INTRODUÇÃO
O Brasil é um país multicultural, sendo, por isso, notável a presença de diversas culturas no contexto escolar. Essa configuração aponta a necessidade de se promover uma educação que valorize os vários grupos culturais que adentram esse espaço. Com relação a essa tarefa, no contexto da educação brasileira há inúmeros desafios a serem superados para que, no confronto entre diferentes sujeitos, culturas e saberes, haja a inclusão, e não a segregação ou o silenciamento.
Entre esses grupos tão singulares na população brasileira, situam-se os descendentes de pomeranos, que conservaram sua língua materna e cuja presença é marcante em Santa Maria de Jetibá, Espírito Santo, bem como em outros municípios desse e de outros estados brasileiros em que se estabeleceu esse grupo, hoje considerado como povo tradicional (Brasil, 2007).
Com base nessas informações, apresentam-se neste texto algumas reflexões sobre a diversidade linguística de práticas docentes em comunidades pomeranas nas quais crianças e professores(as) bilíngues protagonizam o Programa de Educação Escolar Pomerana (PROEPO), criado em 2005 em municípios capixabas com forte presença dos descendentes de pomeranos.
Parte-se de uma breve contextualização sobre o povo tradicional pomerano, exposta na seção intitulada “Pomeranos: um povo plurilíngue”, problematizando, em seguida, a permanência de sua língua materna e os direitos a ela concernentes. Segue-se destacando as práticas docentes propriamente ditas, as quais já foram tratadas em pesquisas em uma abordagem qualitativa (Fichtner et al., 2013), sobre a educação escolar desse povo. Nos apontamentos finais destacam-se aspectos que ainda carecem de atenção nos estudos.
POMERANOS: UM POVO PLURILÍNGUE
A partir do decreto 6.040/2007 (Brasil, 2007), os pomeranos foram reconhecidos como um povo tradicional. Esse grupo conta com aproximadamente 300 mil descendentes no território brasileiro, dos quais a maioria está no Espírito Santo, onde estimativas dão conta de que eles somam 150 mil (Jacob, 2012).1 A partida da Pomerânia2 rumo ao Brasil ocorreu no século XIX. Em 18 de janeiro de 1858, desembarcaram em São Lourenço do Sul, Rio Grande do Sul; ao Espírito Santo, chegaram em 1859; a Santa Catarina, em 1860 (Weimer, 2005).
O maior patrimônio cultural imaterial dos pomeranos é a língua: o pomerano (Tressmann, 2005). Conforme Weinreich (1970apudBremenkamp, 2014, p. 66), essa é uma “língua de imigração que venceu a Lei da Terceira Geração”, em um país onde, ao longo de séculos, a começar com o decreto do Marquês de Pombal em 1758, o Estado negou, oficialmente, a diversidade de línguas (Almeida, 1997; Garcia, 2007). Portanto, o pomerano ainda é uma língua viva (Bahia, 2000; Foerste e Schütz-Foerste, 2017; Tressmann, 2005), sendo utilizado à mesa, durante as refeições e celebrações tradicionais diárias (orações, cânticos, leitura da Bíblia, narrativas de memória, realização de tarefas escolares, escrita e/ou leitura de cartas ou redação de diários etc.); no trabalho na lavoura; em momentos de culto e festas (batizado, confirmação, casamento, festa da colheita etc.); em trabalhos coletivos e mutirões (preparativos de casamento, roças, construção de pontes e casas, abertura de clareiras, reforma de escolas e postos de saúde etc.); comércio e repartições públicas; reuniões diversas etc.
Fenômeno a ser destacado entre esse povo é o plurilinguismo. Na década de 1970, a visita de Klaus Granzow às comunidades pomeranas brasileiras (Santa Maria de Jetibá e Vila Pavão, ambas no Espírito Santo) ficou registrada no livro Pommeranos unter dem Kreuz des Südens: Deutsche Siedler in Brasilien (Granzow, 1975), no qual ele descreve contatos linguísticos e perda da língua entre os pomeranos, problemáticas pouco exploradas em pesquisas. O autor observou ainda que, à época, os mais idosos falavam pomerano, alemão e português. Três décadas depois, Bremenkamp (2014) destacaria que 85% desse grupo eram bilíngues e apenas cerca de 13%, a maioria mulheres, ainda mantinham comunicação nesses três idiomas.
Conforme debates travados durante o XI Deutscher Lusitanistentag (XI Congresso Alemão de Lusitanistas), realizado em 2015 na Universidade de Aachen, Alemanha, os contatos entre línguas estão relacionados a processos de imigração e exílio. É o caso do pommerisch e do hunsrükisch, falados no Brasil por imigrantes germânicos e cujos pontos em comum fortalecem debates acadêmicos e lutas coletivas por políticas públicas de valorização da diversidade linguística e direitos sociais.
Nas universidades, observa-se crescente interesse pelo registro de fenômenos relacionados às línguas germânicas no Brasil. Nessa perspectiva, Siller (2016) discute culturas das infâncias entre imigrantes bilíngues, destacando as preferências de uso das línguas entre crianças. Na sala de aula e em outros espaços da escola, a autora observou que as crianças faziam a tradução do português para a “língua pomerana, bem baixinho, quase cochichando nos ouvidos umas das outras [...] iam mesclando em suas falas palavras e até mesmo frases [...]” em sua língua materna, tais como “grousfåter - vovô; grousmuter - vovó; rijs - arroz; leepel - colher; kum - pote; pup - boneca; stil- silêncio; schaulleirisch - professora; muter - mamãe; fåter - papai; schaul - escola” (Siller, 2016, p. 99).
PERMANÊNCIA DA LÍNGUA POMERANA: DIVERSIDADE E DIREITOS LINGUÍSTICOS
A permanência da língua pomerana no cenário nacional constitui-se um paradoxo, uma vez que o povo pomerano sofreu segregação de forma recorrente por parte do Estado brasileiro (Tressmann, 2005). Para alguns, a relação com a terra e o luteranismo desses imigrantes são considerados fatores determinantes para que a língua não se perdesse (Rölke, 1996).
Estudos antropológicos e linguísticos, todavia, podem contribuir para se compreender que, em contato com outras culturas e línguas, os povos pomeranos vivenciam processos de fortalecimento identitário, inclusive em diálogos interculturais com outros (Foerste et al., 2016).
Em encontros interculturais, observa-se, ainda, a unificação do povo pomerano em suas lutas por território com os outros povos e comunidades tradicionais no Brasil, por meio de organizações coletivas, pois, “assim como todos os povos indígenas e os ciganos, por exemplo, [os pomeranos] somos reconhecidos publicamente por falarmos uma língua minoritária”, explicou a professora Vanilda Haes Dettmann, no mesmo evento.3
O processo de escolarização do povo pomerano, no entanto, configurou-se, por longas décadas, como um instrumento de negação de seus direitos linguísticos. Em sua prática docente em contextos bilíngues em que o pomerano é a língua mais usada, desde os anos de 1980, Weber (2019) deparou-se com situações desafiadoras nesse sentido. Uma de suas investigações foi realizada em escolas de Melgaço e Domingos Martins (ambas no Espírito Santo), comunidade na qual 90% dos habitantes ou mais não falavam português. Ali as crianças ingressavam na escola falando apenas o pomerano. Diante de tal situação, os professores sentiam-se despreparados, o que contribuía para o fracasso na aprendizagem. Estudos assim põem em questão o mito do monolinguismo brasileiro.
Na década anterior, em reconhecimento à diversidade cultural brasileira, a Constituição Federal de 1988, em seus artigos 210 e 215, estabeleceu o direito do cidadão à formação básica, respeitando-se e estudando-se identidades em âmbitos local, regional e nacional, até mesmo com valorização da língua materna de grupos étnicos minoritários (Brasil, 1988), entre as quais estão as línguas de imigração, como é o caso do pomerano. A lei n. 9.394/1996 e o decreto n. 7.387/2010 (Brasil, 1996, 2010) reafirmam o direito ao ensino intercultural e bilíngue, representando uma conquista das lutas a favor de políticas públicas de diversidade linguística na escola.
Em 2005, com a implantação do PROEPO em municípios do Espírito Santo nos quais a presença dos pomeranos é marcante, emergiram dúvidas sobre se o espaço escolar, unicamente, teria o poder de garantir a continuidade e a manutenção de uma língua minoritária. Mesmo assim, reivindicou-se a necessidade de construção de bases para a salvaguarda da cultura e língua pomeranas.
Diálogos entre a sociedade civil organizada e setores da universidade contribuíram para ampliar as reflexões, que levaram à cooficialização do pomerano em alguns municípios onde o PROEPO foi implantado. À época, o coordenador geral do Instituto de Investigação e Desenvolvimento em Política Linguística, Gilvan Müller Oliveira, ressaltou que “cooficializar uma língua não se traduz em ameaça dos direitos dos não pomeranos. Antes, pelo contrário, é uma riqueza e uma oportunidade para que todos se tornem bilíngues”.4
Além disso, em Santa Maria de Jetibá, mesmo antes da cooficialização, os órgãos públicos atendiam à população tanto em português quanto em pomerano, como ocorre há algum tempo em bancos, hospitais, lojas etc. Calvet (1996) e Spolsky (2004) argumentam que a língua, como direito do cidadão, requer atenção do Estado, com incentivos por meio de políticas públicas, sobretudo quando se trata de línguas minoritárias. Assim, tornar a língua pomerana oficial contribuiria efetivamente para o fortalecimento e sua manutenção, assegurando sua vitalidade e permanência para as gerações futuras, pois cada língua é sempre um bem cultural de interesse coletivo e comunitário (Calvet, 2002).
Em Santa Maria de Jetibá, a cooficialização da língua pomerana é tratada na lei n. 1.136/2009, que visa a promover diversidade, direitos linguísticos, cidadania, inclusão e políticas de plurilinguismo, como dimensão articuladora de lutas por direitos sociais de populações minoritárias (Oliveira, 2015; Silva, 2016). A partir disso, o município assumiu obrigações para implantar políticas linguísticas públicas, com incremento da educação escolar bilíngue (Dettmann, 2014; Hartuwig, 2011; Küster, 2015). A Figura 1 mostra como o bilinguismo na comunicação em espaços coletivos se intensificou com a implantação do PROEPO e a cooficialização do pomerano.
Silva (2016) observa que há uma tendência de cooficialização de línguas minoritárias no Brasil, o que pode representar conquistas de direitos linguísticos por etnias até então invisibilizadas. As primeiras línguas a serem cooficializadas foram o nhneengatu, baniwa e tukano, em São Gabriel da Cachoeira, Amazonas, por meio da lei n. 145/2002. Em relação à língua pomerana, depois de Pancas, sua cooficialização deu-se também em outros municípios capixabas (Laranja da Terra, Santa Maria de Jetibá, Vila Pavão, Domingos Martins e Itarana), bem como em Canguçu, no Rio Grande do Sul, e Pomerode, Santa Catarina.
CULTURA E LÍNGUA POMERANAS NA PRÁTICA DOCENTE
A educação brasileira enfrenta muitos desafios, principalmente quando se trata dos diferentes grupos sociais campesinos (Dettmann, 2014), como indígenas, quilombolas, ribeirinhos etc., que constituem povos e comunidades tradionais. No caso dos indígenas e pomeranos, especificamente, tais desafios são ainda maiores, pois esses grupos possuem línguas diferentes da oficial.
Em 2005, municípios do Espírito Santo com marcante presença de pomeranos (Santa Maria de Jetibá, Domingos Martins, Laranja da Terra, Pancas e Vila Pavão) uniram-se em torno da criação do PROEPO, com o qual se busca dar respostas oficiais aos desafios enfrentados na escolarização dos pomeranos ao longo do tempo (Dettmann, 2014; Hartuwig, 2011; Küster, 2015).
No desenvolvimento do PROEPO, os municípios receberam consultoria linguístico-antropológica, prestada pelo etnolinguista Ismael Tressmann. Desde então, materiais bilíngues diversos são produzidos (Figura 2).
Tressmann6 afirma que “este programa concretiza-se a partir de diálogos - muitas vezes marcados por fortes tensionamentos - entre o poder oficial e a sociedade civil organizada,7 para superar o fracasso das crianças pomeranas no ensino oficial”. Em encontro específico, professores(as) que atuam no PROEPO discutiram, por exemplo, o currículo escolar que interessa ao povo pomerano, para que seus filhos não abandonem sua cultura, língua e comunidade.
Análises8 baseadas nos documentários A estrada silvestre (2010) e Fala, pomerano, fala (2017), produções posteriores à implantação do PROEPO estimularam problematizações sobre políticas de diversidade linguística, evidenciando o fortalecimento da língua pomerana. Destacam-se, a seguir, as práticas de duas professoras pomeranas com crianças de mesma ascendência, retratadas na primeira produção.
No documentário, a professora Marineuza Plaster Waiandt lê para crianças da educação infantil uma história em língua pomerana escrita e ilustrada por ela mesma. Em pomerano, ela diz: “ik måk ales up pomerisch språk mit dai klainer kiner, dåweegen, dat is eer muterspråk un feel mål forståe gans wënig, wat up brasiliånisch”.9 Destaca-se, no Quadro 1, como a prática da professora aparece em alguns diálogos do documentário.
A prática docente bilíngue de Eleusa Braun Loose, cujo trabalho também é retratado em A estrada silvestre, pode ser verificada em duas situações: diante dos(as) alunos(as) de uma sala multisseriada da primeira fase do ensino fundamental e em uma brincadeira de roda, quando canta e interage com as crianças em pomerano e em português. No documentário, ela diz: “eu sempre falo em pomerano e português com eles. Assim, valorizo a língua que falamos em casa e também ensino o português”. Nos diálogos destacados no Quadro 2, pode-se observar como isso acontece, até mesmo com a alternância entre as línguas.
Fonte: A estrada silvestre (2010). Elaboração dos autores.
O documentário também registra o momento em que a professora Eleusa serve merenda, com produtos típicos da culinária pomerana, como o brood (Quadro 3).10
Fonte: A estrada silvestre (2010). Elaboração dos autores.
O destaque a esses fragmentos torna clara a importância do bilinguismo e da criação do PROEPO para a educação dos pomeranos. No desenvolvimento do programa, as práticas docentes perpassam processos de gestão, produção de materiais didáticos e formação em serviço. Os encontros com os sujeitos das escolas - gestores(as), técnicos(as), professores(as) e alunos(as) - possibilitam reflexões coletivas.
O interesse pela educação pomerana vem crescendo entre os pesquisadores. Diversos estudos retratam avanços nesse campo, indicando também que algumas dificuldades persistem (Benincá, 2008; Dettmann, 2014; Hartuwig, 2011; Koeler, 2016; Küster, 2015; Ramlow, 2004; Siller, 1999, 2016; Weber, 1998). Poucos, no entanto, enfatizaram as práticas dos(as) professores(as), propriamente ditas.
Todavia, um diálogo qualitativo com dimensões da práxis docente, que situe o foco no trabalho em sala de aula, pode contribuir para uma discussão do currículo praticado (Apple, 1989; Freire, 1970, 1996; Giroux, 1986; McLahren, 1997; Sacristán, 2000). Isso destacaria a relevância de projetos escolares plurilíngues que dão a dimensão dos debates sobre diversidade e direitos linguísticos (Appel e Muysken, 1996; Menken e Garcia, 2010; Silva, 2016), favorecendo a problematização sobre a cultura escolar hegemônica universalizante (Forquin, 1993; Sacristán, 2000) e as práticas pedagógicas interculturais emancipatórias.
Desse modo, saberes da prática docente, “baseados [no] trabalho cotidiano e no conhecimento de seu meio” (Tardif, 2012, p. 39), na interação com a diversidade, contato e diálogo intercultural, fortalecem demandas de grupos minoritários por políticas linguísticas (Fornet-Betancourt, 2001; Matras, 2009; Weinreich, 1970). Ainda, potencializam debates sobre a produção de outra educação escolar, fundamentada no diálogo e na polifonia entre as culturas (Bakhtin, 1981), para a superação do mito pombalino do monolinguismo.
Está em discussão, portanto, o direito a uma educação emancipatória na diversidade, que compreenda os educandos como sujeitos históricos, cosmopolitas e plurilíngues, pois, pela “permanente ação transformadora da realidade objetiva, os homens, simultaneamente, criam [e recriam sempre] a história e se fazem seres histórico-sociais” (Freire, 1970, p. 92). Nessa direção, tornam-se relevantes reflexões que possam contribuir para uma educação crítica e intercultural, com propostas que venham a atender às demandas educativas específicas de cada grupo.
Aos pesquisadores do grupo “Culturas, parcerias e educação do campo” interessava produzir dados em situação de ensino, sem descuidar do fato de que, nesses cenários, se legitima a língua portuguesa nos processos de organização, gestão e desenvolvimento de práticas pedagógicas, cuja culminância se dá na sua avaliação (Apple, 1989; Giroux, 1986, 1997; Sacristán, 2000), promovida pelo Estado. Ocorre que em Santa Maria de Jetibá, por exemplo, mais de 50% dos sujeitos falam pomerano e pelo menos outros 30% o alternam com o português (Bremenkamp, 2014; Küster, 2015). Situação semelhante se observa em Domingos Martins e Laranja da Terra.
Diante disso, tornou-se central, nos processos de investigação empreendidos, a forma como os(as) professores(as) planejavam, organizavam, apresentavam e conduziam as atividades em sala de aula, captando se falavam o pomerano, se permitiam às crianças interagir em português, que conteúdos eram abordados, seus métodos de ensino e de avaliação.
Estudo de Hartuwig (2011, p. 157), por exemplo, destaca que os(as) professores(as) observam a satisfação das crianças em falar na escola a língua que utilizam nas relações familiares, mas davam como curto o tempo destinado ao pomerano na escola (50 minutos) (Dettmann, 2014). Em reconhecimento ao tempo reduzido para essa aula, em 2018, o PROEPO passou a funcionar com duas aulas semanais nas escolas municipais de Santa Maria de Jetibá.
No geral, as práticas docentes mostram o esforço para uma educação escolar que respeita e valoriza as especificidades culturais das comunidades locais, tais como costumes, tradições, músicas, língua, cultivo da terra, serviço doméstico, modo de vida, práticas de espiritualidade etc. O professor, nesse sentido, é um intelectual da cultura (Giroux, 1986); com suas práticas, produz outro currículo, mais alternativo, que dialoga com as culturas da escola (Forquin, 1993) e com os saberes dos educandos (Freire, 1970, 1996; Giroux, 1986), problematizando o currículo homogeneizante da cultura escolar.
Para Sacristán (2000, p. 178), esse tipo de ação pedagógica reconhece, valoriza e incentiva a (re)construção permanente do projeto oficial de educação: “qualquer ideia que se pretenda implantar na prática passa pela sua personalização nos professores, isto é, por algum modo de introjeção em seus esquemas de pensamento e comportamento”. Assim, podemos afirmar que o currículo vivido apresenta no seu cerne o protagonismo cultural dos sujeitos do processo de aprendizagem (Freire, 1996; Giroux, 1986), em especial do professor. Diversidade cultural, saberes e modos de falar, portanto, concretizam na práxis docente o que Freire (1970, 1996) denominou de aprender com os outros com autonomia.
O PROEPO favorece práticas docentes alternativas, pois entre seus objetivos estão “introduzir uma educação intercultural bilíngue (pomerano e português)” e “proporcionar aos alunos acesso aos conhecimentos universais a partir da valorização da sua língua materna e saberes tradicionais” (apudDettmann, 2014, p. 51). Com o programa, a educação escolar concretiza o atendimento a direitos linguísticos pela via pública em contextos sociais de diversidade cultural-linguística. Realiza-se nas escolas um projeto pedagógico que favorece ou efetiva, sobretudo na prática do(a) professor(a), a valorização e o fortalecimento da cultura e língua pomeranas.
Diante disso, a pesquisa11 relatada a seguir buscou resposta ao seguinte questionamento: Como as práticas da professora em sala de aula dialogam com a cultura e língua pomeranas? Para tanto, foi pactuada parceria de investigação com a professora Monica Gums Raasch e demais sujeitos da equipe da Escola Municipal de Ensino Fundamental Recreio, situada em comunidade homônima em Santa Maria de Jetibá, majoritariamente pomerana e baseada na hortifruticultura. Procedeu-se à entrevista e leitura dialogada do projeto político-pedagógico (PPP) com a professora e equipe gestora e a observações no contexto escolar, com registros em diário de campo.
PRÁTICAS DOCENTES EM DIÁLOGO COM A CULTURA E LÍNGUA POMERANAS
A língua pomerana é apresentada no PPP como parte diversificada do currículo do ensino fundamental de nove anos. Como disciplina, ela aparece somente nos anos finais. Os aspectos da cultura do povo tradicional pomerano são tematizados pela área de História, conforme Quadro 4.
PRIMEIRO TRIMESTRE | |
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1º ano | Eu e minha família
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2º ano | Eu e a escola
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3º ano | A comunidade em que está inserida a escola
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4º ano | A criança e sua história
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TERCEIRO TRIMESTRE | |
1º ano |
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3º ano |
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Fonte: Baseado na proposta curricular da Secretaria de Educação de Santa Maria de Jetibá (Dettmann, 2014, p. 168). Elaboração dos autores.
Ao dialogar com a docência da professora pomerana por intermédio de seus planejamentos, das observações das aulas e das entrevistas, notou-se em sua prática pedagógica a presença de temas e conteúdos voltados ao objetivo geral do PROEPO. O programa problematiza, sobretudo por meio do trabalho do professor, o estudo dos conhecimentos sistematizados de cunho universalizante, os quais negam os saberes e as culturas locais dos sujeitos da escola.
Pode-se afirmar que o estudo da cultura e língua pomeranas parte de conhecimentos produzidos pelos sujeitos para trabalhar tópicos do currículo oficial. Um dos resultados obtidos com seu desenvolvimento foi a melhora no desempenho escolar, principalmente nos anos iniciais. Provavelmente essa mudança decorre do fato de que, conforme relatado por uma professora no trabalho após a implantação do PROEPO, ao poderem falar pomerano em sala de aula, as crianças veem mais sentido nas atividades escolares (Hartuwig, 2011).
Os planejamentos no âmbito do PROEPO priorizam temas geradores, como a história dos pomeranos; comidas típicas; eventos religiosos (Páscoa, Advento e Natal); festas; meio ambiente; corpo humano; animais etc. As professoras se reúnem em grupos de interesse e também em um grupo único, para elaborar, em pomerano, textos escritos de gêneros diversos, atividades de interpretação, cruzadinhas, calendário, teatro, músicas. Também traduzem textos e narrativas e trocam experiências vividas nas comunidades nas quais trabalham e em que algumas delas também moram.
Sem descuidar da escrita, a oralidade típica entre os pomeranos é enfatizada, com tradução simultânea. Nesse aspecto, muitas vezes, os(as) professores(as) têm dúvidas e recorrem a materiais orientadores do PROEPO, como o Pomerisch-portugijsisch wöirbauk (Dicionário enciclopédico pomerano/português) e o livro de narrativas Upm land: up pomerisch språk (No campo: em língua pomerana) (Tressmann, 2006a, 2006b). Por exemplo, durante os preparativos de Natal, eles tiveram dúvidas sobre a palavra “presépio” - kripe, recorrendo ao dicionário.
As narrativas, músicas e jogos são recorrentes nos encontros de planejamento e, principalmente, nas práticas em sala de aula, sendo os jogos, na opinião da professora Monica, “a melhor forma de trabalhar a realidade”. Os educandos e a professora falam pomerano e português em momentos lúdicos. Frequentemente surgiam dúvidas sobre como certas expressões (dias da semana, meses, estações do ano etc.) podem ser traduzidas para o português e/ou para o pomerano.
PRÁTICAS DE PROFESSORES(AS) POMERANOS(AS)
Como mencionado, até 2017 as aulas de língua pomerana duravam 50 minutos. Com frequência, a escrita bilíngue no quadro e em folhas impressas era utilizada (Figura 3).
Em 2014, quando realizada a investigação, a professora participava do PROEPO havia oito anos e relatou sua satisfação por dar aula de pomerano. Ela mesma domina a língua, e isso facilita aos alunos entender a explicação sobre as atividades. Tal satisfação é perceptível quando ela diz: “eu me sinto muito feliz, porque é uma coisa que realmente eu gosto... de trabalhar com a língua pomerana”. Monica aprendeu o pomerano com a família, como língua materna. Usar essa língua na escola fazia parte de suas práticas, mesmo antes da implantação do PROEPO.
Eu já trabalhava na sala de aula a oralidade... a escrita? Eu escrevia do meu jeito, como dava... até no quadro... Não é igual à escrita que o professor Ismael [Tressmann, etnolinguista que propôs a grafia para o pomerano] passava... Os alunos me entendiam. Escrevia do meu jeito... Eu falava a língua pomerana com os alunos em qualquer hora [...] Então eu pensava assim: “Para que falar o português, se eles falam o pomerano?”. Então, eu brincava com eles na hora do recreio em pomerano, do meu jeito... assim... Mesmo que não era tudo catalogado, as músicas e tudo, mas a gente traduzia e eles adoravam. (professora Monica).
Apesar disso, a docente reconhece a importância da implantação do PROEPO nas escolas.
Ah! Ele trouxe bastante contribuição [...] Passei a ter uma segurança maior, porque uns anos atrás eu ficava meio que, assim... Porque não podia ensinar pomerano, e depois veio esse programa e passou a ter nas escolas, e isso contribuiu muito. Contribui, assim, como eu falei, nas interpretações, nas atividades.
Segundo observou a docente, as crianças têm dificuldade na interpretação de textos por não dominarem a língua oficial no início da escolarização. Nesse contexto, o PROEPO faz a diferença, pois conversar com os alunos em pomerano colabora para que eles interpretem melhor os textos em português.
As crianças que só falam o pomerano em casa sentem uma dificuldade muito grande [...] e aí que é importante a escola falar o pomerano, o professor dialogar com os alunos na língua deles (na nossa, né?). Isso é assim porque em casa e na comunidade, eles (nós, né?) não praticam o português. Eu penso que o aluno também é assim [...]. (professora Monica)
A comunicação com a família em pomerano é uma especificidade linguística presente nas comunidades pomeranas, indicando a necessidade de programas escolares próprios, conforme apontaram estudos já na década de 1990 (Mian, 1993; Siller, 1999; Weber, 1998;), a qual o PROEPO se propõe a atender.
Hartuwig (2011) investigou o programa, posteriormente alvo de estudos realizados também por Dettmann (2014) e Küster (2015), os quais, no conjunto, apontaram que a partir de sua implantação as práticas educativas passaram a considerar a cultura pomerana como conteúdo escolar, com apoio oficial das secretarias municipais de educação dos municípios nele envolvidos.
Além disso, experiências sobre contatos linguísticos promovidas a partir do PROEPO contribuem para “preencher a lacuna entre formação pedagógica e trabalho local” (Hartuwig, 2011, p. 173). Daí a relevância da formação específica e continuada no processo de socialização profissional docente (Foerste e Lüdke, 2003; Foerste, 2005), em que pesquisas sobre bilinguismo pomerano-português e diversidade linguística instituem outro modo de ensinar nas escolas de comunidades com presença do povo pomerano.
Portanto, o PROEPO ajuda a ressignificar aprendizagens escolares dos descendentes de pomeranos, tanto na condição de educandos como de educadores. Como mostra Dettmann (2014), o PROEPO fomenta uma alternativa intercultural de educação, porque fundada no diálogo, conforme Forquin (1993), entre cultura escolar e cultura da escola.
Em sua prática, a professora cuja atuação foi alvo da investigação aqui relatada recorre à língua pomerana de forma bastante espontânea, não somente durante a aula de pomerano. Quando as crianças querem saber algo ou compartilhar experiências do seu dia a dia, a conversa flui, seja em língua pomerana ou em português.
Eu uso aquela uma aula [semanal] de pomerano [...] só naquilo [somente voltado para esta língua]... Mas no decorrer das aulas... nas outras áreas, quando precisa (quase sempre, né?), a gente fala pomerano também... Os alunos... eles querem saber, entender tudo. A gente vê isso no semblante deles... nos olhos... Eles brilham, quando as crianças entendem tudo que a gente tá falando [...] É aula de arte: “Ah, pinta de vermelho!”. “Como é vermelho em pomerano, professora?”. “Roud, wimas roud an vawa (Vermelho, vamos pintar de vermelho)”... Coisa assim... É quando tem necessidade mesmo... (professora Monica)
A prática docente também dialoga com os pomeranos da comunidade na produção do projeto pedagógico escolar.
Eu pesquiso, vou atrás da minha mãe e de outros falantes mais velhos da comunidade, que têm muito conhecimento, né? [vocabulário, formas de formular períodos complexos, narrativas etc.]. Meus tios e minhas tias, todos falam só o pomerano... Então eles passam muito para mim. (professora Monica)
Entretanto, a professora fala com pesar sobre o tempo estabelecido para o desenvolvimento de seu trabalho em sala de aula: “Pena que é... assim... Pouco tempo na sala de aula com os alunos. A gente fala diariamente, mas é pouco” (professora Monica). Para ela, esse tempo é insuficiente para realizar atividades de leitura, interpretação e produção textual a contento. Diante dessa constatação, é preciso se ter em conta que um dos objetivos do PROEPO é “desenvolver nos alunos a habilidade de leitura e escrita na língua pomerana” (apudDettmann, 2014, p. 51).
Assim, questiona-se: Como trabalhar conteúdos complexos das disciplinas escolares, da assim denominada por Forquin (1993) cultura escolar, se o tempo destinado para a prática de leitura, interpretação e produção textual no pomerano é tão exíguo? Ao refletir sobre seu trabalho, a professora Monica considera que, em virtude da curta duração, a aula de pomerano “é só uma sementinha que se planta [...]. O aluno conclui o 9º ano com apenas alguns conhecimentos de escrita da língua pomerana”, situação, que, conforme dito, mudou em 2018 nas escolas municipais de Santa Maria de Jetibá, que passaram a ter duas aulas semanais pelo PROEPO.
A sala de aula dispõe de muitos materiais visuais em língua pomerana escrita. (Figura 4). Ali são vistos cartazes com o nome dos ajudantes do dia, numerais, aniversariantes, estações do ano, clima, cumprimentos, oração; nome dos animais; textos curtos; estante com muitos livros de histórias ilustrados etc.
Na realidade, a professora e os(as) alunos(as) não vivenciam o pomerano somente nas aulas. A escola, em seu todo, estimula a língua pomerana quando:
observa-se que nos corredores há cartazes e murais com informações bilíngues;
as atividades comemorativas e eventos realizados têm convites, cartazes, textos impressos etc. em português-pomerano;
professores(as) e equipes técnica e gestora, com participação das crianças e moradores da comunidade, realizam apresentações em língua pomerana (música, esquetes, contação de causos, leituras, orações etc.).
Assim, com base nas interações com os espaços educativos da escola (pátio, corredores, biblioteca, salas de professores, de aula etc.) e interlocução com a professora, compreendeu-se que o PROEPO trouxe contribuições às práticas docentes bilíngues. Com sua implantação, as experiências da professora pomerana foram reconhecidas e oficialmente incentivadas. A escola sai da “clandestinidade” no uso diário de uma língua de imigração. O PROEPO encoraja professores(as) e alunos(as) a usar sua língua materna com mais liberdade, com menos vergonha e constrangimento.
Nas comunidades locais, o impacto dessa política linguística também se fez sentir. As pessoas em geral falam da importância da língua pomerana.
quando as crianças chegam em casa e falam com os pais, passam para eles o que aprenderam [...] [os pais] passam a valorizar mais a cultura pomerana [...] parece que estávamos desacreditados, mas agora [...] vergonha de falar pomerano? [...] Antes, ouviam com frequência: “ous sprok hät kaine weid” [“o pomerano não tem valor”]... “Pomerano não vai ser mais usado, é proibido na sala de aula” [...] e agora [...] a nossa mente abriu também [...] [estamos trabalhando para] que o aluno entenda que isso é uma cultura bonita e importante em nosso país (e no mundo, né?) [...] Não temos que nos envergonhar da língua de nossos pais, que aprendemos com eles. (professora Monica)
Aqui se desvela uma dimensão relevante do PROEPO, que, por meio da prática docente, vai além da escola. Um dos objetivos do programa refere-se à comunidade: “trabalhar a importância da língua pomerana e o modo de vida camponês como fatores de identidade étnica e cultural” (apudDettmann, 2014, p. 51). Nessa perspectiva, é importante lembrar que, a partir da política getulista, descendentes pomeranos, como outros povos, sofreram perseguições políticas, sobretudo decorrentes do uso de sua língua materna - no caso dos pomeranos, ela era confundida com o alemão.
Ao tematizar aspectos históricos de épocas em que os pomeranos eram perseguidos pelo Estado por motivos linguísticos, a escola contribui para a superação de traumas advindos da proibição das línguas germânicas no Brasil,12 relatados de forma recorrente por pessoas mais velhas. Nesse sentido, o trabalho dos(as) professores(as) do PROEPO abarca mais que o espaço escolar, porque são sujeitos que incentivam não só os(as) alunos(as), mas toda a comunidade, para que as pessoas falem livremente o pomerano em espaços públicos e/ou domésticos. No estudo de Dettmann (2014, p. 138), a professora observou que as pessoas falam em pomerano publicamente: “como o PROEPO contribui para isso? Existem placas de rua e/ou de trânsito, fachadas dos estabelecimentos comerciais, outdoors, folhetos bancários, músicos que cantam na língua pomerana, programas locais de rádio”.
Apesar do reconhecimento de que o PROEPO traz contribuições às práticas dos(as) professores(as) pomeranos(as), sua implantação ficou restrita à rede municipal até 2015, quando, em caráter experimental, uma escola estadual de Santa Maria de Jetibá e outra em Afonso Cláudio incluíram uma aula de língua pomerana no ensino fundamental e médio.
A aula de língua pomerana suscita questionamentos: Por que ensinar um idioma que é falado apenas em algumas localidades? Esse investimento, na visão de alguns, não traria retorno semelhante ao prometido a quem estuda inglês, por exemplo (Dettmann, 2014). Posicionamentos assim demonstram que a língua é considerada mais uma fonte de capital econômico que um elemento do patrimônio cultural imaterial, cujo cultivo contribui para a preservação da diversidade linguística, para a autoafirmação identitária de etnias minoritárias e para a organização coletiva por direitos linguísticos (Bremenkamp, 2014).
Outro ponto que gera polêmica é se essa aula de língua pomerana na escola não seria uma imposição para crianças não pomeranas ou que não falam o idioma em casa. No passado, filhos de descendentes de pomeranos sofriam muito por não falar o português ao ingressar no universo escolar. Entende-se que não há como comparar as duas situações, pois, como destacado, os debates sobre diversidade e plurilinguismo trouxeram contribuições para as práticas curriculares nos últimos tempos.
Antes do PROEPO, a língua portuguesa imperava de forma exclusiva na escola; o currículo oficial pautava-se em pressupostos do monolinguismo. Como assevera Dettmann (2014), uma aula semanal de língua pomerana, mesmo com duração apenas de 50 minutos, passou a ser uma oportunidade para as crianças não pomeranas de terem acesso a vivências de diversidade e contatos linguísticos, como possibilidade para troca de experiências e construção de novos saberes.
Para as crianças de ascendência pomerana, essa aula reforça a ideia de que os pais podem falar na língua pomerana com seus filhos, uma vez que há política pública para promover o pluralismo, diversidade e direitos linguísticos. Essa é uma questão que merece novos estudos, visto que é fundamental entender o que os(as) alunos(as) e suas famílias, de ascendência pomerana ou não, pensam a respeito de projetos pedagógicos que tematizam a cultura e a língua pomeranas.
CONSIDERAÇÕES PARA CONTINUIDADE DAS PESQUISAS
O tema diversidade linguística foi analisado neste artigo com base em práticas docentes em situações em que a língua pomerana é materna, falada dentro e fora do ambiente escolar. Em tais contextos, educandos(as), professores(as) e servidores(as) técnico-administrativos(as) costumam ser bilíngues no português-pomerano, desafiando as escolas a trabalhar dimensões de sua cultura no currículo.
Conforme relataram Weber (1998), Siller (1999, 2011), Hartuwig (2011), Dettmann (2014) e Küster (2015), em comunidades com presença do povo pomerano, nas décadas posteriores à Campanha de Nacionalização de Vargas, foi proibido falar o pomerano. Entretanto, estudos com os quais se estabeleceu diálogo neste artigo, assim como a investigação nele relatada, evidenciam que no Espírito Santo há um movimento crescente para fortalecer processos educativos que incluam questões da língua de imigração na prática pedagógica, sobretudo no que se refere à língua pomerana. Nesse movimento, alguns pontos se destacam:
a criação e implantação do PROEPO;
a formação continuada específica de professores(as);
a articulação de parcerias entre os municípios em que o povo pomerano se faz presente;
a cooficialização da língua pomerana;
a realização de pesquisas, sobretudo em cursos de mestrado e doutorado;
a realização de seminários;
a elaboração de materiais didáticos diversos;
a produção de documentários;
os processos de estandardização, codificação e normalização da língua pomerana;
a cooperação com a UFES, para resgatar a língua alemã no curso de letras;
a possível criação de cursos de língua pomerana em instituições situadas em territórios com a presença do povo tradicional pomerano.
As experiências com o PROEPO estão articuladas à organização de base da sociedade civil, em que professores(as) assumem protagonismo como intelectuais (Freire, 1996; Giroux, 1997). Desafiados pelo trabalho fundamentado em pressupostos da diversidade cultural e linguística, os docentes fomentaram debates sobre o assunto em espaços educativos, destacadamente na escola, o que se fez a partir do decreto n. 7.387/2010, que instituiu o inventário de línguas minoritárias.
Paralelamente, professores(as) e educandos(as) pomeranos(as) relatam que se sentem mais valorizados quando podem falar livremente o pomerano, inclusive na escola. Vê-se, portanto, que o PROEPO contribui para que as práticas de professores(as) pomeranos(as) favoreçam a preservação da cultura pomerana, apesar do pouco tempo determinado para esse fim, em carga horária. Nesse sentido, novos questionamentos se interpõem aos pesquisadores: Como a prática da língua pomerana na sala de aula potencializa enfrentamentos coletivos que invisibilizam a diversidade linguística pelas políticas oficiais do monolinguismo? Como a figura do professor itinerante reproduz uma ideia de que o espaço da aula de pomerano se assemelha ao que as disciplinas de língua estrangeira ocupam no currículo?
Além disso, docentes observam a tendência de direcionar todo o processo de estudo das questões da cultura e língua pomeranas exclusivamente ao(à) professor(a) de língua pomerana. Como promover, então, objetivos de leitura e produção textual nessa língua sem ignorar o processo interdisciplinar das práticas pedagógicas em sala de aula?
Considerando dificuldades e avanços presentes nas práticas docentes em sala de aula, avaliações de trabalhos realizados para promover a cultura e língua pomeranas podem contribuir para incremento do ensino bilíngue em uma perspectiva interdisciplinar. Assim, acredita-se que a vitalidade da língua pomerana acabaria sendo ainda mais potencializada nas práticas docentes bilíngues, que já são acolhidas e estimuladas por políticas linguísticas públicas em diversos municípios do Espírito Santo em que o povo tradicional pomerano está presente.
Com base em Mian (1993), Weber (1998) e Ramlow (2004), as análises mostram que pesquisas sobre a escolarização de crianças e adolescentes pomeranos anteriores ao PROEPO contribuíram para ampliar discussões sobre a importância de projetos pedagógicos específicos em comunidades bilíngues. Para Siller (1999, 2011, 2016), uma educação escolar para e com o povo pomerano requer a construção crítica permanente de uma pedagogia da infância intercultural e multilíngue. Thum (2009) reforça tais argumentos quando destaca a capacidade de os pomeranos manter e reinventar suas práticas culturais nas lutas coletivas por direitos sociais.
Diante das dificuldades linguísticas orais e escritas de estudantes descendentes de pomeranos, Benincá (2008) recomenda que professores(as) possam participar de cursos de fonologia, com estudo de pressupostos da linguística aplicada. Iniciativas nesse sentido já foram implantadas pelo PROEPO, mas os docentes relatam problemas decorrentes da falta de pressupostos teórico-práticos que contribuam para fundamentar o trabalho na escola com leitura e produção textual, sem dicotomizar o pomerano e o português e sem hierarquizá-los, situando a língua minoritária mais uma vez em posição secundária. Conforme Schaeffer (2012), há pontos em aberto nos debates, os quais, por isso, precisam ser mais considerados no que se refere, sobretudo, à organização do sistema fonológico da língua pomerana, por se tratar de uma língua minoritária ainda praticamente ágrafa. Emerge aqui outra questão: Como a escola pode contribuir para a apropriação da escrita de duas línguas tão complexas sem traumatizar os estudantes e professores?
No entanto, aspectos das práticas de professores(as) pomeranos(as) do PROEPO sinalizam que essas experiências de ensino bilíngue apresentam pressupostos de uma educação escolar intercultural. Ocorre que as escolas em comunidades pomeranas acolhem também educandos de diferentes famílias, culturas, etnias etc. Professores(as) pomeranos(as) são desafiados a promover uma educação diferenciada e alternativa (Dettmann, 2018), que considere o bilinguismo e a diversidade de culturas como possibilidade para uma prática docente intercultural.
Trata-se, portanto, de favorecer condições pedagógicas aos educandos para um diálogo que potencialize, em seu cerne, processos de reflexão e ação para diálogos coletivos na diferença. Diante disso, práticas docentes baseadas em fundamentos teórico-metodológicos da diversidade cultural e linguística podem estimular diálogos entre as culturas presentes na sala de aula, os quais problematizam o monólogo e estimulam a polifonia cultural (Bakhtin, 1981).
Compreende-se que a promoção de práticas docentes centradas em uma práxis pedagógica polifônica, que atendam aos novos desafios que a diversidade cultural exige, é uma tarefa complexa, que pressupõe um olhar ampliado sobre as instituições de educação e seu contexto: escola, sala de aula e principalmente o trabalho docente (Brandão, 1984). Aqui, pergunta-se: Como a universidade se pode beneficiar desse movimento para produzir alternativas interinstitucionais colaborativas de formação inicial e continuada de professores(as) que trabalham em contextos de diversidade linguística?
O diálogo é a base desse tipo de docência, porque articula ação e reflexão sobre o contexto em que ela se dá, promovendo problematização com os sujeitos da escola e do seu entorno, para oportunizar aos educandos processos de internalização, a partir de um modo de ver a si mesmos e aos outros no mundo para além do capital (Mészáros, 2008). Ao mesmo tempo, põe em questão a história, para transformar as relações de injustiça e desigualdades na sociedade de classes.
Práticas docentes com a língua pomerana sinalizam para um movimento coletivo favorável à produção de saberes experienciais e curriculares alternativos, os quais “brotam da experiência e são por ela validados [...] incorporam-se à experiência individual e coletiva” (Tardif, 2012, p. 39); relacionam-se aos objetivos, conteúdos e métodos apresentados nos programas da instituição escolar, constituindo a base do processo educacional.
Mészáros (2008) argumenta que, nos últimos 150 anos, a escola reforça interesses de expansão do capital e nega os valores dos subalternos. Assim, práticas docentes bilíngues português-pomerano podem contribuir para transformar a imposição cultural das elites em comunidades nas quais línguas minoritárias são faladas, como nas comunidades pomeranas.
Por meio de processos complexos de articulação da cultura da escola com a cultura escolar (Forquin, 1993), os saberes culturais docentes - na construção dos quais a diversidade linguística é uma dimensão articuladora - podem impulsionar estudos de teorias críticas e transformadoras, cujos fundamentos mobilizam a construção coletiva de uma educação emancipatória (Freire, 1970, 1996; Giroux, 1986; McLahren, 1997; Sacristán, 2000) e sinalizam para o surgimento de uma prática educativa que promove o diálogo entre as culturas, com valorização do plurilinguismo e direitos linguísticos