1 Introdução
Sabemos que, na atualidade, a humanidade vivencia diversas transformações e, entre elas, o envelhecimento das populações, um fenômeno universal e irreversível que tem se acelerado. De acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS, 2015), a população mundial com mais de 60 anos vai passar dos atuais 841 milhões para 2 bilhões, até 2050, sendo que 80% desses idosos viverão em países de renda baixa e média.
A população idosa brasileira segue também em crescimento. Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad-C), que além das características dos domicílios, investiga, regularmente, informações sobre sexo, idade e cor ou raça dos moradores, o país ganhou, entre 2012 e 2017, 4,8 milhões de idosos, atingindo a marca dos 30,2 milhões. Portanto, um crescimento de 18% desse grupo etário em 5 anos. As mulheres idosas são maioria expressiva nesse grupo, totalizando 16,9 milhões (56%), enquanto os homens idosos são 13,3 milhões (44%) ( PARADELLA, 2018 ).
Ainda de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE ( CLELIER, 2019 ), a partir de dados das Tábuas Completas de Mortalidade, a expectativa de vida dos brasileiros, ao nascer, alcançou 76,3 anos, em 2018. A maior longevidade foi esperada para as mulheres: 79,9 anos. Já a expectativa de vida, ao nascer, para os homens ficou em 72,8 anos. Para ambos os sexos, o estado com a maior esperança de vida ao nascer foi Santa Catarina: 79,7 anos. No outro extremo, os estados com a pior expectativa de vida foram o Maranhão, com a expectativa em 71,1 anos, e o Piauí, em 71,4 anos.
O processo de envelhecimento, porém, é complexo e envolve mudanças não lineares ou consistentes, que podem ser apenas vagamente associadas à idade de uma pessoa em anos (OMS, 2015). Nesse sentido, longe de ser vivenciada por todos os indivíduos da mesma maneira, a velhice caracteriza-se como um fenômeno de caráter diferenciado e singular ( BEAUVOIR, 1990 ; MINAYO; COIMBRA JUNIOR, 2002; NERI, 2007 ), que “flutua de acordo com as épocas e as culturas” ( SANT’ANNA, 2016 , p. 12) e pode sofrer influências de variáveis derivadas: “do meio ambiente; das condições de trabalho; da classe social e do modo de vida” (ALVES JUNIOR, 2004, p. 61).
Em outras palavras, o envelhecimento não diz respeito apenas a uma questão biopsicológica, sendo, também, uma questão social ( ANTUNES; ALMEIDA, 2019 ; PAPALÉO NETTO; CARVALHO FILHO; SALLES, 2006). Nesse ponto, é importante assinalar que, apesar do envelhecimento fazer parte do ciclo natural da vida (todos estão propensos a vivenciar a velhice), a sociedade geralmente vê as pessoas mais velhas por meio de formas estereotipadas, que levam ao ageismo1 , que pode ser uma forma ainda mais generalizada de discriminação do que o sexismo ou o racismo. Um exemplo de estereótipo de discriminação etária é o de que os idosos são dependentes ou são um fardo (OMS, 2015).
Diante desse cenário, a construção de um mundo mais favorável aos idosos é cada vez mais necessária, mas isso, segundo a OMS (2015), exige ações que, além de combater a discriminação etária, permitam a autonomia da pessoa idosa e apoiem o envelhecimento saudável em todas as políticas e em todos os níveis de governo. No Brasil, os direitos dos idosos são assegurados pela Constituição Federal de 1988 e, também, por leis especiais. O direito à Educação ao longo da vida é um desses direitos afirmados na legislação, apesar de ser bastante negligenciado na prática ( BRAGA; MAZZEU, 2017 ; HADDAD; DI PIERRO, 2000 ; MACHADO, 2016 ).
Não obstante o impacto positivo da Educação sobre a qualidade de vida dos idosos ser algo consensualmente aceito e destacado por vários autores ( ANTUNES, 2017 ; CACHIONI; NERI, 2004 ; SANTOS et al ., 2011; SILVA; GÜNTHER, 2000 ; UNICOVSKY, 2004 ), a legislação educacional brasileira costuma caracterizar o idoso como adulto. Contudo, quando assim procede, ignora as necessidades e as singularidades que esse sujeito apresenta ( CACHIONI; TODARO, 2016 ; MOTT, 2016 ; SERRA; FURTADO, 2016 ).
Em vista dos argumentos apresentados, nesse artigo abordamos o acesso da população idosa à Educação formal no Brasil, uma reflexão de grande importância, uma vez que ainda é bastante significativa a parcela dessa população que tem sido privada do bem simbólico que a Educação constitui. Nesse sentido, nosso estudo apresenta uma abordagem qualitativa, com coleta documental e bibliográfica de dados e de informações ( SEVERINO, 2016 ), sendo essas realizadas por meio de trabalhos acadêmicos, de estatísticas oficiais e dos principais marcos legais e normativos que afetaram a inclusão educacional do idoso no período pós-1988.
O presente texto está subdividido em quatro seções, sendo a primeira referente à introdução, onde expusemos a constituição do problema de pesquisa e o objetivo do trabalho. Na segunda seção, discorremos sobre a inserção dos idosos no contexto educativo, fazendo a articulação entre a legislação pertinente, aquilo que é necessário ser feito e a realidade. Na terceira seção, apontamos os principais contributos da escolarização na velhice. E, na quarta e última seção, apresentamos as considerações finais sobre o presente estudo.
2 Da escola negada à escola (re)encontrada: embates entre o legal, o ideal e o real
O acesso de jovens, adultos e idosos à Educação avançou lentamente ao longo da nossa história ( BRAGA; MAZZEU, 2017 ; HADDAD; DI PIERRO, 2000 ; MACHADO, 2016 ). De acordo com dados da Pnad-C ( NETO, 2018 ), a taxa de analfabetismo da população com 15 anos, ou mais, de idade no Brasil caiu de 7,2% em 2016 para 7,0% em 2017, mas não atingiu o índice de 6,5% estipulado para 2015 pelo Plano Nacional de Educação (PNE) ( BRASIL, 2014 ). Em números absolutos, a taxa representa 11,5 milhões de analfabetos. A Pnad-C revelou também outras desigualdades persistentes:
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A concentração de analfabetos foi maior na região Nordeste, que registrou a taxa de 14,5%. O índice mais baixo, 3,5%, foi registrado nas regiões Sul e Sudeste ( Gráfico 1 );
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A taxa de analfabetismo no grupo daqueles com 60 anos, ou mais, foi a maior nos dois anos analisados (2016 e 2017): 20,4% e 19,3%, respectivamente ( Gráfico 2 ); e
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A taxa também atingiu mais que o dobro entre as pessoas que se declararam pretas ou pardas nos dois anos analisados: 9,9% e 9,3%, respectivamente ( Gráfico 3 ).
Para a pesquisadora do IBGE Marina Aguas, coordenadora da pesquisa, três fatores influenciam a taxa de analfabetismo: 1) demografia: tanto a taxa de analfabetismo quanto a taxa de mortalidade são mais altas entre as pessoas mais velhas; 2) acesso ao serviço: as políticas públicas podem acelerar a redução das taxas ao garantir que pessoas de todas as faixas etárias sejam alfabetizadas e 3) faixas etárias fixas: como os grupos mais jovens são mais escolarizados, na medida em que eles ficam mais velhos e passam de uma faixa etária à seguinte, eles contribuem para a redução da taxa média de analfabetismo dessa faixa etária ( MORENO, 2018 ).
Nesse cenário, em que os indicadores de escolaridade de alguns segmentos da população brasileira evidenciam progresso lento, mantendo significativa distância dos direitos assegurados na legislação, é imperativo que os esforços para reduzir os níveis de analfabetismo sejam redobrados, o que implica colocar de fato a alfabetização2 , inclusive e, em especial, da população mais velha, na agenda política brasileira. Afinal, como afirmou Freire (1981 , p. 15): “ninguém é analfabeto por eleição, mas como consequência das condições objetivas em que se encontra”.
Nesse sentido, partindo de seu próprio conceito de analfabetismo, Freire (1981) esclareceu o que não é analfabetismo, para, em seguida, definir o que é: o analfabetismo não é uma “chaga” ou uma “erva daninha” a ser erradicada, tampouco uma enfermidade, mas uma das expressões concretas de uma realidade social injusta. Não se trata de um problema estritamente linguístico ou pedagógico, mas político ( FREIRE, 1981 ). Para Borges (2016 , p. 156), “a superação do analfabetismo se apresenta como um dos maiores limites em termos de garantia do direito à educação”. Portanto, são necessários efetivos esforços para que toda a população brasileira tenha acesso a esse bem cultural tão necessário para a vida moderna.
A Educação, “prática social, situada historicamente, numa determinada realidade” ( DIAS; PINTO, 2019 , p. 449), é um fator fundamental na formação humana em todas as idades, como testemunhou Freire (2013) . Ele contou que foi alfabetizado no chão do quintal de sua casa, à sombra das mangueiras, com palavras do seu mundo de criança, deixando claro para o leitor que o contexto da educação vivido por ele na infância o influenciou significativamente durante toda a sua vida. Freire (2013) também mencionou a sua concepção de velhice e enfatizou que o idoso pode continuar aprendendo e interagindo com o mundo que o rodeia.
2.1 EJA ou Ejai? Uma breve reflexão sobre a (in)visibilidade do idoso nessa modalidade de ensino
O acesso ao ensino obrigatório e gratuito é direito público subjetivo, previsto no art. 208, § 1º da Constituição Federal Brasileira de 1988 ( BRASIL, 1988 ). Portanto, a sua titularidade é plena para todos, desde que queiram se valer dela. A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), Lei nº 9.394/1996 (BRASIL, 1996a), acompanha o preceito constitucional. Portanto, no que tange à Educação de Jovens e Adultos (EJA), afirma-se que:
Art. 37. A educação de jovens e adultos será destinada àqueles que não tiveram acesso ou continuidade de estudos nos ensinos fundamental e médio na idade própria e constituirá instrumento para a educação e a aprendizagem ao longo da vida (Redação dada pela Lei nº 13.632, de 2018).
§ 1º Os sistemas de ensino assegurarão gratuitamente aos jovens e aos adultos, que não puderam efetuar os estudos na idade regular, oportunidades educacionais apropriadas, consideradas as características do alunado, seus interesses, condições de vida e de trabalho, mediante cursos e exames (BRASIL, 1996a).
Nesse sentido, a LDB, apesar de não mencionar o idoso, reconhece e garante o acesso desse sujeito aos estudos e sua continuidade durante a Educação obrigatória. Em outro documento, o Parecer do Conselho Nacional de Educação (CNE)/ Câmara de Educação Básica (CEB) nº 11/2000, que trata das Diretrizes Curriculares Nacionais para a EJA, o idoso é citado, mas também como integrante de uma faixa etária sob a noção de adulto. Nessa linha, conforme o Parecer: “adulto é o ente humano já inteiramente crescido. O estado de adulto (adultícia) inclui o idoso” (BRASIL, 2000a, p. 7).
Nesse contexto, é importante frisar que a própria nomenclatura da EJA, durante muito tempo, não demarcou o lugar do estudante idoso (DINIZ; SCOCUGLIA; PRESTES, 2010). O emprego da sigla EJAI, Educação de Jovens, Adultos e Idosos, é relativamente recente entre nós, tendo sido introduzido no Brasil a partir das discussões nacionais e internacionais que concebem a Educação3 e a aprendizagem4 como um processo que se dá ao longo da vida.
Para Serra e Furtado (2016) , a inclusão escolar dos idosos ainda é um desafio. Portanto, segundo os autores, não é suficiente substituir a sigla EJA por EJAI, sendo preciso garantir efetivamente o acesso e a continuidade à Educação ao longo da vida, dando visibilidade aos idosos no cenário educativo. Nessa perspectiva, e levando em conta as peculiaridades e as diversidades do coletivo dos idosos, Cachioni e Todaro (2016) asseveram:
É um lamentável equívoco considerar a educação de idosos na mesma perspectiva utilizada em outras etapas da vida. Os programas educacionais para idosos devem ter como ponto de partida conhecimentos específicos sobre as características desse sujeito, que possui peculiaridades garantidas pelo seu próprio desenvolvimento e experiências acumuladas, algo que lhes confira autonomia para decidir o que, como e quando desejam aprender (p. 182).
Complementando essa abordagem, destacamos que “a educação é um fator fundamental na formação crítica do idoso, é função determinante para que ele tenha qualidade de vida e condições de se manter ativo e consciente da sua própria velhice” ( MOTT, 2016 , p. 259). Dessa maneira, é necessário que ele não se sinta excluído. Na compreensão de Peres (2005 , p. 22), “a exclusão da velhice da esfera produtiva justifica a sua exclusão, também, do sistema educativo”. Segundo o autor, a sociedade capitalista estruturou os sistemas produtivo e educacional com base em seus interesses.
A criança deve ser educada para que, quando adulta, venha a ser um trabalhador adequado às necessidades do capital. O jovem e o adulto devem ser formados e profissionalizados para assumir uma função específica dentro da esfera produtiva e garantir assim a eficiência do sistema econômico em constante desenvolvimento e mudança. E o velho? Onde entra? A verdade é dura e cruel: não há lugar para o velho na sociedade capitalista, conforme lembram Simone de Beauvoir (1990) e Ecléa Bosi (1994) ( PERES, 2005 , p. 22).
Sob esse prisma, Peres (2005) ressalta que:
a ausência de um projeto educativo para a velhice na sociedade capitalista fundamenta-se tanto na ausência de interesse do sistema produtivo para com os trabalhadores que envelhecem, quanto na pressuposição de que tais trabalhadores já foram devidamente disciplinados ao longo da sua vida produtiva e que, por isso, não representam mais uma ameaça à ordem vigente. São tidos, na realidade, como um peso morto dentro do sistema, e que deve ser mantido em sobrevida por uma renda miserável de aposentadoria, a qual se torna cada vez mais comprimida em todo o mundo em virtude do chamado déficit previdenciário ( PERES, 2005 , p. 23).
Cabe destacar, com base na literatura, que a negação recorrente do direito à Educação aos idosos, materializada, especialmente, na reduzida oferta de Educação formal, na falta de recursos didáticos etc., tem contribuído para a permanência dos elevados índices de analfabetismo5 e de baixa escolaridade em nosso país, bem como evidenciado a crescente situação de abandono e de precarização da EJA.
2.2 A Educação dos idosos nos documentos legais, diretrizes e programas educacionais no período pós-1988
A inserção dos idosos no contexto educativo no período pós-1988 – expressa nos principais marcos legais e normativos da/para EJA: Constituição Federal ( BRASIL, 1988 ), LBD (BRASIL, 1996a), Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e Valorização do Magistério – Fundef (BRASIL, 1996b), Parecer CNE/CEB nº 11 (BRASIL, 2000a), Resolução CNE/CEB nº 1 (BRASIL, 2000b), Estatuto do Idoso ( BRASIL, 2003 ), Fundo de Desenvolvimento e Manutenção da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação – Fundeb ( BRASIL, 2007 ) e Plano Nacional de Educação ( BRASIL, 2014 ) –, foi, e ainda é, um processo difícil, caracterizado por conquistas e retrocessos.
As políticas educacionais mais expressivas relacionadas à EJA tiveram início com a Constituição Federal de 1988 ( HADDAD; DI PIERRO, 2000 ), que garantiu à população jovem e adulta o direito à Educação fundamental, responsabilizando o Estado pela oferta universal e gratuita desse nível de ensino a todos que a ele não tiveram acesso e progressão na infância e adolescência.
Art. 208. O dever do Estado com a Educação será efetivado mediante a garantia de:
I - Educação básica obrigatória e gratuita dos 4 (quatro) aos 17 (dezessete) anos de idade, assegurada inclusive sua oferta gratuita para todos os que a ela não tiveram acesso na idade própria ( BRASIL, 1988 ).
Uma questão, porém, merece ser considerada a partir dessa conquista: o entendimento de que há uma “idade própria” para a escolarização. Como salienta Gadotti (2016) , a expressão “idade própria” criou o mito de que existe uma idade “correta” ou “adequada” para se aprender, gerando, assim, o preconceito contra os que não conseguiram alfabetizar-se na referida idade. Nesse contexto, as salas de alfabetização e a própria EJA costumam ser vistas como “depósitos” dos excluídos, cuja função é compensar a escolaridade “perdida”. Visão bem diferente daquela que concebe essa escolarização como uma oportunidade para jovens, adultos e idosos recuperarem um direito que tiveram negado ( FREIRE, 1981 ).
Di Pierro (2005) , apoiada no estudo de Oliveira (1999), diz que a psicologia do desenvolvimento humano não mais sustenta a ideia de que exista uma idade apropriada para aprender: “as pesquisas demonstram que a aprendizagem ocorre em qualquer idade, ainda que a pertinência a determinados grupos socioculturais ou etários possa estar relacionada à variância nas funções, características e estilos cognitivos” ( DI PIERRO, 2005 , p. 1119).
Nesse sentido, conforme esclarecido por Pinto (2005), tudo foi pensado como se o sistema capitalista não pré-determinasse a condição de exclusão de algumas categorias de pessoas, mesmo aquelas que tiveram o direito à Educação garantido na Carta Magna ( BRASIL, 1988 ).
Uma lei do desenvolvimento educacional é esta: a sociedade nunca desperdiça seus recursos educacionais (econômicos e pessoais), apenas proporciona educação nos estritos limites de suas necessidades objetivas. Não educa ninguém que não precise educar (PINTO, 2005, p. 102-103).
A LDB (BRASIL, 1996a), diz que “apesar de reconhecer o direito à EJA, deixou de lado uma série de iniciativas importantes à realização plena desse direito” ( PORCARO, 2011 , p. 32). Além disso, com a aprovação do Fundef (BRASIL, 1996b), Lei 9.424/1996, “o ensino de jovens e adultos passou a concorrer com a Educação infantil no âmbito municipal e com o Ensino Médio no âmbito estadual pelos recursos públicos não capturados pelo Fundef” ( HADDAD; DI PIERRO, 2000 , p. 123).
Há, no entanto, que se reconhecer que, se por um lado, ao focalizar o investimento público no ensino de crianças e de adolescentes de 7 a 14 anos, o Fundef contribuiu para que o Ensino Fundamental se aproximasse da universalização para essa população; por outro, não foi acompanhado um progresso similar dos demais grupos de alunos. Por essa razão, tendo em vista aquela realidade, a Educação brasileira, norteada por uma visão sistêmica, ainda precisa mobilizar esforços concomitantes para atender de forma equânime todos os níveis e modalidades de Educação e ensino, seja procurando assegurar e expandir o acesso, quando necessário, seja ampliando o investimento, de modo que cada um deles desfrute do caráter de prioridade que possui.
Aqui, abrimos um parêntese para falar que a inscrição da EJA no Fundeb, Lei 11.494/2007, realizou-se de forma progressiva e, também, em condições desfavoráveis ( DI PIERRO; HADDAD, 2015 ), haja vista que, mesmo contemplando todas as etapas e modalidades que compõem a Educação básica, o que favoreceu à EJA, o Fundeb não foi uma medida suficiente e os entes federados continuaram a investir percentuais muito baixos de seus recursos educacionais nessa modalidade de Educação ( CARVALHO, 2014 ).
Além disso, o Fundeb atribuiu à EJA uma importância menor em relação às demais modalidades de ensino, ou seja, o fator de ponderação atribuído à EJA, na época, foi de 15% dos recursos do fundo em cada unidade da Federação e a fixação do fator de ponderação atribuído à modalidade, de 0,7 no ano de implantação, foi a menor dentre todas as etapas e as modalidades da Educação básica. Assim, de um lado, o Fundeb esbarrou na política macroeconômica do governo, que continuou priorizando o equilíbrio fiscal em detrimento do financiamento das políticas sociais, e, de outro, alimentou conflitos de interesses entre estados e municípios com relação ao investimento nos níveis e nas modalidades de ensino de respectiva responsabilidade. Carvalho (2014) chamou a atenção para o fato de que, mesmo recebendo recursos por estudantes matriculados na EJA, muitos governantes, municipais ou estaduais, continuaram renegando a escolarização a outros jovens e adultos6 .
Conforme pontuou Haddad (2002) , uma análise mais aprofundada da LDB (BRASIL,1996a) permite considerar que ela incorporou uma importante mudança conceitual ao substituir a denominação Ensino Supletivo por EJA, alteração elogiada por profissionais da área, mas, contraditoriamente, no artigo 38, referenciou os exames supletivos, reafirmando a suplência7 enquanto compensação e correção de escolaridade. As idades mínimas de 15 anos para o Ensino Fundamental e de 18 anos para o Ensino Médio corroboram esta falha, privilegiando a idade e a certificação em detrimento dos processos pedagógicos.
Dando continuidade ao debate, merece destaque o Parecer CNE/CEB nº 11/2000, relatado por Carlos Roberto Jamil Cury, a partir do qual foi publicada a Resolução CEB/CNE nº 01/2000, que estabelece as Diretrizes Curriculares Nacionais para a EJA. Pela primeira vez foi pensada uma proposta pedagógica para a modalidade. O intuito era que ela servisse como subsídio à elaboração de projetos e de propostas curriculares a serem desenvolvidos por organizações governamentais e não governamentais, adaptados às realidades locais e às necessidades específicas.
O Parecer CNE/CEB nº 11/2000 (BRASIL, 2000a) atribuiu à EJA a função de reparação da dívida social resultante da história excludente do nosso país. A inclusão, portanto, se configurou como a ideia central da função reparadora. Ela foi apresentada no Parecer como propiciadora do ingresso no mercado de trabalho. Nessa perspectiva, buscou-se, por meio da inclusão no sistema educacional daqueles que estavam fora da escola, a inclusão na vida cidadã e, com ela, o acesso ao mercado de trabalho. Pode-se inferir, de acordo com esse documento, que, para tornar-se cidadão, é imprescindível estar inserido no mundo produtivo.
A esse respeito, Silva Júnior (2002) esclarece que, no processo de mundialização do capital, a cidadania é uma cidadania produtiva, ou seja, é vinculada ao processo de trabalho e subordinada aos interesses do capital. Logo, a partir da ideia apresentada no Parecer CEB nº 11/2000 acerca da inclusão de jovens e de adultos na sociedade, ou seja, no mercado, a cidadania só poderia ser alcançada via investimento pessoal: aquisição das competências sociais e cognitivas que caracterizam um perfil profissional desejado pela sociedade (FRIEDRICH et al ., 2010).
Assim, ao mesmo tempo em que transfere para o indivíduo a responsabilidade por adquirir a capacidade de incluir-se ou não no mercado de trabalho ( FRIGOTTO, 1996 ; SAVIANI, 2013 ), pavimenta-se a ideia de que a Educação escolar não garante o acesso ao emprego, mas apenas “a conquista do status de empregabilidade” ( SAVIANI, 2013 , p. 430). “A ênfase na qualificação profissional da mão de obra marca também a abordagem conferida à EJA no segundo Plano Nacional de Educação (PNE)” ( DI PIERRO; HADDAD, 2015 , p. 213).
Sobre o PNE, Serra e Furtado (2016) afirmam que o documento não demonstra explicitamente uma política pública específica para os idosos. Nesse sentido, apesar de definir no artigo 2º, Inciso I, a erradicação do analfabetismo, e no Inciso II, a universalização do atendimento escolar, “não expressa grande preocupação e prioridade ao maior percentual de analfabetos que estão na faixa etária a partir de 60 anos” ( SERRA; FURTADO, 2016 , p. 158).
Próximo de completar 20 vinte anos do Estatuto da Pessoa Idosa, Lei nº 10.741/2003 (BRASIL, 2013), muito falta ainda para implementar os artigos 20 a 25 na vida dos idosos brasileiros. Concluímos, então, que esse paradigma que prioriza processos de certificação dos trabalhadores em detrimento do acesso ao conhecimento, atribuindo à EJA um sentido apenas compensatório, não serve para a Educação de idosos. Acreditamos que a Educação capaz de responder às necessidades desses sujeitos não é essa, mas aquela entendida enquanto projeto de humanização e de transformação, como nos ensinou Freire (1981 ; 1987; 2011).
3 Contributos da intervenção educativa junto à população idosa
Diversos estudos têm discutido a importância da Educação para o desenvolvimento do bem-estar dos idosos. Silva e Günther (2000) afirmam que
a falta de escolarização traz grande prejuízo para o desenvolvimento dessas pessoas. A escolarização favorece a situação econômica e fornece recursos para que o indivíduo possa preparar-se melhor para envelhecer e compensar as perdas decorrentes do processo. É imprescindível que políticas de educação sejam implementadas para beneficiar os adultos que não tiveram acesso à escola e para evitar que outras pessoas fiquem na mesma situação, no futuro (p. 38).
Unicovsky (2004) considera que a Educação pode contribuir para que os idosos consigam vencer os desafios impostos pela idade e pela sociedade, “propiciando-lhes o aprendizado de novos conhecimentos e oportunidades para buscar seu bem-estar físico e emocional” ( UNICOVSKY, 2004 , p. 241).
Cachioni e Neri (2004 , p. 48) esclarecem que “na frequência aos bancos escolares, os idosos têm chance de encontrar alternativas dinâmicas de autodesenvolvimento e atualização”. Na mesma direção, Santos et al. (2011) apontam que a inserção de idosos em programas educacionais facilita o acesso ao conhecimento com autonomia e a conquista de melhor qualidade de vida.
De forma análoga, Mott (2016 , p. 259) destaca que “a educação é um fator fundamental na formação crítica do idoso, é função determinante para que ele tenha qualidade de vida e condições de se manter ativo e consciente da sua própria velhice”.
Acerca da necessidade da Educação, Cachioni e Todaro (2016) pontuam que, entre os idosos, a procura pela escola está relacionada
à realização de uma vontade antiga de aprender os conteúdos escolares. Saber ler e escrever é uma condição frequentemente associada a ter uma vida melhor. A influência da escolaridade de filhos e netos é outro fator que impulsiona os mais velhos a estudar. É comum o desejo de auxiliar na lição de casa das crianças ou participar mais ativamente da educação delas. A busca por independência é outra razão. Não precisar mais de vizinhos ou familiares para ler documentos ou identificar as informações em rótulos dos produtos, entre outras atividades em que a leitura é necessária, é comumente citado. Com o tempo, as expectativas se ampliam. As justificativas para continuar são várias e estão ligadas, sobretudo, às conquistas relacionadas à escola. Sentir-se mais seguro para comentar os acontecimentos atuais, ver beleza na letra de uma música, fazer amigos e se sentir parte de um grupo social, são exemplos. Estudar, para esse grupo, segundo Coura (2007), significa, principalmente, a chance de alargar horizontes (p. 177).
O estudo de Antunes (2017) , corrobora as ideias dos anteriores e aponta para a necessidade de se repensar o envelhecimento, que “não é mais percepcionado como um tempo de aposentadoria e inatividade e, nesse sentido, uma fase vazia de sentido e significados, uma fase cinzenta e acabada” (p. 166).
4 Considerações finais
Concluímos enfatizando que um importante desafio que se coloca à Educação, na atualidade, é o de preparar os adultos e os idosos para a fase em que as condições de vida sofrem alterações muito profundas: a velhice. Por essa ótica, acreditamos que essa etapa da vida também pode ser um período de maior conhecimento da própria velhice, de valorização da experiência acumulada e de desenvolvimento de novos projetos de vida.
A Educação no entardecer da vida concretiza-se, fundamentalmente, na transformação dos tempos livres em tempos de Educação e de aprendizagem. Nesse sentido, as iniciativas que priorizam a Educação são também oportunidades para que o idoso continue seu percurso de desenvolvimento por meio do acesso ao conhecimento, à formação e à cultura.
Nessa assertiva, as intervenções educativas devem constituir-se um instrumento a serviço das necessidades e interesses dos idosos, explorando o repertório de conhecimentos por eles já adquiridos, bem como fazendo da história de vida desses sujeitos o referencial para o despertar e a compreensão de problemas, instigando-os à busca de conhecimentos e de soluções. Nesse ponto, é imprescindível a organização dos currículos, das práticas e dos recursos educacionais da EJA, de modo que propiciem aos idosos a oportunidade de aquisição e de atualização de conhecimentos e fortalecimento do convívio social.