1 Considerações iniciais
Na ciência dos desastres, o risco é conceitualizado como uma situação futura que traz a incerteza e a insegurança (Eduardo MARANDOLA JR.; Daniel HOGAN, 2004). O risco se apresenta como uma relação entre a ameaça que torna determinada área suscetível ao evento extremo e a vulnerabilidade da população ocupante daquela área (David ALEXANDER, 2011; Gustavo WILCHES-CHAUX, 1993; Susan CUTTER, 2003). A ameaça é natural. Já a vulnerabilidade é conceitualizada como um sistema dinâmico e multiescalar, que surge como consequência da interação de uma série de fatores e características (individuais e coletivas) que convergem em uma comunidade em particular, em um determinado lugar e contexto, tornando-a mais sensível ao risco (WILCHES-CHAUX, 1993).
O desastre, por sua vez, pode ser definido como um evento que ocorre, na maioria das vezes, de forma repentina e inesperada, causando intensas alterações nos elementos a ele submetidos, representadas em perda de vidas e saúde da população, na destruição ou perda de bens de uma comunidade e/ou danos severos ao ambiente natural (Omar CARDONA, 1993). Diferentes condições e funções sociais podem determinar uma maior ou menor vulnerabilidade diante do risco ao desastre. Desse modo, o risco, que pode (ou não) se desencadear no desastre, não é natural, mas resultado de uma longa cadeia de vulnerabilização das comunidades expostas aos fenômenos - esses, sim, naturais.
Assim como o gênero e a racialização são socialmente determinados, a segregação socioespacial determina, pelo código postal, o (não) acesso a equipamentos urbanos, serviços públicos e áreas ambientalmente seguras. A gentrificação nas cidades brasileiras é racializada (Milton SANTOS, 2007). Isso significa que as pessoas e ambientes são afetados de maneiras diferentes, independentemente de qual seja a ameaça - se inundação, movimento de massa,1 seca, terremoto etc.; classificações segundo a Codificação Brasileira de Desastres (COBRADE). É preciso, portanto, apontar o caráter estrutural e sistêmico do capitalismo em reproduzir as desigualdades raciais, de classe e de gênero ao produzir os cenários de desastres ditos naturais.
As desigualdades de gênero e raciais são potencializadas em decorrência de desastres. Segundo a Organização das Nações Unidas (ONU), mulheres e meninas têm mais probabilidade de morrer em tragédias causadas por fenômenos naturais (ONU, 2017). No desastre provocado pelo furacão Katrina, em 2005, no Mississippi, as pessoas mais afetadas foram mulheres negras, homens negros e, em seguida, mulheres brancas, destacando como as relações sociais de poder e controle a partir do gênero e da raça não se dissociam (Punam YADAV et al., 2021). Yadav et al. (2021) afirmam que a interseccionalidade entre raça, classe e gênero pode ajudar a examinar múltiplas identidades que se entrecruzam, e que estão associadas a opressões e desigualdades estruturais que se refletem nos cenários de desastres.
No Brasil, com a ocupação desigual, excludente e caótica do espaço urbano, os desastres provocados por escorregamentos passaram a ser frequentes nas chuvas de verão, acometendo a população residente nas áreas ambientalmente inseguras e com infraestrutura urbana precária. Nesse sentido, uma das questões centrais para uma gestão de riscos preventiva e eficaz passa por investigar e compreender as características dos diferentes grupos de pessoas em um cenário de risco ambiental iminente. Conhecer para prevenir.
Isto posto, a partir de uma epistemologia interseccional (Carla AKOTIRENE, 2020), busca-se aqui analisar as condições sociais e materiais de vulnerabilidade de mulheres residentes nas áreas de risco a movimentos de massa no município de Santos, no litoral de São Paulo. Santos é um município situado em zona costeira, com um dos maiores portos da América Latina, e que apresenta alta densidade demográfica e diversidade geomorfológica. Tais características são expressas na alta competição pelo uso do solo, o que resulta em evidente segregação socioespacial e na ocupação dos Morros pela população vulnerabilizada socioeconomicamente. Ademais, a população dos Morros vem sendo afetada por desastres hidrológicos e/ou geológicos de grande magnitude ao longo de quase um século, o que justifica a escolha deste território como recorte de estudo.
Para atingir o objetivo proposto, desenvolveu-se aqui uma metodologia qualiquantitativa que faz uso de métodos estatísticos (indutivo e descritivo) e de geoprocessamento em Sistema de Informação Geográfica (SIG) (Marcos Cesar FERREIRA, 2014). Os dados apresentados e as discussões concatenadas contribuem para a compreensão de como e por que as mulheres residentes em áreas de risco são mais impactadas e têm maior dificuldade em se recuperar dos desastres - sendo essas informações de suma relevância para que a tomada de decisão para RRD se dê de maneira informada e preventiva.
2 Gênero, raça e classe: interseccionalidade da condição de risco a desastres
O direito à cidade (David HARVEY, 2012) - e aqui se inclui a cidade ambientalmente segura e ecologicamente equilibrada - relaciona-se, indissociavelmente, às desigualdades de gênero, raça e classe. Akotirene (2020) resgata o conceito da “interseccionalidade” nos estudos sociais com o intuito de dar “instrumentalidade teórico-metodológica à inseparabilidade estrutural do racismo, capitalismo e cisheteropatriarcado” (AKOTIRENE, 2020, p. 19). Essa interseccionalidade (re)produz no espaço urbano segregações raciais que resultam em guetos, periferias, favelas, aglomerados subnormais - vários são os nomes para a vulnerabilização socioespacial. Como aponta Lélia Gonzalez (2020, p. 85):
O lugar natural do grupo dominante são moradias saudáveis, situadas nos mais belos recantos da cidade [...]. Desde a casa-grande e do sobrado até os belos edifícios e residências atuais, o critério tem sido o mesmo. Já o lugar natural do negro é o oposto, evidentemente: das senzalas às favelas, cortiços, invasões, alagados e conjuntos habitacionais [...] dos dias de hoje, o critério tem sido simetricamente o mesmo: a divisão racial do espaço.
A vulnerabilidade a desastres, portanto, não pode ser totalmente compreendida a partir de avaliações em que a interseccionalidade da desigualdade social é ignorada. Tampouco o gênero pode ser tratado como uma “categoria monolítica” (ZAIDI; FORDHAM, 2021), como vem sendo empregado tanto em relação às pesquisas de desastres, quanto aos instrumentos jurídicos urbanísticos e às políticas públicas de gestão e RRD. Dentro e fora do lar, as mulheres, principalmente as não brancas, são as mais afetadas pela crise socioecológica e pelos desastres ambientais. São também as mais violentadas física, psíquica e institucionalmente nesse processo. As mulheres consistem, atualmente, em 80% das refugiadas pelo clima no mundo (Cinzia ARUZZA; Tithi BHATTACHARYA; Nancy FRASER, 2019, p. 84).
Nos contextos domésticos, por sua vez, os desastres desmancham as rotinas e, muitas vezes, os meios vitais e sociais necessários à reprodução do grupo. Nesses cenários, as mulheres são as mais acometidas por “psicopatologias, como estados depressivos ou ansiedades, assim como os transtornos por estresse agudo e por estresse pós-traumático, além de patologias como diabetes do tipo 2, pressão alta, doenças cardiovasculares e respiratórias” (Mariana SIENA; Norma VALENCIO, 2009, p. 65).
Sendo as mulheres as encarregadas do gerenciamento da rotina familiar, elas são também indiretamente afetadas pelos impactos na saúde física e mental do restante dos membros da família atingidos por um desastre. Mulheres atingidas pelo desastre em Blumenau, Santa Catarina, em 2008, e entrevistadas por Rosana Freitas e Cristiane Campos (2010), relataram episódios de choro compulsivo dos filhos quando chovia - o que as colocava sob forte tensão psíquica, já que são responsabilizadas pelos cuidados material e afetivo das crianças.
Soma-se a isso o fato de que a divisão generificada e racial do trabalho, que responsabiliza as mulheres pelas tarefas domésticas de alimentação, limpeza e cuidados - tarefas que requerem acesso à água -, as coloca em posição de maior vulnerabilidade quando o acesso ao saneamento e à segurança hídrica são interrompidos pelo desastre. Segundo dados da Política Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD) de 2017, as mulheres dedicam, em média, 10 horas a mais por semana na execução de tarefas domésticas quando comparadas aos homens (Talita OLIVEIRA; Jéssica BARCELLOS; Júlia COSTA, 2021).
Para além disso, há as famílias monoparentais chefiadas por mulheres, o que as coloca em uma situação de vulnerabilidade ainda maior, visto que são as únicas responsáveis pela gestão financeira, familiar e doméstica como um todo. A contaminação hídrica também é um agravante que pode ocorrer nesses cenários, além de casos epidemiológicos que comumente surgem no pós-desastre, como a leptospirose (Luciana LONDE et al., 2018). Enfermidades nas comunidades afetadas, principalmente entre crianças e idosos, sobrecarregam as mulheres responsáveis pelo lar, já que o trabalho de cuidados recai sobre elas.
Outros impactos que excedem o evento em si, mas que são por ele agravados, emergem nesses contextos. Algumas mulheres suportam maiores níveis de violência de seu companheiro ou vivenciam essa violência pela primeira vez após o desastre. Siena e Valencio (2009) chamam atenção para o fato de que quando alguns homens experimentam um sentimento de perda e frustração, ou quando se sentem impotentes frente à realidade do desastre, aumentam-se as reações de cólera e violência por parte desses homens para com os familiares mais próximos e mais vulneráveis.
Com a perda das fontes de renda e subsistência, da moradia, de pertences essenciais e com a dificuldade de recuperação material pós-desastre, perde-se a medida objetiva do poder do homem dentro e fora do lar, o que reflete na desestruturação da autoridade masculina (Verónica GAGO, 2020). Analisando cenários pela América Latina, Gago (2020) relata o aumento das taxas de alcoolismo e depressão entre os homens e sua relação com a queda da posição de provedor, refletindo em um aumento no número de casos de violência doméstica e feminicídio. Isso, junto à socialização que normaliza a violência de gênero, torna as mulheres mais suscetíveis à violência também no contexto familiar e, portanto, mais vulneráveis aos desastres.
Por outro lado, o foco seletivo de indicadores em mortalidade e morbidade femininas em desastres reforça o paradigma da vítima, reverberando nos padrões socioculturais. “Isso contribui para que, em um momento de desastre, o agente de emergência trate a mulher como o ser vulnerável que precisa obedecer a uma ordem oficial, pública” (SIENA; VALENCIO, 2009, p. 61). Soma-se a isso a divisão generificada do espaço, cuja concepção que se acomoda no imaginário social naturaliza o espaço público como um espaço do homem (SIENA; 2009). Às mulheres cabe o espaço doméstico, de reprodução da família. Situar as mulheres unicamente como vulneráveis, ‘sexo frágil’ e restritas à esfera doméstica contribui para minimizar o papel ativo que elas representam nas práticas de gestão de desastres, como promotoras de resiliência e como líderes comunitárias (ZAIDI; FORDHAM, 2021).
As desigualdades são potencializadas nos cenários de desastres também devido à imposição de novas obrigações que reforçam os papéis de gênero e as divisões de tarefas que os acompanham (FREITAS; CAMPOS, 2010). Elaborado pela Secretaria Nacional de Defesa Civil (SEDEC), o Manual de Planejamento em Defesa Civil (SEDEC, 2007, p. 49) aponta:
Em princípio, as mães de família representam os grupos familiares uniloculares nas atividades domésticas relacionadas com a manutenção, a limpeza dos abrigos e o recebimento dos gêneros, enquanto os pais representam as famílias nos trabalhos de reabilitação dos cenários e de reconstrução.
O manual destaca, ainda:
As medidas de manutenção e de limpeza das instalações e das habitações familiares nos acampamentos e abrigos provisórios são muito importantes e dependem da participação das mães de família. As matriarcas devem ser despertadas para a importância do assunto e o amor próprio das mesmas deve ser despertado, pelo estabelecimento de um clima de sadia competição, em torno da capacidade de manter as instalações sanitárias limpas e sem mau cheiro (SEDEC, 2007, p. 56).
É possível notar como os próprios manuais elaborados pelo poder público federal para a gestão de calamidades reforçam a divisão binário-generificada dos papéis a serem desenvolvidos e dos lugares a serem ocupados (materiais e simbólicos). As mulheres são encarregadas da manutenção de uma certa “estabilidade emocional”, que deve ser expressa na manutenção da higiene dos abrigos compartilhados entre famílias afetadas pelo desastre e despossuídas de suas casas (SEDEC, 2007, p. 56).
As necessidades que envolvem compartilhamento de atividades, cuidado com crianças, idosos, pessoas com deficiência e enfermos, obtenção e garantia de renda familiar em condições adversas, dentre outros elementos, se alteram na medida em que o desastre traz custos adicionais para a superação dos danos e perdas ocorridas. A vulnerabilidade em suas diversas expressões (como de raça, classe e gênero), portanto, não são agravadas somente pelo impacto do evento em si, como concluem Freitas e Campos (2010), mas pela forma como decisões são tomadas e pelo próprio modo de gestão e organização social no pré, durante e pós-desastre. A seguir, discorre-se, brevemente, sobre como a interseccionalidade entre gênero e raça são consideradas em algumas diretrizes de políticas públicas para gestão e RRD.
3 (Des)racialização institucional do gênero: o pacto narcísico da branquitude
Pouco se fala, nos espaços da branquitude, sobre as benesses que a relação de dominação e segregação racial promovem para a população branca. Visto isso, faz-se urgente, a partir da ciência, “auxiliar as novas gerações a reconhecerem o que herdaram naquilo que vivem na atualidade, debater e resolver o que ficou do passado, para então construir uma outra história e avançar para outros pactos civilizatórios” (Maria Aparecida BENTO, 2022, p. 35). Essa construção tem como ponto de partida o reconhecimento das instituições na reprodução do racismo e do machismo. As instituições públicas e privadas “definem, regulamentam e transmitem um modo de funcionamento que torna homogêneo e uniforme os processos, ferramentas e sistemas de valores”, majoritariamente masculino, cisheteronormativo e branco (BENTO, 2022, p. 18). É possível observar essa homogeneização e uniformização nos processos que envolvem a proposição de diretrizes e políticas públicas na esfera da gestão e RRD e resiliência.
Desenvolvido pelo Escritório das Nações Unidas para Redução do Risco a Desastres (UNISDR), o guia para gestores locais intitulado Como construir cidades mais resilientes (UNISDR, 2012) menciona sobre a necessidade de aplicação dos “princípios de igualdade de gênero e inclusão” (UNISDR, 2012, p. 61) em um planejamento estratégico para a prevenção e a resiliência a desastres. Comenta, também, sobre a urbanização sustentável como “um processo que promove uma abordagem integrada, sensível ao gênero e em prol dos pobres para os pilares sociais, econômicos e ambientais da sustentabilidade” (UNISDR, 2012, p. 86). Apesar de a perspectiva de gênero ser apresentada - “gênero” aparece cinco vezes ao longo das 98 páginas do documento -, ainda que de modo pouco significativo e que diz respeito a uma equidade abstrata, a interseccionalidade com os atravessamentos étnico-raciais é ausente.
Observa-se aquilo que R. Zehra Zaidi e Maureen Fordham (2021) alertam como a perspectiva monolítica do significante gênero, e que Bento (2022) menciona como homogeneização e universalização da branquitude. Além de o gênero remeter exclusivamente à categoria mulher, a mulher universal, além de cis, é branca. Assim, desconsidera-se as dinâmicas de opressão racial e a perpetuação daquilo que segrega mulheres brancas e não brancas. Essa transmissão secular de privilégios - e do que se chama aqui de “desracialização institucional do gênero” nas políticas de RRD - atravessa gerações e não altera as relações de dominação praticadas por determinados grupos. Muito pelo contrário, não nomeando-as, apenas as deslocam e normalizam.
Bento (2022) define como “pacto narcísico da branquitude” a cumplicidade não verbalizada entre pessoas brancas e que pode ser expressa em políticas públicas sem comprometimento com uma transformação social antirracista. O Manual de Planejamento para Resiliência Urbana a Desastres (Fatima SHAH; Federica RANGHIERI, 2012), elaborado pelo Banco Mundial, elenca a questão do gênero dentro das categorias de vulnerabilidade; no entanto, sem considerar a questão racial. Observa-se a mesma lógica no Marco de Sendai (UNITED NATIONS, 2015), documento resultado da III Conferência Mundial sobre Redução de Desastres Naturais das Nações Unidas e norteador de agendas multilaterais globais.
Esse cenário de omissão se repete nos instrumentos e políticas públicas para gestão e RRD no Brasil. Desenvolvida em uma pesquisa colaborativa entre o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e o Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (CEMADEN) - este localizado institucionalmente no Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação -, a Base Territorial Estatística de Risco (BATER) (IBGE; CEMADEN, 2018) é uma base dados que possibilita a associação entre os resultados do censo demográfico e do mapeamento das áreas de risco no Brasil (Mariane ASSIS DIAS et al., 2018). Para fazer a associação entre os dados censitários e as áreas de risco e, assim, gerar informações sobre as populações nelas residentes, foi necessário compatibilizar as geometrias das fontes de dados devido às diferenças entre a natureza dessas informações geográficas (ASSIS DIAS et al., 2018). A BATER concretiza essa associação e, por meio dela, torna-se possível estimar a população em risco e caracterizar suas condições de vulnerabilidade.
Considera-se que esta construção é um avanço para a ciência dos desastres e o planejamento de políticas públicas para RRD, tendo em vista que o levantamento de riscos, no Brasil, é traduzido em termos de quantificação e avaliação da ameaça natural, e não da sobreposição entre ameaça e vulnerabilidade da população exposta. A BATER, portanto, surge no sentido de suprir essa lacuna a partir da criação de uma base de dados pública e confiável. É essa a base de dados utilizada no presente artigo para realizar a análise estatística das áreas de risco a movimentos de massa em Santos, SP - tendo a vulnerabilidade social das mulheres como objeto de estudo e a “interseccionalidade” (AKOTIRENE, 2020) como aporte teórico-epistemológico.
Dentre os dados levantados nacionalmente pelo censo, a BATER elenca diversas caraterísticas das populações expostas ao risco a desastres baseadas na categorização de variáveis. São listadas 135 variáveis da base de dados por total de domicílios e 183 variáveis por total de moradores (IBGE; CEMADEN, 2018). Apesar de as categorias terem sido elencadas a partir de um referencial bibliográfico de qualificação e quantificação da vulnerabilidade, há que se questionar o porquê da não racialização dessas variáveis na categorização do risco, tendo em vista que o levantamento étnico-racial é disponibilizado pela base de dados censitária do IBGE. Essa prática em nível nacional acompanha a agenda global para RRD e construção de resiliência - como observado no documento supramencionado do Escritório das Nações Unidas para Redução do Risco a Desastres (UNISDR, 2012), que orienta as políticas públicas para RRD regulamentadas no Brasil.
É necessário colocar em debate que essa “desracialização institucional do gênero” - e das próprias questões econômicas - faz parte daquilo que Bento (2022) nomeia como “pacto narcísico da branquitude” e que estrutura nossas instituições, posto que o racismo é, além de institucional, estrutural (Silvio ALMEIDA, 2020). A vulnerabilidade a desastres, portanto, não pode ser totalmente compreendida a partir de avaliações em que a interseccionalidade da desigualdade social é ignorada. Tampouco o gênero pode ser tratado como uma “categoria monolítica” (ZAIDI; FORDHAM, 2021), como vem sendo empregado tanto em relação às pesquisas de desastres, quanto aos instrumentos jurídicos urbanísticos e às políticas públicas de gestão e RRD. Nesse sentido, salienta-se a urgência de incidir nas relações de dominação perpetuadas pelas instituições, as quais se evidenciam pela reprodução do racismo institucional e do pacto narcísico da branquitude.
Como o desenvolvimento do presente artigo e sua construção epistemológica aconteceram de maneira dialética, ao deparar-se com a ausência de dados raciais na BATER, fez-se necessário tecer reflexões acerca desse apagamento - por isso a pertinência deste tópico. Fazendo uso diretamente da base de dados do censo, e não da BATER, seria possível obter apenas uma aproximação estimada de espacialização dos dados raciais, tendo em vista que a geometria das feições geográficas - e dos dados disponibilizados em cada uma delas - não são equivalentes.
O gargalo para o desenvolvimento de uma pesquisa interseccional, que analisa o gênero também a partir da classe e da raça, encontra-se na ausência de dados raciais precisos das populações em áreas setorizadas como de risco. Antes de apresentar os dados e a metodologia da qual se parte, é preciso contextualizar historicamente os processos econômicos, geográficos e territoriais de produção espacial da cidade de Santos. E, com isso, o processo de ocupação das áreas de risco estruturado pelas desigualdades sociais.
4 Breve contextualização do município de Santos, São Paulo
Compreender a forma e o conteúdo da urbanização de determinado território é fundamental para a compreensão do processo de consolidação de assentamentos em áreas de risco. Assim, a problemática socioambiental que passa pela ocupação das áreas de risco só pode ser equacionada por meio da perspectiva histórica, defrontando as pessoas com as questões sociais que são estruturantes e que trazem reflexos ao ambiente construído.
A cidade de Santos possui uma população estimada de 419.400 habitantes (IBGE, 2010), distribuída em uma área total municipal de 271 km², que se divide em uma parte continental, onde se encontram as vertentes inclinadas da Serra do Mar, e uma parte insular, que compreende um terço da área total e onde reside a maior parte da população (Maria Isabel MARTINS; Lindon MATIAS, 2019). A alta densidade demográfica, com 99,93% da população (IBGE, 2010) ocupando um terço do território, associada à expansão portuária e à especulação imobiliária, reflete um cenário de intensa disputa territorial por áreas privilegiadas, urbanizadas e ambientalmente seguras.
A Figura 1 apresenta as áreas de risco aqui analisadas. É possível notar que todas elas se encontram nos setores classificados pelo IBGE como aglomerados subnormais. Segundo o IBGE (IBGE, 2010), aglomerados subnormais são, em geral, caracterizados por um padrão urbanístico irregular, carência de serviços públicos essenciais e localização em áreas com restrição à ocupação.
#PraTodoMundoVer Mapa de localização das áreas de risco analisadas na cidade de Santos, litoral de São Paulo, indicando que as áreas de risco se encontram sobrepostas aos polígonos que representam os setores classificados pelo IBGE como aglomerados subnormais. Embora nem todos os aglomerados subnormais sejam demarcados como áreas de risco, todas as áreas de risco se encontram nas áreas demarcadas como aglomerados subnormais. A imagem de fundo onde se localizam os polígonos compreende uma imagem de satélite em que é possível ver o contraste dos morros suscetíveis aos escorregamentos em relação ao tecido urbano.
Santos é um município portuário, sede da Região Metropolitana da Baixada Santista, e abriga o porto marítimo mais movimentado da América Latina e um dos maiores do mundo. Considerado como uma das maiores economias do Brasil, Santos figura entre os seis municípios com maior índice de desenvolvimento humano (IDH) (IBGE, 2010). Tais características fazem desta região um lugar atraente para grande diversidade de atores sociais, nacionais e estrangeiros à procura de oportunidades econômicas, gerando pressões sobre o tecido urbano. Em Santos, configuram-se grandes bolsões de miséria em contraste com seu desenvolvimento econômico e o volume de riqueza movimentado (PÓLIS, 2012).
Atraídos pela tímida industrialização dirigida pela nascente burguesia nacional e financiada pelo capital internacional, enormes levas de imigrantes desembarcaram no porto de Santos desde o período colonial e ali se estabeleceram. Em 1872, a população praticamente dobrou, chegando a 9.191 habitantes. Após a expansão do porto, esse número subiu exponencialmente e atingiu, em 1913, a marca de 88.967 habitantes (César Augusto SILVA, 2014). Com o aumento populacional exponencial, a escassez de terrenos para habitação e o avanço do porto sobre a malha urbana, a especulação imobiliária se tornou cada vez mais atuante.
O desenvolvimentismo da região, baseado na relação entre porto, indústria automobilística e indústria de base, foi decisivo na intensificação do processo de urbanização que se evidenciaria no município de Santos (PÓLIS, 2012). O crescimento repentino da população não só superlotou certas áreas, como também levou ao desmatamento de outras. Enquanto na região central e na orla a expansão da malha urbana acontecia a partir de uma diretriz administrativa e urbanística, na região noroeste e dos morros, a fiscalização não era tão intensa, e os loteamentos e habitações surgidos nesta época resultaram na ocupação de áreas alagáveis e de encostas de morros.
A evidente e completa separação do porto em relação à cidade impôs ao tecido urbano uma exclusão de determinados locais. Pedro Manuel Sales (1999) aponta a ausência de uma mínima articulação e coerência entre a gestão urbana e a portuária, o que se traduziu em um zoneamento permissivo, submetendo a primeira às determinações produtivas da segunda e escancarando a subordinação do Estado aos interesses do capital. Sales (1999) demonstra o avanço da expansão portuária entre as décadas 1822 e 1980, explicitando que esta é a lógica operante desde o Brasil colônia: a de um espaço urbano voltado para o comércio exterior e ao capital internacional, pressionando a população a uma segregação socioespacial que atende a interesses econômicos.
Apesar de distintos governos ao longo das décadas, a política de Estado no Brasil sempre buscou priorizar a terra pelo seu valor de troca em detrimento do seu valor de uso (moradia digna universal e em áreas ambientalmente seguras - como preconiza a Constituição da República Federativa do Brasil (BRASIL, 1988)). Essa disputa territorial ordenada pelo desenvolvimento econômico empurrou a população de baixa renda para as áreas de risco a movimentos de massa nos morros e a inundações na zona noroeste de Santos.
Entre 1991 e 2000, a taxa de crescimento populacional se estabilizou, embora tenha sido observada a intensificação da ocupação dos morros (PÓLIS, 2012). A ocupação das áreas de risco nos morros santistas, portanto, pode apresentar relações diretas com a piora das condições socioeconômicas de vida da população e com a gentrificação provocada pela especulação imobiliária e pela expansão portuária sobre o tecido urbano - essa gentrificação é demonstrada por Clarissa Souza (2006).
Compreende-se, com isso, que determinados grupos em situação de maior vulnerabilidade são levados a ocupar áreas de risco por não conseguirem arcar com os custos de uma moradia digna em área urbanizada e ambientalmente segura. Esse (não) acesso, como dito anteriormente, é determinado socialmente pelo/a gênero, raça e classe no sistema capitalista de produção do espaço urbano. Serão analisadas, em breve, as condições materiais das mulheres residentes em áreas de risco a partir de uma epistemologia interseccional, tomando como categoria a vulnerabilidade a desastres. Para tanto, passa-se à metodologia empregada neste artigo.
5 Metodologia
No desenvolvimento da pesquisa, foi utilizada uma metodologia qualiquantitativa. Além da aplicação de métodos estatísticos para o tratamento de dados sociodemográficos, também foi desenvolvido um produto cartográfico de representação de algumas dessas variáveis por meio de um Sistema de Informação Geográfica (SIG), a partir do programa ArcGIS. Assim, considera-se o pressuposto de que “o espaço geográfico real foi transformado em um modelo de espaço geográfico digital” (FERREIRA, 2014, p. 50).
Todavia, é importante salientar que essa abstração teleológica se dá no intuito de compreender a essência do objeto de pesquisa, tendo em vista que a experiência da realidade material e concreta se dá pela totalidade dessas camadas, jamais apreensível como um fato em sua concretude, pois a realidade é dialética e transforma-se a todo momento.
Para a seleção do recorte territorial objeto de estudo, foram realizadas a coleta e o processamento de dados bibliográficos e sociodemográficos. A base de dados utilizada compreende a BATER, supramencionada, viabilizada pelo IBGE e CEMADEN (IBGE; CEMADEN, 2018). A BATER resulta da intersecção dos dados do censo demográfico de 2010 (o censo mais recente disponível) com as áreas de risco a movimentos de massa, provenientes da metodologia de setorização elaborada pelo Instituto de Pesquisas Tecnológicas de São Paulo (IPT). Por meio da BATER, disponibilizada na plataforma do IBGE, é possível realizar uma análise espacial pela intersecção dos processos sociais e geológicos. Assim, avança-se na execução de políticas públicas para RRD fazendo uso de um banco de dados existente, confiável e de domínio público.
A partir da BATER, foram elencadas algumas variáveis (ou atributos) que contribuem para a compreensão de elementos que implicam uma maior vulnerabilidade das mulheres frente aos riscos a movimentos de massa - o cenário que se pretende aqui discutir. As variáveis elencadas foram: (a) domicílios com/sem saneamento básico (distribuição de água e esgotamento sanitário via rede geral de esgoto ou pluvial); (b) número de crianças menores de 14 anos (faixas etárias de 1 a 5 anos e de 6 a 14 anos); (c) número de idosos com idade superior a 60 anos; (d) homens e mulheres responsáveis pelo domicílio; (e) homens e mulheres responsáveis pelo domicílio sem rendimentos; (f) homens e mulheres responsáveis pelo domicílio e não alfabetizados/as.
As variáveis agrupam-se em variáveis categóricas e em variáveis numéricas, e a análise estatística aqui desenvolvida, a partir do método descritivo, parte do cruzamento entre essas variáveis. Todos os dados da presente pesquisa, tanto os que alimentam a BATER (IBGE; CEMADEN, 2018), quanto os que alimentam o Sistema Estadual de Análise de Dados do estado de São Paulo, a Fundação SEADE, que atribui a qualificação do Índice Paulista de Vulnerabilidade Social (IPVS) aqui utilizado para a produção cartográfica do mapa de vulnerabilidade (FUNDAÇÃO SEADE, 2010), são provenientes do censo de 2010 (IBGE, 2010).
Utiliza-se a proporção (percentil) como representação estatística dos dados porque a relação entre os números absolutos de cada BATER era contrastante. O fato de algumas serem menos ou mais populosas pode interferir na compreensão dos dados e resultar em análises equivocadas, se representadas em número absoluto. Cabe destacar que as áreas de risco mapeadas em Santos e disponíveis na BATER referem-se à suscetibilidade a movimentos de massa em Santos. Nas áreas analisadas na presente pesquisa, foram mapeados 6.807 moradores (entre homens e mulheres) em áreas de risco, residentes em 1.954 domicílios.
Apesar dos dados apresentarem uma defasagem de doze anos, principalmente em um cenário de mais de uma década atravessado por diversas crises globais e nacionais, e por uma pandemia que contribuiu para mudanças profundas na realidade social, o censo de 2010 é a fonte oficial de dados mais recentes disponível em escala nacional. Importante destacar que o atraso na realização do censo de 2020 se deve às condições sanitárias impostas pela pandemia de Covid19 e à inoperância do governo Federal na gestão das crises sanitária e econômica (Eduardo MARQUES, 2022).
Neste artigo, parte-se de uma análise de sexo binário que condiciona o gênero também a uma classificação binária baseada no sexo, visto que o IBGE não faz o levantamento de autodeclaração de gênero. Nesse caso, a questão das mulheres transgêneras e transexuais e de pessoas não binárias deveria ser averiguada com maior atenção, dado que a vulnerabilização e a marginalização dessas pessoas na nossa sociedade é ainda maior. Assim, o que aparece no censo como sexo feminino e masculino, lê-se aqui, respectivamente, como homens e mulheres em uma compreensão generificada, por compreender que, para o censo do IBGE, sexo feminino se refere à mulher e sexo masculino se refere ao homem.
Como mencionado anteriormente, a lacuna dos dados raciais atenta para aquilo que se entende aqui como “racismo institucional” (BENTO, 2022; ALMEIDA, 2020). Mesmo que o levantamento racial exista no universo de dados do IBGE, durante a categorização populacional das áreas mapeadas como de risco, sua relevância para a análise da vulnerabilidade da população exposta não foi considerada. Essa ausência traz limitações à análise aqui proposta. Contudo, abre precedentes para que novas investigações sejam desenvolvidas.
6 Vulnerabilidade de gênero em áreas de risco a desastres
O crescimento urbano acelerado, associado à expansão portuária e à especulação imobiliária em uma cidade marcada pela alta densidade demográfica, estruturou em Santos um padrão de evidente desigualdade territorial. Isto se reflete nas formas de urbanização do espaço e de ocupação das áreas de risco. A cidade de Santos concentra grandes bolsões de pobreza e, consequentemente, de precariedade habitacional, que expressam as diversas realidades intramunicipais. As moradias em áreas de risco a movimentos de massa em Santos se localizam em encostas de morros e são, em sua maioria, autoconstruídas (Figura 2).
Fonte: Acervo Público Defesa Civil de Santos.
#PraTodoMundoVer Fotografia panorâmica de uma área de risco estudada onde podem ser observadas casas autoconstruídas, em situação de precariedade habitacional, situadas em encostas íngremes e com vegetação remanescente.
Muitas das áreas de risco possuem abastecimento de água, porém, registram carência de esgotamento sanitário via rede geral de esgoto ou pluvial. As áreas apresentam entre 95,7% e 100% de acesso à rede geral de distribuição de água. Em relação ao esgotamento sanitário, nas áreas de risco a movimentos de massa, as áreas BT-5 Morro da Penha e BT-9 Torquato Dias apresentam os piores índices, 67,2% e 52,5%, respectivamente. As áreas BT-6 Morro do Pacheco, com 83,8% de saneamento, e BT-11 Morro do José Menino, com 89,3%, apesar de terem índices mais altos, encontram-se abaixo da média da cidade de Santos como um todo, que é de 95,1%. Somente 4 das 11 áreas apresentam índice de esgotamento com 100% de cobertura.
A carência de esgotamento sanitário pode intensificar processos erosivos no solo pelo manejo inadequado das águas pluviais e dos resíduos. Além de acelerar o fenômeno de movimento de massa, a falta de saneamento aumenta a vulnerabilidade da população, pois pode causar impactos na saúde humana; seja diretamente, por meio de vetores epidemiológicos, como nos casos de leptospirose relatados pelas pesquisas de saúde ambiental (LONDE et al., 2018), seja indiretamente, pela via da contaminação hídrica. A contaminação hídrica afeta as mulheres, mesmo que elas não sejam as atingidas diretas. Tendo em vista que mulheres são responsabilizadas pelos trabalhos domésticos e de cuidados, o adoecimento de membros da família acaba por sobrecarregá-las física e psiquicamente.
De maneira análoga, a interrupção dos serviços de fornecimento de água, que pode ser ocasionada pela danificação de infraestruturas de saneamento (muitas vezes já precárias) em tempestades e escorregamentos, também afeta principalmente as mulheres. Nesses cenários, mulheres são diretamente afetadas porque a água é um elemento essencial para a realização de tarefas que, geralmente, ficam sob responsabilidade delas; tarefas que são fundamentais para a reprodução da família, como o preparo de refeições, a higiene das crianças e a limpeza da habitação atingida.
Ao relacionar os dados de acesso ao esgotamento sanitário com a desigualdade entre homens e mulheres, em que o/a responsável pelo domicílio não possui rendimentos, percebe-se que as áreas de risco que apresentam menores índices de esgotamento sanitário, a BT-9 Torquato Dias (52,5%) e a BT-5 Morro da Penha (67,2%), apresentam alta proporção de domicílios sem rendimentos cujos responsáveis são mulheres, 100% e 69,0%, respectivamente.
O Quadro 1 mostra para todas as 11 áreas a proporção, em percentil, de homens e mulheres responsáveis pelo domicílio segundo a alfabetização e as famílias em que o/a responsável não possui rendimentos.
A maior parte dos domicílios analisados cujo responsável não é alfabetizado é composta por mulheres, atingindo 80,0% na BT-11 Morro do José Menino, seguido de 68,4% na BT-2 Morro da Penha. A feminização e a racialização da pobreza são parâmetros que se associam ao acesso à educação. Segundo dados do IPEA coletados a partir do censo de 2010, no espaço amostral da população brasileira, as mulheres brancas representavam 15,8% do total de analfabetos e os homens brancos 12,9%, em contrapartida à proporção de 34,6% de mulheres negras e 36,6% de homens negros (IPEA, 2018). Nota-se que a diferença de acesso à educação entre mulheres brancas e negras é consideravelmente maior que entre mulheres brancas e homens brancos, ressaltando como as desigualdades de gênero precisam ser analisadas a partir de uma epistemologia interseccional que considere a raça. A baixa escolaridade contribui para a vulnerabilidade econômica, gerando dificuldades que se retroalimentam no enfrentamento ao desastre e na gestão do risco.
Base de dados: IBGE; CEMADEN (2018)
#PraTodoMundoVer O quadro mostra a proporção, em percentil, de responsáveis pelo domicílio segundo homens e mulheres, a proporção dos responsáveis pelo domicílio segundo a alfabetização e a proporção dos responsáveis pelo domicílio sem rendimento. Cada uma das 3 variáveis está representada em um par de duas colunas, uma para homens e uma para mulheres, totalizando 6 colunas ao todo. Os dados são apresentados por área de risco (cada uma das 11 linhas representa uma área estudada). As tabelas mostram uma proporção maior de mulheres responsáveis pelo domicílio em relação aos homens, e de mulheres responsáveis pelo domicílio não alfabetizadas, 7 das 11 áreas em ambos os casos. A relação entre responsáveis pelo domicílio sem rendimento também mostra uma proporção maior para as mulheres, 8 das 11 áreas.
A BT-9 Torquato Dias, que apresenta o menor índice de esgotamento sanitário, também é a área que apresenta maior concentração de crianças menores de 14 anos. Com crianças expostas ao adoecimento em consequência da carência de saúde ambiental, a vulnerabilidade das mulheres cuidadoras em um cenário de risco torna-se ainda maior. Enquanto a proporção de crianças menores de 14 anos em Santos é de 16,7% (IBGE, 2010), nas áreas de risco aqui analisadas esse índice ultrapassa os 21% em 9 das 11 áreas, atingindo 32,8% na BT-9 Torquato Dias.
Em contrapartida, os idosos maiores de 60 anos estão em menores proporções, e representam cerca de 3% em 2 áreas e um máximo de 9% em 1 delas (BT-11 Morro do José Menino). Os dados demonstram um baixo envelhecimento populacional nas áreas de risco - em contraposição à alta proporção de idosos com mais de 60 anos em Santos, 19,4%. Enquanto cuidadoras e responsáveis pelos trabalhos de reprodução social que atendem à família, as mulheres são indiretamente afetadas quando os familiares idosos estão expostos aos riscos.
O parâmetro etário, quando associado à proporção de responsáveis financeiramente pelo domicílio, demonstra um cenário que influencia ainda mais a vulnerabilidade dessas famílias. A BT-9 Torquato Dias, que apresenta a maior proporção de crianças, é também a área em que 100% dos domicílios cujo responsável não possui rendimentos é chefiado por mulheres (Quadro 1). Isto situa essas mulheres em posição de maior vulnerabilidade, dado que, além de não possuírem rendimentos e de já serem oprimidas por uma estrutura capitalista, racista, machista e patriarcal, elas são as responsáveis pela provisão do lar. Dentre os domicílios analisados cujo responsável não possui rendimentos, a maioria deles é chefiado por mulheres, 8 das 11 BT (Quadro 1), o que expressa o caráter da feminização da pobreza e do risco.
A Figura 3 apresenta a espacialização dos dados de vulnerabilidade do Índice Paulista de Vulnerabilidade Social (IPVS) - elaborado pela Fundação SEADE, a partir do censo do IBGE - e sua relação com a proporção homens e mulheres sem rendimentos e responsáveis pelo domicílio.
Base de dados: IBGE; CEMADEN (2018)
#PraTodoMundoVer O mapa mostra a espacialização, nas áreas de risco analisadas, da proporção de homens e mulheres sem rendimentos e responsáveis pelo domicílio, e a classificação de vulnerabilidade segundo o Índice Paulista de Vulnerabilidade Social (se muito baixa, média ou muito alta). As áreas de vulnerabilidade muito alta e média possuem maior proporção de responsáveis mulheres sem rendimentos, e as de vulnerabilidade muito baixa possuem maior proporção de homens responsáveis pelo lar e sem rendimentos. O mapa também indica as duas áreas de risco com menores índices de esgotamento sanitário, as quais possuem maior proporção de mulheres sem rendimentos responsáveis pelo domicílio
Pode-se notar, na Figura 3, que as áreas de risco de maior vulnerabilidade têm maior concentração de mulheres sem rendimentos responsáveis pelo domicílio. Em contrapartida, as áreas de vulnerabilidade muito baixa têm maior proporção de homens sem rendimentos responsáveis pelo domicílio. Não é possível estabelecer um nexo de sobredeterminação entre a feminização da pobreza e o índice vulnerabilidade (que leva em consideração aspectos também de infraestrutura da habitação); a feminização da pobreza é uma expressão da vulnerabilidade, ou a vulnerabilidade é uma expressão da feminização da pobreza? Contudo, o que se ressalta aqui é: a desigualdade entre homens e mulheres reflete em desigualdades socioespaciais, as quais se expressam em vulnerabilidades que influenciam diretamente na magnitude do desastre.
A expressão espacial da desigualdade de gênero (e de raça e classe) se dá nas condições de moradia e saneamento, de acesso ao direito à cidade, de escolaridade, de saúde ambiental, de rendimentos, entre outros. Ademais, se dá a partir de vulnerabilidades que são também simbólicas, como o (não) acesso aos lugares de poder e de tomada de decisão para a mudança dessa realidade, e a ausência, nas discussões de políticas públicas para RRD, de questionamentos sobre essas desigualdades - que são estruturais.
Considerações finais
A segregação socioespacial afeta as distintas vivências do risco e a magnitude do desastre, mesmo quando essas populações, em lugares diferentes na cidade, estejam suscetíveis aos impactos da mesma ameaça natural e ao mesmo evento hidrológico e/ou geológico. Nesse sentido, é fundamental que a interseccionalidade entre gênero, raça e classe seja analisada para que a setorização do risco - o qual compreende, além da ameaça, a vulnerabilidade da população exposta - desvele as desigualdades sociais que se expressam espacialmente.
Isto posto, buscou-se, aqui, analisar as condições sociais e materiais de vulnerabilidade das mulheres residentes nas áreas de risco a movimentos de massa em Santos, no intuito de revelar como a magnitude do desastre pode ser diferencial em se levando em conta raça, classe e gênero. Importante salientar que, independentemente desses elementos, a questão posta não se resume a quem é mais ou menos afetado em um desastre, pois o impacto e as perdas, em se tratando de termos psíquicos e imateriais, são imensuráveis e inquantificáveis. O central, nessa hipótese, é a conclusão de que a vulnerabilidade de gênero é, além de sistêmica, consubstancial ao [modo de produção capitalista do] desastre e por ele agravada.
A partir dos dados apresentados, foi possível observar que as áreas com menores índices de esgotamento sanitário adequado coincidem com as áreas que apresentam alta proporção de domicílios sem rendimentos cujos responsáveis são mulheres. A carência em saúde ambiental pode levar ao adoecimento de membros do grupo, sobrecarregando mulheres que, em geral, são responsabilizadas pelo trabalho de cuidados. Ademais, os domicílios com maiores porcentagens de moradores sem rendimentos do gênero feminino associam-se aos lares em que há uma concentração considerável de dependentes menores de 14 anos. Isso situa as mulheres em posição de maior vulnerabilidade, dado que, além de não possuírem rendimentos e de já serem oprimidas por uma estrutura machista e patriarcal, essas mulheres são as responsáveis pelo cuidado das crianças e pela provisão do lar. Este dado ressalta uma feminização da pobreza e uma agravada situação de vulnerabilidade social que reflete na vulnerabilidade a desastres.
No que diz respeito às características étnico-raciais das mulheres, não foi possível levantar os dados da população negra residente em áreas de risco devido à ausência dessa variável na base de dados fornecida pelo IBGE e CEMADEN (2018). Isso ressalta, por sua vez, aquilo que se nomeou aqui de “desracialização institucional do gênero”. Entende-se aqui que esta é uma faceta do pacto narcísico da branquitude, conceito proposto por Bento (2022), e do racismo estrutural e institucional (ALMEIDA, 2020) presente na estrutura de poder que orienta as políticas públicas e tomadas de decisão. A ausência de discussões raciais é observada também em instrumentos internacionais para RRD, como exposto no presente artigo. Essa lacuna abre precedentes para investigações que busquem suprir a demanda de uma análise interseccional do gênero na ciência dos desastres.
A partir das discussões aqui levantadas, corrobora-se uma discussão antiga, mas ainda muito atual e necessária: a de desnaturalização dos desastres chamados comumente de naturais. A compreensão histórica dos cenários de risco e vulnerabilidade fornece elementos que podem orientar mudanças nas práticas políticas e no planejamento urbano, tornando-os de fato preventivos e resilientes aos desastres. Compreender como e por que mulheres negras são mais impactadas e têm maior dificuldade em se recuperar materialmente dos desastres é de suma importância para que políticas públicas de RRD contribuam, também, para mitigar e combater as desigualdades de gênero, raça e classe, as quais organizam o modo de produção espacial das cidades brasileiras