1 Introdução
O Ensino Superior é mola propulsora do desenvolvimento social e econômico ( AMARAL; MAGALHÃES, 2004 ; PUCCIARELLI; KAPLAN, 2016 ). Com a formação de mão de obra altamente qualificada e processos de transferência de tecnologia e de inovação, as Instituições de Ensino Superior (IES), principalmente no local, mas não apenas, auxiliam na atração e na manutenção de atividades sustentáveis e de alto valor econômico ( CARAYANNIS; RAKHMATULLIN, 2014 ; HEITOR; HORTA, 2016 ).
Principalmente na Europa, as IES com atuação especializada (Universidades de Ciências Aplicadas, Universidades Tecnológicas, Institutos Politécnicos, Fachhochschule, entre outras denominações) caracterizam-se, principalmente, por elevada interação com o setor industrial, através de escritórios de transferência de tecnologia, parques tecnológicos e agências de empreendedorismo, e currículos com abordagens mais práticas de aprendizagem, quando comparadas com as universidades clássicas ( HASANEFENDIC et al., 2016 ; PILATTI; LIEVORE, 2018 ).
A universidade é objeto de estudo amplamente tratado no meio acadêmico. Entre as perspectivas examinadas, a filosófica e a política, focos do presente estudo. Com a perspectiva filosófica, entre muitos, estudos da concepção e dos modelos de universidade ( DRÈZE; DEBELLE; 1983 ; KERR, 1982 ; NEWMAN, 2017 ; WOLFF, 1993 ) e de universidades especializadas ( DU PRÉ, 2010 ; HAMM; WENKE, 2002 ; JONGBLOED, 2010 ; KETTUNEN, 2011 ; MCKENNA; SUTHERLAND, 2006 ). Com a perspectiva política, Cruz (2010) , Hasanefendic (2018) , Horta (2010) , Pucciarelli e Kaplan (2016) e Silveira e Bianchetti (2016) .
É relevante compreender como as instituições especializadas adaptam-se às mudanças recentes e moldam suas estratégias para alcançar sucesso em novos ambientes. Ao passo que a maior parte dos estudos se concentram em como as universidades deve(ria)m conduzir seus processos de mudança, há uma compreensão, ainda limitada, de como estas transformações afetam as IES e alteram seus modelos.
A presente pesquisa, desenhada metodologicamente como um estudo comparado, perquire duas instituições especializadas, uma no Brasil e outra em Portugal, que se situam de forma privilegiada num espaço complexo, ainda mal delimitado e relativamente recente, que é o campo das IES especializadas.
As instituições escolhidas foram a Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR), única universidade tecnológica do Brasil e já situada entre as jovens universidades mais importantes do mundo ( THE STUDENT, 2020 ), e o Instituto Politécnico de Bragança (IPB), por quatro anos consecutivos, considerado pelo UMultirank, o melhor Politécnico português (IPB, 2018).
As similitudes existentes entre o sistema universitário brasileiro e português, como o baixo grau de autonomia institucional, baixos níveis de financiamento reconhecidos internacionalmente, limitações nas respostas às demandas da sociedade e um longo processo de democratização do Ensino Superior, e a semelhança nos desafios nacionais, embora em diferentes níveis, como necessidade de aumentar as qualificações formais da população, urgência para desenvolver ciência, tecnologia e inovação com impacto no desenvolvimento socioeconômico regional e nacional ( HEITOR; HORTA, 2016 ; JEZINE et al. 2011 ; LIEVORE et al., 2017 ), permitem e justificam a comparação.
Neste cenário, o objetivo da presente pesquisa foi compreender o modelo ideado e as respostas de duas IES caracterizadas como especializadas: no Brasil, a UTFPR, e em Portugal, o IPB, no que concerne às políticas desenvolvidas para pesquisa e na terceira missão das universidades, a extensão.
2 Metodologia
O método utilizado foi o comparativo. As etapas consistiram em: (i) seleção de duas ou mais séries de fenômenos efetivamente comparáveis; (ii) definição dos elementos comparados, e (iii) generalização, identificando elementos comuns nos casos analisados, respeitando suas especificidades ( SCHNEIDER; SCHIMITT, 1998 ).
Os casos perquiridos são: o da UTFPR transformada em universidade em 2005 ( BRASIL, 2005 ), localizada em 13 cidades do estado do Paraná. A universidade conta com aproximadamente 4.000 servidores, 34.000 alunos, em 126 cursos de Graduação, 58 cursos de Mestrado e 12 programas de Doutorado ( UTFPR, 2020 ); e o do IPB, localizado nas cidades de Bragança e Mirandela, com 47 cursos de Licenciatura, equivalentes aos cursos de Graduação no Brasil, 39 cursos de Mestrado e 41 Cursos Técnicos Superiores Profissionais, nos quais atuam 412 docentes e aproximadamente 7.000 alunos (IPB, 2018).
O corpus de pesquisa foi composto por entrevistas semiestruturadas, por documentos institucionais do IPB e da UTFPR e por documentos legais do Brasil e de Portugal.
O roteiro das entrevistas semiestruturadas foi composto por 10 questões que inquiriam sobre modelo da instituição, pesquisa, extensão, transferência de tecnologia, produção tecnológica e relacionamento com a sociedade. As entrevistas foram realizadas presencialmente nas cidades de Ponta Grossa e Curitiba, no Brasil, e em Bragança, Mirandela, Porto e Braga, em Portugal, durante os meses de janeiro e setembro de 2018. Foram entrevistados atores com experiências relevantes no percurso histórico e na gestão das instituições perquiridas.
As entrevistas foram gravadas, transcritas e devolvidas aos entrevistados para consessão de autorização. O tempo médio das entrevistas foi de duas horas. Todas as respostas foram mantidas em sigilo, aderindo aos procedimentos de ética em pesquisa científica. O procedimento de saturação foi o da bola de neve. No Brasil, a saturação ocorreu no sétimo entrevistado e em Portugal no décimo quinto, totalizando 22 entrevistas.
O procedimento de análise foi a técnica de Análise de Conteúdo Categorial proposta por Bardin (1977) . Após as entrevistas, foram agrupadas 94 categorias iniciais; 13 categorias intermediárias e, destas, foram extraídas duas categorias finais: Pesquisa e Extensão da UTFPR e da IPB. Estas últimas utilizadas na etapa de tratamento dos resultados.
Na apresentação dos resultados, para garantir o anonimato dos entrevistados, codificamos como Entrevistado (E) e numeramos (1, 2, 3...).
3 Resultados e discussões
A presente seção é dividida em duas. Na primeira parte, também dividida em duas, os casos perquiridos são minudenciados com a perspectiva da pesquisa e nos meandros da terceira missão das universidades. No Brasil, diferente de Portugal, a terceira missão é lida claramente como extensão universitária. Na segunda parte, é feito o confronto dos casos na perspectiva de identificar semelhanças e dessemelhanças.
3.1 Pesquisa e extensão na UTFPR
No Brasil, a indissociabilidade do Ensino, da pesquisa e da extensão, garantida no art. nº 207 da Constituição (BRASIL, 1988), conforma a ideia de universidade. Assim, falar de pesquisa e de extensão, numa universidade brasileira, é falar de algo, em tese, indissociável.
Constatamos que a UTFPR, na pesquisa, com a ampliação dos programas de Pós-Graduação e de grupos de pesquisa, apresenta um (natural) aumento expressivo nos indicadores de produção científica. O número de grupos de pesquisa passou de 55, em 2005, para 492, em 2019 ( UTFPR, 2006 ; 2020). Na visão dos entrevistados (E1, E2 e E4), o resultado reflete a qualificação do corpo docente. Em 2005, a UTFPR possuía 224 docentes Doutores; em 2019, 1.946 Doutores, dos quais 773 atuando na Pós-Graduação ( UTFPR, 2020 ).
Embora o Plano de Desenvolvimento Institucional (PDI) reforce, de forma recorrente, que as ações voltadas para a investigação são, em grande medida, realizadas por demanda do setor produtivo ( UTFPR, 2004 ; 2009; 2013; 2017; 2021), nas entrevistas ficou evidente a baixa congruência do planejado com a relidade. É fato que a avaliação da Pós-Graduação, imposta pela Capes, parametriza a condução da pesquisa dentro das universidades. A UTFPR, com o crescimento da Pós-Graduação, está submetida às imposições que, em essência, são mais comuns às universidades clássicas (UC). O efeito prático é um distanciamento dos esforços na produção típica de instituições de tecnologia, como protótipos e patentes, e de ações prioritárias, como a transferência de tecnologia (TT). A publicação de artigos, face mais notória do modelo, que deveria ser consequência, com o modelo avaliativo vigente, tornou-se foco da Pós-Graduação. Nas entrevistas (E4 e E5) são citados exemplos de professores que fazem pesquisa aplicada com extensão, mas que encontram dificuldades para publicar artigos. Nesta direção, o E5 argumenta que a lógica distorce a universidade: “Se um professor é avaliado por aquilo, é para lá que vai. [...] por que o professor vai trabalhar com extensão e transferência de tecnologia?” Mesmo as avaliações internas da UTFPR valorizando a produção tecnológica, os docentes vinculados à Pós-Graduação, para se manterem nos programas, têm que aderir à lógica da Capes. Com efeito, a UTFPR, que foi ideada para priorizar uma pesquisa voltada para a realidade e necessidades sociais, em virtude das políticas implementadas, responde de maneira análoga a todas as universidades do país. A política é funcional: a produção científica no Brasil, nos últimos anos, tem correlação direta com o rigoroso processo de avaliação da Pós-Graduação ( LIEVORE et al. 2017 ). Entre 2000 e 2010, a produção científica nacional apresentou um crescimento médio de 10,7% ao ano, e o impacto do Brasil na produção mundial aumentou de 0,73 em 2011 para 0,86 em 2016 (mais de 17%). No entanto, o impacto das pesquisas está aquém das expectativas globais, mostrando fragilidades do sistema ( ALMEIDA; GUIMARÃES, 2013 ).
Para melhorar o sistema de avaliação, a Capes planeja implementar, no próximo ciclo de avaliações Quadrienal, um modelo multidimensional atrelado à vocação dos programas, avaliando cinco dimensões: Ensino e aprendizagem, impacto e relevância para a sociedade, inovação e transferência de conhecimento, produção de conhecimento e internacionalização e inserção regional (CAPES, 2019). Com a nova metodologia, em tese, mais inclusiva e que respeitará a vocação de instituições como a UTFPR, a Capes dará mais amplitude e flexibilidade aos programas para executarem seu próprio planejamento.
A dificuldade de estabelecer um vínculo entre as atividades produtivas da sociedade e a universidade é um problema comum no Brasil ( TRINDADE, 1999 ). Para o E5, sabemos fazer pesquisa, mas não conseguimos empreender com os resultados alcançados. Na visão do entrevistado, falta foco nas demandas e nas necessidades da comunidade e da região. Adicionalmente, a legislação brasileira, em medida importante, inviabiliza a aproximação da UTFPR do modelo de UT globalmente difundido. Um exemplo importante são os docentes. É desejável que os docentes de uma UT atuem concomitante no setor produtivo, mas a legislação vigente praticamente inviabiliza a situação.
Não obstante, as universidades públicas brasileiras, e aí inclui-se a UTFPR como a segunda jovem universidade mais importante do país, são responsáveis pela produção de mais de 95% do conhecimento produzido no Brasil. Mesmo assim, as universidades têm falhado em transformar o Brasil num país que agrega valor aos produtos. O Brasil é, mais que qualquer coisa, um exportador de commodities . Tem-se, assim, a produção de pesquisas de prateleira e artigos científicos, distantes do setor produtivo, num país onde as políticas públicas distanciam-se do público e, por extensão, das universidades públicas. A UTFPR é, distante do ideado, o reflexo das políticas públicas brasileiras.
Quanto aos projetos ligados à terceira missão das universidades, a extensão, especialmente quando se trata de TT, os entrevistados (E1, E2 e E4) acreditam que a UTFPR poderia apresentar uma política de valorização mais eficaz da produção tecnológica, como protótipos e patentes, mas duas dificuldades foram apresentadas por estes entrevistados. Primeiro, não há uma justa avaliação do professor-extensionista, visto que, até o momento, os meios de valorização na avaliação da Capes são limitados e pouco significativos no processo avaliativo. O segundo problema é a burocracia nacional para solicitação de patentes e o custo para manter o processo. Estes dois pontos desestimulam docentes e instituições a investir tempo e recurso no pedido de patentes. Neste cenário, a relevância social das patentes, seu valor comercial e as condições de transferência são questões ainda em estágio embrionário na direção de um consenso. Conforme mostram Bagattolli e Dagnino (2013) , o percentual de pedidos de patente que são transferidas para a sociedade é baixo e envolve custos elevados. Além disso, a relação entre universidades e empresas ocorre, fundamentalmente, mediante a profissionais formados na universidade e não por TT.
Mesmo com estes problemas sistêmicos, a UTFPR apresentou evolução significativa nos pedidos de proteção intelectual, depositados junto aos órgãos oficiais. A quantidade de pedidos de proteção intelectual, totalizada em 2017, teve um aumento de 187,1% em relação ao ano de 2016. Em 2018, o número de pedidos, em um mesmo ano, levou a UTFPR para importantes posições no ranking do Instituto Nacional da Proteção Intelectual (Inpi) (UTFPR, 2020).
Analisando dados referentes à interação com o setor produtivo, como apoios tecnológicos, inferimos que há um gap no envolvimento dos docentes com a extensão e sua relação com a sociedade. A análise mostrou que o professor da UTFPR tem pouco envolvimento com projetos extensionistas. Entre 2005 e 2019, aconteceram retrocessos importante nos números de apoios tecnológicos e de clientes atendidos. Outro parâmetro comparável é o número de docentes envolvidos em apoios tecnológicos, que diminuiu, significativamente, com a consequente redução do número de alunos envolvidos ( UTFPR, 2006 ; 2020). Estes dados mostram um redirecionamento institucional, e vão ao encontro das entrevistas (E1, E4 e E5) quando indicam que a UTFPR está perdendo o expressivo histórico de atuação na área de extensão tecnológica herdado do Centro Federal de Educação Tecnológica do Paraná (Cefet-PR).
Inferimos que a extensão, que poderia ser o fator diferenciador da UTFPR frente às demais universidades do Brasil, é ainda um desafio maior. Mais, a instituição está caminhando em direção distinta da extensão tecnológica e da TT para sociedade. Adicionalmente, o caminho é enormemente obstaculizado pelas regulações e legislação.
Ainda que não tenha sido uma demanda da UTFPR, o Qualis Tecnológico, voltado principalmente para os programas profissionais, e as modificações na avaliação dos programas de Pós-Graduação, em implementação, é sinalização relevante na direção de uma regulação mais adequada para uma UT. O cenário torna-se ainda mais complexo com a incongruência entre legislações. Um exemplo é a Lei de Inovação que conflita com outras legislações.
Com os contornos atuais, a UTFPR aproxima-se, em muito, de uma UC. A ideia contida na sua progênie, de ser uma universidade do mundo real, com cursos mais práticos, com a disciplina de empreendedorismo em todos os cursos, com a priorização da pesquisa aplicada, entre outras especificidades, se perdeu ( PILATTI; LIEVORE, 2018 ). Constatamos que o incentivo da UTFPR para a extensão é menor em relação ao Ensino e à pesquisa. As políticas internas são limitadas, tanto em medir como em incentivar o relacionamento dos docentes com o setor produtivo. A sociedade, de forma geral, e o estudante, de forma particular, perdem. Outro problema que as entrevistas apontaram é que o perfil docente mudou. Passou-se de um docente, em média, com baixa qualificação e grande experiência profissional para um docente com alta qualificação e pouca, ou nenhuma, experiência profissional. O novo perfil foi conformado nos meandros da legislação brasileira.
A análise realizada sugere, ainda, que há necessidade de ações e políticas internas e externas para que a UTFPR, possa avançar na promoção da pesquisa orientada para problemas reais, além de servir aos propósitos educacionais que envolverão o aprimoramento das habilidades e dos conhecimentos necessários ao ambiente de trabalho. A falta de outras instituições análogas, universidade, tecnológica e pública, limitam a conformação de um modelo de UT brasileira. Na contramão do óbvio, as políticas e os investimentos públicos, no Brasil, caminham para o desmantelamento de um sistema funcional. As universidades e os órgãos regulamentadores precisam avançar em novas políticas e formas de gestão que lhes permitam fazer uma contribuição dinâmica para o processo de desenvolvimento nacional ( PUCCIARELLI; KAPLAN, 2016 ; SILVEIRA, BIANCHETTI, 2016).
Em última instância, constatamos na UTFPR um modelo disfuncional. Os objetivos propostos na sua criação, principalmente na terceira missão das universidades, que deveriam conformar sua identidade e seu modelo, estão se aproximando dos objetivos das UC. A criação de uma UT no Brasil não veio acompanhada de legislações ulteriores que permitissem o cumprimento do preconizado na lei de criação da UTFPR.
3.2 Pesquisa e terceira missão das universidades no IPB
A pesquisa científica em Portugal ainda é recente. Apenas a partir da proposta de Veiga Simão (PORTUGAL, 1973; 1979) aconteceu um impulso do sistema de Ensino Superior, definindo que o Ensino politécnico deve ser “[...] orientado por uma constante perspectiva de investigação aplicada e de desenvolvimento, dirigido à compreensão e à solução de problemas concretos” ( PORTUGAL, 1986 ).
No discurso político e na legislação portuguesa, a distinção entre as atividades de pesquisa realizadas nos politécnicos e as realizadas nas universidades se mantém ( PORTUGAL, 2005 ; 2009). A distinção é extremamente complexa ( RAMOS et al. , 2010 ; VILLAX et al., 2010 ), e está fundamentada no contexto da aplicabilidade e da transferência do conhecimento para empresas e sociedade. O arcabouço legal limita o desenvolvimento dos politécnicos.
Os politécnicos, apesar das limitações legais, reconheceram muito cedo as vantagens de um sistema binário, que compreende Universidades e Politécnicos, entendendo e assumindo sua missão como fomentadores de desenvolvimento econômico e social (E10; E12; E14; E17; E19; E21; E22; E27). Especialmente o IPB, encontrou um espaço de afirmação, com um trabalho diferenciado das universidades, e que significou responder a um público vocacional e desenvolver uma investigação mais aplicada. O E14 aponta que: “[...] nos Institutos estamos conscientes que essa, de fato, é nossa função, fazermos um conhecimento prático e desenvolver uma componente tecnológica mais ligada às empresas”.
Verificamos na análise que, mesmo a pesquisa aplicada sendo priorizada nos politécnicos, a relação com as empresas ainda é um campo delicado e pouco explorado. Em diferentes locais, em média, as IES especializadas entendem a pesquisa como parte de uma estratégia governamental para o desenvolvimento regional. Nestes países, os governos têm como meta fortalecer e melhorar a cooperação em pesquisa em desenvolvimento de empresas locais com as IES regionalmente orientadas (UASNET, 2009).
Apesar dos politécnicos comporem o grupo de instituições consideradas fundamentais para o futuro dos países europeus ( AMARAL; MAGALHÃES, 2004 ; HAZELKORN; MOYNIHAN, 2010 ), em Portugal, sua atuação na pesquisa e na terceira missão teve início, de forma mais preeminente, somente a partir de 2009, com a promulgação do Estatuto da Carreira dos Docentes ( PORTUGAL, 2009 ). Com o Estatuto ocorreram avanços no envolvimento dos docentes em atividades de pesquisa e de relacionamento com a sociedade, mas algumas lacunas permaneceram e mantiveram distintas as carreiras no sistema binário (E10; E17; E19; E21). Nas entrevistas (E14, E23) encontramos discrepâncias entre as prescrições decorrentes da legislação e dos gestores e as práticas relativas à pesquisa, que orientam o comportamento dos docentes nos politécnicos. Entre estas discrepâncias de ordem política, a elevada carga horária dos docentes que limita o tempo investido na pesquisa, fator também apontado por Dias (2012) . Segundo o E14, “[...] a diferenciação não se justifica, até porque os politécnicos estão muito mais vocacionados para investigação”. Outra discrepância é a elevada proporção de alunos por docente. Nas universidades, com os cursos de Doutorado, os docentes dispõem de uma estrutura de pesquisa, e podem reduzir o rácio de 1:15 para 1:5. A impossibilidade de outorgar o grau de Doutor é mais um obstáculo importante dos politécnicos, causando, segundo os entrevistados (E15, E18, E20, E27), um desalinhamento entre o Ensino e a pesquisa que são praticados como missão dos politécnicos. No caso do IPB, este limitador não impediu que docentes vinculados aos Centros de Investigação coorientassem doutoramentos em instituições parceiras e que a investigação se afirmasse nacional e internacionalmente (E15, E18, E19). O Centro de Investigação de Montanha (Cimo) é um exemplo: coordenado pela Fundação para a Ciência e Tecnologia, conta com 77 pesquisadores. O limitador da pesquisa nos politécnicos, evidenciado nas entrevistas (E10; E14; E18; E27; E28), diz respeito ao ambiente externo, que, ao fornecer as condições de financiamento, desconsidera parcialmente o sistema. Este aspecto também foi identificado por Dias (2012) , Hasanefendic et al. (2018) e Ramos et al. (2010) . A capacidade de investigação das universidades, o número de Doutores e a infraestrutura para pesquisa é tendencialmente superior, impedindo que os politécnicos possam partir do mesmo ponto de comparação ( HAZELKORN; MOYNIHAN, 2010 ). No relatório da UASnet (2009), é evidenciada a situação: “o sistema nacional de financiamento da pesquisa é adaptado para universidades e não para UCA [universidades de ciência aplicadas] […] os critérios [...] baseiam-se mais em pesquisa básica e menos em desenvolvimento aplicado e experimental”. Na visão do E27, a questão do financiamento está muito atrelada aos resultados tradicionais da pesquisa, indicadores que as universidades estão mais formatadas para atender.
Neste contexto, os responsáveis pelos politécnicos reivindicam concursos mais ajustados à sua realidade, indo ao encontro de políticas já adotadas por outros países europeus que criaram Programas de financiamento específicos para os Politécnicos ou os critérios de seleção consideram também a pesquisa aplicada e orientada para o desenvolvimento regional ( DIAS, 2012 ; LEPORI; KYVIK, 2010 ). Em 2018, pela primeira vez, o governo português, abriu um Edital com substancial número de painéis de avaliação, visando a diversificar a avaliação e a contemplar mais especificidade dos projetos (E28). Para o E28; “Não é possível ter um sistema diversificado sem ter um sistema de financiamento e avaliação diferenciado e diversificado. [...] Porque quando tu queres excluir, reduz o número de painéis [...] e mandas um mesmo avaliador a todas as unidades”. A dificuldade também reside nos avaliadores, pois um avaliador universitário não compreende plenamente o politécnico, uniformizando a pesquisa em todo Ensino Superior (E28). Com a nova proposta, este impasse está parcialmente corrigido, mas há muita dificuldade para colocar isto em prática, em função da ausência de avaliadores apropriados.
Outro avanço fundamental para os politécnicos foi o Decreto-Lei nº 65/2018 ( PORTUGAL, 2018 ), que altera o regime jurídico dos graus e diplomas do Ensino Superior para mudar o panorama atual. Com o Decreto, os Politécnicos portugueses adquiriram a possibilidade de conferir o grau de Doutor. Porém, o decreto, para ter efeito, necessita de alteração da Lei de Bases, o que ainda não aconteceu.
As entrevistas revelaram, de forma bastante nítida, a ligação e a coesão do IPB com seu território como uma estratégia adotada pela instituição para se afirmar no contexto regional e nacional. A investigação realizada é voltada para a prática, dado o relacionamento estreito que existe entre o IPB e a região Norte de Portugal ( ALVES et al., 2015 ). Constatamos, também, que a ênfase da pesquisa no IPB é a combinação de uma abordagem científica com uma forte preocupação com os problemas relevantes da sociedade. Obviamente que na Graduação, a pesquisa não é de ponta, tampouco resulta em publicações e em citações. Os politécnicos ainda padecem de instrumentos acadêmicos para lograr financiamento e reconhecimento, como resultado do seu processo histórico ( HASANEFENDIC et al., 2016 ). Para os entrevistados (E10, E14, E19, E20, E21, E27, E28), a investigação pode contribuir para colocar o sistema dos politécnicos em outro patamar.
O IPB percebeu que existe um espaço de investigação aplicada, de desenvolvimento experimental, de cooperação com o tecido social e empresarial, que ainda não está convenientemente ocupado. Neste ecossistema de cocriação e inovação, os politécnicos agem como uma força motriz. Neste contexto,
[...] a investigação não se faz da forma tradicional, mas em completo acompanhamento pelos atores sociais e empresariais. É obviamente, uma forma de impacto diferente, [...] os politécnicos estão muito mais preparados que as universidades, porque culturalmente o corpo docente das universidades, acha que isso não tem prestígio [...] será o fator de diferenciação do futuro dos politécnicos (E27).
Os entrevistados (E17, E18, E20, E27) abordaram a importância de fortalecer os territórios de menor densidade populacional, como é o caso da região Norte de Portugal, e capacitá-los para atrair jovens altamente especializados. É neste cenário que a terceira missão aparece, na coesão do IPB com o território, com a definição de estratégias de especialização inteligente para a região Norte de Portugal (IPB, 2014). A terceira missão vai ao encontro das necessidades da economia local, garantindo suporte tecnológico em uma região pouco industrializada e com problemas demográficos ( LIEVORE et al., 2020 ).
Evidenciamos que, mesmo em um cenário complexo e pouco explorado para os politécnicos portugueses, o IPB conseguiu destacar-se nacional e internacionalmente. Nossos resultados corroboram trabalhos de Hasanefendic (2018) e Urbano (2011) .
A análise revelou discrepância entre as leis que regulamentam as organizações politécnicas e suas práxis de pesquisa e as diretrizes que orientam professores dos politécnicos em suas práticas docentes. Igualmente, o Research at Universities Applied Science in Europe Conditions (UASNET, 2009), que analisa questões de política nacional e instrumentos de política relativos à pesquisa em IES especializadas europeias, concluiu que, apesar dos politécnicos portugueses terem como tarefa a investigação aplicada, falta ainda uma política nacional exclusiva para a pesquisa. O relatório colocou Portugal, Lituânia e Estônia num grupo de países que ainda estão desenvolvendo políticas para definir o papel da pesquisa. Importa salientar que a permeabilidade entre os sistemas politécnicos e universitários é essencial para manter estável a distinção entre os dois (LEPORI; KIVYK, 2010). Para Lepor e Kivyk (2010), a missão de pesquisa é a razão mais forte para a divisão binária, em um tempo que a missão educacional não pode ser usada para este propósito.
Para os politécnicos alcançarem maior participação no campo da pesquisa científica e na terceira missão, a criação de um ecossistema de cocriação, que já é entendido pelos dirigentes do IPB como uma tendência, será a estratégia adotada nos próximos anos (E19, E20, E21, IPB, 2018). Nesta lógica, as instituições dividem responsabilidades e riscos, resultando em uma parceria para a geração de novos empregos.
Assim como os achados de Hasanefendic (2018) , nossa análise mostrou que o IPB opera em um ambiente de incompatibilidade e contradições, onde há discrepâncias entre as prescrições legais sobre pesquisa e as regras das agências de fomento, ao conceder financiamento para pesquisa. Os critérios de financiamento são os mesmos para as universidades e para os politécnicos, mas as missões definidas para a pesquisa são distintas. Contudo, o IPB conseguiu organizar estratégias próprias e redefinir sua missão de pesquisa e de relacionamento com a sociedade, tornando-se referência para os demais politécnicos. As atividades de pesquisa são cada vez mais desenvolvidas, considerando o impacto nas empresas, na comunidade e para o desenvolvimento econômico.
3.3 Semelhanças e dessemelhanças
A UTFPR tem suas raízes em uma escola profissionalizante, e, como resultado de transformações, precisou redesenhar seu modelo em seu curso histórico, uma vez que não havia no Brasil um delineamento claro de UT. Em virtude das políticas públicas, a UTFPR respondeu de maneira similar às demais universidades públicas brasileiras, provocando um desvirtuamento do caminho idealmente traçado. O que se apresenta na realidade é um afastamento da ideia aceita de uma IES especializada.
O IPB que foi idealizado com uma concepção diferente das universidades, como parte de uma estratégia governamental de diversificação e de democratização do Ensino Superior, sempre apresentou um modelo definido. Isto, em alguma medida, ajudou no caminho percorrido pela instituição, que se manteve fiel ao modelo idealizado. Passadas mais de quatro décadas, e apesar das discrepâncias entre as prescrições decorrentes da legislação que monitoram e promovem as atividades de pesquisa nos politécnicos e as práticas e normas relativas à pesquisa que orientam o comportamento dos docentes e dos politécnicos, o IPB conseguiu prosperar neste ambiente de incompatibilidade e contradições. O modelo adotado pelo IPB na pesquisa, notadamente aplicada, reconhecido internacionalmente, tem apresentado impacto direto na região Norte de Portugal ( ALVES et al., 2015 ) e destaca-se, especialmente, pela cultura de corresponsabilidade assumida pela instituição na questão do desenvolvimento social e econômico da região.
Comparando a UTFPR com o IPB, na pesquisa, verificamos que o grande diferencial reside na possibilidade de oferta de cursos de Doutorado na instituição brasileira. Muitas semelhanças foram constatadas, com destaque para: limitações impostas pela legislação; falta de congruência entre o modelo ideado e a realidade; entendimento limitado do modelo de IES especializadas; limitações da pesquisa aplicada na obtenção de financiamento. A conformação das instituições, de origens bastante distintas, inclusive temporalmente, dentro dos cenários no qual estão inseridas, colocam o IPB com um direcionamento mais claro dentro de um sistema. A UTFPR é, no sistema universitário público, uma espécie de outsider .
Mesmo com destaque nacional e internacional, determinado principalmente pela pesquisa, tanto a UTFPR como o IPB, e, principalmente, este, ainda estão distantes da condição de consolidados na pesquisa. A TT, tanto na perspectiva de uma obrigação ( ENGEL-HILLS et al., 2010 ) como na perspectiva de não ser primordial ( CRUZ, 2007 ; 2010), é algo ideado pela UTFPR e pelo IPB, mas, ainda, sem congruência com a realidade. A interpretação incorreta da liberdade universitária deriva do utilitarismo, que, no Brasil, baliza a discussão sobre ciência e tecnologia. Há uma demanda por determinados resultados e contribuições que a universidade pode oferecer, mas que nem lhe são imprescindíveis, nem fazem parte de sua razão de existir ( CRUZ, 2010 ). O utilitarismo, na visão de Cruz (2007 ; 2010) tem duas vertentes: a de direita, que determina como principal função das universidades o suporte às empresas, fomentando a competividade e o crescimento econômico; e o utilitarismo de esquerda, que enxerga a universidade como protagonista no papel de auxiliar diretamente a sociedade, a ser menos pobre e menos desigual. Ambos objetivos são legítimos, relevantes e necessários, sobretudo em países como Brasil e Portugal. O equívoco está em creditar unicamente à universidade a responsabilidade por atingi-los.
Fazendo uma analogia entre os modelos de universidade e as vertentes do utilitarismo identificadas por Cruz (2007 ; 2010), infere-se que instituições especializadas, como a UTFPR e o IPB, tendem em seu idear mais ao utilitarismo de direita. No entanto, seria uma falsa dicotomia ou uma falácia lógica considerar tal situação uma verdade absoluta, colocando dois pontos de vista alternativos e opostos como sendo as duas únicas opções de ideal de universidade. Após exame, inferimos que tanto a UTFPR quanto o IPB, na lógica do utilitarismo, realizam movimentos pendulares. Com a terceira missão, diferentemente da pesquisa, o pêndulo, mais no IPB, tende para a esquerda. O movimento na UTFPR, mesmo mais à direita, vem sendo historicamente frenado.
O direcionamento do IPB na ocupação de um espaço não ocupado pelas UC, diretamente ligado com a terceira missão das universidades, colocam o IPB e a UTFPR em rotas distintas. Pensando numa IES especializada, o caminhar do IPB é mais seguro. A UTFPR, apesar de movimentos internos para a consolidação de sua identidade, cada vez mais se afasta de sua história para se tornar uma UC. A inexistência de referências e de legislação balizam (de forma inadequada) o caminhar institucional. Como ponto de convergência, destacado por todos os entrevistados, a importância da parceria entre as duas instituições, que, de forma não planejada, tem produzido aproximações, inclusive, com grandes limitações no modelo.
A universidade moderna deve olhar para fora e para a realidade, e não pode ser o que Flexner previu em 1932, uma instituição conservadora e uma fortaleza de reação, pois quando adere a este posicionamento, tende, por motivos óbvios a “ficar a reboque da vida que elas deveriam antes expressar e promover” ( KERR, 1982 , p. 85). A UTFPR e o IPB, certamente, não estão a reboque da vida.
4 Conclusões
A UTFPR e o IPB são, talvez, as IES especializadas mais importantes do Brasil e de Portugal, respectivamente. Na comparação, há vários pontos de aproximação e alguns distanciamentos importantes. O idear tecnológico é notório em ambos casos. A aproximação e o distanciamento de um modelo internacionalmente aceito de instituição especializada são determinados, em ambos os casos, pela legislação. Ambas atuam em um ambiente de incompatibilidade entre as políticas implementadas e suas missões institucionais, mas no decorrer do tempo, responderam de maneiras distintas. Com efeito, houve uma alteração no modelo idealizado pela UTFPR.
Na pesquisa, a UTFPR, com cursos de Doutorado e menos barreiras legais, tem possibilidades ampliadas. A reversão das amarras legais para a oferta de cursos de Doutorado e a ampliação das possibilidades de financiamento é algo reivindicado pelos institutos portugueses e, em especial, pelo IPB. A reversão pode colocar o IPB no mesmo caminho da UTFPR e distanciar a instituição da pesquisa aplicada, ao mesmo tempo em que pode proporcionar uma visibilidade internacional ampliada. Na terceira missão, o IPB apresenta resultados mais consistentes que a UTFPR, que apresenta um movimento destacado para a pesquisa e um forte recuo na extensão.
Como principais limitações desta pesquisa constam o exame de apenas um caso por país, apesar da relevância das instituições perquiridas, e a abordagem qualitativa, que impedem a generalização dos resultados. A constituição do corpus de pesquisa, majoritariamente composto por entrevistas com gestores, é outra limitação importante.