Introdução
Nas últimas décadas, surge uma literatura crítica apontando como os estudos sobre medicalização em saúde tratam da questão de gênero de maneira secundária, acessória e considerando-a muito frequentemente como neutra1 (Elianne RISKA, 2003). Para Peter Conrad e Joseph Schneider (1992), a medicalização é o modo pelo qual a vida dos indivíduos em sociedade é apropriada pela medicina e ciências da saúde de forma geral, o que intervém nas formas dos conceitos, como costumes, regras de higiene e normas de moralidade, contribuindo para formação do próprio campo semântico.
Estudos recentes focados no consumo propõem uma fenomenologia das cápsulas a partir da perspectiva de gênero. Uma comparação entre Prozac® e Sarafem® (ambos formulações cuja substância ativa é a fluoxetina) mostra como cada vez mais diluem-se as fronteiras entre aspectos essenciais e inessenciais dos psicofármacos; a composição química - idêntica - parece importar tanto quanto a cor: são dois psicofármacos com a mesma composição química e do mesmo laboratório, Eli Lilly, e além da diferença no nome comercial do medicamento, esses psicotrópicos são indicados como antidepressivo e para transtorno disfórico pré-menstrual, respectivamente - situações patológicas associadas a mulheres. A cápsula do Prozac® é branca e verde e a do Sarafem®2 rosa e lavanda. Há uma clara associação com o feminismo liberal: os laboratórios tentam associar - pela estratégia do branding - a identidade do fármaco com o movimento feminista: mulheres mais ativas, mais motivadas seriam o resultado do consumo desses medicamentos (Nathan GREENSLIT, 2005; 2015).
James Davies (2022) argumenta que os psicotrópicos são tentativas de mascarar os problemas sociais mais estruturais, mobilizando recursos discursivos racionais: consumo a curto prazo e estabilização das formas mais graves de mal-estar. Somado a isso, os psicotrópicos agravam a situação no longo prazo. Além de reforçar o poder da indústria farmacêutica, o uso de medicamentos ressignifica os problemas sociais como deficiências individuais e físicas anunciadas como remediáveis. Conforme esse autor, o uso de psicofármacos e o discurso de autorresponsabilização pelos problemas de saúde retiram das instituições qualquer responsabilidade com o adoecimento mental das populações; em outras palavras, o consumo de psicotrópicos despolitiza o sofrimento psíquico.
Outras autoras como Sandra Caponi (2019a), retomando Michel Foucault (2007), destacam a publicidade de psicotrópicos, como a clorpromazina, nas décadas de 1950 e 1960. Essas drogas eram anunciadas como promessa para o controle do sofrimento da vida cotidiana de mulheres, de modo tal que o uso do medicamento, antes do que se referir a uma doença, constituía-se como parte de um tratamento moral que visava adequar mulheres às funções que delas se esperava: ser mãe, cuidar da casa, cuidar dos filhos, conforme destacado no texto de propaganda dos medicamentos. Segundo Caponi (2019a), os psicotrópicos - clorpromazina e Thorazine® (seu nome comercial nos EUA) - permitiam vislumbrar efeitos políticos de controle, da gestão da disciplina que surgiam nas entrelinhas de um discurso psiquiátrico que não abandonava a ideia de doenças a serem curadas, nem de fármacos com efeitos miraculosamente curativos: a mãe que não tinha tempo para o filho e o Thorazine® ajudando a restaurar a normalidade.
No Brasil, dados de Marcelo Kimati Dias e Camila Muhl (2020) sugerem que as mulheres são mais propensas à prescrição de psicotrópicos, em particular antidepressivos e ansiolíticos. O consumo de antidepressivos no Brasil cresceu 23% entre 2014 e 2018, de acordo com um estudo da Funcional Health Tech, empresa de inteligência de dados e serviços de gestão no setor de saúde. Dados da Funcional Health Tech mostram que os medicamentos psiquiátricos mais vendidos são antidepressivos, analépticos (drogas estimulantes do sistema nervoso central), sedativos e ansiolíticos. De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), o Brasil é o país mais ansioso e estressado. Cerca de 5,8% dos brasileiros sofrem de depressão e 9,3% de ansiedade (Giulia VIDALE, 2020). Segundo o levantamento, feito com base em 327.000 clientes da empresa Ecare Life, mulheres na faixa de 40 anos são as que mais utilizam esse tipo de medicamento (VIDALE, 2020).
Outra pesquisa realizada pela empresa Prontmed aponta aumento de 42,71% no número de prescrições dos antidepressivos e medicamentos para insônia para mulheres, como clonazepam, zolpidem, cloridrato de fluoxetina, oxalato de escitalopram e sertralina. Ao comparar o primeiro e segundo semestres de 2021, o crescimento foi de 14% (MEDICINA S/A, 2022). Importante salientar que a maioria dessas prescrições foi feita por profissionais da ginecologia e obstetrícia. Igualmente, na Argentina, as estatísticas indicam que as mulheres são mais propensas à prescrição de psicofármacos, com tendência à feminização de seu uso (Gabriela BRU, 2022).
Kimati Dias e Muhl (2020) e Andrew Scull (2022) apontam para a singularidade da experiência brasileira nos processos de medicalização. O primeiro ponto destacado se refere a um perfil específico de usuários de antidepressivos e benzodiazepínicos pelo SUS: mulheres e o uso por tempo prolongado. São mulheres na faixa dos 45/50 anos e o tempo de uso excede sete anos. Elas são atendidas na atenção primária, nos Centros de Saúde (KIMATI DIAS; MUHL, 2020). Esses psicotrópicos fazem parte da lista RENAME3 e são disponibilizados em vários municípios brasileiros pelo Sistema Único de Saúde. Conforme Kimati Dias e Muhl (2020), é possível observar dois processos paralelos que ocorreram no Brasil a partir da Reforma Psiquiátrica: de um lado, o processo de ampliação de direitos e políticas de saúde mental pautadas em serviços comunitários e práticas de cuidado. Porém, um outro processo ocorre em paralelo, que é uma mudança do modelo da psiquiatria voltada ao modelo biomédico com o reforço da indústria farmacêutica. Esse processo é nomeado por autores como David Healy (2002) emergência da tecnociência. Essa nova era está baseada na neokrepelinização (ver LAKOFF, 2000)4 do diagnóstico, identificada em linhas gerais com o marco na mudança na forma de classificação nosológica do DSM-II para o DSM-III (Andrew LAKOFF, 2006; CAPONI, 2014; Allen FRANCES, 2016; Marcia MAZON, 2021). Conforme Kimati Dias e Muhl (2020), existe um movimento no sentido de remodelagem do modelo assistencial, a fim de adequar práticas medicalizantes à organização e ao funcionamento do sistema público. Kimati e Muhl (2020) mostram um impacto epidemiológico significativo a partir da consolidação dessa psiquiatria biomédica. Um dos impactos apontados é a redução da experiência do paciente ao sintoma, esvaziando o caráter experimental e o contexto em que ocorre o fenômeno; há uma identificação entre sintoma e diagnóstico como fenômeno explicativo, onde a descrição do quadro equivale à própria patologia.
Por outro lado, um conjunto de autoras e autores observa a nova ordem social digital (Marion FOURCADE; Kieran HEALY, 2017) pensando como a infraestrutura digital interfere na produção de subjetividades. Autoras como Eva Illouz (2011; 2019) observam como as emoções são cada vez mais lidas e interpretadas como habilidades mentais expressas em números, elementos intermediados através do mundo digital. Há uma intensificação do trabalho relacional (Viviana ZELIZER, 1978) de construção da autorrepresentação ordinal mediada por máquinas digitais (FOURCADE; Fleur JOHNS, 2020; Jenna BURRELL, 2016; FOURCADE, 2021). Cada vez mais há um conjunto de dados disponíveis a partir da era dos algoritmos. Esses algoritmos são processos escritos em códigos digitais que servem para extrair, organizar e minerar dados de milhares de usuários ao mesmo tempo. Esse fenômeno atinge todas as instituições sociais no âmbito político, social, econômico. Há técnicas que são rotineiramente aplicadas em domínios como educação, crédito, justiça criminal e o campo da saúde (FOURCADE, 2021). Em particular, os algoritmos de segunda geração - o algoritmo que aprende sozinho - têm recebido críticas por uma certa opacidade (Jenna BURREL, 2016). Há uma velocidade cada vez maior do algoritmo que coloca o usuário em um ambiente de pouca reflexão e num estado de reação permanente: o tempo todo há algo a ser compartilhado, lido, curtido. Nesse ambiente, ao invés de o conteúdo ser de alta qualidade, o que engaja mais facilmente os usuários são conteúdos de baixa qualidade, que os mantêm conectados; o que se vende é a tensão. Em segundo plano fica a veracidade da informação, numa constante economia da tensão. Esse é o caso das plataformas: elas não produzem conteúdos, porém circulam conteúdos, com um viés para os de baixa qualidade, como pode ser o caso dos conteúdos veiculados por influenciadores e influenciadoras digitais. Analisamos, neste artigo, algumas influenciadoras seguidas pelo público feminino ao longo do ano de 2020. O estudo de Eugenia Bianchi et al. (2022) mostra como o conteúdo que circula informações sobre psicotrópicos nas redes sociais é de baixa qualidade e muitas afirmações carecem de comprovação científica.
Nesse artigo, interessa-nos focar o fenômeno do consumo de psicotrópicos a partir do recorte de gênero. O tema da intensificação de medicalização associada às mulheres ainda é pouco explorado em uma perspectiva sociológica. O argumento do artigo é o de que há uma relação de reforço entre o discurso que naturaliza um ideal de mulher no mundo digital e o discurso biomédico da psiquiatria que afirma características naturais das mulheres que as predispõem ao tratamento medicamentoso com psicotrópicos, deixando em segundo plano dilemas financeiros, sociais e domésticos no entorno dessas mulheres. O tema da primeira seção do artigo é um exercício de estado da arte dos estudos de gênero e psicotrópicos. Na segunda seção, interessa-nos compreender o momento mais recente de impulso da indústria farmacêutica. Ao mesmo tempo que há aumento de poder desse setor, por outro lado, a nova ordem social digital automatiza processos de previsão de risco, alocação de recursos e tomadas de decisão. Mazon (2022) aborda o conceito de uso racional de medicamentos (URM) e aponta como o discurso psiquiátrico, difundido também no mundo digital na defesa do tratamento medicamentoso do TDAH, engaja pacientes. Esses discursos defendem o direito sagrado de acesso à medicação como expressão da cidadania, ficando em segundo plano a falta de comprovação científica da localização cerebral do transtorno e os efeitos colaterais do uso contínuo da medicação. Novas categorias de estratificação social surgem (FOURCADE; HEALY, 2013; 2017) e quando o assunto é o Estado, essas técnicas transformam as condições de cidadania. A base solidária sobre a qual a cidadania esteve ancorada agora vê nascer uma cidadania ordinal (FOURCADE, 2021), uma forma de cidadania que prospera por métricas sociais digitais e hierarquização digital baseadas na disponibilidade de cada um de cultivar um self digitalmente mediado e tecnologicamente assistido. Essa seção aborda influencers digitais para refletir sobre qual é a imagem de mulher bem-sucedida e que deve controlar suas emoções e gerir problemas de maneira individual.
1 De histéricas a empreendedoras de si
No final do século XIX e início do XX, surgem estudos dedicados à normalização do ser mulher. A psiquiatria opera como saber científico autorizado quanto à sexualidade feminina e suas possíveis consequências psíquicas. Os estudos estão pautados na tese da inferioridade feminina. Como mostra Caponi (2019b), são ações políticas com vistas a manter as mulheres na subalternidade. As expressões “louca”, “inferior” e “degenerada” não compreendem uma patologia em si; antes, são traduções em termos médicos das prescrições morais existentes na época. O texto de Caponi (2019b) retoma os argumentos de Paul Moebius e Miguel Bombarda, referindo-se ao tamanho e peso inferior do cérebro das mulheres. Há uma naturalização que serve para manter intactas as desigualdades, subordinações e marginalidades que provocaram sofrimento a essas mulheres definidas como loucas (CAPONI, 2019b). Os argumentos reforçavam as posições sociais e situavam as mulheres que exibiam comportamentos considerados inadequados em categorias patológicas. Dentre as mais degeneradas estavam as prostitutas, feministas e intelectuais, mulheres que resistiam ou questionavam o papel exclusivo da maternidade. O que estava em jogo era o risco de que as mulheres abandonassem sua posição submissa à dominação masculina e escapassem de sua função como genitoras.
Hoje as pautas se transformaram. As mulheres conquistaram postos no mercado de trabalho, nas universidades, circulam e são consumidoras no espaço urbano. As batalhas não são as mesmas, mas os diagnósticos psiquiátricos permanecem. Como já mencionado, as mulheres são as maiores consumidoras de alguns psicotrópicos.
Persiste también en el campo de la psiquiatría cuando se reducen hechos sociales graves, como la violencia familiar, el asedio moral, la humillación cotidiana sufrida por muchas mujeres, a diagnósticos psiquiátricos ambiguos como depresión, ansiedad, bipolaridad. Siguen estando vivas cuando se atribuyen esos diagnósticos a alteraciones neuroquímicas, como deficiencia de serotonina, o exceso de liberación de dopamina, naturalizando y biologizando los hechos sociales que provocaron el sufrimiento: el asedio moral en el trabajo, la violencia sexual, la violencia familiar ... (CAPONI, 2019b, p. 47).
Denise Martin et al. (2012) discutem as percepções dos profissionais de saúde nas Unidades Básicas de Saúde. Os números apresentados por essas autoras indicam como o corpo, a mente e as relações das mulheres com seus contextos são percebidas: exaustas, deprimidas, ansiosas. Illouz (2011) aborda o surgimento do discurso terapêutico de autoajuda, propondo-se a responder à pergunta: “Como explicar o surgimento de uma narrativa da identidade que promove, agora mais do que nunca, um ethos de autoajuda, mas que, paradoxalmente, também é uma narrativa de sofrimento?” (p. 63). A autora menciona a obra de Samuel Smiles, de 1859, na qual as biografias apresentadas seriam exemplares quanto à responsabilidade individual para obtenção de sucesso. Nesse modelo, a autorrealização estaria disponível a qualquer pessoa disposta a construir competências.
Anos mais tarde, Freud traz para o debate o contexto social no qual os sofrimentos se constroem, e a impossibilidade da individualidade da cura, sem a transformação do contexto. Illouz (2011) mostra a relação de reforço entre a obra de Freud e Smiles para analisar a cultura norte-americana contemporânea. A autora afirma que esses dois pensamentos - embora opostos - reforçaram-se na nova narrativa de autoajuda: o aprimoramento pessoal de Samuel Smiles e as ideias freudianas. Na atualidade, o sofrimento e o eu ferido aproximaram as classes sociais e tornaram-se “democráticos”; estão presentes nas construções identitárias. Somado a isso, a capitalização desse ethos se tornou um empreendimento extremamente lucrativo.
Algumas transformações nas teorias psicológicas colaboraram com a nova narrativa da autoajuda: o distanciamento do determinismo freudiano e a valorização da capacidade humana em moldar seu destino; maior acessibilidade a livros; e o aumento da influência dos psicólogos em espaços despolitizados e de maior alcance. Illouz (2011) vê em Carl Rogers e Abraham Maslow outras duas importantes contribuições nesse processo de transformação. O primeiro trouxe a ideia de que a saúde mental é sinônimo de condição normal. Para Rogers, todos os seres humanos possuem uma tendência autoatualizadora, de crescimento constante. Já Maslow afirmava que “aqueles que não se conformavam com esses ideais psicológicos de autorrealização seriam eles os doentes” (ILLOUZ, 2011, p. 67).
Esses discursos ampliaram o campo de ação da psicologia, vinculando a ideia de saúde e autorrealização. Isso ocorre ao mesmo tempo que se deslocam os distúrbios psicológicos para o campo do sofrimento psíquico. “O credo terapêutico foi mais longe, na medida em que formulou a questão do bem-estar em metáforas médicas e patologizou a vida comum” (ILLOUZ, 2011, p. 68). Esse discurso contribuiu para borrar ainda mais as fronteiras entre saúde mental e doença, fronteiras as quais, conforme Foucault (2007), sempre foram objeto de manipulação e relações de poder. De igual maneira, Greenslit (2005; 2015) mostra como os psicotrópicos estão se movendo da esfera privada da relação paciente-médico para outros espaços como a propaganda, livros e programas de televisão tão bem como surgem nas conversas do dia a dia sobre risco e doença.
Como esses processos interferem na busca por tratamentos em saúde mental? Conforme Martin et al. (2012), ao analisarem o significado da busca de tratamento por mulheres com transtorno depressivo em um Núcleo de Atenção Psicossocial de São Paulo, concluíram que “a experiência da depressão, para estas mulheres, evidenciou um caleidoscópio de sofrimentos, justificativas e soluções possíveis para o sofrimento cotidiano. O medicamento era um componente importante” (p. 895). Assim como Davies (2022), Martin et al. (2012) também evidenciam o uso de medicamentos como mecanismos de enfrentamento de realidades excludentes e violentas.
Em face da condição de imutabilidade de alguns problemas, o medicamento contribuiria, tanto do ponto de vista de sua ação farmacológica quanto simbólica, para um cotidiano menos insuportável. A relação com os medicamentos era ambígua: apesar da preocupação com efeitos colaterais e possibilidade de dependência, sua busca era evidente (MARTIN et al., 2012, p. 895).
Como garantir, senão o sucesso, antes, o mínimo de condições de vida em um contexto de exclusão e adoecimento? Como buscar alternativas? O mundo social digital tornou-se um desses espaços onde estão disponíveis possíveis “modelos” de normalidade. O ambiente virtual expõe trajetórias de sucesso, onde o fracasso, os sofrimentos, os obstáculos, os medicamentos, não aparecem. Conforme Fourcade (2011), observamos aqui a criação de selfies digitalmente mediadas e bem-sucedidas na sua legitimação, que são as influencers digitais.
O uso de medicamentos para alcançar os modelos de normalidade acomoda significados de um processo de “melhoramento” humano. De acordo com Jim McVeigh, Michael Evans-Brown e Mark Bellis (2012), algumas substâncias são utilizadas para melhorar o desempenho em algumas situações: (1) funções e estruturas musculares (esteroides anabolizantes e hormônios para aumento de massa muscular); (2) perda de peso (sibutramina para redução do apetite); (3) aparência da pele e dos cabelos (cremes e medicamentos); (4) função e comportamento sexual (sildenafila para promover a ereção); (5) funções cognitivas (metilfenidato e modafinila para melhorar a concentração); e (6) comportamentos sociais e humor (fluoxetina e outros antidepressivos para estar sempre “mais do que bem”). A busca pela “perfeição” ou normalidade, e a popularização dessa perfeição como algo possível e alcançável, principalmente por meio das redes sociais, tornam relativamente comum o uso de produtos para esse fim.
2 Mercado de psicotrópicos no Brasil e mulheres
Quando abordamos o setor da saúde mental, como já apontado por diversos autores, a começar por Foucault, há uma ampliação do conceito a partir dos movimentos de Reforma Psiquiátrica (Elton CORBANEZI, 2021). Um novo mercado surge junto com ela. Pacientes antes tratados em instituições fechadas serão atendidos a partir de então em consultórios médicos e o acesso a medicamentos necessários ao tratamento será principalmente intermediado por mercados e esses pacientes tornam-se consumidores (MAZON, 2019; CONRAD; Valerie LEITER, 2004).
Esse processo proporciona tratamentos psiquiátricos ambulatoriais baseados na prescrição de psicotrópicos. Os psicotrópicos constituem-se como bens de mercado. Conforme já apontado por outras pesquisas, o consumo de fármacos é singular em relação a outros bens disponíveis no mercado (MAZON, 2021). Ele tem uma característica especial dos bens simbólicos. Segundo Bourdieu, esses bens seriam construídos nas mãos do produtor e nos olhos de quem os reconhece e consome (BOURDIEU, 1996; 2006). A produção e circulação de psicotrópicos envolve a indústria farmacêutica, os/as cientistas e os/as psiquiatras; estes últimos atendem consumidores/pacientes. Para que esses objetos possam circular pelos mercados, há necessidade de negociação de significados tão bem como uma acomodação moral deles (ZELIZER, 1978). Conforme Bourdieu (2006), a produção da obra de arte como objeto sagrado e consagrado é produto de um empreendimento de alquimia social. Essa alquimia na qual colaboram, com a mesma convicção e com benefícios bastante desiguais, agentes envolvidos no campo da produção (artistas, escritores, críticos, editores) assim como clientes/consumidores e vendedores convencidos (BOURDIEU, 2006, p. 29). Esse raciocínio nos ajuda a pensar o consumo de psicotrópicos por mulheres.
O trabalho de Greenslit (2005) mostra que a circulação de psicotrópicos como operadores de significados sociais acontece como parte da evolução de certas categorias diagnósticas psiquiátricas. Greenslit (2005) reflete sobre diagnósticos controversos dentro e fora da psiquiatria, associados a questões de gênero e patologia. O autor centra sua análise na história social do Sarafem®, cuja própria disponibilidade acabou por difundir uma autoridade antes centrada na psiquiatria. O autor sugere como os debates institucionais e públicos sobre o transtorno disfórico pré-menstrual tornaram-se debates sobre o próprio medicamento. Para Greenslit (2005), a produção e comercialização do Sarafem® mudou os locais em que os fatos científicos sobre saúde mental estavam em disputa. Movimentos sociais, por exemplo, mobilizam o FDA para contestar uma droga, ao invés de procurar apenas a Associação Psiquiátrica Americana para contestar um diagnóstico. Indo de encontro a Bourdieu e Zelizer, Greenslit permite, a partir da análise da produção e circulação do Sarafem nos mercados, visualizar como as ideias sobre saúde são produzidas a partir da esfera do consumo.
Para outras autoras, o uso de psicotrópicos se constitui como uma nova forma de controle social e modelação de subjetividades, conforme argumenta Bru (2022), que muitas vezes substitui e/ou se sobrepõe ao controle manicomial.
Estudos já apontaram como fato importante para o aumento do consumo de psicotrópicos as Reformas Liberalizantes que atingiram o Brasil a partir da década de 1990 e o aprofundamento do neoliberalismo. Esse é o momento em que a indústria farmacêutica ganha fôlego (MAZON, 2020; 2021; 2022). Ao abordar o neoliberalismo, Pierre Dardot e Christian Laval (2016) classificam os indivíduos contemporâneos como neosujeitos: aqueles que têm como principal característica o “empreendedorismo de si”; o desenvolvimento de seu capital humano para melhor concorrer com outros neosujeitos dentro da norma neoliberal. O neoliberalismo não é apenas um sistema econômico, mas, antes, “uma lógica normativa que coloca os indivíduos em relações competitivas e em situações que os convidam a adotar comportamentos de acumulação de capital humano” (LAVAL In Elisa SANVICENTE, 2019, p. 319). Maraisa Gaiad (2019), igualmente, aborda a sociedade capitalista contemporânea e seus processos de individualização para tratar do sofrimento e discursos de autoajuda. O sucesso está na potencialização da ação do indivíduo em ter controle sobre si e sua trajetória.
O sofrimento é visto nessas sociedades como algo insuportável do qual é preciso se afastar, pois evidencia fragilidade, ausência de autocontrole e incapacidade de lidar com as dificuldades; logo, revela um indivíduo fraco, impotente, já que incapaz de, ao mesmo tempo de lidar sozinho com as pressões, vencer obstáculos e manter a alta performance (GAIAD, 2019, p. 41).
Sandra Caponi e Patricia Daré (2020) evidenciam a questão da forma como são abordados os sentimentos, controlando as emoções e as performances:
As novas subjetividades que emergem das relações orientadas pelos princípios neoliberais estão diretamente vinculadas à gestão dos sentimentos. Para ser bem sucedido no mundo neoliberal, é necessário garantir o autocontrole da forma como expressamos nossas emoções. Impõe-se a exigência tácita de não demonstrar raiva, rejeição, oposição, medo ou ansiedade. Ao contrário, o empresário de si deve sempre demonstrar uma positividade desbordante, um sentimento de plena e completa felicidade (CAPONI; DARÉ, 2020, p. 308).
2.1 Mundo digital e a mulher aos 40: a medicalização espelhada
Das mulheres demanda-se gerir casa, família, trabalho, classe, raça, corpo e ainda permanecer bem mentalmente, como mencionado na seção anterior. As comparações e competições estão não apenas no espaço de trabalho, mas também na vida familiar, na ação política, no lazer. Na narrativa da competência afetiva, conforme Illouz (2011; 2019), o que vale é ser mais produtiva e bem-sucedida que outras mulheres ao seu redor; o controle das emoções está no cerne dessa competência. Este campo é, como as demais esferas sociais, um universo de crenças, em que as dimensões simbólicas são de fundamental importância no engendramento das relações, que são baseadas em um sistema de valores a orientar a ação dos indivíduos.
Conforme Fourcade (2021), a cidadania digital passa por essa elaboração de selfies digitais que se transformam em métricas de sucesso: compartilhamentos, curtidas, comentários, seguidoras e seguidores.
Os espaços digitais de consagração aqui analisados são páginas pessoais de influencers, pessoas que angariam status de celebridade por meio do aplicativo Instagram. Esse fenômeno começou a movimentar um mercado on-line a partir de postagens fotográficas, ao combinar a intimidade dessas pessoas com o patrocínio de empresas, exibindo marcas e propagandas dentro de perfis pessoais (Maria JARDIM; Luana DI PIRES, 2022). Digno de nota é o grande número de seguidores na rede social Instagram,5 contando, em 2021, com 1,21 bilhões de usuários ativos globalmente (STATISTA, 2021). Atualmente, 113 milhões são brasileiras/os (STATISTA, 2023). Esses são espaços performáticos (que utilizam artefatos como vídeos, fotos, frases motivacionais) que reforçam a lógica da produção da crença de um estilo de vida saudável e feliz, onde não existem contradições, conflitos ou onde estes permanecem em segundo plano. Esses espaços são atravessados por formas de violência simbólica:
[...] violência suave, insensível, invisível a suas próprias vítimas, que se exerce essencialmente pelas vias puramente simbólicas da comunicação e do conhecimento, ou, mais precisamente, do desconhecimento, do reconhecimento ou, em última instância, do sentimento. Essa relação social extraordinariamente ordinária oferece também uma ocasião única de apreender a lógica da dominação, exercida em nome de um princípio simbólico conhecido e reconhecido tanto pelo dominante quanto pelo dominado, de uma língua (ou uma maneira de falar), de um estilo de vida (ou uma maneira de pensar, de falar ou de agir) e, mais geralmente, de uma propriedade distintiva [...] (BOURDIEU, 2012, p. 7-8).
O uso de medicamentos como antidepressivos e ansiolíticos não é mencionado nas mídias, talvez por permanecerem na seara de testemunho da incapacidade de autocontrole. Isso não significa que os estímulos ao uso de psicotrópicos não estejam lá, eles aparecem na sua forma oposta, como espelho, mas igualmente efetiva, nos “exemplos” de mulheres que conseguem. Da mesma forma que crianças e adolescentes são influenciados e almejam igualar seus ídolos virtuais, as mulheres de 40 anos ou mais são bombardeadas diariamente por imagens e mensagens de mulheres que “chegaram bem aos 40”, “têm o corpo perfeito”,6 acreditam que “os 40 são os novos 30”. Como exemplos, podemos citar a atriz Paolla Oliveira,7 a cantora Sandy8 e a dançarina Carla Perez.9
Essas mensagens são apresentadas em dois grupos: o primeiro, de mulheres bem-sucedidas,10 classificadas como lindas, tem filhas/os perfeitos, marido atencioso. O segundo grupo é formado por mulheres coachings, que se apresentam como bem-sucedidas após vivenciarem uma mudança de estilo de vida; são mulheres que estavam infelizes em seus relacionamentos e trabalho e que após se “libertarem”, aos 40, são felizes e realizadas. A proposta delas é auxiliar (mediante remuneração) outras mulheres a encontrar possíveis caminhos de felicidade.
O universo digital constitui gigantesco mercado, inclusive no Brasil. Diferentes grupos demográficos (homens, mulheres, jovens, crianças) estão conectados ao mundo virtual, seja como consumidor ou anunciante (Elaine LEITE, 2022 [no prelo]). No Brasil, a internet é utilizada em 82,7% dos domicílios, chegando a oito em cada dez, e 98, 6% acessam a internet por meio de celular (AGÊNCIA IBGE, 2021). De acordo com a OECD (2020), o tempo médio de tela e mídias sociais no Brasil é de 10 horas de uso da internet, sendo 4,5 horas nas mídias sociais. Artistas, influencers e coachings exibem produtos e objetos, na maioria das vezes, apresentando suas vidas “pessoais” e usando seus corpos (JARDIM; DI PIRES, 2022) como vitrine.
O grupo das bem-sucedidas é composto principalmente por artistas e pessoas de outros meios, as quais se tornaram influencers. Estas mulheres estão sempre bem vestidas e sorridentes. Selecionam fotos que mostram o cotidiano: ida à academia, ensaios fotográficos, a decoração da casa e a participação em eventos. Outras valorizam a sua maternidade bem-sucedida, mostrando os quartos das crianças, seus looks e alguns momentos de diversão. Babás, faxineiras e cozinheiras não aparecem. Não que elas não as mencionem em algum momento ou que não falem de seus problemas e frustrações,11 porém, esses momentos são raros.
Entre fotografias e frases motivacionais, há a apresentação de produtos que, não coincidentemente, podem ser usados nas atividades rotineiras. Alguns dos produtos vendidos são suplementos alimentares, protetores solares e cosméticos em geral, atividades em academias, procedimentos estéticos e as marcas das roupas utilizadas, conforme já observado por Jardim e Di Pires (2022). Para além desses objetos, o que se vende é a imagem de uma vida plena, sempre com um sorriso no rosto, rotina preenchida por atividades profissionais e de bem-estar, onde não há conflitos ou problemas. Mesmo quando assuntos vinculados à saúde mental são tratados, são concluídos com frases motivacionais, autocuidado, autopreservação e autoestima; sempre voltados para um eu individual que deve solucionar os problemas de maneira individual, conforme já observado por Dardot e Laval (2016) e Illouz (2011).
Algumas mulheres se mostram com um espírito jovem e aventureiro, outras se apresentam como quase anciãs detentoras de saberes especiais. As frases motivacionais esboçam certo padrão na mensagem: estou envelhecendo, não estou tentando adiar esse processo e me valorizo. Essas mulheres, na maioria, vêm de uma trajetória já consolidada nas suas áreas profissionais e entendem que, ao chegar à faixa etária dos 40 anos - diferente das reclamações que surgem nos consultórios e Unidades Básicas de Saúde (UBS), de mulheres com problemas financeiros, pessoais - é libertador, pois já conseguem usufruir de benefícios dos anos precedentes de trabalho. Como exemplo, podemos citar a conta de Instagram da atriz Letícia Spiller,12 da apresentadora Ticiane Pinheiro13 e da cantora Simaria.14
O que esses perfis não mostram é o cotidiano real e a rede de apoio que elas têm. Não se discute o contexto social, a raça, a classe social. Igualmente, não aparece o uso de medicamentos; no máximo, de vitaminas e medicamentos para dores musculares ou candidíase. A mensagem implícita é sempre de um estilo de vida e de ações individuais que geram satisfação individual e que isso é fruto de uma competência, também ela exclusivamente individual. Quem recebe essa enxurrada de imagens e “dicas” são mulheres reais, em um país bastante desigual e sexista. Para administrar rotinas que muitas vezes são de até três jornadas diárias (Helena HIRATA; Danièle KERGOAT, 2007; Nadya GUIMARÃES, 2016), muitas mulheres recorrem aos medicamentos. Como vimos, muitos médicos entendem que essa é a solução mais fácil, rápida e efetiva a curto prazo para resolver problemas que, em realidade, são estruturais.
Já os perfis das coachings são um tanto diferentes. Analisamos 8 (oito) perfis,15 onde são abordados principalmente recomeços aos 40 anos. São perfis voltados a mulheres que não se sentem satisfeitas com suas vidas e que são convidadas a realizar mudanças para alcançarem esse lugar. Ao final de uma sequência de afirmativas que evidenciam as situações que frustram as mulheres, geralmente vem uma chamada para um curso que ensina e acompanha a transformação. Por exemplo, a estrategista de carreira Juliana Garcia apresenta um carrossel de imagens com “7 sinais de que seu prazo de validade no trabalho já venceu” e, na última, convida as leitoras para participarem de sua live “Como saber a hora certa de mudar”.16
Esses perfis se apresentam como vitrine do negócio e quase não há fotos da vida íntima. As fotos selecionadas passam a imagem de mulheres confiantes, que estão numa classe social privilegiada: camisas sociais de seda, blazers, braços cruzados ou com uma mão no queixo, e este sempre levemente levantado. Essas mulheres vendem seus cursos: seja de estratégia e aceleração de carreira, orientação profissional, educação financeira, desenvolvimento pessoal. Ou seja, são cursos que ensinam como decidir o que fazer da vida e ser protagonistas da própria vida. As formações são as mais diversas: economistas, psicólogas, terapeutas, estrategistas digitais, médicas, criadoras de conteúdo baseadas em mindset ou própria trajetória. Nos conteúdos da página no Instagram, divulgam dicas vinculadas aos produtos e também frases que visam criar um vínculo com quem consome seus conteúdos. Essas frases sinalizam o domínio que essas mulheres possuem sobre os problemas e frustrações típicos de mulheres de 40 anos. Mais do que isso, são frases que expressam violência simbólica: são discursos bem-sucedidos em convencer outras mulheres de que esses são os problemas com os quais elas devem se preocupar aos 40 anos. Um exemplo é a psicóloga e aceleradora de carreiras Françoise Camargo, que publicou uma postagem onde conta um pouco de sua trajetória profissional ao mesmo tempo que passa uma mensagem de motivação: “todo recomeço trazia oportunidades”.17
Ao analisar programas de televisão e seminários que se propõem a capacitar para a autorrealização, Illouz (2011) observa que as narrativas terapêuticas de autoajuda são similares a narrativas religiosas, pois trabalham com objetivos e sentidos que são ocultos. É o “desvendar” as causas do sofrimento e agir diante delas a meta dessas terapias. “É nesse ponto que as narrativas da autoajuda e do sofrimento se ligam, pois, se desejamos secretamente o nosso sofrimento, o eu pode ser diretamente responsabilizado por aliviá-lo” (ILLOUZ, 2011, p. 70).
Illouz (2011) observa também que as narrativas são escritas de trás para frente, tendo como ponto de partida o sofrimento presente e tentando identificar em que ponto da trajetória ele foi ativado. Nesses programas, o sofrimento se torna objeto público a ser discutido. É nesse momento, também, que se criam nichos de mercado, pois o problema não é a pessoa em si, mas o cenário do sofrimento (falta de intimidade, insucesso no trabalho, ciúmes excessivos etc.). Ao se identificarem com as histórias, os espectadores tornam-se pacientes e clientes em potencial.
Quando o assunto é o mundo digital, os perfis de coachings no Instagram utilizam essa mesma lógica, buscam na dita crise dos 40 para e no imaginário “idade da loba” a fim de estimularem as mudanças individuais e a compra de seus produtos. Mesmo com menor número de seguidores e seguidoras que as influencers bem-sucedidas, essas mulheres alcançam nichos específicos e capitalizam as possíveis transformações de vida.
O mundo digital, e o Instagram, em particular, são um local de julgamentos, realizados pelos próprios usuários da plataforma, por meio das curtidas, dos comentários e da quantidade de seguidores. Os julgamentos possuem dimensão social, uma vez que os critérios utilizados fazem parte de sistemas de crenças e valores coletivos (Fabíola BRZOZOWSKI; Maurício MELIM, 2021). Dessa forma, no mundo digital, há uma busca pela imagem da “perfeição” que aparece no coletivo, ao mesmo tempo que essas imagens são reforçadas.
Segundo Foucault (2008), essa seria uma forma de autogoverno, na medida em que as mulheres se obrigam, ou são convencidas de que é necessário e saudável agir conforme o anunciado por influenciadoras. Ao mesmo tempo, retomando Bourdieu (2014), expressa uma forma de violência simbólica, de imposição de sentido. A individualização dos sujeitos (DARDOT; LAVAL, 2016) ganha ainda tração nesse processo e faz parecer que comportamentos individuais podem ser apenas escolhas de cada um. Assim, obter sucesso, ter um bom desempenho acadêmico e no trabalho, ser belo e saudável só depende de escolhas individuais, enfraquecendo o tecido coletivo, conforme mencionado por Fourcade (2021).
Considerações finais
Se acordo com Fourcade (2021), os laços de solidariedade típicos dos Estados de bem-estar social são rompidos e numa velocidade ainda maior conforme o circuito de discursos da esfera digital. Esse fenômeno atinge de maneira particular mulheres: o mundo digital e o respectivo anúncio de soluções individuais para o governo da vida e do eu, o qual aparece em postagens de influencers, isola mulheres num espaço sem alternativas coletivas. Reconhecer problemas e partilhá-los é sinônimo de fracasso. Segundo pondera Illouz (2011; 2019), o espaço público está preenchido por problemas do eu sem muita alternativa para os debates políticos.
Voltando às reflexões de Eva Illouz, o discurso das influencers mostra as mulheres com capacidade de moldar seu próprio destino; elas devem deixar de lado redes de solidariedade e vencer sozinhas, devem ser empreendedoras de si. A procura por diagnóstico e tratamento medicamentoso por mulheres na contemporaneidade viveu uma guinada no formato dos termos de suas justificativas. Se nos séculos XVIII e XIX estavam relacionadas às pulsões sexuais e à necessidade de docilidade feminina, hoje as mulheres estão submetidas ao discurso do empoderamento, autocontrole e alta performance; para serem bem-sucedidas, elas devem competir com homens e outras mulheres na conquista de postos e reconhecimento. A explicação do sucesso está encerrada nas competências individuais. Seguindo esse raciocínio, fracasso ou dificuldades financeiras seriam eles também do reino do individual. Esse é o discurso que aparece entre as influencers digitais analisadas; embora elas não falem sobre psicotrópicos, é para eles que o seu público se volta quando não consegue atingir o mundo perfeito que elas exibem no espaço digital.