1 À guisa de introdução: ainda “vida e obra”
A ordenação unilinear do material histórico relativo a determinado autor ou autora, bem como à produção de seu espírito em uma sequência de fatos enumerados de modo cronológico, apreciando-os conforme o par “vida e obra”, em categorias assim tradicionalmente enfileiradas, é um método descritivo da historiografia literária que, na opinião novecentista de um contemptor de toda história documental - o nacionalista alemão Gervinus -, adiante reproduzida por um crítico seu conterrâneo, não constituiria “história alguma; mal chega a ser o esqueleto de uma história” (Robert JAUSS, 1994, p. 07; em sentido outro, cf. Pierre BOURDIEU, 2008, p. 74-75). Nada obstante, tal esquema parece ainda se deparar como o recurso porventura mais didático para se apresentar a biografia de um autor e o escol de sua obra a um público que não os tenha como objeto de interesse intelectual imediato. Especialmente no presente caso, em que a tensão contínua em torno da história de um livro tem se tornado sinônimo de desinformação e mitologização que ronda a história mesma da vida de sua “autora” (cf. Charlotte MATTHEWS, 2012, p. 11-12), razão pela qual tal método é novamente empregado aqui, não sem dispensá-lo, no entanto, de uma revisão crítica das fontes bibliográficas consultadas.
Em Sobrados e Mucambos, há pelo menos duas passagens dignas de menção quanto à pessoa extravagante que foi, à sua época, a mulher cujo pseudônimo serve de título a este ensaio. Ao se referir à encabulada participação feminina na vida intelectual do primeiro e segundo reinado brasileiros, Nísia assomava, nas palavras do autor recifense, como “uma exceção escandalosa” (Gilberto FREYRE, 2006 [1936], p. 225). No que foi bastante feliz o Sr. Gilberto Freyre: a inteira vida de Nísia é o que pode se chamar singularíssima.
Nasceu Dionísia Gonçalves Pinto, a 12 de outubro de 1810, no sítio Floresta da vila de Papari, na então Capitania do Rio Grande, a qual passou a portar, desde meados do século passado, a alcunha de sua filha mais conhecida, por força da aprovação da Lei n° 146, de 23 de dezembro de 1948. Mudava-se, assim, o nome de Vila de Papari para Nísia Floresta.
Quando ainda criança de colo, seu pai, o Sr. Dionísio Gonçalves Pinto Lisbôa, de quem herdara o homônimo de batismo, recebeu em sua “pequena propriedade no vale” a visita do jovem Henry Koster - que viera da Inglaterra, enfermo, para residir e se tratar em Pernambuco, ali atraído pelo clima -, registrada em seu famoso diário de viagens. O Dr. Dionísio, advogado português que irá conhecer trágico destino no Recife dali a pouco menos de duas décadas, a mando de um capitão-mor contra quem vencera uma causa, é provável tenha sido homem de maneiras pouco usuais, a se levar em consideração a virilidade do tempo em que vivia. Ora, antes de oferecer àquele forasteiro inglês um jantar dito “à moda brasileira”, o causídico teve a gentileza de lhe apresentar a própria esposa - algo ainda um tanto incomum àquela altura.
We set off again about two o’clock; I have intended to have ridden until sunset. And then to have put up near to some cottage, but a young man overtook us, and we entered into conversation. He lived at Papari, a village about half a league out of the road, and he pressed me so much to accompany him to sleep at his place, that I agreed. Papari is a deep and narrow valley. a most delightful situation. The whole of the valley is cultivate, and principally this year, the lands were in great request, as the rains had failed, and the high sandy lands had proven barren. For, whilst every other part of the country appeared dry and burnt up, this spot was in full verdure - it appeared to laugh at all around it, aware of it own superiority. The inhabitants seemed by their countenances to partake of the joyful looks of the land they lived in. Papari yet enjoys another advantage; though it is at the distance of three or four leagues from the sea, a saltwater lake reaches it, so that its inhabitants have the fish brought to their own doors. The tide enters the lake, which is never dry, for although the fresh springs which run into it might fail, still it would always preserve a certain portion of water from the sea. The fishermen come up upon their small river jangadas, which do not require more than twelve inches of water. Papari is about five leagues from Cunhàû. Senhor Dionísio introduced me to his lady; he is a native of Portugal, and she a Brazilian. They possessed a small piece of land in the valley, and appeared to be comfortably situate. Papari may contain about three hundred inhabitants very much scattered. In the course of this year, I afterwards heard, that many persons flocked to it from other parts, owing to the absolute want of provisions. I went down to the edge of the lake to see the fishermen arrive, the people of the valley had all assembled to receive them; it was quite a Billingsgate in miniature - save that the Portugueze language does not admit of swearing. We dined in Brazilian style, upon a table raised about six inches from the ground, around which we sat or rather laid down upon mats; we had no forks, and the knives, of which there were two or three, were intended merely to sever the larger pieees of meat - the fingers were to do the rest. I remained at Papari during one entire day, that my horses might have some respite, that I might purchase another from Senhor Dionisio, and on poor Julio's account, whose feet had begun to crack from the dryness of the sands1 (KOSTER, 1816, p. 64-65).
O próprio Freyre, ao fazer ressalva à figura invulgar de Nísia, conta das senhoras desse tempo jamais se querer lhes ouvir “a voz na sala, entre conversas de homem, a não ser pedindo vestido novo, cantando modinha, rezando pelos homens; quase nunca aconselhando o quer que fosse de menos doméstico, de menos gracioso, de menos gentil; quase nunca metendo-se em assuntos de homem” (Gilberto FREYRE, 2006, p. 224), caso ainda vivo ou ativo o marido; não havendo nada de mais espinhoso a um genealogista que o desvendar nomes de esposas de gente dessa época, gente importante inclusive, como Pedro de Araújo Lima,2 Visconde e ulterior Marquês de Olinda, ou José Bonifácio (cf. Wilma ANDRADE, 2004, p. 11-28), hoje patrono oficial da Independência, até por obra de lei recente.3 Em toda parte se lhes ignorava as mulheres. Com efeito, conhece-se não pelos escritos de Henry Koster que a mãe de Nísia se chamava Antônia Clara Freire; por intermédio do viajante inglês, apenas que era ela mulher brasileira, tal como anotado na citação acima, singelamente.
Isso posto, por mais que causasse espasmo a visão de uma figura como a de Nísia, Gilberto Freyre não se iludia quanto à minguada presença feminina naquele cenário político-intelectual. O que havia, de resto, era uma ou outra “flor de estufa” (FREYRE, 2006, p. 82). Com essa locução, tem-se alguma noção da personalidade de Nísia Floresta, tanto mais do tempo em que florescera: tal predicado costuma designar um alguém de sensibilidade aflorada a tudo o que lhe diz respeito, sutileza essa o mais das vezes desacompanhada de todo senso prático aplicado habilmente no cotidiano - é o que há de se ver adiante, por exemplo, quanto à proposta pedagógica da já diretora Nísia Floresta às moças estudantes de então. A par disso, flor de estufa pode se referir àquela que desponta a despeito das condições naturais intrínsecas, feito o mandacaru que “fulora na seca”. Ainda quanto à metáfora da “flor de estufa”, em sua análise do romantismo brasileiro, Sérgio Buarque de Holanda (1995 [1936]) denunciava-lhe o caráter “artificioso” e “insincero”, dado o seu horror à vida enquanto tal, a letargia frente à realidade cotidiana, a que não tratou de resistir, corrigir ou, mesmo, de dominar; “esqueceu-a, simplesmente, ou detestou-a, provocando desencantos precoces e ilusões de maturidade. Machado de Assis foi a flor dessa planta de estufa” (p. 162).
Segundo o “Quadro geral da população livre considerada em relação aos sexos, estados civis, raça, religião, nacionalidades e grão de instrucção, com indicação dos numeros de casas e fogos” do primeiro censo demográfico oficial levado a cabo no Brasil no ano de 1872, aproximadamente 86,5% (oitenta e seis vírgula cinco por cento) da população de mulheres livres eram consideradas “analphafabetas” (IBGE, 1872). Nada obstante, aos vinte e dois anos de idade, já em Capitania de Pernambuco, e em meio à exclusiva dominação masculina da totalidade das atividades extradomésticas, em meio às “próprias baronesas e viscondessas mal sabendo escrever” e às “senhoras mais finas soletrando apenas livros devotos e novelas que eram quase histórias de Trancoso” (FREYRE, 2006, p. 82), Nísia Floresta traduziria, a partir da versão em francês (cf. Marie-France DÉPÊCHE, 2000, p. 166, 181; cf. Maria PALLARES-BURKE, 1996b, p. 167-192), a célebre obra A vindication of the rights of woman: with structures on political and moral subjects (1792), escrita pela inglesa pouco ortodoxa Mary Godwin Wollstonecraft (2015; 2016 [1792]), futura mãe da escritora Mary Wollstonecraft Shelley, esta que viria a ser amiga e meia-cunhada de Lord Byron e, ainda, a criadora do célebre personagem Frankenstein (1818).
Por intermédio da mesma tipografia que imprimia o jornal “O Carapuceiro” (cf. PALLARES-BURKE, 1996a, p. 129-166), redigido pelo controverso padre Miguel Sacramento Lopes Gama, o título da tradução vinha a lume, no ano de 1832, assim: Direitos das mulheres e injustiça dos homens, “a mais interessante publicação do Recife desse período” (Laurence HALLEWELL, 2017, p. 209). Em Porto Alegre, seria publicada no ano seguinte pela Typographia de V. F. Andrade; e, no Rio de Janeiro, em 1839, pela Casa do Livro Azul (cf. Constância Lima DUARTE, 2001, p. 154; HALLEWELL, 2017). Sua edição deu no associar paulatino do nome de Wollstonecraft ao ideário feminista, ainda tão incipiente nos trópicos que retratado com certa galhofa em A Moreninha (1844), primeiro romance de ficção destas terras então românticas:
- Pois é opinião geral que ela te prefere a todos nós.
- Tanto melhor para mim.
- E pior para ela, mas... adeus! o meu lindo par se levanta do banco de relva em que descansava; vou tomar-lhe o braço; tenho-me singularmente divertido: a bela senhora é filósofa!... Faze idéia! Já leu Mary de Wollstonecraft e, como esta defende o direito das mulheres, agastou-se comigo, porque lhe pedi uma comenda para quando fosse ministra de Estado, e a patente de cirurgião de exército, no caso de chegar a ser general; mas, enfim, fez as pazes, pois lhe prometi que, apenas me formasse, trabalharia para encartar-me na Assembléia Provincial e lá, em lugar das maçadas de pontes, estradas e canais, promoveria a discussão de uma mensagem ao Governo Geral, em prol dos tais direitos das mulheres: além de que... Mas... tu bem vês que ela me está chamando: adeus!... adeus!... (Joaquim Manuel de MACEDO, 2002, p. 60-61).
Do trecho acima, vê-se que se fazia pouco dos direitos das mulheres (especialmente de uma sua possível ascensão a altos cargos de Estado), implementados tão só mediante intervenções políticas masculinas, de acordo com os humores masculinos, segundo os arbítrios masculinos. As raras mulheres entre as que irromperam sobretudo ao final do século XIX, cujas atividades políticas sobrepujaram a dos respectivos cônjuges, “foram umas como excomungadas da ortodoxia patriarcal, destino a que não parecer ter escapado a própria Nísia com todo o seu talento e todas suas amizades ilustres na Europa” (FREYRE, 2006, p. 224-225). Daí a preponderância do subjetivismo, a cosmovisão estritamente masculina ao tempo do esplendor do sistema patriarcal no Brasil, a abordagem dos assuntos gerais não apenas sob a perspectiva masculina, mas por processos mentais e psíquicos exclusivamente masculinos.
Até então, esposas e filhos se achavam quase no mesmo nível dos escravos. [...] À menina, a esta negou-se tudo que de leve parecesse independência. Até levantar a voz na presença dos mais velhos. [...] O ar humilde que as filhas de Maria ainda conservam nas procissões e nos exercícios devotos da Semana Santa, as meninas de outrora conservavam o ano inteiro. [...] As meninas criadas em ambiente rigorosamente patriarcal, estas viveram sob a mais dura tirania dos pais - depois substituída pela tirania dos maridos (FREYRE, 2006, p. 510).
Logo, não surpreende que Direitos das mulheres e injustiça dos homens não tenha alcançado mais funda e amplamente os corações masculinos do Império no primeiro meado do século XIX. Embora a própria Nísia também o dedicasse aos jovens acadêmicos brasileiros, como se lê do subtítulo de seu livro, na tentativa de influenciá-los, a eles, dos quais se esperava assumirem responsabilidade pelos rumos da nação há pouco tornada independente, quanto à visão geral acerca da condição feminina (cf. MATTHEWS, 2010, 28-29). É que há, no livro, trechos de uma dureza e antagonismo explícitos: “Em um Estado tranquilo e bem regido, a maior parte dos homens são inúteis em seus ofícios e inútil toda sua autoridade”. E mais: “Observa-se geralmente, mesmo entre os homens, que os mais grosseiros e mais pesados são de ordinário estúpidos”. Ou mesmo irônicos até o ponto do sacrílego: “Certamente o Céu criou as mulheres para um melhor fim, que para trabalhar em vão toda sua vida” (Nísia FLORESTA, 2010, p. 83, 91 e 87, respectivamente). Exemplos nesse sentido, tirados à tradução, seriam abundantes. Só mais tarde as primícias de Nísia Floresta irão encontrar atenção, críticos e elogios favoráveis (cf. PALLARES-BURKE, 1996b, p. 173).
Não fossem as contribuições anteriores da jovem Nísia junto à imprensa pernambucana do início do período histórico conhecido como “a primeira onda feminista” - de 1809 a 1900, via de regra -, as quais se deram anonimamente no periódico de Olinda chamado “Espelho das Brasileiras”, acerca da condição e reabilitação femininas em diversas culturas antigas, poder-se-ia conferir a Direitos das mulheres e injustiça dos homens o sintagma de “texto fundante” do feminismo no país (cf. DUARTE, 2001, p. 156; cf. DUARTE, 2010, p. 12; cf. MATTHEWS, 2010, p. 30), dada a sua repercussão social e a levar-se em consideração o número de suas edições em relativo espaço curto de tempo. Já em 1933, reconhecia-se que, à Nísia Floresta, competia o título de precursora do feminismo no Brasil e talvez na América do Sul (cf. Roberto SEIDL, 1933, p. 9). Em dissertação defendida em 2005, uma estudiosa inglesa asseverava que Direitos das mulheres e injustiça dos homens foi, de fato, a primeira obra publicada no Brasil a lidar diretamente com os temas da igualdade de gênero, o direito das mulheres à educação e à participação social em pé de igualdade com os homens. Além disso, foi, sem sombra de dúvida, no tocante às reivindicações femininas, mais radical do que qualquer outra obra publicada no país ao longo do século XIX, quer original ou traduzida (cf. Charlotte E. LIDDEL, 2005a, p. 19). A propósito, deve-se entender aí por “feminismo” menos um movimento ou ideologia já articulados, e, sim, toda manifestação em prol da igualdade de condições entre mulheres e homens.
Nada obstante, em relação às obras posteriores de autoria de Nísia Floresta, especialmente Opúsculo Humanitário (2010 [1853]), Charlotte E. Liddel aduz que ela teria contribuído efetivamente (ao condenar, por exemplo, a amamentação na França) para com o fortalecimento de um discurso que intencionava privar as mulheres da oportunidade de adentrar e participar na esfera pública como assalariadas - atitude típica do feminismo burguês, que será rechaçado pelas socialistas feministas ao fim do século XIX (cf. LIDDELL, 2005b, p. 81). Por sua vez, Charlotte H. Matthews afirma que a obra mesma de Nísia Floresta, ou seja, toda aquela posterior a Direitos das mulheres e injustiça dos homens, se comparada a este livro, vem a assumir tom mais conservador (cf. MATTHEWS, 2012, p. 202). Contudo, a análise do processo por meio do qual Nísia chegou à sua derradeira posição acerca do lugar da mulher na sociedade, enfim, de sua defesa cada vez maior do “relevante” papel doméstico que deveria ser exercido pelas mulheres, demonstra claramente que a autora não excluiu a mulher da esfera pública porque supostamente acreditasse em sua inépcia intrínseca, mas porque tal atuação não se adequava à sua visão idealizada da feminilidade (cf. MATTHEWS, 2012, p. 27).
Por outro lado, em que pese a observação de Constância Lima Duarte de que o pensamento de Nísia Floresta, excetuado o comedimento de sua verve empregada ao se referir aos propósitos da educação, adquiria em tudo mais uma tonalidade de premência e intensidade, “como nas contundentes críticas que faz aos que considerava responsáveis pela situação [educacional calamitosa]”, aquela estudiosa parece vacilar, todavia, em interpretações que (pelo menos nesse texto) oscilam ou entre uma Nísia radical, precursora da defesa da ideologia feminista, ou encaixada num dito “bom feminismo”, que nada tinha de extremo ou radical, pois, na sua opinião, em Direitos das mulheres e injustiça dos homens não haveria nem a pretensão de revolucionar os costumes, tampouco a de arrebatar a mulher dos contornos ideológicos do seio privado (cf. Constância Lima DUARTE, 2010, p. 28 e 40), de sorte que um crítico português, ao se debruçar sobre outra obra nisiana, o livro Opúsculo Humanitário, publicado em folhetins ao longo do ano de 1853 - e que diferiria do primeiro livro de Nísia pelo desejo ora expresso de uma “completa transformação”, ao menos do sistema educacional (cf. Constância Lima DUARTE, 2010, p. 31; cf. PALLARES-BURKE, 1996b, p. 187-190) -, dele, antes, muito se agradava, porque constatara uma assim prudente moderação de sua autora: ela “não quebra lanças pela emancipação da mulher [...]. Não se detém em vagas acusações contra os governos, no que dá mais um documento de bom senso” (Luis LEITE, 1860, p. 20; cf. DUARTE, 2010, p. 27-28).
E, claro, não podia ser assim tão diferente - supondo acertado o juízo contido na aludida recensão de Luis Leite. Uma crítica que se pretenda equilibrada não se furta a deslocar o sujeito de seu próprio contexto de relações sociais e circunstâncias históricas, dissociando-os. Pode-se tergiversar, à maneira de certo sociólogo radicado na Alemanha, que Direitos das mulheres e injustiça dos homens “não nasceu num colóquio pós-estruturalista no limiar do século XXI. É, antes, uma resposta aos desafios políticos do seu tempo - a propósito, muito provavelmente a melhor resposta possível” (Sérgio COSTA, 2014, p. 839). Admitir o contrário atrairia o risco historiográfico de se incorrer em análises sociologizantes eivadas de anacronismo.
[...] queria porque queria que Inocência [...] fosse uma ativista do feminismo em pleno século XIX, nos cafundós do Mato Grosso, cercada por brutamontes e bugres.
Era querer porque querer demais e em desconhecimento de causa. O que faltou notar: ao seu modo, Inocência foi transgressora. Na estreita margem de transgressão possível a uma mulher naqueles tempo e local: bulir com regras de casamento arranjado, ter um caso com forasteiro (Ruy Vasconcelos de CARVALHO, 2011).
Não por acaso, as idiossincrasias da vida de Nísia Floresta como que se aparentavam às da personagem Inocência, do romance homônimo do Visconde de Taunay, publicado em 1872. Quem dissesse, pois, de Direitos das mulheres e injustiça dos homens mera obra de mulher rancorosa, de “verdadeira machona entre as sinhazinhas dengosas” (FREYRE, 2006, p. 225), nada lhe faria senão grande injustiça: o pejorativo não se aproveita no caso de Nísia, que não ruminava consigo nenhum ódio secreto nem pelo gênero humano, tampouco pelo sexo masculino, ao que de tudo consta. Ela fizera publicar tal tradução, em 1832, sob o pseudônimo de Nísia Floresta Brasileira Augusta, este último nome uma homenagem ao segundo marido, Manuel Augusto de Faria Rocha, pai de três filhos seus, um deles morto poucos meses após nascido. Deixa forte impressão do homem Manuel Augusto, falecido em 1838, ao fundar, no mesmo ano, um colégio para moças no Rio de Janeiro, atribuindo-lhe o nome do companheiro, “Colégio Augusto” (cf. DUARTE, 2010, p. 16-26), após abandonar o Sul por conta dos Farrapos, para onde fugira dos ressentimentos do primeiro cônjuge, conforme uma das versões difundidas.
Casou-se aos 13 anos, em 1823, e deixou o marido [Manoel Alexandre Seabra de Melo] no ano seguinte, quando o pai fugiu para o Recife devido a perseguições políticas. Por ter largado o marido, foi repudiada por toda sua família com exceção da mãe que, enquanto viveu, sempre lhe deu apoio. Em Recife, o pai é assassinado em 1828, e a moça passa a ter de sustentar a mãe e os três irmãos. Estava com vinte anos quando foi ensinar em um colégio. Passou por muitas dificuldades financeiras. Em 1832, no mesmo ano em que publica Direitos das mulheres e injustiça dos homens, casa-se novamente, agora com Augusto de Faria Rocha, advogado e acadêmico. O casal, com a filha Lívia Augusta e o filho Augusto Américo, muda-se em 1838 para Porto Alegre em busca de melhores oportunidades. Nesse mesmo ano o marido morre e ela, viúva, parte com os filhos para o Rio de Janeiro, onde funda o Colégio Augusto (Norma TELLES, 1997; no mesmo sentido, cf. Laurence HALLEWELL, 2017; cf. DUARTE, 2006b).4
Em um tratado sobre a história dos impressos no país, o brasilianista Laurence Hallewell houve por bem fazer alusão às vicissitudes da publicação e posterior reconhecimento de Direitos das mulheres e injustiça dos homens -, embora conste em seu relato certa impropriedade no tocante aos anos de falecimento de Manuel Augusto, de mudança do casal para a cidade de Porto Alegre e de ulterior fundação do aludido colégio. Ei-lo:
Devemos ter em mente que, uma vez que os autores editavam suas próprias obras - fato freqüente até pelo menos 1930 - muitos ficariam felizes em confiar o produto de seu trabalho a qualquer editora acessível na região em que residissem. Foi assim que a obra de Nísia Floresta (pseudônimo de Dionísia Gonçalves Pinto), Direitos das mulheres e injustiça dos homens (apresentado como tradução de Vindication of the rights of women, de Mary Wollstonecraft Godwin, mas com muita influência de outras feministas mais radicais), foi impresso no Recife, em 1832, porque na ocasião a autora morava nessa cidade. No ano seguinte, após a morte do segundo marido, mudou-se para Porto Alegre, levando consigo, segundo parece, o estoque remanescente do livro, cuja venda confiou a um livreiro local. Contudo, o livro somente alcançou alguma fama, quando a autora, premida por necessidades econômicas - tinha dois filhos e uma mãe idosa para sustentar - em abril de 1839 passou a residir na corte, onde abriu uma escola, e entregou os exemplares ainda não vendidos à Casa do Livro Azul, estabelecida na Rua do Ouvidor, n° 121. Finalmente, em 1858, Nísia foi viver na Europa, num ambiente que lhe era mais agradável, onde continuou a escrever e a publicar (HALLEWELL, 2017).
A inauguração do Colégio Augusto se fez anunciar pelo Jornal do Commercio, em 31 de janeiro de 1838, valendo-se da experiência magisterial de quem, desde os dezenove anos de idade, dedicava-se ao mister de instruir, à casa paterna em Olinda, as meninas pernambucanas que lhe eram confiadas. A pedagogia professada no Colégio Augusto não se confinava à chamada “educação da agulha”: não apenas o coser e o bordar eram ensinados às alunas internas e externas, mas também a música e a dança, o contar, o ler e o escrever, em latim, francês, italiano e inglês, além dos “princípios mais gerais” da história e da geografia e os demais “elementos de civilização”. Não tardaram os comentários preconceituosos, veiculados na imprensa local à figura daquela “mulher metida a homem, pregando a emancipação de seu sexo”, nem as críticas àquelas propostas educacionais intempestivas, por parte de homens em prol do “verdadeiro fim da educação, que é adquirir conhecimentos úteis e não vencer dificuldades, sem nenhuma utilidade real”. O Colégio Augusto funciona por dezoito anos a fio, fechando suas portas definitivamente em 1856, ano da segunda e mais demorada partida de sua diretora ao Velho Mundo (cf. DUARTE, 1985, p. 37; DUARTE, 2010, p. 16-18, 156).
It has inevitably been suggested that Floresta felt obliged to leave Rio to escape the criticisms of her advanced liberal notions on education, and perhaps other subjects […]. Whilst she cannot have been forced to leave, it is certainly easy to imagine that Floresta would not have found the stifling conservatism of the Rio corte conducive, and the intellectual appeal of Paris must have been great. Whatever the reasons, this first visit to Europe was certainly an immensely important learning experience for Floresta, and its influence is immediately apparent in her work (MATTHEWS, 2012, p. 5, [destaque no original]).
Já em solo francês, Nísia privará, por um acaso feliz do destino, da intimidade de outro Augusto, o renomado Comte, então na terceira e última fase de seu pensamento em relação às mulheres, conforme a divisão de Mary Pickering, sua maior biógrafa, fase de “reconciliação” - embora permanecesse “patriarcal” em certa medida -, após um estágio notadamente “antifeminista” e reacionário, em contraposição aos socialistas utópicos seus contemporâneos (cf. Jase Elisabeth PEDERSEN, 2001, p. 206). O acolhimento do positivismo, isto é, de muitas das ideias comteanas nesse período (cf. Mary PICKERING, 2009, p. 575) pode explicar, ao menos em parte, a ulterior inclinação de Nísia à idealização das mulheres no âmbito de seu suposto desempenho na economia natural da família. Aliás, os vínculos de amizade de Nísia Floresta com homens ilustres, desde o Brasil até a Europa, é número nada pequeno, como se pode adivinhar da lista a seguir: o revolucionário italiano Giuseppe Garibaldi, que conhecera ainda na então província de São Pedro do Rio Grande do Sul; os escritores franceses Alexandre Dumas, o pai, e Alphonse de Lamartine; o filósofo britânico John Stuart Mill, a cujo lado ajudaria a dar sustento emocional e financeiro, na medida de suas possibilidades, ao já desgraçado pai do positivismo... entre muitos outros, ficando aqui apenas com as amostras de maior vulto (cf. DUARTE, 2010, p. 14). Inspirada pelos românticos, realiza, desde a França, diversas viagens através da Europa setentrional entre 1856 e 1872.
Após o agravamento de um quadro de pneumonia, Nísia Floresta vem a falecer no ano de 1885, em Bonsecours, nas cercanias de Rouem, cidade medieval do interior francês, aí permanecendo enterrada até os seus restos mortais (e os de sua filha Lívia Augusta Gade, morta em 1912 e sepultada no mesmo cemitério) serem finalmente transladados à cidade natal da matriarca, dada a autorização do Poder Executivo nesse sentido e à abertura de crédito especial para sua execução, por força da Lei Federal n° 1892/1953, publicada no Diário Oficial da União de 27 de junho de 1953, em decorrência da descoberta de ambos os jazigos por parte do jornalista potiguar Orlando Ribeiro Dantas, em viagem à França empreendida para tais fins três anos antes.
De Nísia Floresta, publicou-se em vida ou postumamente, assinada ou anonimamente, algo em torno de quinze títulos, entre romances, discursos, diários e poemas, cá ainda não citados: Conselhos à minha filha (1842); Discurso às educandas do Colégio Augusto (1847); Daciz ou a jovem completa (1847); Fany ou o modelo das donzelas (1847); A lágrima de um caeté (1849); Dedicação de uma amiga (1850); O abismo sob as flores da civilização (1856); Itinerário de uma viagem à Alemanha (1857); Três anos na Itália, seguidos de uma viagem à Grécia (1864 e 1872, em dois volumes); Cintilações de uma alma brasileira (1859); Fragmentos de uma obra inédita (1878) (cf. DUARTE, 2006a, p. 147-160).
Conclusão
Dito anteriormente, acreditava-se até pouco que Direitos das mulheres e injustiça dos homens seria uma tradução não literal de A vindication of the rights of woman, de Mary Wollstonecraft. Tal como se propõe certa analista, vinculada à Universidade de Edinburgh, junto ao público anglófono, o intento subjacente deste trabalho consiste em evidenciar uma antiga descoberta no tocante à proveniência do primeiro livro publicado por Nísia Floresta, mas, ainda hoje, curiosamente pouco difundida ou assimilada em meio às pesquisas acadêmicas ulteriores (cf. MATTHEWS, 2010, p. 30). Tal descoberta poderia e deveria ter limpado o caminho para uma releitura e reavaliação mais bem ponderada da obra e reputação nisianas. Ainda segundo aquela estudiosa, que nada disso tenha sequer sido ensaiado nos anos subsequentes, “é uma vergonha, e não apenas em termos de rigor acadêmico” (MATTHEWS, 2012, p. 27).
A verdade é que somente quase dois séculos e meio depois, ou seja, no ano de 2015, o original de A vindication of the rights of woman veio a ser efetivamente vertido ao português, sob o título Reivindicação dos direitos das mulheres, e por intermédio da editora paulistana EDIPRO, em tradução levada a cabo por Amanda Odelius e Andreia Reis do Carmo. A Boitempo Editorial lança, no ano seguinte, uma edição comentada da obra, com título ligeiramente diverso, Reivindicação dos direitos da mulher, edição essa traduzida por Ivania Pocinho Motta.
Há pouco mais de vinte anos, a historiadora Maria Lúcia Garcia Pallares-Burke (cf. 1995; 1996b, p. 167-192) lançava novas luzes sobre a edição princeps de Direitos das mulheres e injustiça dos homens, cuja tradução de Nísia Floresta não adveio jamais de A vindication of the rights of woman; seria, antes, proveniente do livro Woman not inferior to man (1739), obra tradicionalmente atribuída a outra Mary inglesa, de sobrenome Wortley Montagu, a qual se valeu, para tanto, do pseudônimo Sophia, “a person of quality”. Mary W. Montagu teria bebido, por sua vez, “(chegando até a plagiar certos trechos) no livro De l´egalité des deux sexes, de François Poullain de La Barre, publicado em 1673”, como revela a também historiadora Isabela Candeloro Campoi (2011, p. 198; no mesmo sentido, Peter BURKE, 2003, p. 188), em cujo escrito estas breves notas biográfico-intelectuais também se baseiam.
Yet this remarkable information [Pallares-Burke’s fundamental discovery], which fundamentally refashions the conclusions to be drawn from Floresta’s text, was not well received in Brazil. In fact, to all intents and purposes, it was simply not received at all (MATTHEWS, 2010, p. 13).
Com frequência se encontram ensaios ou artigos que, mais ou menos recém-publicados em revistas científicas de relevo, parecem desconhecer a investigação de Pallares-Burke e manifestam, por isso mesmo, alguma perplexidade ante a mesma velha incongruência conteudística e estrutural facultada pelo cotejamento da tradução de Nísia Floresta e da famosa obra de Mary Wollstonecraft, que tanto aturdia o juízo dos comparatistas (cf. Maria ALENCAR; Rosvitha BLUME, 2015, p. 102-103).
E, de resto, a conferência empreendida entre as obras Direitos das mulheres e injustiça dos homens e Woman not inferior to man não envolve o leitor em qualquer franja de dúvida no que tange à reprodução ora literal, ora aproximada, desta por aquela - descontadas as adições e subtrações mais emblemáticas, bem como os ditos erros de menor importância (cf. PALLARES-BURKE, 1996b, p. 179 [nota de rodapé]; para uma explicação da suposta inexatidão da tradução nesse aspecto, cf. MATTHEWS, 2012, p. 16-21). Uma das poucas diferenças mais dignas de nota repousa na ordem de sequência dos capítulos: o capítulo II da obra inglesa (“In what esteem the Women are held by the Men, and how justly”) corresponde textualmente ao capítulo I da brasileira (“Que caso os homens fazem das mulheres, e se é com justiça”); o capítulo III (“Whether Women are inferior to Men in their intellectual capacity, or not”), ao capítulo II (“Se as mulheres são inferiores ou não aos homens quanto ao entendimento”); e daí por diante. Nísia parece ter desperdiçado do original apenas o capítulo I, que fazia as vezes de introdução, declaradamente (cf. PALLARES-BURKE, 1996b, p. 180-183).
Contraposta à interpretação de Pallares-Burke (1995) de que Nísia plagiara literalmente e na sua inteireza o livro de Mary Wortley Montagu, Constância Lima Duarte (2001), sem contestar o seu achado, houve por bem insistir na crença de que a tradutora combinava adaptações livres de trechos de Mary Wollstonecraft e de François Poullain de La Barre, uma versão acomodatícia, a fim de melhor alcançar o público letrado brasileiro de então (cf. p. 157-158; cf. DÉPÊCHE, 2000, p. 166-167; cf. PALLARES-BURKE, 1996b, p. 171-176).
Charlotte H. Matthews (2012) não chancela de todo, porém, a ideia de que Nísia teria cometido uma espécie de “travessura literária”, na acepção de Pallares-Burke, muito menos “plágio” ou coisa que o valha. Para essa estudiosa inglesa, parece improvável que Nísia Floresta acreditasse genuinamente que o texto fosse obra de Mary Wollstonecraft, sublinhando, aliás, que foram os seus biógrafos que mais peremptoriamente atribuíram ao livro A vindication of the rights of woman a procedência de Direitos das mulheres e injustiça dos homens (cf. p. 20).
De mais a mais, é preciso ter clareza, contudo, de que a originalidade é um fenômeno da modernidade romântica - “o moderno furor de originalidade”, de que muito se ria Friedrich Nietzsche (2008, p. 221-222; cf. Leyla PERRONE-MOISÉS, 1998, p. 9-10) -; e o plágio, prática demasiado corriqueira no período setecentista europeu, então equivalente à mera imitação, não consubstanciava modalidade de ilícito nem moral, tampouco penal. Tal percepção se faz exigir aqui como modo de deprimir pedagogicamente “a volúpia tão brasileira de denunciar plágios, só igualada pela de reivindicar primazias”, nas palavras de um falecido crítico (Antonio CANDIDO, 1993, p. 211).
Às interrogações que a essa altura parecem se impor, frutos da curiosidade ou do desconcerto no que concernem às razões de se conceder a outra figura a autoria de obra original alheia, Pallares-Burke (1996b) divisa duas respostas objetivas, razoavelmente admissíveis enquanto potenciais razões da jovem tradutora:
[...] de um lado, prestava homenagem à mulher intrépida, admirável e pouco reconhecida que era Mary [Wollstonecraft]; de outro, conferia ao texto a autoridade gozada pelas idéias e hábitos ingleses que, como atesta um neologismo da época, “londonizam nossa terra”. Se, no entender de Nísia, Wollstonecraft não era suficientemente revolucionária no seu escrito, era provavelmente famosa e polêmica o suficiente para garantir público interessado em ouvi-la. Sophia, figura a esta altura esquecida até mesmo na Europa, é que teria, no entanto, mensagem importante para os brasileiros. Ao fazer de Wollstonecraft a autora do Woman not Inferior to Man, Nísia estava, de certo modo, a dizer que esta era a obra que mais condizia com alguém que desafiara tão arrojada e revolucionariamente as convenções sociais (p. 186-187 [ortografia e destaque preservados como no original]).
Com o argumento acima, Charlotte H. Matthews (cf. 2012, p. 20-23) parece estar de pleno acordo, diga-se de passagem. Assim, mais do que comprometer a honestidade do primeiro esforço intelectual de Nísia Floresta, a descoberta da genuína procedência de Direitos das mulheres e injustiça dos homens, nos idos da década de 1990, algo ainda recente à vista de sua minguada influência sobre estudos posteriores, tem o condão de alargar em mais um século o cânone ocidental do ideário se não feminista propriamente dito, em todo caso da luta, no campo literário, pela igualdade entre os sexos - ainda hoje por se efetivar em ambos os hemisférios -, para os quais uma brasileira nordestina de reconhecido talento, sobretudo além-mar, com o seu modo de ser e também a sua obra (mesmo quando “alheia”), deu vigoroso impulso nessa direção.