Desde a implementação da Lei de Diretriz e Bases da Educação Nacional (LDB), em 1996, que instituiu a educação infantil como primeira etapa da educação básica, há, de um lado, inúmeros embates sobre formação no que diz respeito a políticas públicas, práticas e pesquisas científicas, permeados por concepções de infância, de educação infantil e profissionalização docente. Por outro lado, esse contexto de mudanças na/da educação infantil brasileira traz para o âmbito das políticas públicas educacionais um compromisso ético com a qualidade ofertada, especialmente pelos sistemas municipais de educação.
Com a LDB, a carreira docente da professora1 de educação infantil foi equiparada a de professor dos anos iniciais do ensino fundamental. Nesse sentido, a professora de educação infantil passou a ter direito a plano de carreira e a todas as conquistas da categoria, como a inclusão na lei n. 11.738, de 16 de julho de 2008, que institui o piso salarial nacional para professores da educação básica pública.
Outra mudança diz respeito ao decreto n. 6.755/2009, que passou a fazer parte da Política Nacional de Formação, compreendida como compromisso público de Estado e como política permanente de estímulo à profissionalização. O decreto estabelece expansão da oferta de formação superior nas instituições de ensino superior (IES) públicas, a elevação da qualidade da formação, a gestão democrática e a garantia de financiamento público no âmbito do regime de cooperação e responsabilidade dos entes federados. Esse decreto traz também a definição de que estados e municípios devem comprometer-se com a formação continuada ou em serviço, implantando políticas de formação conforme suas necessidades e particularidades, e elaborar propostas de formação específica.
Com a LDB de 1996, a função docente na educação infantil, que antes era exercida por profissional sem formação, passou a ser de responsabilidade de um profissional com formação de nível superior em curso de licenciatura, de graduação plena, em universidades e IES, admitida como formação mínima para o exercício do magistério a oferecida em nível médio, na modalidade normal, ou seja: “Ser professor da primeira etapa da educação básica é pertencer a uma categoria profissional definida, sindicalizada e, portanto, com espaço legítimo de reivindicação” (Nunes, Corsino e Kramer, 2011, p. 16).
Além das conquistas legais citadas, a partir de estudos e pesquisas desenvolvidos, é consenso a importância da formação dos profissionais para a qualidade da educação, como indicam Campos, Füllgraf e Wiggers (2006, p. 100): “Um dos principais critérios de qualidade utilizados internacionalmente para avaliar a qualidade de escolas em qualquer nível de ensino é o tipo de formação prévia e em serviço dos professores ou educadores que trabalham diretamente com os alunos”. Ainda na mesma perspectiva de legitimação dessa importância, Nunes, Corsino e Kramer (2011) destacam que trabalhar em creches e pré-escolas exige, das profissionais, conhecimentos do desenvolvimento infantil, de questões curriculares e pedagógicas, da função cultural e social da creche e da escola, relevantes para a elaboração de propostas pedagógicas, organização do tempo e espaço, planejamento e registro de atividades, acompanhamento de cada criança e dos projetos realizados, da relação com as famílias e comunidade, aspectos complexos que demandam formação.
Estudos sobre formação docente, por sua vez, trazem a multidimensionalidade dessa formação que se constitui em um processo contínuo de articulação entre saberes disciplinares e pedagógicos e os saberes obtidos pela experiência individual e coletiva do próprio docente, como aponta Tardif (2002). Nessa mesma perspectiva, para Nóvoa (1992), uma formação de qualidade pauta-se na articulação entre desenvolvimento pessoal, profissional e organizacional. Essa perspectiva indica que a formação docente não se constitui apenas de uma dimensão individual, mas envolve, como destacam Nunes, Corsino e Kramer (2011, p. 37), “[...] uma dimensão coletiva e interativa no exercício docente, na partilha de concepções e ações que se dão no local de trabalho, no contexto institucional com suas condições e cultura organizacional”. O que leva a compreender que é por meio das interações entre os saberes e nas situações do cotidiano, nas reflexões e nas trocas que se dá a formação.
Desde a implantação e definição legal da educação infantil como primeira etapa da educação básica em 1996, o que repercutiu com o “surgimento” da professora de educação infantil, não há pesquisas que possam traçar/indicar um diagnóstico da realidade da educação infantil nos municípios do estado de Santa Catarina. Não há até o momento um levantamento sobre a realidade dos municípios catarinenses quanto às professoras de educação infantil,2 sua formação, carreira, denominações e funções,3 mesmo que no âmbito nacional, pós-LDB, as pesquisas e documentos oficiais (Brasil, 2006) tenham assinalado que a formação das professoras têm sido um dos fatores que mais afetam a qualidade da educação infantil. Nesse sentido, concebemos a necessidade de um diagnóstico da realidade, especialmente sobre a formação, denominação e função das profissionais de educação infantil, particularmente dos sistemas municipais de educação, responsáveis em oferecer uma educação infantil pública e de qualidade.
CONTEXTO DA PESQUISA
Os dados da presente pesquisa4 foram recolhidos no ano de 2012, no entanto os números e as informações referentes aos municípios são os do ano de 2011. A primeira etapa teve como base o envio de um questionário para 20% do total de 293 municípios do estado de Santa Catarina. Para isso, selecionamos 60 municípios procurando, nessa seleção, atender ao critério de distribuição geográfica privilegiando também todas as regiões definidas pela Federação Catarinense dos Municípios (FECAM) e utilizadas pela União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (UNDIME) de Santa Catarina.
Com a definição da seleção dos municípios, enviamos o questionário acompanhado de carta de apresentação aos responsáveis pelas respectivas secretarias de educação, para solicitar a participação na pesquisa e o preenchimento do questionário. Com essa carta enviamos algumas orientações de preenchimento do questionário de pesquisa.5
O estado de Santa Catarina é constituído por um conjunto de 293 municípios e, para esta pesquisa, tendo como base o número de habitantes, esse contingente administrativo foi classificado em sete grupos seguindo a classificação do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), como é possível acompanhar no Quadro 1.
A partir dessa categorização, é possível evidenciar que o maior agrupamento é constituído pelos municípios com número de habitantes inferior a cinco mil, seguido respectivamente pela ordem de número de habitantes, havendo apenas um município com mais de quinhentos mil habitantes. Essa mesma sequência foi também observada com relação ao retorno dos questionários. Avaliamos que, por tratar-se de um questionário que continha 73 questões e que seu preenchimento demandava um relativo envolvimento e trabalho e, sobretudo, pelo fato de 2012 ter sido um ano de eleições municipais, houve demora no retorno das respostas. Essa demora nos levou a três tentativas de envio da carta e dos questionários por e-mail e por correio, na expectativa de garantir o maior número de questionários respondidos, com ajuda da UNDIME.
Apesar desses limites concernentes ao processo de recolha de dados, as iniciativas citadas resultaram em um retorno de 32 questionários, computando um percentual de 53,33% dos municípios selecionados para envio do questionário para a pesquisa. Para visualizar essa distribuição geográfica no estado, apresentamos um mapa com os municípios que responderam ao questionário (Figura 1).
QUESTIONÁRIO E ESTRATÉGIAS DE ANÁLISE
A pesquisa objetivou contribuir com o conhecimento das configurações recentes das redes municipais de ensino no estado de Santa Catarina e delinear o perfil da formação de seus profissionais. Para tanto, adotamos o questionário utilizado em 1999 e 2009 no estado do Rio de Janeiro pelo Grupo de Pesquisa Infância, Formação e Cultura (INFOC), coordenado pela professora Sônia Kramer,6 que traz o panorama das redes municipais naquele estado. A opção por esse instrumento de pesquisa, capaz de levantar dados dispersos em uma área geográfica ainda mais extensa que a do estado do Rio de Janeiro, foi permeada pela constante busca de superação do antagonismo quantitativo/qualitativo e pelo desejo de buscar dados em grandes e pequenos municípios, tanto no norte quanto no sul, como no leste e no oeste e no centro do estado.
Assim como concebido em sua origem e elaboração pelo INFOC, o desejo era de que esse questionário pudesse trazer, tanto para a pesquisa como para os municípios que se dispusessem a respondê-lo, dados e informações do que não está aparente. O objetivo não era somente colher dados, mas também fornecê-los aos municípios, como forma de estes igualmente serem informados sobre a sua própria realidade no panorama do estado e, com isso, ter elementos para poder refletir e nutrir-se das próprias informações.
Tínhamos conhecimento da extensão do questionário e o tempo que seria necessário para respondê-lo, bem como a necessidade de disponibilidade e envolvimento por parte do responsável pelas informações, mas acreditávamos que o fato de alguns dados não serem respondidos evidenciariam lacunas e vazios que ainda são necessários serem resolvidos pela instância pública municipal em relação à educação infantil e à formação de seus profissionais. Por conseguinte, o questionário foi organizado em sete blocos.
No primeiro, há quesitos já preenchidos e perguntas em aberto com informações sobre o município: identificação de dados gerais; veículos de comunicação; dados sobre o responsável pelo preenchimento do questionário. No segundo, as perguntas têm por objetivo saber como cada município organiza seu sistema educacional. No terceiro bloco, as perguntas voltam-se para a organização e funcionamento da educação infantil: se as secretarias de educação têm um setor específico, se há acompanhamento pedagógico às creches e pré-escolas ou não, com que frequência ele é feito e se o município dispõe de uma proposta pedagógica para a educação infantil.
No quarto bloco, o propósito foi de conhecer os projetos de formação dos profissionais de educação infantil no município. No quinto, as perguntas abordam processos de ingresso e carreira das profissionais da educação infantil na rede municipal de ensino. No sexto bloco, perguntamos sobre recursos financeiros e materiais de que os municípios dispõem para a educação infantil.
Valendo-nos de um recorte, selecionamos para este artigo perguntas do quinto bloco do questionário objetivando conhecer os processos de ingresso e carreira: formação mínima exigida, plano de carreira e acesso ao magistério, vínculo empregatício, situação funcional, carga horária e piso salarial de cada profissional (professores, auxiliares e diretores).
Os dados obtidos por meio dos questionários foram tabulados no programa estatístico SPSS, e para a apresentação dos resultados utilizamos estatística descritiva, com frequência, média, mínimo e máximo, apresentados em quadros e gráficos.
A FORMAÇÃO DAS PROFISSIONAIS DE EDUCAÇÃO INFANTIL
Considerando que após a LDB a função docente na educação infantil, que antes era exercida por profissional sem formação pedagógica, passou a ser de responsabilidade de uma profissional com formação de nível superior, em curso de licenciatura, de graduação plena, em universidades e IES, tornam-se iminentes estudos e pesquisas que se ocupem da constituição da docência nessa etapa da educação básica. Entre as frentes de estudos da história da infância e da educação, é possível perceber pesquisas que têm como foco ora a infância, ora as instituições voltadas a ela e ainda aquelas que, compreendendo a docência como uma construção social, buscam retomar as raízes da constituição do professor da escola de ensino fundamental desde o período colonial até a República e a atualidade.
O esforço teórico na direção de compreender o processo histórico que marca as bases da educação infantil no Brasil tem permitido de forma bastante consistente conhecer suas origens e os contextos sociais que fizeram emergir as instituições voltadas para a criança (creche e pré-escola) e as funções sociais que cada qual assume em seu tempo, de forma que subsidiasse a formação inicial dessas profissionais da educação infantil.7 No entanto, uma maior compreensão da construção social e histórica dessas profissionais merece ainda um aprofundamento no sentido de ir além de generalizações até aqui indicadas que associam essa função ao gênero feminino, à maternidade e à filantropia. Como observa Kramer (2005), as atividades do magistério infantil têm sido associadas à condição feminina, ao cuidado e socialização da criança. Em pesquisa histórica realizada para sua tese de doutorado, Batista (2013), ao buscar compreender a emergência da docência no estado de Santa Catarina, afirma que na educação infantil,
[...] o uso de diferentes denominações para a função de professora deste nível de educação acaba por revelar a própria indefinição histórica desta profissional, chamada inicialmente de ama, desde as primeiras creches no Brasil, babá, recreacionista, atendente, auxiliar de desenvolvimento infantil, entre outros. (Batista, 2013, p. 26)
Nessa busca das diferentes denominações de professora, a definição mais recente encontrada na literatura foi a de embaladeira, registrada na revista A mãi de família: “O pessoal das créches se compõe: De uma vigilante ou diretora; de mulheres encarregas de embalar as crianças (berceuses, embaladeiras, berçaristas) e de creadas”. “As berceuses têm como ocupação tomar conta das creanças” [sic] (Batista, 2013, p. 29, grifos do original).
Em contrapartida, também a opção pela docência na educação infantil como campo de investigação leva em conta que esse é um segmento cujas referências profissionais estão ainda pouco claras. Conforme definiram as pesquisadoras italianas Susanna Mantovani e Rita Perani (1999), é ainda uma profissão a ser inventada.
Desse modo, é possível dizer que as profissionais da educação infantil estão vivendo um momento histórico importante referente à construção de sua identidade profissional, o que aponta para a necessidade de formação constante e reflexões sobre a prática pedagógica e também para pesquisas que possam indicar as realidades vividas nas redes municipais de educação, maiores responsáveis em oferecer a educação infantil. Nessa construção da identidade profissional e da docência na educação infantil, é importante considerar que na primeira etapa da educação básica se rompe com a lógica do ensino fundamental - que é a de uma professora sozinha em sua sala, com sua turma. Na educação infantil a ação docente comumente é realizada em parceria, ou seja, há a presença de uma professora e uma auxiliar, em que ambas estão na sala ao mesmo tempo e atendem o grupo de crianças e suas famílias, mesmo que exista grande diferenciação salarial nas funções, no horário de trabalho e no tipo de atividades realizadas, se constitui em uma docência compartilhada.
O termo docência partilhada foi utilizado inicialmente por Duarte (2011), ao elencar as ações estabelecidas pelas duas profissionais docentes, auxiliar e professora, na ação direta de cuidado e educação dos bebês e com as famílias no contexto em que a pesquisa foi realizada. Posteriormente, Gonçalves (2014) chamou atenção para o significado do termo semântico da palavra partilha, que se refere à divisão; repartição; ato de dividir em partes ou porções. Dessa forma, a autora sugere o termo docência compartilhada como mais adequado para um contexto em que um coletivo de pessoas, professoras, pais e demais profissionais da instituição, buscam compartilhar a responsabilidade para com a educação e cuidado das crianças.
Compartilhar a docência não se trata de dividir ou atribuir responsabilidades delimitadas, mas uma relação permeada de parceria, por este motivo, a definição docência compartilhada parece-nos mais apropriada. Compartilhar pressupõe: fazer parte de; tomar uma posição em relação; dividir com. Ou seja, é estar com, estar junto, numa relação de compartilhamento. (Gonçalves, 2014, p. 115, grifos do original)
Assim a atuação conjunta da auxiliar e da professora de educação infantil caracteriza uma docência compartilhada, a qual exige uma articulação da ação com as crianças e uma cooperação nas estratégias da ação pedagógica, portanto uma prática docente coletiva.
INGRESSO E CARREIRA
A construção da identidade das creches e pré-escolas a partir do século XIX em nosso país insere-se no contexto da história das políticas de atendimento à infância, marcada por diferenciações em relação à classe social das crianças, além disso predominou por muito tempo uma política caracterizada pela ausência de investimento público e pela não profissionalização da área.
Procurando superar essa realidade, como afirma Rosemberg (2002), ao fim da ditadura militar seguiu um intenso movimento de mobilização social pela elaboração de uma nova Constituição. Dessa mobilização participaram, além dos atores sociais tradicionais, os chamados novos movimentos sociais: movimento de mulheres e movimento “criança pró-Constituinte”. Esses novos movimentos sociais elaboraram uma proposta para a Constituição, a que foi aprovada em 1988, reconhecendo a educação infantil como uma extensão do direito universal à educação para as crianças de 0 a 6 anos e um direito de homens e mulheres trabalhadores a terem seus filhos pequenos cuidados e educados em creches e pré-escolas. Após a Constituição, uma outra equipe ocupou o setor da educação infantil no Ministério da Educação/ Coordenação Geral de Educação Infantil (MEC/COEDI), que elaborou uma nova proposta de política nacional para a educação infantil. Nessa proposta, sete diretrizes foram decisivas, entre elas duas representaram mais significativamente a ruptura com o modelo anterior, como destaca Rosemberg (2002, p. 41): “[...] equivalência de creches e pré-escolas, ambas tendo por função cuidar e educar crianças pequenas como expressão do direito à educação; formação equivalente para o profissional de creche e pré-escola em nível secundário e superior”.
A equivalência entre creches e pré-escolas e a sua definição como vinculadas à educação trouxeram consequências diretas para a formação dos profissionais que atuam nesses espaços e foi determinante para a caracterização desse profissional, como indica Campos (1994, p. 32), “[...] quando pensamos no perfil do profissional de educação infantil que queremos, é preciso antes caracterizar os objetivos que desejamos alcançar com as crianças”.
É importante destacar que, desde então, a formação inicial para os professores dos primeiros anos do ensino fundamental e da educação infantil tem ocupado um lugar significativo na pauta de discussão da agenda política e educacional do sistema brasileiro de educação, especialmente a partir da LDB, lei n. 9.394/1996. Na educação infantil, antes da LDB de 1996 não havia exigência mínima para o cuidado e a educação das crianças nas creches e pré-escolas; com a promulgação dessa lei, a formação passa a ser incluída na primeira etapa da educação básica, e a educadora que atua diretamente com as crianças ganha o estatuto de professora, cuja formação mínima para atuação passa a ser o curso normal de nível médio e, preferencialmente, o superior.
Entre os estudos que recuperam a história das creches e pré-escolas, os dados mais significativos provêm de centros maiores, como Rio de Janeiro e São Paulo, nos demais centros urbanos a história e o levantamento ainda estão, em sua maioria, por fazer. No estado de Santa Catarina temos algumas contribuições importantes, como a de Ostetto (2000), que em sua tese de doutorado, ao traçar um retrato da história da rede municipal de Florianópolis, indica que o movimento de identificar a profissional para atuar em creches e pré-escolas esteve presente desde a década de 1980, que na época buscava invocar, com base em discussões em âmbito nacional, o caráter pedagógico da educação infantil, repercutindo na defesa de uma profissional com estatuto de professora. Nessa mesma direção, Cerisara (2002, p. 12) destaca:
[...] pode-se dizer que a versão final da LDB incorporou na forma de objetivo proclamado as discussões da área em torno da compreensão de que trazer essas instituições para a área da educação seria uma forma de avançar na busca de um trabalho com um caráter educativo-pedagógico adequado às especificidades das crianças de 0 6 anos, além de possibilitar que os profissionais, atuando junto a elas, viessem a ser professores com direito à formação tanto inicial quanto em serviço e à valorização em termos de seleção, contratação, estatuto, piso salarial, benefícios, entre outros.
Como afirmado anteriormente, com a LDB a carreira docente da professora de educação infantil foi equiparada a de professora dos anos iniciais do ensino fundamental, repercutindo em direito a um plano de carreira e a todas as conquistas da categoria, como a inclusão na lei n. 11.738, de 16 de julho de 2008, que institui o piso salarial nacional para professores da educação básica pública. Da mesma forma, o Censo 2012 estabelece que:
O Plano Nacional de Educação (PNE), em seu diagnóstico, define que a qualidade do ensino só poderá acontecer se houver a valorização dos profissionais do magistério, a qual só será alcançada por meio de uma política global capaz de articular a formação inicial, as condições de trabalho, o salário, a carreira e a formação continuada. [...] Assim, a melhoria da qualidade da educação básica depende da formação de seus docentes, o que decorre diretamente das oportunidades oferecidas a eles. (INEP, 2013, p. 38)
Com base nessas conquistas, consideramos relevante traçar um diagnóstico da realidade da educação infantil nos municípios do estado de Santa Catarina, em especial sobre a realidade dos municípios catarinenses quanto às professoras de educação infantil, sua formação, carreira, denominações e funções.
Na sequência, apresentamos os dados sobre a formação mínima exigida pelos municípios para o ingresso de professoras de creche e pré-escola e auxiliares de creche e pré-escola na educação infantil - as porcentagens não são representativas em virtude do pequeno número de participantes, entretanto optamos por mostrá-las para melhor compreensão da proporção (Quadro 2).
Fonte: Banco de dados da pesquisa (Educação infantil pós-LDB 9.394/96: concepções, práticas e confrontos. Microdados. Florianópolis, 2012). Elaboração das autoras.
Considerando as indicações legais de que a função docente deve ser responsabilidade de um profissional com formação de nível superior, em curso de licenciatura, de graduação plena, em universidades e IES, admitida como formação mínima para o exercício do magistério a oferecida em nível médio, na modalidade normal, os municípios encontram-se com dados que atendem a esses requisitos, pois, para o ingresso na educação infantil entre as professoras de creche, 73% dos municípios indicam o ensino superior e 24% o ensino médio na modalidade normal e 3% o ensino médio. Esses dados apresentam-se ainda mais altos quando se questiona sobre o ingresso na educação infantil para as professoras de pré-escola, para as quais 81% dos municípios indicam o ensino superior e 16% o ensino médio na modalidade normal e 0% o ensino médio.
Cabe destacar que, no entanto, os dados no estado sobre a formação mínima de ingresso para professoras na educação infantil se diferenciam muito se comparados aos do estado do Rio de Janeiro, onde a pesquisa utilizando o mesmo questionário foi realizada e os dados apresentam as seguintes exigências de escolaridade: ensino médio (88,4%), estudos adicionais (5,3%) e ensino superior (6,2%). Os dados encontrados nos municípios catarinenses também contrastam com os dados nacionais apresentados pelo censo escolar da educação básica referente ao ano de 2011. No resumo técnico, o percentual de docentes na educação infantil por grau de formação no Brasil apresenta os seguintes números: 56,9% com formação superior e 43,1% sem formação superior.
Quando analisamos os dados no estado referente à formação mínima exigida pelos municípios para o ingresso de auxiliares de creche e de pré-escola na educação infantil, a diferença de exigência de formação deixa dúvida quanto às atuações desse profissional, pois, por um lado, 17% dos municípios exigem formação de nível superior para auxiliares de creche e 24% para os auxiliares de pré-escola, persiste ainda uma porcentagem de 4% dos municípios para auxiliar de creche e 6% para auxiliares de pré-escola, que exigem somente ensino fundamental. No estado, a maioria dos municípios indica tanto para a creche como para a pré-escola a exigência mínima do ensino médio e médio normal, que somados contabilizam 79% para as auxiliares de creches e 66% para as auxiliares de pré-escola.
Quando questionamos os municípios da existência de auxiliares das 32 secretarias da educação que participaram da pesquisa, 22 informaram possuir auxiliares trabalhando em sua rede, 8 não contam com essas profissionais e em uma das secretarias não houve resposta para a pergunta. Podemos visualizar no Quadro 3 a denominação que esses profissionais recebem nos municípios:
Fonte: Banco de dados da pesquisa (Educação infantil pós-LDB 9.394/96: concepções, práticas e confrontos. Microdados. Florianópolis, 2012).
Fica evidente, nos dados apresentados pelos municípios, que há ainda uma grande indefinição quanto a funções exercidas por essa profissional, bem como em relação às origens das denominações de “auxiliares de sala” no contexto da educação infantil e a vinculação da “auxiliar de sala” com a função de “auxiliar de serviços gerais”. Aqui observamos que em um dos municípios essas profissionais são denominadas de Serviços gerais, atendentes, uma definição que remete ao que indica Conceição (2010, p. 139, grifos do original) ao procurar traçar a origem do nome auxiliar em sua pesquisa de mestrado:
Embora auxiliassem as professoras com as crianças até início da década de 1980, não havia funções delimitadas, nem existia o cargo “auxiliares de sala”. Como veremos no Plano de Cargos e Salários de 1982 (Lei 1.854), constava apenas o cargo de “auxiliar de serviços gerais”, no qual se enquadravam profissionais como serventes e merendeiras, que realizavam informalmente o auxílio nos momentos de higiene e alimentação das crianças. O núcleo central das atividades destas profissionais, portanto, não era o trabalho em sala com as crianças e as professoras, mas nos serviços gerais da instituição.
Nessa busca pela origem da denominação, Conceição (2010) também indica que Cerisara (2002), em sua tese de doutorado, ao procurar compreender a construção da identidade das profissionais de educação infantil, havia apontado uma possível relação da origem do nome mantido atualmente com as funções desempenhadas por essas primeiras profissionais. Assim, Conceição (2010) sugere que as atividades iniciais das auxiliares de sala, em diferentes redes de educação infantil, estavam diretamente relacionadas com as atividades de limpeza e manutenção das instituições, bem como às atividades de cuidado, como alimentação e higiene das crianças. Mais tarde, em virtude da expansão das instituições de educação infantil e o aumento no número de crianças atendidas, essas profissionais, que já exerciam outras atividades no âmbito das instituições, passaram então a exercer mais pontualmente e mais frequentemente ajudas às professoras.
Mais recentemente, dados da pesquisa de Batista (2013) indicam que historicamente se perpetua a presença de profissionais com diferentes formações e remunerações na ação direta com as crianças pequenas. Em pesquisa realizada na revista A mãi de família, a autora encontra como definições do corpo de profissionais que trabalham na creche as vigilantes, as embaladeiras e as criadas. Podemos, sem desconsiderar as diferenças históricas e estruturais das instituições, fazer uma analogia das criadas dos anos de 1888 com as auxiliares de hoje, que, no entanto, não tinham, e também hoje não têm, seu status de docência reconhecida, apesar de estarem na ação direta com as crianças.
Batista (2013) traz ainda informações sobre indicações mais precisas que constavam na revista a respeito das funções de cada uma das profissionais, desde as criadas, as embaladeiras e as vigilantes:
De accordo com o decreto ministerial de que falaremos, cada berceuses deve tomar conta de seis creanças. Porém, as maiores de um anno de idade, não tendo necessidade, na prática, de constante vigilância, este decreto nunca é observado e cada berceuse se encarrega de doze crianças. As creadas se ocupam dos trabalhos da cozinha, do aceio [sic] do edifício, etc. O estabelecimento deve ter um médico [...]. Quanto ao pessoal em serviço das créches, entendo que melhor ninguém poderá exercer esses encargos que as Irmãs de Caridade. Como dedicação, como carinho pelas creanças, como vigilância, [...] De sorte que eu proporia que as berceuses fossem irmãs de caridade, e as creadas, as que estas escolhessem fossem elas que as dirigissem, sob a fiscalização de uma senhora o conselho, que ficariam semanas n“esse trabalho” [sic]. (Costa, Carlos, revista A mãi de família, n. 13, anno X, 1888apudBatista, 2013, p. 29)
A existência de diferentes categorias profissionais na ação direta com as crianças é parte da realidade educativa atual e da constituição histórica e ainda exige uma melhor definição das funções de cada categoria. A expansão da educação infantil e do corpo profissional vem deixando de lado a atenção a esse dilema e perpetuando desigualdades no campo profissional, o que compromete a articulação dos diferentes profissionais na organização dos processos educativos.
Apesar da indefinição e pouca clareza das funções que essa profissional assume no contexto da educação infantil nos municípios catarinenses, o contraste entre os dados do estado do Rio de Janeiro e os do estado catarinense é nítido, pois no estado do Rio de Janeiro 41% dos municípios indicaram o ensino fundamental como pré-requisito, 32% indicaram o ensino médio e 25%, estudos adicionais. Cabe destacar que, como indicam também Nunes, Corsino e Kramer (2011), tanto a contratação das auxiliares, a qualificação exigida, como suas atribuições e funções, sejam elas de ação direta com as crianças ou não, merecem mais pesquisas, pois é um fator fundamental para se definir e discutir a qualidade da educação infantil, especialmente a qualidade da creche nesse momento de obrigatoriedade da oferta da pré-escola pelos municípios e de possível secundarização da oferta e do atendimento para o seguimento creche da educação infantil.
A LDB, desde 1996, indica em seu artigo 67 que os sistemas de ensino deverão promover a valorização dos profissionais da educação, assegurando, inclusive nos termos dos estatutos e dos planos de carreira do magistério público, entre eles, o “ingresso exclusivamente por concurso público de provas e títulos”. Entre os 32 municípios respondentes, 23 deles, ou seja, 71,9%, informaram que realizam prova específica para a educação infantil nos concursos públicos, e somente 8 informaram que não realizam, perfazendo um total 25% - um dos municípios não respondeu à questão. Também aqui os dados no estado catarinense contrastam com os do estado do Rio de Janeiro, que evidenciam que 72,9% não realizam prova específica e somente 23,7% realizam.
A realização de concurso público específico para ingresso na educação infantil nas redes municipais pode trazer consequências tanto pedagógicas quanto administrativas. A evidência de a maioria dos municípios fazerem um concurso específico para professores de educação infantil aponta que se reconhece, no ingresso, a especificidade dessa etapa e indica, com isso, também um maior investimento, em especial em termos de estudos, aperfeiçoamentos e formações específicas por parte do profissional ingressante nessa carreira de professora de educação infantil.
Quando perguntamos se os municípios possuíam plano de carreira, 87,5% responderam sim, somente um informou que o plano de carreira está em processo de elaboração e 3 informaram que está em processo de regulamentação. Acreditamos que esse grande número de municípios já possuindo plano de carreira deve-se ao estabelecimento da lei n. 11.738, de 16 de julho de 2008, que, além de instituir o piso salarial nacional para professores da educação básica pública, definiu como prazo o final do ano de 2009 para os estados e municípios elaborarem seus planos de carreira docente.
Em relação ao vínculo empregatício, os dados apontam uma dificuldade de categorização, considerando as particularidades dos diferentes municípios e o fato de manterem em seu quadro diferentes contratos de trabalho. Os municípios também mostraram dificuldade de informar separadamente os dados da creche e da pré-escola quanto ao vínculo empregatício das professoras e das auxiliares. No entanto, chama atenção, entre os municípios respondentes, o elevado número de professoras e auxiliares da educação infantil nas creches e pré-escolas com vínculo de contrato temporário. Pretendemos evidenciar somente os dados referentes aos dois maiores municípios que responderam ao questionário, sendo que ambos informaram os dados dos profissionais de creche e pré-escola agregados. Destacamos os dados desses municípios, pois, tendo um número elevado de habitantes, enfrentam maiores dificuldades, e mesmo assim um dos municípios informou possuir 684 professores concursados com regime celetista e 76 professores com contrato temporário, dados estes que representam uma valorização do magistério no que se refere a contrato de trabalho. No outro município, no entanto, esses dados ainda não alcançam esse percentual elevado de número de contratos de professores concursados, pois informa que possui 333 professores concursados estatutários e 376 professores com contrato temporário. Quanto ao contrato de auxiliares, tanto para creche como para pré-escola, os dois municípios informaram respectivamente possuir 496 auxiliares concursados celetistas e 127 por meio de contrato temporário, e o segundo município informou possuir 252 auxiliares concursados estatutários e 211 por meio de contrato temporário.
Pelo fato de as perguntas serem abertas, a questão sobre qual o piso salarial desses profissionais exigiu a elaboração de uma faixa média de salários no processo de categorização, com base nos dados apresentados pelos municípios, considerando o salário mínimo do ano de 2012 no valor de R$622,00.
Uma dificuldade encontrada para a análise dos dados foi o fato de alguns municípios apresentarem os valores salariais para 20 horas semanais e alguns para 40 horas semanais, enquanto outro grupo de municípios não informou essa referência quanto às horas semanais. Os valores para o piso salarial para professor não foram informados por 5 municípios. Entre os municípios que informaram o piso salarial considerando 20 horas semanais, 7 declararam o valor entre R$725,21 e R$987,45. Considerando 40 horas semanais, as informações quanto ao piso salarial foram: 7 municípios responderam o piso salarial ser entre R$1.007,04 e R$1.509,31; 13 municípios informaram o valor de R$1.527,21 a R$2.045,88.
O piso salarial informado para as auxiliares tornou ainda mais complexa a análise, pois não foi possível inferir se os dados se referem a 20 horas, 30 horas ou ainda 40 horas semanais. Além disso, para essa categoria, o número de municípios que informou não ter piso salarial ou não respondeu à questão somou 14 municípios. Os dados para o piso salarial das auxiliares apresentam a seguinte configuração: 10 não responderam e 4 declararam não ter piso salarial; 6 municípios informaram o piso ser entre R$265,00 e R$564,29; 5 municípios informaram ser o piso entre R$600,00 e R$700,00; 2 municípios informaram ser o piso entre R$900,00 e R$1.023,89, e, por fim, 5 municípios informaram ser o piso entre R$1.400,00 e R$1.643,00, sendo esse o valor mais alto informado.
As informações referentes ao piso salarial dos diretores foram, em sua maioria, acompanhadas da informação de que o valor era aplicado para 40 horas semanais. Os dados referentes ao piso salarial do diretor apresentam os seguintes números: 10 municípios não responderam; 6 municípios responderam ter como piso salarial de diretor um valor entre R$1.451,00 e R$2.020,40; 16 municípios responderam ter como piso salarial de diretor um valor entre R$2.027,99 e R$3.332,00. Além disso, alguns municípios citaram que o valor informado teria acréscimo conforme a porcentagem de número de alunos e um município informou que o salário informado seria acrescido de gratificação de 70% sobre o salário definido.
Desconsiderando a quantidade de horas trabalhadas, apenas para a comparação apresentamos um quadro com a média dos salários de cada categoria com o valor mínimo e o valor máximo (Quadro 4).
Fonte: Banco de dados da pesquisa (Educação infantil pós-LDB 9.394/96: concepções, práticas e confrontos. Microdados. Florianópolis, 2012).
Os valores encontrados apresentam grande disparidade, que também foi detectada pelo trabalho de Oliveira e Vieira (2012) em pesquisa que reuniu dados sobre condição docente em sete estados brasileiros. As autoras identificaram que, além de a educação infantil ser o nível com salários mais baixos entre todos, as diferenças salariais são bastante variadas conforme o vínculo empregatício, a escolaridade e a carga horária, sendo que o primeiro foi o que caracterizou as diferenças salariais mais expressivas nesse nível, com maior frequência de 1 a 2 salários mínimos para os temporários/substitutos/designados e de 2 a 3 para os estatutários, sendo estes os que apresentaram os melhores salários entre os professores de educação infantil.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
No Brasil como um todo, e mais especificamente no estado de Santa Catarina, há um esforço para definir as especificidades da ação docente na educação infantil como primeira etapa da educação básica, que na concepção de Rocha (2010) sustenta-se no respeito aos direitos fundamentais das crianças e na garantia de formação integral orientada para as diferentes dimensões humanas, que se efetivam por meio de uma ação docente intencional e planejada.
Orientadas por um posicionamento político e reivindicatório do reconhecimento da especificidade da docência na educação infantil, que implica o compartilhamento da ação entre duas profissionais que exercem docência, propomos que tanto professoras como auxiliares deveriam ser denominadas de docentes, não desanimando perante os desafios da profissão e lutando por uma carreira de magistério e piso nacional para ambas. No entanto, tal posicionamento não ignora as contradições políticas que geram as condições de trabalho das auxiliares, com salários mais baixos, planos de carreiras ineficientes e desvalorização profissional.
A atuação conjunta da auxiliar e da professora de educação infantil caracteriza uma docência compartilhada, o que exige articulação da ação com as crianças e cooperação nas estratégias da ação pedagógica, portanto uma prática docente coletiva. A existência de diferentes categorias profissionais na ação direta com as crianças é parte da realidade educativa e ainda exige melhor definição das funções de cada categoria, de acordo com os diferentes níveis de formação, cargo, carreira, salários e jornada de trabalho. As diferentes denominações atuais e históricas para o corpo profissional que atua na ação direta com as crianças são formas de escapar da responsabilidade de condições e carreira das profissionais anteriormente denominadas de criadas e atualmente de auxiliares. A expansão da educação infantil e do corpo profissional vem deixando de lado a atenção a esse dilema e perpetuando desigualdades no campo profissional que compromete a articulação dos diferentes profissionais na organização dos processos educativos.