INTRODUÇÃO
Soube muito cedo o que queria fazer: queria ir para a universidade, queria ensinar e pesquisar. Soube isso desde minha primeira infância, e trabalhei tenazmente para atingir esse objetivo, mesmo que às vezes me parecesse impossível. (Elias, {1990} 2001, p. 22) 1
Tal certeza se apoiava também- como dizê-lo sem pose nem páthos? - na convicção íntima de que minha tarefa de sociólogo, a qual não me parecia um dom nem algo devido, tampouco uma (um tanto grandiloquente) “missão”, era decerto um privilégio que acarretava de pronto um dever. (Bourdieu, {2004} 2005, p. 97, grifos do autor) 2
O objetivo deste artigo é identificar e analisar as aproximações e os distanciamentos das obras de Norbert Elias e Pierre Bourdieu, a partir do conceito de habitus. Trata-se de uma iniciativa no campo da sociologia da educação, mais especificamente, um empreendimento acerca do conceito de habitus e suas relações indissociáveis com os processos de socialização. Parte-se do pressuposto de que ambos os autores desenvolveram, ao longo de suas vidas acadêmicas, uma proposição sobre os processos de socialização, ainda que não os anunciassem de forma sistemática. A intenção é evidenciar que os autores, embora com projetos sociológicos distintos, assemelham-se, sobretudo no que tange a uma edificação epistemológica sobre o funcionamento do mundo social e suas relações com a construção dos indivíduos. Em escritos sobre as relações de interdependência ou a partir de uma sociologia processual e relacional, Elias e Bourdieu, respectivamente, deixam um legado teórico que adensa as pesquisas acerca dos processos de socialização, ao recuperar o percurso objetivo e subjetivo da trajetória dos agentes sociais. Nesse sentido, ambos auxiliam na iniciativa de revisitar o conceito de socialização, tendo como base a teoria do habitus, uma das proposições mais consagradas no campo da sociologia da educação.
Nesta introdução, considero relevante apresentar aspectos das trajetórias pessoal e acadêmica dos autores, pois muito delas exemplifica formas de ser e estar no mundo que potencializam uma compreensão sobre suas obras. Vejamos.
Em 22 de junho de 1897, nasce Norbert Elias, em Breslau, hoje Polônia (Wroclaw). Morre aos 93 anos de idade, em 1990, em Amsterdã. De família judia e vivendo em uma parte da Alemanha prussiana, Elias teve uma infância burguesa. Filho único, com uma saúde frágil, sempre foi cercado de cuidados parentais. Proveniente de uma família que ocupava um espaço social invejável, Elias se socializou em um ambiente culto e elitizado. Desde pequeno, teve acesso à leitura dos clássicos da literatura humanista alemã e universal.
Seu pai, Hermann Elias, era proprietário de um empreendimento têxtil. Sua mãe, Sophie Elias, era a responsável pelas relações sociais da família e dos cuidados para com o único herdeiro do casal. Sua formação foi sensivelmente marcada pela influência familiar. Ainda jovem, matriculou-se na Faculdade de Medicina, numa forma de realizar o grande desejo profissional de seu pai. Sua cidade natal, Breslau, Alta Silésia, com aproximadamente 500 mil habitantes, ainda que pertencesse à antiga parte da Prússia, sempre se manteve como guardiã de uma cultura alemã (Setton, 2013).
Elias se sentia um outsider. 3 Não aprovava o universo burguês de seus familiares; considerava-se alemão sem ser patriota, nacionalista ou belicista, três fortes características do habitus germânico que descreveria com detalhes em seu último livro, Os alemães. Sentia-se também outsider, pois não se enquadrava no ambiente hierarquizado da sociedade teutônica. Fazia parte de uma alta classe média, esclarecida, que não se reconhecia como envolvida pelo movimento conservador de sua sociedade. Desde pequeno, observara e resistira a um antissemitismo, mas nunca chegou a pensar, junto a seus familiares e amigos, que esse preconceito fosse assumir formas tão bárbaras.
Aos 18 anos de idade, em 1914, apresenta-se como voluntário em uma unidade de transmissão em um front de batalha. De lá, traz sua primeira experiência de guerra, uma experiência inicial com a morte e a percepção de que a cultura alemã alimentava um sentimento de derrota. Se no final da I Guerra, matriculara-se em medicina, abandona o curso quando foi necessário seguir os estágios clínicos. Na ocasião, também cursara filosofia, desejo estimulado no Liceu a partir de um aprendizado humanista. Elias nunca se casou, tinha clareza de seu compromisso com a sociologia. Para muitos, seria impossível dissociar as trajetórias pessoal e profissional de Elias (Neiburg e Wizbort, 2006; Heinich, 2000, 2015). Ambas são interdependentes. Com um percurso de vida desenraizado, fragmentado e por vezes doloroso, Elias passou a maior parte de sua vida tentando conquistar reconhecimento profissional, sublimando, de certa forma, sentimentos de um outsider.
Seus primeiros trabalhos são escritos de maneira paciente e isolada, o que permitiu que assumissem certo grau de originalidade. Elias viveu quase um século, sendo que durante a maior parte dele se ocupou com a sociologia numa constante necessidade de interpretar seu tempo. A escolha de temas de investigação aparentemente díspares parece se cruzar continuamente, pois todos assumem certo tom autobiográfico (Neiburg e Waizbort, 2006; Heinich, 2015).
Em relação à sua vida profissional, esta foi marcada por muitos percalços. Trabalhou em ritmo contínuo, durante a maior parte dela, ainda que seu reconhecimento tenha sido tardio, intermitente e não de todo estabelecido. Sociólogo por opção, e não por formação, começou suas leituras na área, aos 28 anos de idade, em Heidelberg, no círculo social de influência weberiana. Com uma sensibilidade intelectual invejável, tornou-se um sociólogo além de sua época; interdisciplinar e com um método de observação pluridimensional, conseguiu desenvolver uma teoria dos processos sociais extremamente original.
Aos 33 anos de idade, ainda na Alemanha, (mais precisamente em Frankfurt), escreveu sua tese de habilitação, sob a orientação de Karl Mannheim, denominada A Sociedade de Corte (Elias, {1969} 2001a). Esta foi publicada somente em 1969, 39 anos após o seu término. Em 1935, estabeleceu-se em Londres e deu continuidade à sua pesquisa sobre as transformações históricas desde o antigo regime medieval, iniciando sua obra-prima, O Processo Civilizador - uma história dos costumes (Elias, {1939} 1990). Aos 41 anos de idade, publicou esse livro na Suíça, infelizmente com pouca repercussão. Nessa ocasião, envolveu-se com grupos de tendência psicanalítica, atendendo soldados sobreviventes da guerra.
Apenas aos 57 anos de idade foi que Elias ocupou um cargo de professor universitário, em Leicester, no Departamento de Sociologia. Lá, realizou seu trabalho por dez anos, tendo a oportunidade de escrever parte do registro síntese de seu método, com o livro Introdução à Sociologia (Elias, {1970} 1999). Aos 65 anos de idade, passou um período de quatro anos como professor convidado na Universidade de Gana, na África.
Como caçador de mitos, metáfora expressiva que apresenta em seus escritos, conseguiu romper com algumas armadilhas de um pensamento sociológico rígido e acabou por legar um corpo conceitual capaz de apreender a dinâmica dos fenômenos sociais. Inquieto, corajoso e inovador, ele contribuiu para uma expressiva guinada na mentalidade do pensamento social contemporâneo. Nas palavras de Bourdieu, foi um heterodoxo.
Seria difícil enquadrá-lo em um único domínio de especialidade. Por isso, vou apreciá-lo naquilo em que ele tanto debateu com a tradição de sua área, as relações entre indivíduo e sociedade e os processos dinâmicos das inter-relações entre ambos, a partir do conceito de habitus e seus processos constitutivos, ou seja, os processos socializadores. Com projeto epistemológico distinto, Norbert Elias, num certo movimento de vanguarda, anuncia e dialoga mais tarde com um dos teóricos mais conceituados do século XX: Pierre Bourdieu.
Pierre Félix Bourdieu, por sua vez, nasce em 01 de agosto de 1930, em Déguin (Altos Pirineus - sudoeste da França), e morre aos 72 anos de idade, em janeiro de 2002, em Paris, vítima de um câncer. Seu pai era funcionário dos Correios.4 De origem popular e vindo da província, Pierre Bourdieu defrontou-se, desde sua estadia no Liceu Luis Le Grand, com a alta cultura aristocrática parisiense. Segundo alguns amigos, dessas experiências guardou ressentimentos.5 Diferente de muitos de seus colegas de academia, não se envolveu nem participou de movimentos partidários, manifestando sempre certa desconfiança na condução dos aparelhos políticos.
Bourdieu, como muitos de seus compatriotas, foi um autodidata na Sociologia e na Antropologia. Segundo Fabiani (2016), não estava entre os jovens universitários que publicizavam suas tomadas de posição. A primeira parte da carreira de Bourdieu não o qualifica como um intelectual público. Cultivava a discrição mesmo no ano de 1968 (Fabiani, 2016).
Embora vindo de uma família campesina, Bourdieu teve uma trajetória acadêmica notável. Frequentou os melhores estabelecimentos de ensino da França e se licenciou em filosofia, na École Normale Supérieure, nos anos de 1951 a 1954. Agregado e professor de filosofia, Bourdieu partiu para a Argélia em 1955, ficando por lá até 1960. No período, tornou-se assistente da Faculdade de Letras de Argel. Voltou à França em 1961 e passou a lecionar na Universidade de Lille. Em 1964, já reconhecido entre os pares, foi nomeado diretor de estudos na École Pratique des Hautes Études e publicou suas primeiras pesquisas sobre os operários argelinos, o sistema de ensino francês e as práticas culturais. Nessa época, Bourdieu estava sob a guarda de Raymond Aron, também normalista e agregado em filosofia, que se tornou sociólogo, conhecedor e divulgador da sociologia alemã, que o viu com um grande futuro. Aron conferiu-lhe a codireção do Centro Europeu de Sociologia Histórica (Joly, 2012; Fabiani, 2016).
Em 1967, funda seu próprio laboratório de pesquisa, o Centro de Sociologia da Educação e da Cultura, em Paris. Sempre trabalhando em equipe, estabeleceu sua própria escola de sociologia. Lançou numerosos trabalhos no Centro Europeu de Sociologia Histórica, na École des Hautes Études en Sciences Sociales, criando, em 1975, a revista Actes de la Recherche en Sciences Sociales e, mais tarde, em 1996, a editora Raisons d’Agir.
Em 1970, ocupou-se de temas pouco usuais, como a fotografia e os museus, estabelecendo fecundas articulações entre uma sociologia da cultura e uma sociologia da educação, erigindo, na ocasião, a institucionalização de um novo campo de investigação denominado práticas de cultura (Fleury, 2006). Nos anos de 1980 em diante, já reconhecido e consagrado, sistematizou e divulgou, por intermédio de um conjunto de entrevistas e palestras, os achados de sua escola de pensamento, consolidando uma leitura sobre os mecanismos materiais e simbólicos da dominação (Bourdieu, {1980} 2009; {1987} 1990; {1994} 1996). Em 1979, publicou, na França, A Distinção - crítica social do julgamento (Bourdieu, {1979} 2006), sua obra maior, e, aos 51 anos de idade, tornou-se titular da cadeira de sociologia no Collège de France. Aos 63 anos de idade, o Centro Nacional de Pesquisas Científicas da França (CNRS) lhe concederia a distinção suprema da instituição, a Medalha de Ouro.
Os anos de 1990 marcaram uma mudança de estratégia em sua postura intelectual. De 1989 a 1990, presidiu uma comissão de reflexão sobre os conteúdos do ensino na França e, na obra coletiva A miséria do mundo (Bourdieu, {1993} 1999), apresentou outra forma de fazer política. Partiu também em cruzada contra a imprensa, passando para muitos do status de sociólogo ao de profeta (Lopes, 2008; Bourdieu e Miceli, 1997).
APONTAMENTOS EPISTEMOLÓGICOS
Num exercício aproximativo inicial, poderíamos afirmar que ambas as trajetórias exigiram personalidades fortes e determinadas. Outsiders em seus campos de atuação, tanto o pensador alemão quanto o francês tiveram de enfrentar o sentimento de exclusão. O primeiro com o reconhecimento tardio de sua obra, o segundo com a constante lembrança de não pertencer ao mundo da excelência escolar (Setton, 2016a; Bourdieu, {2004} 2005). É curioso observar ainda que, seduzidos pelo universo da filosofia no início de seus estudos, ambos se voltaram para a disciplina da sociologia, embora esta estivesse em fase de legitimação e reconhecimento tanto para o jovem Elias (1930) como para Bourdieu (1960).
O primeiro, conhecido como Caçador de Mitos (Elias, {1970} 1999), e o segundo, pregador de uma Vigilância Epistemológica (Bourdieu, 1999), corroboraram perspectivas científicas de natureza reflexiva e crítica. A escolha por objetos de estudos pouco heurísticos até então - no caso de Elias, o controle das pulsões (Elias, {1939} 1990), os moribundos (Elias, {1982} 2001b), a fofoca (Elias e Scotson, {1965} 2000) e a biografia de um músico (Elias, {1991} 1995); no caso de Bourdieu, a condição dos celibatários (Bourdieu, {2002} 2004), a cultura culta como reprodutora das desigualdades sociais (Bourdieu, {1979} 2006) e ou a alta-costura (Bourdieu, {1975} 2002) - realizaram uma contribuição sem par para as gerações que os seguiram. Nas experiências acima, a responsabilidade de construir uma nova visão interpretativa dos fenômenos sociais impôs aos dois um lugar de heterodoxia no campo disciplinar de origem. No episódio de Elias, um alto preço foi dele cobrado.6 Contraditoriamente, para Bourdieu, sua rebeldia iria lhe guardar um lugar no panteão das celebridades intelectuais europeias.
Segundo Natalhie Heinich (2015), Elias e Bourdieu, em função de suas experiências de outsiders, sublimaram o sofrimento e conseguiram transformar a dor da exclusão em problemas sociológicos. Com sua rica sensibilidade intelectual (Mills, 1969), iluminaram seus percursos pessoais com as luzes de teorias que até então se figuravam como polarizadas. É sabido o quanto o conceito de habitus, em ambos os autores, busca o resgate de uma leitura mais dialética e processual, que tornasse mais evidente a natureza interdependente do par de conceitos indivíduo e sociedade.
Seria fácil afirmar também que os autores aqui em debate poderiam ser classificados como interdisciplinares. Mais do que isso: seriam transdisciplinares, na medida em que não reverenciavam as fronteiras das ciências humanas. Sociologia, história e psicologia para um, sociologia, antropologia e filosofia para outro, Elias e Bourdieu, respectivamente, abraçavam todos os conhecimentos disponíveis, a fim de dar conta da complexidade do social.
Ainda nesse exercício comparativo, se no início do século as técnicas de pesquisa não se apresentavam tão avançadas, fazendo da documentação de dados secundários a matéria-prima de Elias, nas décadas de 1960 e 1970 Bourdieu pôde contar com a sofisticação de um órgão estatal na área da estatística, o que lhe conferiu apoio e o auxiliou na construção de muitos objetos de estudo.7 Os livros Sociedade de Corte (Elias, {1969} 2001a) e Processo Civilizador (Elias, {1939} 1990) são testemunhos de uma erudição singular de Elias, que, a partir da Enciclopédia francesa e dos manuais de comportamento da Idade Média, europeus, construiu uma teoria sobre o processo civilizador. Em A Distinção - crítica social do julgamento, Bourdieu ({1979} 2006) deixa um tratado sobre o gosto e revela, à revelia de muitos, que o gosto é matéria de discussão, sobretudo, para as ciências humanas e políticas. Para ele, as diferenças de gosto expressam uma luta de classes simbólica, tão ou mais eficaz que a luta de classes material, objetiva e concreta.
A longevidade dos dois autores também é bastante distinta. O primeiro viveu 93 anos, deixando em sua obra as marcas dos acontecimentos sociais pelos quais passou. O outro, Bourdieu, para muitos, nos deixou cedo demais, com apenas 72 anos de idade, mas não menos escreveu. Todavia, vale retomar, que a diversidade de assuntos de interesse de ambos não consegue afetar a coerência científica que mantiveram ao longo de suas vidas. Ambos se ocuparam em desvelar as redes de sentido que tecem os mecanismos de dominação por caminhos semelhantes.
Se Elias trabalhou a maior parte de sua vida de forma solitária, o outro sempre liderou equipes de investigação (Gebara, 2005; Encrevé e Lagrave, 2003). Apesar disso, ambos lograram nos deixar um legado intelectual que primou pela relação indissociável entre teoria e empiria. A perspectiva que traduzia uma revolução copernicana, segundo Elias, herança de Auguste Comte (Elias, {1970} 1999), exigia a constante observância dos fenômenos, em uma contínua avaliação com as teorias preexistentes, para tecer novos e mais refinados métodos de análise (Pinto, 2000).8 Por outro lado, em O poder simbólico, Bourdieu (1989), entre outros estudos, incorpora o espírito de um caçador de mitos e afirma, na mesma direção, que seria “preciso saber converter problemas muito abstratos em operações científicas inteiramente práticas” (p. 20).9
DIFERENTES PROJETOS CIENTÍFICOS
Poder-se-ia afirmar que a obra de Norbert Elias é marcadamente tributária das ciências humanas alemãs. Alfred Weber e Max Weber são autores que balizaram de maneira inicial a obra do jovem Elias. O primeiro deles, como um dos expoentes de uma sociologia da cultura, pensador dos processos de produção cultural, da evolução espiritual de um povo, permitiu a Elias uma filiação já tradicionalmente existente no campo intelectual alemão. No que se refere a Max Weber, Elias faz uso da crítica sobre o pensamento marxista, relativa ao materialismo histórico, opondo-se às reflexões que baseavam o movimento da história a partir de um ponto de vista unidimensional - a saber, o aspecto econômico.
Seria possível afirmar também que o projeto eliasiano dos anos 1930 foi confrontar, sob o terreno da história, a teoria da racionalização, de Weber, e a do psiquismo humano, de Sigmund Freud, a fim de elaborar uma nova síntese teórica, tomando em consideração a dinâmica da civilização: a ideia de uma modificação das estruturas da economia psíquica ligada a aquela das estruturas de poder revela esta dupla influência. Mas, ao mesmo tempo, Elias é crítico às noções de eu, super eu e id, como também às noções de consciente e inconsciente de Freud. Na confrontação dessas categorias com a história das sociedades humanas, Elias explicita as variações culturais da economia psíquica. Para ele, as estruturas da personalidade não seriam fixas; elas mudariam paralelamente às evoluções e às estruturas sociais. O papel dos estudos eliasianos seria, portanto, analisar as variações sociais e históricas da economia psíquica em função das variações dos modelos culturais.
Nos verbetes escritos para um léxico de sociologia,10 em 1986, pode-se levantar também sugestões para abordar o projeto científico de Elias. Todos eles, Civilização, Figuração e Processos Sociais, indicam que o ideal do autor é demonstrar o processo de transformação pelo qual os grupos sociais passaram por meio do estudo das alterações do comportamento humano. A essa dinâmica dá o nome de processo civilizador. Ou seja, uma noção que possibilitaria captar a simultaneidade de mudanças da ordem estrutural das sociedades, o equilíbrio de força entre os grupos - a sociogênese - e as mutações no padrão de conduta individual - a psicogênese. Para ele, ambos os processos, a sociogênese e a psicogênese, corresponderiam a um único movimento de construção do social.
Com essa perspectiva, Elias dialoga com as ciências humanas de sua época. Como apontei acima, historiadores, filósofos e sociólogos são seus interlocutores. Para nós, leitores, fica clara sua preocupação em afirmar que os processos civilizadores possuem uma direção, contudo não são lineares. Podem sofrer rupturas, retrocessos e recuos. Não são planejados, tampouco bons ou ruins. Se, por um lado, detectou uma direção a partir de um estudo documental de mais de quatro séculos, Elias evidenciou que os indivíduos, em um longo período, passam a revelar um maior controle das pulsões, agindo cada vez mais por meio de automatismos inconscientes.
Para Elias, o estudo do processo civilizador exigia uma perspectiva de longa duração. Demandava também um olhar para os motivos que promoviam a mudança rumo a um processo de pacificação das atitudes e maior controle das emoções. Com essa intenção, conseguiu desenvolver outra faceta de seu projeto científico. A construção de um ferramental conceitual mais preciso lograva identificar formações societárias como um campo de forças ou um espaço de disputa e equilíbrio de poder. A essas formações societárias Elias deu a denominação de configurações ou figurações históricas - isto é, um ambiente de relações, espaço ou campo de interdependência de indivíduos e grupos sociais entre si.
Seria legítimo afirmar, portanto, que estamos diante de um projeto científico coerente, bem articulado, inovador e fecundo para as investigações do campo da sociologia. Em outras palavras, Elias edificou uma perspectiva das mudanças sociais tributárias de jogos e equilíbrios de poder entre indivíduos. Sua teoria dos processos civilizadores, no Ocidente, dá margem para - ou ao menos permite - diagnosticar objetos de disputa entre os indivíduos e grupos sociais. Por exemplo, na sociedade de corte, o prestígio pela proximidade com o rei. Nas sociedades industriais, a capacidade do cálculo para fins de acumulação financeira. Seu ponto de vista permite ainda desvelar mecanismos de dominação de grupos que monopolizam esses mesmos objetos. Seu olhar ou imaginação sociológica denunciam a arbitrariedade da formulação dos objetos em disputa, revelando um autor que explicita os modos simbólicos da dominação.
No que se refere ao projeto científico de Pierre Bourdieu, a despeito das múltiplas leituras já realizadas, animo-me a erigir outra, complementar. Ainda que Bourdieu possa ser considerado um autor que edificou uma sólida e sistemática teoria do social, empenhando-se em desvelar os mecanismos simbólicos da dominação da sociedade contemporânea, seria possível considerar alguns temas que lhe foram caros ao longo de sua vida. Em estilo polêmico e crítico, já nos anos 1950 e 1960 Bourdieu se denomina um estruturalista genético ou um estruturalista construtivista, realizando seu trabalho num momento propício a rupturas epistemológicas. Segundo Louis Pinto (2000), Bourdieu é tributário da obra de Maurice Merleau-Ponty e Jean-Paul Sartre. Avesso às versões clássicas da filosofia, sua área de formação, Bourdieu rompe com as formas estruturantes e fenomenológicas do pensamento. Tinha como propósito restituir a unidade fundamental da prática humana e, para isso, se colocou a tarefa de observar a lógica da prática ou a lógica da ação dos agentes sociais por meio do par de conceitos indivíduo e sociedade.
Segundo Brubacker (1985), a teoria dos espaços sociais e da gênese dos grupos desenvolvida por Bourdieu está profundamente marcada também pelas contribuições dos clássicos da sociologia: Karl Marx, Émile Durkheim e Max Weber. Grosso modo, pode-se afirmar que a obra de Bourdieu é uma resposta ao antigo debate no interior das ciências humanas, em torno de duas linhas opostas de leitura sobre o social: o objetivismo e o subjetivismo. Nessa direção, desenvolve e sistematiza o conceito de habitus, na perspectiva de construir a mediação necessária (Setton, 2002).
Buscando mais do que uma simples apropriação dos clássicos da sociologia e da filosofia, e, conseguindo superá-los em muitos aspectos, elabora um corpo conceitual aprimorado. Nunca perdeu de vista o projeto científico de identificar e analisar os processos de uma dominação nos campos cultural, simbólico e econômico, sendo responsável pela cunhagem de conceitos como capital cultural, capital econômico, capital social, capital simbólico, campo e habitus, todos eles integrados numa requintada teoria do social. Além disso, Bourdieu foi capaz de aprimorar uma sociologia do poder, há muito já investigada. Para os interesses desta discussão, seria possível afirmar que seu plano de investigação se inicia a partir das contribuições já legadas por Norbert Elias, entre outros. Roger Chartier considera que no livro A Distinção a ideia sobre a legitimidade do modelo de aristocracia da cultura francesa indica aproximações entre os autores. As convenções de estilo e as formas de civilidade que dominam o sistema escolar, em particular a ênfase sobre a linguagem e o traquejo intelectual, derivariam e teriam origem na sociedade de corte francesa (Setton, 2016a).
USOS E APROXIMAÇÕES DO CONCEITO DE HABITUS EM NORBERT ELIAS E PIERRE BOURDIEU
La question reste ouverte de savoir si Pierre Bourdieu a empruté à Elias son concept d’habitus, ou s’il s’agit de deux créations conceptuelles concomitantes chez ces deux sociologues majeurs. (Heinich, 2015, p. 49, grifo do original)
Não são muitas as reflexões que se aventuraram a comparar teóricos da envergadura de Norbert Elias e Pierre Bourdieu. Por certo, trata-se de uma iniciativa de balanço ou primor científico que poucos se arriscaram a fazer. Todavia, em um ensaio aproximativo, julgo necessário e produtivo me atrever nessa direção.
Com essa intenção, em pesquisa realizada em julho de 2016, na Biblioteca François Mitterrand, em Paris, num esforço de localizar estudos com propósitos semelhantes, encontrei apenas um. Trata-se do artigo intitulado N. Elias et P. Bourdieu: analyse conceptuelle comparée, escrito por Jean-Hugues Déchaux e publicado nos Archives Européennes de Sociologie, em 1993. Não obstante, tal texto não parece ter alcançado vida própria ou estimulado outros colegas a realizar projetos análogos.
Discutido por uma série de autores contemporâneos, o conceito de habitus tem uma história antiga no interior das ciências humanas. Trata-se de uma palavra latina utilizada pela tradição escolástica, numa tradução da noção grega hexis. Ambas designariam características do corpo e da alma adquiridas em um processo de aprendizagem (Héron, 1987).
Tematizada em muitos escritos desde então, o conceito de habitus acompanhou a trajetória de estudos de Pierre Bourdieu, muito mais do que a de Norbert Elias. Lembrando as palavras de Roger Chartier (Setton, 2016b)11 e Jean-Louis Fabiani (2016), é certo que, em Elias, o conceito de habitus é secundário, e não sujeito a um requinte de sistematização e ou elaboração. Esse empenho, certamente, encontra-se na obra de Bourdieu, sendo ela uma das noções mais revisitadas por comentadores e por ele mesmo (Bourdieu, {1987} 1990; {1997} 1998; 1992; Lahire, 2004; Corcuff, 2003).
Num exercício cronológico de observação das publicações de ambos os autores, pode-se inferir que, no caso de Norbert Elias, encontra-se a presença do conceito de habitus uma única vez em Sociedade de Corte (Elias, {1969} 2001a), seu primeiro livro, e, muito tempo depois, no prefácio e no último capítulo do livro Sociedade dos Indivíduos (Elias, {1987} 1994a), escrito e publicado em 1987. Nesse texto, Elias tem a oportunidade de definir o conceito de habitus como a autoimagem e a composição social dos indivíduos (Elias, {1987} 1994a).12 Na tentativa de expressar a relação dialética entre indivíduo e sociedade, mais adiante registrou:
Conceitos como “estrutura social de personalidade” ou “estágio e padrão de auto-regulação individual” figuram entre os que podem ser úteis nesse ponto. Em particular, o conceito de composição ou habitus social (...), tem papel fundamental nesse contexto. (...) Quando ele e o conceito muito similar de estrutura social de personalidade são compreendidos - e adequadamente aplicados - é mais fácil entender por que o velho hábito de usar os termos “indivíduo” e “sociedade”, como se representassem dois objetos distintos, é enganador. (Elias, {1987} 1994a, p. 150, grifos do original)
No segundo caso, desde os anos 1950, Bourdieu se ocupou em desvendar a profundidade da noção para investigar as relações dialéticas entre mundo material e simbólico. Segundo Fabiani (2016), Bourdieu dedica-se a construir um léxico que requalificasse as noções fundamentais da sociologia. A noção de habitus é uma delas. Revisitada a partir da leitura do livro Arquitetura Gótica e Pensamento Escolástico, de Erwin Panofsky, Bourdieu a eleva a uma forma intensa de inculcação. Mais precisamente, em 1967, no posfácio da publicação francesa desse livro, Bourdieu faz a primeira apresentação formal do conceito.13
A noção surge em escritos mais antigos como Le Déracinement (Bourdieu e Sayad, 1964), e anteriormente, em 1962, no artigo sobre o celibato e a condição camponesa, em referência ao uso de Marcel Mauss (1974) sobre as técnicas corporais. Bourdieu observa no texto de Panofsky uma ocasião de precisar os contornos daquilo que chamará de forma geradora das práticas, um esquema produtivo de classificação que podemos encontrar em domínios muito diferentes. Nesse sentido, o uso da noção em Bourdieu é muito anterior e mais sistematizado do que em Elias, mas também remete às relações dialéticas entre indivíduo e sociedade (Fabiani, 2016).
Nas palavras de Bourdieu:
(...) Na realidade, as divisões da ciência social em psicologia social e sociologia se constituíram (...) em torno de um erro inicial de definição. A evidência da individuação biológica impede que se veja que a sociedade existe sob duas formas inseparáveis: por um lado, as instituições que podem revestir a forma de coisas físicas, monumentos, livros, instrumentos, etc.; por outro, as disposições adquiridas, as maneiras duráveis de ser ou de fazer que se encarnam nos corpos (e que eu chamo de habitus). O corpo socializado (aquilo que chamamos de indivíduo ou pessoa) não se opõe à sociedade: ele é uma de suas formas de existência. (Bourdieu, 1983a, p. 24, grifos do original)
Vale lembrar que a definição do conceito de habitus em O senso prático (Bourdieu, {1980} 2009) é a mais completa e a mais teórica.14 Nessa versão, o esquema gerador das formas simbólicas estaria em tudo - na história das formas e nas técnicas de socialização. Segundo Fabiani (2016), Bourdieu estaria à procura de um princípio universal sobre: a) o caráter homogêneo e constante do poder de inculcação; b) estaria atento a um princípio inconsciente - ou seja, em que os agentes não perceberiam o processo de incorporação; c) e, por último, considerou a capacidade geradora de esquemas interiorizados. Habitus seria um esquema gerador que permitiria engendrar, a partir de um padrão único, uma infinidade de práticas (Fabiani, 2016).
Nesse sentido, habitus como habit-forming-force refere-se a uma noção rígida e de aplicação limitada. A teoria da prática, elaborada por Bourdieu, constituiria a síntese poderosa de uma teoria da ação, centrada na interiorização precoce de um sistema de disposições, e sua eficácia e durabilidade dariam conta de todos os tipos de atividades.
Segundo Bourdieu:
Os condicionamentos associados a uma classe particular de condições de existência produzem habitus, sistemas de disposições duráveis e transponíveis, estruturas estruturadas predispostas a funcionar como estruturas estruturantes (...). (Bourdieu, {1980} 2009, p. 87, grifos do original)
Vale ressaltar ainda que tal conceito passou por algumas inflexões na obra de Bourdieu. Se no livro O senso prático ({1980} 2009) o autor define a noção de forma mais rígida e fechada, em várias outras ocasiões, como nos livros Réponses {1992}, Razões Práticas ({1994} 1996) e Meditações Pascalianas ({1997} 1998), sobretudo, revisita o uso anterior para uma versão mais ampliada. Por exemplo, a noção de habitus clivado passou a existir na obra de maturidade do autor, visando a explicar o descompasso, sempre considerável, entre as relações primeiras com o mundo social e a trajetória completa dos indivíduos. Se o conjunto de estratégias continua a ser reenviado a uma unidade de um princípio unificador, o habitus revisitado seria caracterizado pela heterogeneidade e multiplicidade que se ajustaria a um grau variável de consciência. Uma dialética entre disposições e ocasião se efetuaria em cada indivíduo. O habitus, de acordo com a circunstância, perderia seu automatismo. Concordando com Fabiani (2016), esse aprimoramento seria menos uma fragilidade do que um maior poder analítico atribuído ao conceito.
Contudo, julgo que a proximidade entre os autores não se reduz a definições relativas aos processos de socialização grupal ou individual. Tendo a considerar, como Déchaux (1993), que os quadros de análise dos dois sociólogos se avizinham e, portanto, forjam noções semelhantes. Ademais, creio que a aproximação entre eles pode se realizar pelo eixo dos processos e/ou mecanismos de dominação social, estratégias no interior das quais observamos as condições de possibilidade de mudanças ou reprodução da ordem, a partir do processo socializador de um habitus.
É sabido que os autores desenvolveram pesquisas em que as escalas de observação sempre foram distintas. Elias, numa perspectiva de longa duração de quatro séculos, observa o ritmo lento e tenso, apesar de constante, de mudanças do comportamento. Bourdieu, partindo de realidades empíricas contemporâneas, traça o desenvolvimento oculto de uma dominação simbólica, essa tributária de uma composição de disposições e representações sociais. Fruto de uma educação homeopática, as disposições de habitus, em ambos os autores, são responsáveis pelo sentido evidente do mundo social, base pela qual se permite o ocultamento do caráter arbitrário das construções sociais.
Habitus, nomus, identidade e/ou cultura são formas de expressar a capacidade integradora das doxas, das crenças e dos consensos sociais, em ambos os autores.
No caso do habitus como noções paralelas à de identidade e à de cultura, seria possível afirmar que os autores desenvolvem uma ideia comum sobre a integral natureza social do homem. Em ambos a vocação teórica, empírica e analítica da noção se faz presente, pois revela a mediação entre mundo mental e social, entre indivíduo e sociedade.
Citando essas ideias em Elias:
(...) A natureza profundamente arraigada das características nacionais distintivas e a consciência da identidade - nós nacional estreitamente ligada a elas podem servir de exemplo ilustrativo na medida em que o habitus social do indivíduo fornece um solo em que podem florescer as diferenças pessoais e individuais. A individualidade de determinado inglês, holandês, sueco ou alemão representa, em certo sentido, a elaboração pessoal de um habitus social - e nesse caso, nacional, comum. (Elias, {1987} 1994a, p. 172, grifos do original)
Do ponto de vista de Bourdieu,
(...) Precisamos de construir uma teoria materialista capaz de retomar ao idealismo (...) “o lado ativo” do conhecimento prático que lhe foi abandonado pela tradição materialista. Tal é a função da noção de habitus que restitui ao agente um poder gerador e unificador, construtor e classificador, lembrando ao mesmo tempo que essa capacidade de construir a realidade social, ela é socialmente construída não é a de um sujeito transcendental, mas a de um corpo socializado, investindo na prática princípios organizadores socialmente construídos e adquiridos no decorrer de uma experiência social situada e datada. (Bourdieu, {1997} 1998, p. 120, grifos do original)
No que se refere ao primado do passado, as disposições adquiridas numa relação primeva com o mundo, os sociólogos explicam essa força, a partir das posições ou das formas de ser, agir e pensar em configurações ou campos sociais. Não obstante a natureza plástica do conceito, considerada por ambos, insistem em historicizá-lo. Como alertou Elias,
(...) O habitus social, e, portanto, a camada desse habitus que constitui o caráter nacional, certamente não é um enigma. Como formação social, ela é, à semelhança da língua, sólida e firme, mas também é flexível e está longe de ser imutável. (Elias, {1987} 1994a, p. 171, grifos do original)
Ou na mesma direção, como Bourdieu afirmou15
Como não ver que o grau em que um habitus é sistemático (ou, pelo contrário, dividido, contraditório), constante (ou flutuante ou variável), depende das condições sociais da sua formação e do seu exercício, e que pode e deve, portanto, ser medido e explicado empiricamente? (Bourdieu, {1997} 1998, p. 54, grifo do original)
Em ambos, Elias e Bourdieu, perpassa uma imagem de espaço social fortemente estruturado e hierarquizado de acordo com o volume de bens em disputa. É espaço de posições no seio do qual se desenvolvem relações de luta pelo monopólio, pela aquisição ou pela proteção de um bem. Seja o prestígio e/ou o status na sociedade de corte ou a posse de um capital cultural, nas sociedades capitalistas, trata-se sempre da competição de uma propriedade, material ou simbólica, tendo em vista uma forma de dominação legítima. Nessa direção, é significativo salientar que, para eles, o poder não é um atributo dos indivíduos, mas sim relativo às posições que ocupam na organização social. Baseadas em relações de sentido, as relações de dominação resultariam de uma construção arbitrária de valores sociais.
Citando Elias,
O poder não é amuleto que um indivíduo possua e o outro não; é uma característica estrutural das relações humanas - de todas as relações humanas. (Elias, {1970} 1999, p. 81, grifo do original)
No caso de Bourdieu,
Deixando de se encarnar em pessoas (...) o poder diferencia-se e dispersa-se(...); não se realiza e não se manifesta senão através de todo um conjunto de campos unidos por uma verdadeira solidariedade orgânica (...). Mais precisamente, exercer-se de maneira invisível e anônima, através das ações e reações(...). (Bourdieu, {1997} 1998, p. 87-88, grifos do original)
Dessa forma, os autores qualificam a dinâmica das relações sociais como uma configuração e/ou um campo, em que os agentes, em constante interdependência, disputariam formas de distinção. Vista como espaço de tensão e equilíbrio de forças, a sociedade é compreendida também como lugar de aprendizado e cumplicidade entre os parceiros em disputa. Trata-se então de uma compreensão relacional dos grupos em que ação e reação social estão intimamente articuladas.
Outro aspecto que aproximaria o conceito de habitus em Elias e Bourdieu estaria na sua natureza cognitiva. Diferentemente de Déchaux (1993), creio que, além de ideias e conhecimentos, o habitus regula o conjunto de uma economia psíquica. Ora instância de controle, ora um conjunto de disposições cognitivas e motoras, o habitus, em Elias e Bourdieu, traduz uma sorte de autocontroles que os agentes se impõem, produto das relações de interdependência social.
Cabe lembrar que, como categoria do pensamento, ora consciente ora inconsciente, Elias considerou a categoria tempo como parte integrante do habitus social dos indivíduos.
Nas palavras de Elias,
Essa consciência sumamente elaborada e implacável do tempo, própria dos membros das sociedades mais diferenciadas e mais complexas, e que constitui um componente de seu habitus social, não é mais surpreendente, portanto, do que a capacidade que tinham os membros dos grupos de caçadores (...). (Elias, {1984} 1998a, p. 116)
Nesse sentido, tanto para o sociólogo alemão como para o sociólogo francês, o mundo social, fortemente estruturado, reflete uma ordem que é produto da correspondência entre seus diferentes agentes, por meio de um habitus. Este é um operador analítico que constrói a ordem e as instâncias de ajustamento. Seria importante observar ainda que, buscando qualificar a dinâmica consensual e de evidência do funcionamento das sociedades, Elias e Bourdieu fazem uso de metáforas que se aproximam. Isto é, a analogia do relógio utilizada por Elias, em seu livro Sobre o Tempo ({1984}, 1998a), é expressiva e está diretamente relacionada à metáfora usada por Bourdieu em seus escritos em O senso prático (Bourdieu, {1980} 2009), acerca da imagem da vida social a partir de uma orquestração sem maestro. Em outras palavras, uma ordem autoproduzida de ser, agir, pensar e sonhar pela correspondência do habitus.
Em Elias, mais especificamente
Entre outros exemplos, citemos a formação da consciência moral, das modalidades de controle das pulsões e afetos numa dada civilização, ou o dinheiro ou o tempo. A cada um deles correspondem maneiras pessoais de agir e sentir, um habitus social que o indivíduo compartilha com outros e que se integra na estrutura de sua personalidade (...). (Elias, {1984} 1998a, p. 19)16
E, agora em Bourdieu,
[Habitus] como princípios geradores e organizadores de práticas e de representações que podem ser objetivamente adaptadas ao seu objetivo sem supor a intenção consciente de fins e o domínio expresso das operações necessárias para alcançá-los, objetivamente “reguladas” e “regulares” sem em nada ser o produto da obediência a algumas regras e, sendo tudo isso, coletivamente orquestradas sem ser o produto da ação organizadora de um maestro. (Bourdieu, {1980} 2009, p. 87, grifos do original)
No que se refere às semelhanças dos autores em suas percepções sobre habitus e comportamento, baseando-se em Pascal, Bourdieu ({1997} 1998) afirma que o costume é uma autoridade e se transforma em lei de maneira oculta e velada. A força do costume legitima arbitrariamente o uso da força mesmo quando ela não é utilizada. Regidos por uma lógica ou um sentido de jogo, seus participantes não se apercebem que estão agindo conforme o que está estabelecido. Portanto, seria possível afirmar que o sentido comum é um sentido que associa evidências partilhadas por todos e assegura um consenso primordial sobre o sentido do mundo tanto no aspecto cognitivo como no comportamental.
Elias concordaria com essas proposições ao afirmar que,
Além disso, os símbolos linguísticos que se desenvolvem através do uso que um grupo humano faz deles não se reduzem a sua função de meios de comunicação. Eu gostaria apenas de lembrar aqui que, no meio humano, os símbolos especificamente sociais adquiriram uma função de meios de orientação e, portanto, de conhecimento. (Elias, {1984} 1998a, p. 20)
Segundo Bourdieu ({1993} 1999), a illusio17 é, pois, uma adesão visceral inconsciente, uma forma de autocontrole que se realiza na rotina e está nas coisas que se faz por sua evidência e verdade. Tendo a propriedade (biológica) de ser aberto ao mundo, o agente social está suscetível de ser condicionado pelo mundo, moldado pelas condições materiais e culturais de existência em que se está colocado desde a origem; um processo de socialização e controle das pulsões do qual a própria individuação é produto, forjando a singularidade do eu nas e pelas relações sociais.
Sem a intenção de reduzir a grandeza dos autores a estas observações, seria relevante destacar também a aproximação entre eles a partir do caráter arbitrário dos sistemas simbólicos na medida em que, por serem evidentes e verdades sociais construídas, conseguem mascarar a coerção homeopática e inconsciente dos seus consensos.
Diferentemente de Émile Durkheim (2009), Elias e Bourdieu consideram os sistemas simbólicos (como a linguagem, a religião e/ou a ciência) não apenas como instrumentos do conhecimento da vida social e ou ferramentas que permitem a comunicação de sentidos entre os indivíduos, como apontei acima. Os sistemas simbólicos, por servirem a esses domínios, podem também cumprir um papel ideológico na medida em que a função lógica de ordenação do mundo pode se subordinar à criação de divisões e às hierarquizações sociais (Elias, {1969} 2001a; Bourdieu, 1989).
Dessa forma, o conceito de habitus e seu processo de construção oculto e homeopático revela uma peculiaridade dos universos simbólicos e morais que, produzidos, reproduzidos pelos grupos e interiorizados por eles e pelos indivíduos, podem ser potenciais elementos de uma dominação simbólica - e, em última instância, uma violência simbólica. Em outras palavras, uma violência branda e sutil, desconhecida e oculta de formas de poder, responsável pela manutenção de uma estrutura social arbitrária. Raciocínio original que denuncia as articulações entre produção cultural e dominação política em ambos os autores (Elias e Scotson, {1965} 2000; Bourdieu, 1982a; Setton, 2012).
Por fim, gostaria de concluir essas ponderações com considerações acerca do difícil processo de se socializar, sinalizado por ambos os sociólogos. Ou seja, para eles, a ação de se adaptar ao mundo a partir da renúncia aos desejos é sempre conflituosa e tensa. Elias e Bourdieu nos trazem reflexões próximas das experiências de sofrimento e dor de se autocontrolar, de agir conforme as expectativas do mundo exterior, num movimento pré-reflexivo.
Vejamos em Elias um excerto expressivo,
(...) o controle mais complexo e estável da conduta passou a ser cada vez mais instilado no indivíduo desde seus primeiros anos, como uma espécie de automatismo, uma autocompulsão à qual ele não poderia resistir, mesmo que desejasse. As teias de ações tornou-se tão complexa e extensa, o esforço necessário para comportar-se “corretamente” dentro dela ficou tão grande que, além do autocontrole consciente do indivíduo, um cego aparelho automático de autocontrole foi firmemente estabelecido. Esse mecanismo visava a prevenir transgressões do comportamento socialmente aceitável mediante uma muralha de medos profundamente arraigados (...). (Elias, {1939} 1993, p. 196, grifo do autor)
E, agora em Bourdieu,
(...) disposição é exposição. É porque o corpo é (em graus desiguais) exposto, posto em jogo, em perigo no mundo, confrontado com o risco da emoção, da ferida, do sofrimento, por vezes da morte, e portanto, obrigado a levar a sério o mundo (e nada é mais sério que a emoção, que chega ao mais fundo dos dispositivos orgânicos)que se encontra em condições de adquirir disposições que são elas próprias abertura ao mundo, quer dizer às próprias estruturas do mundo social cuja forma incorporadas elas são. (Bourdieu, {1997} 1998, p. 124)18
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O objetivo deste artigo foi apresentar aproximações e distanciamentos teóricos entre os autores Norbert Elias e Pierre Bourdieu a partir do conceito de habitus. Para desenvolver o argumento, inicialmente, expus o percurso acadêmico dos autores. Em seguida, discorri sobre o componente cronológico do uso do conceito de habitus, dedicando-me a ponderar sobre seu caráter formador. Por último, ocupei-me de uma reflexão que aborda as semelhanças sobre a dinâmica arbitrária de funcionamento do mundo social, a partir da correspondência entre habitus grupal e individual.
Após o exercício delineado acima, foi possível evidenciar alguns ganhos e avanços. Poderia afirmar que alguns resultados positivos e esclarecedores foram proporcionados. Ou seja, em primeiro lugar, demonstrei que os autores, ainda que com projetos sociológicos distintos, assemelham-se, sobretudo no que tange a uma construção epistemológica sobre o funcionamento do mundo social e suas relações com a construção subjetiva dos indivíduos. Um processo dialético de constituição das sociedades, em sua versão institucional e/ou individual.
Mais do que isso, não foi difícil afirmar que ambos partilham de uma mesma definição sobre o conceito de socialização e seus processos ocultos de inculcação, controle e dominação. Para os interesses desta discussão, cumpre colocar que o habitus é um sistema ou um conjunto de disposições culturais, forjadas ao longo da experiência de cada indivíduo, portanto, devedor e resultante de um processo de socialização. Ainda que tenha sido usado de maneira esparsa e sem aprofundamento entre os sociólogos e antropólogos mais renomados,19 demonstrou-se que foi Bourdieu quem deu uma nova e original roupagem ao conceito de habitus e quem fez uso dele de forma sistemática. No que tange ao conceito de socialização, usado de maneira pouco evidente por ambos os autores, sempre esteve presente na construção de seus argumentos. Concordando com Fabiani (2016), avalio que, desde meados do século passado, tal noção foi aos poucos abandonada, em função de seu aporte muitas vezes funcionalista, levando-a a um certo ostracismo (Parsons, 1973a, 1973b; Fabiani, 2016).
Em segundo lugar, creio que a reflexão realizada revelou também conexões entre os sentidos dos processos civilizadores e os processos socializadores entre os autores. Ambos são processos simultâneos de incorporação, mediação, aprendizado e transmissão de um conjunto de normas de comportamento, ordenadoras das maneiras de ser, agir, pensar e sonhar dos indivíduos. Habitus e socialização seriam categorias analíticas capazes de desvelar as relações indissociáveis entre indivíduo e sociedade. Isto é, tais afirmações demonstraram o caráter cognitivo, comportamental e afetivo contido nas noções. São processos que socializam e individualizam os sujeitos, suas estruturas de personalidade ou habitus.
Em outras palavras, como as discussões acima atestam, evidenciou-se ainda que Norbert Elias e Pierre Bourdieu designam como habitus o que a sociologia clássica nomeia socialização, distinguindo diversas formas de aprendizagem, entre elas as primárias e as formas posteriores de socialização. Tanto para Elias como para Bourdieu, habitus se inscreve na linha dos conceitos intermediários que preenchem a mediação entre o objetivo e o subjetivo, entre o individual e o institucional. Habitus seria um retorno às experiências socializadoras passadas em disposição para o presente (Fabiani, 2016).
Não obstante, reduzir o habitus a uma interiorização de normas seria injusto, para ambos os sociólogos, pois eles sempre fugiram do postulado normativo. Estavam comprometidos com o projeto sociológico acerca da incorporação subjetiva, dialógica, homeopática e inconsciente de disposições de cultura.
Considero, enfim, que muito ainda se poderia afirmar sobre os autores. Infelizmente, os limites impostos pela natureza deste texto me impedem de alongar a discussão. Contudo, valeria uma última ponderação. Neste exercício aproximativo, descrevi percursos epistemológicos e quadros de pensamento que dialogam com facilidade. Mais do que isso, os autores se reforçam porque somam esforços auxiliando na recuperação e na revisitação da teoria dos processos de socialização, no interior da sociologia da educação.
Porém, julgo que o trabalho apenas se inicia, dado que a releitura dos autores me permitiu identificar outras similitudes. Aliás, estas seriam considerações para uma próxima oportunidade.