educação Básica, relaciona-se ao processo de construção de conhecimentos e, ainda, de socialização. Já durante a observação como estagiários, os licenciandos podem apreender as diversas possibilidades de atuação docente. No excerto de Tarsila, essas inferências ganham forma, percebendo-se, mais uma vez, a negação da identificação com os professores envolvidos em sua escolarização durante sua Educação Básica:
Eu acho que os professores que eu acompanhei no meu estágio foram ótimas referências. Eu tento, em alguns momentos da minha aula: ‘Nossa, o que a Ju faria?!’. Eu tento me espelhar um pouco nas professoras que acompanhei, em alguns professores que eu vi aqui no curso superior. Então, eu pego um tiquinho de cada coisinha que eu observei, que foi bacana para mim e eu tento fazer um mix, trazendo isso para minha personalidade, meu jeito de ser (TARSILA, 2016).
Outra faceta revelada na análise das narrativas é o prazer sentido em serem professores, em sentirem-se realizados profissionalmente, por poderem desempenhar algo de que gostam, mesmo antes de concluírem a Licenciatura. É um sentimento de que podem contribuir para que outros façam algo, como se observa no relato de Laura, sobre a oportunidade de ocupar o espaço de professor em uma das aulas ociosas, quando ainda era estudante do curso profissionalizante, já tendo ingressado na Licenciatura,
Aí, o pessoal: nossa, a gente vai fazer vestibular e não sabe nada, aí eu dei, em uma aula de duas horas, o que a professora não deu no semestre inteiro. Aí, eles gostaram... eles que pediram, eu achei bem legal. [...] Nossa, eu tão nova e já estou conseguindo dar aula, sabe?! Eu gostava, eu me sentia muito assim, me sentia realizada, porque eu pensei antes, nossa, será que eu vou ter que ficar trabalhando em coisa que eu não gosto até eu me formar, mas, não (LAURA, 2016).
Considerações Finais
Tornar-se professor é um processo que ocorre durante toda a vida profissional do sujeito. Considerar tal afirmação como verdadeira é negar discursos que apregoam que a formação específica para exercer a docência é suficiente, é ir de encontro, ainda, às concepções de que o exercício da docência é explicado por um dom que surge no nascimento de um futuro professor.
Uma importante contribuição para esse tornar-se professor é, indiscutivelmente, a Licenciatura, razão essa que nos motivou a escolher como público-alvo deste estudo os estudantes da Licenciatura em Química. A escolha desse grupo social é por nós justificada pela compreensão que esse é um momento de aprendizado sistematizado e reflexivo, bem como de construção de significados em relação à profissão. Em função de tal natureza compreendemos que as vozes desses estudantes, futuros professores precisam se tornar audíveis, pois, ao narrarem suas histórias, os sujeitos revelam aspectos que muito podem dizer a respeito de suas formações, de suas vivências, de suas socializações. Aspectos estes que podem ser considerados na proposição de ações formativas para esses e outros futuros professores, ressignificando suas formações profissionais.
Assim, por meio da escuta e análise dessas vozes, puderam ser tecidas algumas considerações acerca das representações sociais que esses sujeitos compartilham sobre o professor. As representações sociais sobre ser professor esteve ligada às vivências dos sujeitos entrevistados, como era esperado, segundo as lentes teóricas utilizadas. Os jovens entrevistados representam a docência além da relação com o conteúdo escolar, com a Química, relacionando-a à formação mais ampla dos estudantes. Esses sujeitos também manifestam o desejo de que a escolarização faça sentido para os estudantes, com o uso de alguns recursos como: a busca de um rompimento com a prática tradicional costumeira; a associação da Química ao contexto imediato dos estudantes, por meio de uma abordagem contextualizada e interdisciplinar; a valorização da experiência e, ainda, no acolhimento aos discentes.
Em síntese, depreende-se da análise das narrativas obtidas por meio das entrevistas que, a identidade profissional docente desse grupo social relaciona-se à realização pessoal, intrinsecamente ligada à motivação, à autonomia, à inovação, ao afeto para com os estudantes e à necessidade de escutá-los, de maneira que a aula ocorra com o estudante, priorizando sua fala e seus questionamentos. Percebe-se, nos sujeitos investigados, uma noção de fluidez, de vislumbrar-se em constante construção, ou seja, se constituindo profissionalmente ao longo do tempo. Tal perspectiva reafirma o papel do outro na constituição identitária, bem como, a identidade profissional como construção que acompanha a trajetória dos sujeitos.