TERRA EM TRANSE
Em 1965, cinco anos depois de apresentar sua tese intitulada Educação e atualidade brasileira à Escola de Belas Artes de Pernambuco, Paulo Freire, já no exílio chileno, redigiu Educação como prática da liberdade (EPL). O primeiro capítulo do livro, “A sociedade brasileira em transição”, oferece o conceito de trânsito.
O tempo de trânsito é mais do que simples mudança. Ele implica realmente nesta marcha acelerada que faz a sociedade à procura de novos temas e de novas tarefas. E se todo Trânsito é mudança, nem toda mudança é Trânsito. As mudanças se processam numa mesma unidade de tempo histórico qualitativamente invariável, sem afetá-la profundamente. É que elas se verificam pelo jogo normal de alterações sociais resultantes da própria busca de plenitude que o homem tende a dar aos temas. Quando, porém, estes temas iniciam o seu esvaziamento e começam a perder significação e novos temas emergem, é sinal de que a sociedade começa a passagem para outra época. (Freire, 2002, p. 54)
No Brasil, EPL começou a circular em 1967,1 o mesmo ano em que Glauber Rocha lançou o filme Terra em Transe.2 Na obra de Glauber Rocha, a ideia de “transe”, antes mesmo de indicar especificamente “transição política”, indica vários signos do transe (Silva e Araújo, 2012, p. 61-63). No entanto o mote do filme em questão é justamente a transição de uma sociedade subdesenvolvida fictícia — chamada Eldorado — para o comando de um “governo popular”. Porfírio Diaz (Paulo Autran) é o representante da elite e encarna o homem antipovo; Vieira (José Lewgoy) é o representante popular, mas sem nenhuma afinidade com as massas; Paulo (Jardel Filho) é um tipo de feitio progressista, poeta, mas arrogante e antidialógico; Sara (Glauce Rocha), assessora de Vieira, incorpora a militante progressista convicta no poder revolucionário do povo.
No enredo do filme, o político Vieira, à custa das articulações de Paulo, vincula-se aos representantes conservadores com laivos militaristas, como o Senador (Modesto de Souza), e aos representantes da Igreja com traços de fanatismo, como o Padre (Jofre Soares); além deles, ele tem o apoio de setores populares, como o sindicalista Jerônimo (José Marinho). Em um dos momentos do filme aparece na tela, em forma de manchete de jornal, a sentença: “O encontro de um líder com o povo”.3 Nesse trecho, Paulo anuncia, com ironia e escárnio, que o protagonista desse instante é Vieira, “um candidato popular”. Vieira vive um momento de campanha eleitoral; está misturado ao povo, mas desconfortável, assustado e desajeitado no meio da festa e das danças. A música tropical embala o quadro.
Em uma das primeiras tomadas desse trecho do filme, Vieira (acompanhado do Padre e do Senador) surge destacado atrás de um grupo de dançarinos. A câmera vai se aproximando dele e, depois de deixar o povo para trás da lente, centra-se nos figurões em destaque. Em um enquadramento altamente inteligente, vê-se o sindicalista Jerônimo — a única figura do povo na cena — ficando à margem da tela, querendo aparecer no enquadramento, mas sem conseguir. Toma a palavra, então, o Senador, impostando uma retórica altamente conservadora, prefigurando o típico oportunista que manifesta seu paternalismo e reacionarismo diante do povo; em seguida, fala o Padre com um discurso altamente devocional e messiânico.
Por um corte súbito, a câmera volta a tomar o povo em sua dança. Como um legítimo oportunista, o Senador toma a frente do povo e, dançando de forma bizarra e exótica, vai se aproximando do centro da tela. O povo, novamente, fica para trás das lentes.
Nesse momento, inicia-se um belíssimo plano-sequência de quase dois minutos. A câmera adentra a aglomeração popular até encontrar Paulo e Sara, que giram e mudam de posição para a direita e para esquerda, indo para frente e para trás, traduzindo o deslocamento aparvalhado das ditas “vanguardas” em meio à massa. Diante de uma câmera em convulsão, Paulo profere os seguintes versos:
Qual o sentido de coerência?
Dizem que é prudente observar a História sem sofrer,
até que um dia, pela consciência,
a massa tome o poder.
Ando pelas ruas e vejo o povo magro, apático, abatido,
este povo não pode acreditar em nenhum partido;
este povo alquebrado cujo sangue [é] sem vigor,
este povo precisa da morte mais do que se possa supor:
o sangue que estimula no irmão a dor
o sentimento do nada que gera o amor,
a morte como fé, não como temor. (Rocha, 2007, p. 181)
Concluído o plano-sequência, encontramos Paulo e Sara. Sara põe em questão a desordem interior de Paulo, uma desordem que é, em essência, a de todos os que — sem atenção ao povo — se colocam na luta pela transformação social.4 Paulo, sempre com a arrogância dos que se acham com as mãos na verdade, ouve de Sara que “o povo não tem culpa”. O poeta, vendo o Senador por perto, toma-o pela gola e, com desprezo, afirma em resposta que o povo se apega ao primeiro oportunista que atravessa seu caminho.5
No intuito de dar-lhe uma resposta e mostrar que o povo não é tolo, provoca Jerônimo a falar no meio da turba: “O povo é Jerônimo. Fala, Jerônimo!”. A partir daí, uma saraivada de tiros silencia a música, e Jerônimo fica em close, revelando na face uma expressão de perdição e catatonia; está sem palavras. É o Senador quem lhe dá a permissão final para falar: “Não tenha medo, meu filho, você é o povo, fale!”.
Essa é talvez a cena mais conhecida de Terra em Transe: Jerônimo, após segundos inacabáveis de um silêncio constrangedor, pronuncia expressões de conformismo e indecisão. Paulo, com sua brutalidade, avança sobre ele, tapa-lhe boca e declara com os olhos direcionados à câmera: “Estão vendo o que é o povo? Um imbecil, um analfabeto, um despolitizado. Já imaginaram Jerônimo no poder?”. A provocação é forte no contexto da trama, afinal Paulo havia acabado de asseverar, em seus versos, que é “pela consciência” que a massa o tomará o poder, pois não pode acreditar em nenhum partido, em ninguém que diga representá-lo ou que aspire a falar em seu nome.
A música, nesse ponto, retorna. Do meio da aglomeração de populares que circunda o grupo ao redor de Jerônimo, vem passo a passo, agachado como quem “vem de baixo”, o Homem do Povo (Flávio Migliaccio). Suspendendo-se com dificuldade — num jogo de câmera perspicaz, —, ele chega ao lugar onde se passou a fala de Jerônimo. Com dificuldade, pede silêncio, mas o silêncio demora a se formar; havia sido mais fácil conseguir ter voz quando Sara e o Senador deram concessão a Jerônimo para falar, pois houve uma saraivada de tiros para criar as condições de fala. O Homem do Povo, logo ao começar a falar de sua situação social (“Tenho sete filhos e não tenho onde morar!”), é chamado de “extremista”, sendo imediatamente agredido e, segundos depois, morto com tiros de revólver na boca. Ao seu assassinato, sobrevém a fala do Senador, profundamente constrangido, que prossegue com seu discurso vazio, meramente retórico.6
A fome… E o analfabetismo… são propagandas extremistas! O extremismo é um vírus que contamina as flores, contamina o ar, contamina o sangue, contamina a água… e a moral… Em Eldorado… Em Eldorado, não há fome, não há violência… nem há miséria! (Castelo, 2010, p. 275)
O fim desse fragmento se dá com a imagem do cadáver do Homem do Povo, já nas ruas esvaziadas, sendo fotografado e filmado pela imprensa. Conforme assinalaremos ao longo deste artigo, a passagem do encontro de Vieira com o povo de Eldorado está cheia de questões comuns àquelas que Paulo Freire discute em seu primeiro livro.
A intenção deste artigo é discutir a noção de “tema” em EPL, uma vez que Paulo Freire não define explicitamente esse termo, embora o empregue diversas vezes no livro. Conforme será visto, temas correspondem a problemas e pautas de sentido político e/ou pedagógico que implicam necessariamente tarefas e ações. Para o autor, os temas se dividem entre velhos e novos. Os velhos temas são velhos em relação à sociedade brasileira da primeira metade da década de 1960, fechada e antidialógica; os novos temas, emergentes nesse período de transição, referiam-se à agenda de uma sociedade em abertura ao diálogo. Este artigo sustenta que existem em EPL, por um lado, temas políticos velhos e novos. Entre os velhos temas políticos, pode-se citar o autoritarismo, o assistencialismo e o analfabetismo-doença; entre os novos, a reforma agrária, a participação política e o voto do analfabeto.7 Por outro lado, existem temas pedagógicos velhos e novos. Entre eles, os velhos temas da alfabetização tradicional, tomados aleatoriamente a partir das similares silábicas; por exemplo, “Ivo viu a uva”, “O boi baba”, “A bala e o bolo”, “A ave voa”. Em torno dos novos temas pedagógicos para a alfabetização de adultos, Freire oferece as noções de trabalho, tijolo, sindicato, favela etc.8 Busca-se, em síntese, demonstrar que os novos temas políticos são pedagógicos e os novos temas pedagógicos são políticos; e, ao contrário, que os velhos temas políticos são antipedagógicos, e os velhos temas pedagógicos são antipolíticos, não porque não tenham lastros ou funções políticas, mas porque servem à manutenção das aspirações, aparentemente neutras, do mercado de trabalho.
DA FICÇÃO À REALIDADE
A passagem anteriormente descrita de Terra em Transe denuncia — fictícia e dramaticamente — a presença real dos velhos e dos novos temas que, segundo Freire, caracterizavam o momento do trânsito no Brasil no começo dos anos 1960. De um lado, fazem-se presentes os velhos temas do autoritarismo, da servidão, da acomodação, do analfabetismo como doença; de outro lado, os novos temas se destacam: a voz do povo, a participação, a democratização e, enfim, as reformas, principalmente a reforma agrária (direito a cultivar a terra e ter onde morar). É uma terra em trânsito.
Francisco Weffort (2002, p. 15-16), no prefácio que redigiu para EPL, explicou o que, em suas palavras, significa o conceito trânsito:
Seguindo as linhas de uma sociologia da compreensão, Paulo Freire vê nestas últimas décadas da história brasileira um período de trânsito, isto é, de crise dos valores e temas tradicionais e de constituição de novas orientações. Até então tiveram vigência os valores de uma sociedade-objeto, reflexa, o povo imerso e distanciado das elites; formação social onde se configurava uma restrição de base ao diálogo, à livre comunicação entre os homens. O trânsito é o tempo de crise desta sociedade “fechada”, um tempo de opções e de luta entre os velhos e os novos temas históricos, onde se anunciam tendências à democracia.
Radicado em uma sociologia da compreensão,9 Freire procurava, segundo Weffort, as brechas que permitiam pensar a passagem de um tempo de fechamento para um tempo de abertura. A sociedade fechada (cujo modelo é Esparta) passaria à sociedade aberta (cujo modelo é Atenas) (Freire, 2002, p. 50).10 A passagem não seria mediada por um “continuum”, como pensava a “sociologia de inspiração americana”, mas também não se efetivaria “de modo inapelável”, com uma “mudança de estruturas”, conforme sustentam “certas derivações mecanicistas do marxismo” (Weffort, 2002, p. 17). O trânsito, conforme expressa Freire, manifesta-se na busca de “novos temas e novas tarefas”. Qual seria, afinal, o conteúdo desses temas?
A palavra “tema”, tal como aparece nas primeiras páginas de EPL, consiste em pautas carregadas de sentido político que conduzem à realização de certas tarefas ou agendas políticas. No Brasil, os velhos temas determinavam uma agenda econômica de “desanalfabetização”11 das massas, não propriamente a tarefa de alfabetização consciente do povo. Com razão, Weffort associa “temas” a “valores” e a “orientações”, pois todo tema está impregnado de valores e suscita certas orientações. No exemplo em questão, o velho tema da desanalfabetização e da despolitização era valorado como problema de patologia social e estava orientado com a meta de extirpar não o analfabetismo, mas a própria vida cultural do analfabeto com a imposição fria do alfabeto. No entanto não é pelo ardor dos velhos temas que o trânsito se realiza; ao contrário, ele se define pela insurreição de novos temas ou por uma mudança de visão sobre os temas que devem ser ultrapassados. Segundo Weffort (2002, p. 17), o trânsito se anuncia quando “as massas estão dentro do jogo” (que costumeiramente é jogado apenas pelas elites), e “os temas em luta” deixam de ser estranhos. O tempo de trânsito se inicia quando “vários destes temas — o poder, a democracia, a liberdade etc. — aparecem no cenário político, acentuados por ideologias que buscam interpretar o sentimento popular”.
Weffort (2002, p. 17) é pontual ao identificar a essência do período de trânsito: “o característico deste período é que a consciência popular se faz transitiva, permeabiliza-se aos desafios apresentados por sua história”. Ora, seguindo as pegadas de Álvaro Vieira Pinto, o líder do Departamento de Filosofia do Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB),12 Freire distingue dois tipos básicos de consciência:13 a intransitiva e a transitiva. A consciência intransitiva é impermeável à compreensão da mudança, pois é fatalista (as coisas são fatalmente como são e nunca vão mudar); a consciência transitiva se divide em duas formas: a “consciência transitivo-ingênua” e a “consciência transitivo-crítica”. Transitividade é conceito central, na medida em que demarca a passagem do fatalismo à convicção da mudança, mas sua forma ingênua aposta em uma mudança mágica (Freire, 2002, p. 113). A consciência transitiva e ingênua se verifica tanto nos despolitizados que, no afã de provocar a mudança, escolhem líderes autoritários, quanto nos politizados que, na arrogância de se julgarem conhecedores dos desígnios da história, situam-se autoritariamente como vanguarda para o povo. Ambos, Jerônimo (que enquanto representante do povo defende que o melhor é esperar a respostas dos patrões) e Paulo (que cala a boca do trabalhador), são exemplos nítidos de uma consciência que já percebeu a necessidade de mudança, mas a procura de forma ingênua.
A afirmação de Weffort é precisa: a consciência “se faz crítica”, não é doada ou entregue ao povo, mas nele se forma no momento em que ganha consistência histórica e se abre (se torna permeável) aos novos temas, que são, a rigor, os novos desafios colocados para sua participação. O movimento proposto por Freire se harmoniza com o conteúdo geral da primeira estrofe do poema de Paulo citado anteriormente, quando descrevemos o plano-sequência: “[…] é prudente observar a História […] até que um dia, pela consciência, a massa tome o poder”. Sara, sobretudo se atentarmos ao recorte do capítulo sobre o “Encontro de um líder com seu povo”, é a que mais se aproxima da ideia de uma consciência transitiva e crítica. Ela, que antes dessa passagem revelara ter sido vítima de prisão política e tortura, coloca-se junto ao povo. Primeiramente, insiste contra Paulo que “o povo não tem culpa”, depois deposita toda sua convicção em Jerônimo, que pensava ser “o povo”. É verdade que a personagem Sara sugere certa aflição pelas causas sociais e uma paixão pessoal por certa liderança de esquerda que se impõe como redentora de todos os males burgueses. Esses traços não são próprios de um ser transitivo-crítico. Sara não consegue se entregar à música popular e aos modos do povo; ao contrário, enrola-se a Paulo, prende-se a ele e se desliga dele, incapaz de conceber a luta sem ele; pode talvez, por outros vieses, representar a consciência crítica de Paulo ainda em formação.
VELHOS E NOVOS TEMAS POLÍTICOS
O primeiro capítulo de EPL parte da distinção entre “ser de relações” e “ser de contatos”. A esfera das relações, tipicamente humana, é reflexiva e difere da dos contatos, tipicamente animal e reflexa. As relações têm “conotações de pluralidade, de transcendência, de criticidade, de consequência e de temporalidade” (Freire, 2002, p. 47). É justamente por poder construir relações e ir além dos meros contatos que os seres humanos podem se integrar à sua realidade, superando a “simples adaptação, acomodação ou ajustamento”, ou seja, os modos de ser característicos da “esfera dos contatos” e que são sintomas desumanização (p. 50). A noção de “integração” se contrapõe à “adaptação”.
O trânsito se dá pela integração do ser humano à sua realidade, ou seja, pela superação do ajustamento e da acomodação, mediada por relações que viabilizem a conquista de uma “democratização fundamental”.14 Nesse processo, o ser humano se apropria “de seus temas fundamentais” e reconhece “suas tarefas concretas” (Freire, 2002, p. 51). A integração, movimento autêntico de uma fase de trânsito, não se dissocia da consecução de uma consciência transitivo-crítica.
Saliente-se a necessidade de uma permanente atitude crítica, único modo pelo qual o homem realizará sua vocação natural de integrar-se, superando a atitude do simples ajustamento ou acomodação, apreendendo temas e tarefas de sua época. Esta, por outro lado, se realiza à proporção em que seus temas são captados e suas tarefas resolvidas. E se supera na medida em que temas e tarefas já não correspondem a novos anseios emergentes, que exigem, inclusive, uma visão nova dos velhos temas. (Freire, 2002, p. 52)
Temas e tarefas se colocam como objetos de apreensão ou captação: apreendemos ou captamos, no trânsito, as pautas, as questões e as orientações que conduzem de um tempo a outro, de uma sociedade fechada a uma sociedade aberta. Nas épocas de transição, adquire-se “uma visão nova dos velhos temas” e, no entender de Freire, no Brasil da primeira metade dos anos 1960, “as contradições se aprofundavam entre os velhos e os novos temas, ou entre a visão anterior e a atual dos mesmos temas”, o que provocava no modo de ser brasileiro “o surgimento de atitudes optativas” (Freire, 2002, p. 58). A transição, para o educador, é inviável quando o indivíduo não capta seus temas de forma crítica e é arrastado pelo jogo político estabelecido para ele por “prescrições que lhe são impostas ou quase sempre maciamente doadas” (Freire, 2002, p. 53). Assim, ele “percebe apenas que os tempos mudam, mas não percebe a significação dramática da passagem, se bem que a sofra. Está mais imerso nela que emerso” (Freire, 2022, p. 53).
O momento brasileiro em que Freire escreve EPL é intrinsecamente constituído de choques e contradições. O choque de um ontem que se esvazia (mas se esforça ainda por perseverar vivo), com um amanhã pleno de novas questões (mas ainda contido), atribuía à fase de trânsito os traços de um “tempo anunciador” (Freire, 2002, p. 54). O trânsito é um “tempo enfaticamente de opções” que são feitas de forma cada vez mais crítica, a ponto de transformar o conhecimento da antiga realidade em ação de construção de uma nova realidade (Freire, 2002, p. 54). Por ser “tempo anunciador”, Freire afirma que “o momento do trânsito pertence muito mais ao amanhã, ao novo tempo que anuncia, do que ao velho. E que ele tem algo nele que não é dele, enquanto não pode ser do amanhã” (Freire, 2002, p. 56).
A complexidade do tempo de transição vivido por uma sociedade que deseja extrair sua libertação se expressa na própria dinâmica que o trânsito impõe. A passagem a uma época qualitativamente mais aberta em relação àquela que temos no presente não é, como já afirmamos, uma marcha linear e inevitável rumo ao progresso e à abertura. Ao contrário, por ser um tempo de elevada emocionalidade, o trânsito está suscetível a avanços e recuos. Assim como Sara e Paulo giravam e mudavam de posição em meio ao povo, avançando e recuando, o tempo de trânsito é tempo de transes, de idas e vindas. Entretanto
Os recuos não detêm a transição. Os recuos não são um trânsito para trás. Retardam-no ou destorcem-no. Os novos temas, ou a nova visão dos velhos, reprimidos nos recuos, “insistem” em sua marcha até que, esgotadas as vigências dos velhos temas, alcancem a sua plenitude e a sociedade então se encontrará em seu ritmo normal de mudanças, à espera de novo momento de trânsito, em que o homem se humanize cada vez mais (Freire, 2002, p. 56).
O recuo mais radical desse tempo foi o golpe de 1964, afinal dele derivaram o retardamento da solução dos velhos temas e a distorção dos novos. O golpe reprimiu, no recuo, toda novidade e permitiu o retorno de velhos temas encapados como se fossem novos: “a ameaça comunista”, “Brasil-potência”, “defesa da família”, “ordem e progresso” etc. No lugar das “reformas de base” para o desenvolvimento social, veio a tese economicista segundo a qual se deve aumentar o bolo primeiro para depois dividir;15 em vez de tematizar a “conscientização das massas” pela educação de adultos, “sanar” o analfabetismo pela massificação; em vez de impulsionar a “participação” do povo nas instituições, tão desejada nos anos que antecederam ao golpe, passa-se a falar de “intervenção” política nas instituições contra o povo. Em suma, dos temas do ISEB, passamos aos temas do IPES e do IBAD.16
No final do capítulo 2 de EPL, “Sociedade fechada e inexperiência democrática”, Freire (2002, p. 91) descreve o modo como compreendeu os efeitos do golpe de 1964 sobre a transição brasileira:
O País começava a encontrar-se consigo mesmo. Seu povo emerso iniciava as suas experiências de participação. Tudo isto, porém, estava envolvido nos embates entre os velhos e novos temas. A superação da inexperiência democrática por uma nova experiência: a da participação, está à espera, ela que se iniciara, da superação também do clima de irracionalidade que vive hoje o Brasil, agravado pela situação internacional. Até onde esse clima se supere sem ferir intensamente a linha que o processo parecia revelar, e sem provocar, por isso mesmo formas mais graves de regressão e também de explosão maior, é cedo para afirmar-se. É possível que a intensa emocionalidade, que gerou os irracionalismos sectários, possa provocar um novo caminho dentro do processo, que o conduza para uma menos rápida chegada a formas mais autênticas e humanas de vida, para o homem brasileiro.
A citação parece dizer por si só, com as palavras exatas, o que se passava em 1964, durante o Golpe Militar, e em 2016, no golpe contra a presidenta Dilma Rousseff. Se nos anos anteriores a 1964 o país se via às voltas com discursos por reformas, distribuição de renda e conscientização das massas, os anos anteriores a 2016 também foram tempos de luta por direitos, por melhorias sociais e, especialmente, acesso à educação. Desde junho de 2013, o “país começava a encontrar-se consigo mesmo. Seu povo emerso iniciava as suas experiências de participação”. Daí em diante, podemos reproduzir toda a citação anterior e a percebemos como atual.
Também por volta do ano de 2016 houve “embates entre os velhos e novos temas”; a nova luta por direitos, nascida das ruas, debatia-se contra o velho midiático slogan contra a corrupção;17 a pauta dos partidos progressistas era violentada por grupos de extrema direita com teses de supremacia branca (De Moraes, 2018, p. 159-60); a bandeira trabalhista da “pátria educadora” se confrontava com o lema ideológico da “ponte para o futuro”.18 O “clima de irracionalidade” que pairava naquele velho Brasil, também habitou o Brasil de 2016; a “situação internacional” não deixou, em 2016, de agravar a situação nacional, assim como se dera em 1964.19 Da mesma forma que no Golpe Militar era cedo para afirmar se “a linha que o processo [de transição] parecia revelar” seria ferida e provocaria “formas mais graves de regressão”, em 2016 era cedo demais, na visão de muitos, para prever as formas gravíssimas de regressão que viriam com o questionado resultado das eleições presidenciais de 2018. Fato inequívoco parece ser que a “superação da inexperiência democrática por uma nova experiência”, com a participação política, assim como 1965 (quando Freire concluiu a redação de EPL), continua “à espera” nos novos tempos.
Entre a desvalorização dos velhos temas que impunha novas tarefas para a educação e a reação contra os novos temas que impediam a superação das velhas pautas educacionais, vivia a sociedade brasileira em transição nos anos 1960. A marcha para uma sociedade aberta não era absoluta, mas exigia gosto pela dificuldade e pelo desafio, bem como sacrifícios. Nas palavras de Freire (2002, p. 56),
o dinamismo do trânsito se fazia com idas e vindas, avanços e recuos que confundiam ainda mais o homem. E a cada recuo, se lhe falta a capacidade de perceber o mistério de seu tempo, pode corresponder uma trágica desesperança. Um medo generalizado.
O “medo generalizado” veio com o Ato Institucional nº 1, assinado no dia 9 de abril de 1964 pela Junta Militar, que inviabilizou momentaneamente a possibilidade de que “os velhos [temas] esgotassem as suas vigências para que cedessem lugar aos novos”. Quatro anos depois, com a imposição do Ato Institucional nº 5, de 13 de dezembro de 1968, os antigos impasses brasileiros tornaram-se ainda mais imperativos.
A situação de trânsito implicava necessariamente divisão e rupturas. Nos tempos de 1964, “dividiam-se os homens e as instituições, num sentido amplo, que comportava categorias intermediárias, em reacionários e progressistas”. Havia, segundo Freire, dois tipos de “homens”: “homens e instituições que apenas estavam no trânsito, e homens e instituições que não apenas estavam, mas eram do trânsito”. A sociedade estava rachada (Freire, 2002, p. 58). O golpe, enfim, irrompeu no meio desses vaivéns, fez cessar o esvaziamento dos velhos temas. Contudo não é possível aos golpistas impedir que o tempo desnude os disfarces e que a rolha de contenção do esvaziamento dos velhos temas comece a afrouxar. O trânsito fazer-se amanhã é um processo irresistível.
Um dia, no processo histórico dessas sociedades, fatos novos sucedem e provocam as primeiras tentativas de uma volta sobre si mesmas. Um novo clima cultural começa a se formar. Representantes das elites dirigentes, até então inautênticas, por isto superpostas ao seu mundo, começam a com eles se integrar. Um mundo novo se levanta diante deles, com matizes até então despercebidos. Ganham, pouco a pouco, a consciência de suas possibilidades, como resultado imediato de sua inserção no seu mundo e da captação das tarefas de seu tempo ou da visão nova dos velhos temas. Começam a fazer-se críticos e, por isso, renunciam tanto ao otimismo ingênuo e aos idealismos utópicos, quanto ao pessimismo e à desesperança, e se tornam criticamente otimistas. (Freire, 2002, p. 61-62)
Certamente, Freire não via como tarefa do educador aguardar, de forma muda, a formação de “um novo clima cultural” que ativasse magicamente um novo tempo de trânsito, pelo qual as elites efetuariam facilmente um “suicídio de classe” (Mesquida, Peroza e Akkari, 2014). Os indivíduos “começam a fazerem-se críticos” quando tomam consciência histórica e aprendem a diferenciar o que é natureza e o que é cultura; esse processo, porém, não é espontâneo (Jannuzzi, 1979, p. 28). Nesse movimento, promovido pela mediação da educação, passamos da descrença ou da crença em um falso futuro redentor para um conhecimento histórico das condições necessárias para produzir um futuro pela prática da liberdade. Liberdade, por conseguinte, não opera como meta futura, mas como prática presente, alcançada pelo diálogo, não pela obediência a prescrições das elites ou a orientações de vanguardas.
VELHOS E NOVOS TEMAS PEDAGÓGICOS
Os homens e as mulheres que experimentam o trânsito criticamente tanto recusam o pessimismo trágico do fatalismo — a pura intransitividade nascida da incapacidade de distinguir natureza e cultura — como também negam “otimismo ingênuo” e os “idealismos utópicos”. São adeptos do “otimismo crítico”. Esse otimismo crítico é o que se espera do educador que se prepara para educar em uma sociedade fechada ou em transição. Nos tempos de 1964,
Vivia o Brasil, exatamente, a passagem de uma para outra época. Daí que não fosse possível ao educador, então, mais do que antes, discutir o seu tema específico, desligado do tecido geral do novo clima cultural que se instalava, como se pudesse ele operar isoladamente. […] A educação, […] na fase de trânsito que vivíamos, se fazia uma tarefa altamente importante. A sua força decorreria sobretudo da capacidade que tivéssemos de nos incorporarmos ao dinamismo da época do trânsito. Dependeria de distinguirmos lucidamente na época do trânsito o que estivesse nele, mas não fosse dele, do que, estando nele, fosse realmente dele (Freire, 2002, p. 54-56).
O final dessa citação remete à ideia, já apresentada, de que o momento do trânsito “tem algo nele que não é dele, enquanto não pode ser do amanhã”. No entanto aqui está em questão a capacidade — necessária ao educador na fase de transição — de “distinguir lucidamente” o que pertence e o que não pertence ao trânsito. A capacidade de distinguir de forma lúcida entre os temas velhos (que aparecem como novos) e os temas novos (que muitas vezes parecem velhos) é algo próprio de um educador que procura, para educar, ser educado por seu tempo.20
O educador, para desenvolver sua tarefa de forma crítica (portanto, histórica e democraticamente), deve estar consciente da sociedade em que vive. Ao introduzir EPL para o público estrangeiro, Freire escreveu que o “esforço educativo” que o levou a compor seu livro, isto é, toda sua trajetória prática como educador até então, “ainda que tenha validade em outros espaços e em outro tempo, foi todo marcado pelas condições especiais da sociedade brasileira”. A sociedade brasileira — já apontou o autor logo de início — estava partejada e rachada, travando “violentos embates” entre um tempo que se esgotava, “com seus valores, com peculiares formas de ser, e que ‘pretendia’ preservar-se” e outro tempo “que estava por vir, buscando configurar-se” (Freire, 2002, p. 43). A “educação para o homem-objeto” pretendia manter-se vigorosa; a “educação para o homem sujeito” ousava se aprofundar; a primeira forma massificava pela domesticação; a segunda, conscientizava pela libertação (a “prática da liberdade”).
As forças que se esmeram para impedir o esvaziamento dos velhos temas, observa Freire (2002, p. 44-45), “insistem em aparecer como defensoras do Homem, de sua dignidade, de sua liberdade, apontando os esforços de verdadeira libertação como ‘perigosa subversão’, como massificação, como lavagem cerebral”.21 As forças reacionárias — verdadeiramente massificadoras e doutrinadoras — “deixam em cada homem a sombra da opressão que o esmaga” e se “apoderam das camadas mais ingênuas da sociedade”, devolvendo-lhe velhos temas como se fossem atuais. O educador, ciente da necessidade de estabelecer uma relação dialógica com o educando, sabe que sua ação depende de opção, um conceito-chave em EPL. Opção é, em suma, “opção pelo Amanhã”, ou ainda mais precisamente — acrescentaríamos nós — opção política pelo amanhã, pois é tomada de partido e de consciência da tarefa libertadora de educar em país subdesenvolvido.22 A opção política se volta a temas que abram ainda mais o amanhã e transformem a sociedade fechada (inexperiente democraticamente) em sociedade de experiência do debate, do diálogo e da participação.
Os temas são, nessa perspectiva, pedagógicos.
Os capítulos 3 e 4 de EPL compreendem a parte especificamente pedagógica da obra e são acrescidos de um apêndice didático que contém o assim chamado “método Paulo Freire de alfabetização de adultos”. O terceiro capítulo se intitula “Educação versus massificação”; o quarto, “Educação e conscientização”. O par massificação-conscientização se relaciona antagonicamente com a educação. A opção pela massificação é a opção pela imposição; a opção pela conscientização é a opção pelo debate. A primeira opção corresponde ao caminho da formação pautada em velhos temas,
[…] enfatizando cada vez mais em nós posições ingênuas, que nos deixam sempre na periferia […]. Pouco ou quase nada, que nos leve a posições mais indagadoras, mais inquietas, mais criadoras. Tudo ou quase tudo nos levando, desgraçadamente, pelo contrário, à passividade, ao “conhecimento” memorizado apenas, que, não exigindo de nós elaboração ou reelaboração, nos deixa em posição de inautêntica sabedoria (Freire, 2002, p. 103-104).
Habitualmente, essa maneira de conduzir a formação só pode redundar em uma prática na qual “ditamos ideias” em vez de “trocar ideias”; “discursamos aulas”, quando conviria “debater temas” (Freire, 2002, p. 104). A segunda opção, encaminhada para a discussão de novos temas, funda-se em um método ativo que parte do sistema de conhecimento do educando para alcançar, mediante a indagação e inquietação, a consciência transitivo-crítica.
A visão massificadora de alfabetização de adultos trabalhadores baseada em cartilhas limita a compreensão do ato de aprender a ler e a escrever ao “simples domínio psicológico e mecânico” da língua (Freire, 2002, p. 119). As cartilhas concedem, pronta, a montagem gráfica das palavras, reduzindo o alfabetizando à condição de objeto, não de sujeito de sua aprendizagem. O texto destinado aos alfabetizandos aparece dado, e os temas já estão previamente escolhidos sem interesse na conscientização que permite ao aprendiz montar, por ele mesmo, seu próprio texto.
A visão libertadora de alfabetização de adultos desenvolvida por Freire e sua equipe, como conscientização, não se instalava em uma escola (tal como esta instituição pertence ao imaginário social), mas em um círculo de cultura; não se apoiava em um professor (ao estilo do professor tradicional), mas em um coordenador de debate; contra a aula discursiva, era oferecida a aula como debate; contra o alfabetizando tomado como simples aluno, era proposto o alfabetizando como participante de grupo; em oposição a um programa alongado, apresentava-se um programa compacto.
Segundo Freire (2002, p. 110-111), a programação dos debates travados com o grupo de educandos envolvidos nas atividades do Movimento de Cultura Popular do Recife (MCP)23 era orientada pelo próprio grupo, a partir de entrevistas que os educadores mantinham com a comunidade. Nessas entrevistas, eram coletados os principais temas pedagógicos que interessavam ao grupo; entre os temas mais comuns estavam nacionalismo, remessa de lucros para o estrangeiro, evolução política do Brasil, desenvolvimento, analfabetismo, voto do analfabeto, democracia.
Ao descrever as cinco fases da elaboração das atividades do Círculo de Cultura, Freire destacou o esforço de levantamento vocabular prévio da comunidade a ser alfabetizada: na primeira fase, eram registradas pela equipe educadora as “expressões particulares” daquele grupo, bem como o universo de vocábulos atinentes à profissão e à atividade das pessoas que o integram; na segunda, eram selecionadas, entre as palavras levantadas, aquelas que poderiam servir como palavras geradoras (Freire, 2002, p. 121); na terceira, o grupo criava as situações existenciais comuns àquela comunidade, situações que o colocava em desafio e diante da necessidade de debater os problemas propostos; na quarta, eram montadas as “fichas-roteiro”, uma espécie de lista de temas/problemas que o coordenador de debate pode usar para se guiar no trabalho sobre as palavras geradoras trabalhadas com o grupo; na quinta e última fase eram preparadas as fichas com as “famílias fonêmicas” deduzidas das palavras geradoras.
A “execução prática” da tarefa de alfabetização de adultos, conforme descreveu Freire (2002, p. 123) no capítulo 4 de EPL, permitia que, em quarenta horas de trabalho pedagógico, séculos de opressão começassem a ruir e a dar lugar à criticidade. Por isso, os versos de Thiago de Mello (2002) extraídos do poema que epigrafa EPL são tão certeiros ao mencionar “o bicho de quatrocentos anos,/ mas cujo fel espesso não resiste/ a quarenta horas de total ternura”.24
O propósito de Paulo Freire, iniciado com o Projeto de Educação de Adultos no MCP de Recife, veio a se consolidar, no início de 1964, no Plano Nacional de Alfabetização (PNA), assumido pelo presidente na República, João Goulart (PTB), que incentivava as campanhas de educação popular (Manfredi, 1978). O PNA congregava também forças de outras campanhas de alfabetização, realizadas por variados movimentos de cultura de popular existentes no Brasil (Manfredi, 1978).
Se tivesse sido cumprido o programa elaborado no Governo Goulart, deveríamos ter, em 1964, funcionando mais de vinte mil Círculos de Cultura em todo o País. E íamos fazer o que chamávamos de levantamento da temática do homem brasileiro. Estes temas, submetidos à análise de especialistas, seriam “reduzidos” a unidades de aprendizado, à maneira como fizéramos com o conceito de cultura e com as situações em torno das palavras geradoras. Prepararíamos os stripp-films com estas “reduções” bem como textos simples com referências aos textos originais. Este levantamento nos possibilitaria uma séria programação que se seguiria à etapa da alfabetização. Mais ainda, com a criação de um catálogo de temas reduzidos e referências bibliográficas que poríamos à disposição dos colégios e universidades, poderíamos ampliar o raio de ação da experiência e contribuir para a indispensável identificação de nossa escola com a realidade. (Freire, 2002, p. 128-129)
Segundo Freire, mais de vinte mil círculos estariam em operação no Brasil, compondo um “levantamento da temática do homem brasileiro” que seria posteriormente aproveitado na elaboração das fases subsequentes à alfabetização, em prosseguimento ao processo de formação dos adultos. De acordo com Manfredi (1978, p. 152),
Partindo-se das metas estipuladas para o Programa durante o ano de 1964, é possível prognosticar ao nível ao nível político qual seria a rentabilidade de um programa de alfabetização em massa. Supondo que fossem tomadas medidas concretas para atingir as metas propostas e levando em consideração os índices de aproveitamento obtidos nas experiências-piloto, em que se utilizou o Método Paulo Freire, poder-se-ia alfabetizar no prazo de um ano de 1.427.007 a 1.245.422 adultos e adolescentes. Subtraindo destes totais a porcentagem estimada de adolescentes, alfabetizar de 950.244 a 839.327 adultos significava incorporar aos quadros eleitorais pré-existentes um contingente de novos eleitores equivalente ao montante das cifras acima citadas.25
Independentemente do número exato da meta a ser atingida pelo PNA e das variantes que poderiam aumentar ou diminuir o aproveitamento do processo de alfabetização das massas, sabe-se que havia uma busca por delinear a temática do brasileiro, de modo a encontrar, em seus contornos precisos, o “hoje brasileiro” a que Freire (1986) alude em seu manuscrito sobre “O conceito de trânsito”. Ao analisarmos as 17 palavras geradoras exploradas no “Apêndice” de EPL, vemos que cada um delas remete a temas pedagógicos que eram novos e políticos.
A EDUCAÇÃO BRASILEIRA EM TRANSE: OS “VELHOS NOVOS” PROBLEMAS
Em ensaio publicado em 1973, Roland Corbisier (1975, p. 153) — intelectual que indicou Vieira Pinto para ser professor de Filosofia no ISEB (Saviani, 1993, p. 17) — explicita a censura que, em grande medida, define a resposta que as forças reacionárias empregam contra uma sociedade que deseja incorporar novos temas e conscientizar-se criticamente. Se a consciência transitivo-crítica implica criar espaços para ter voz em uma sociedade que necessita autoritariamente se conservar fechada, a censura é um problema capital. Além dela, porém, é indispensável a desinformação.
Freire, vale frisar, foi alvo de muita desinformação por parte das autoridades brasileiras depois de 1º de abril de 1964.26 O Decreto nº 53.886, assinado pelo presidente interino Ranieri Mazzilli, revogou o Decreto nº 53.465 de 21 de janeiro de 1964, “que instituiu o Programa Nacional de Alfabetização do Ministério da Educação e Cultura”. Entre as razões apresentadas, o documento da ditadura afirmava considerar “a necessidade de reestruturar o Planejamento para a eliminação do analfabetismo no país”, introduzindo um “material” portador de “ideias nitidamente democráticas” que preservem “as instituições e tradições do nosso povo”. No dia 13 de maio de 1964, o Ministério da Educação emitiu a Portaria nº 237, que, além de revogar todas as portarias anteriores, “divulgava, pela imprensa, um levantamento do material usado na campanha de alfabetização” mobilizada por Freire, arrolando o “vasto equipamento fotográfico, avaliado em vários milhões de cruzeiros e publicações de caráter subversivo”27 (cf. Gadotti, 2013, p. 56-57).
Freire respondeu em EPL a apontamentos desse gênero. A última nota do livro oferece a lista dos xingamentos que as forças autoritárias disparavam contra os educadores envolvidos com o projeto freiriano, os “analfabetos” e “ignorantes”, autores de um “método inócuo”. Para Freire, contudo, os ataques não provocaram dor nos educadores; o que os estarrecia, confessou ele, era “ouvir ou ler que pretendíamos ‘bolchevizar o país’ com um método que não existia’…”.
Em 1967, como resposta à extinção do PNA, foi instituído o Movimento Brasileiro de Alfabetização (MOBRAL),28 ação que foi fortemente influenciada pelo método de Freire, mas foi despido da característica básica de conscientização (Manfredi, 1978, p. 153). No MOBRAL, aquela primeira etapa do trabalho pedagógico do grupo de Freire, a saber, o levantamento vocabular da comunidade e a seleção das palavras geradoras junto aos alfabetizandos como sujeitos de seus temas, não existia (Jannuzzi, 1979, p. 75). Ao contrário, as palavras geradoras já vinham prontas e eram as mesmas para o país inteiro; os termos, por exemplo, sobrevivência, segurança, necessidades sociais e autorrealização (Jannuzzi, 1979, p. 60) eram escolhidos pelo MOBRAL com a justificativa de que exprimiam “as necessidades básicas do homem”.
Como se nota, os temas pedagógicos trabalhados pelo MOBRAL, padronizados, não se configuraram como temas políticos no sentido de conscientização, mas no sentido econômico de promover uma instrução que permitisse a rápida inclusão da massa trabalhadora de baixa formação no mercado de trabalho, um mercado ávido naquele então por força de trabalho barata e precarizada.29
Atualmente, os lemas da alfabetização consciente do povo e da participação crítica nas decisões eleitorais do país converteu-se um ato tão subversivo quanto a fala do Homem do Povo, que encerra trecho de Terra em Transe trabalhado no início deste artigo. Lembremos: ao enunciar sua situação como povo, vivendo a fome e o desabrigo, o personagem foi assassinado pelas forças de repressão — aos gritos de “extremista!” — com um simbólico “tiro na boca”. Na sequência do assassinato, como o fito de despistá-lo, vem a fala do Senador associando analfabetismo à doença.
Em depoimento ao jornalista Ricardo Kotscho, Frei Betto e Freire conversavam sobre uma experiência de educação de trabalhadores encarcerados e que, oprimidos, tinham muita dificuldade de falar. A certa altura, Frei Betto conta que, antes de iniciar seu trabalho pedagógico com os homens detidos, ele fazia uma sessão de exercícios de expressão corporal. Dizia-lhes: “[…] Vamos hoje fazer um passeio pelas nossas próprias bocas. Vamos abrir a boca. Mais, mais! Agora, passem a língua em toda a boca. Agora, enfiem a mão direita no céu da boca, na língua, nos dentes […]”. Para ele, tal atividade permitia que os educandos fossem “tomando consciência de como a boca é”, ou seja, “um órgão de expressão muito maior do que pensamos e que, em geral, temos pudor, preguiça de usar”. Tais exercícios eram, em suas palavras, uma ação de “descontração da palavra”, com a finalidade de “fazer o oprimido tomar consciência de que a opressão o reduziu a um objeto fechado em si mesmo”. Segundo ele, o trabalhador tem dificuldade de falar, “porque o seu trabalho dispensa a palavra. Ele tem apenas que ser um apêndice da máquina e da enxada […]” (Kotscho, Freire e Betto, 1988, p. 44-45).
O MOBRAL, mais do que impedir o esvaziamento dos velhos temas e das velhas tarefas, deu nova roupagem para que esses temas continuassem presentes na sociedade brasileira, caracterizando a educação como massificação, isto é, uma prática de formação para apêndices de máquinas e enxadas. De forma geral, as reformas educacionais da ditadura, como as de 2017-2018, foram constituídas de maneira a entravar o despertar de novos temas. No plano econômico, cultural e político, a educação da ditadura de 1964 — com sua insistência na exclusão escolar pela base e com sua prática de formação profissional fracassada (Cunha e Góes, 1985, p. 62-72; Germano, 1993, p. 185-189) — inviabilizou a plenificação do trânsito. Deixou-nos em situação tão insólita que nossos novos temas, atualmente, já são velhos. Entretanto, desta vez, a fase do trânsito não parece ainda estar ainda suficientemente interrompida.
Iniciamos este artigo apresentando o conceito de trânsito, e, reportando-nos ao filme Terra em Transe, mostramos como podem ser concebidas as formas de consciência intransitiva e de consciência transitiva. À luz dessas questões, refletimos sobre os novos e velhos temas políticos e pedagógicos que surgiram no Brasil; finalmente, assinalamos a persistência de antigos problemas que continuam exigindo uma solução ou, em outras palavras, uma transição emancipatória completa para a sociedade brasileira.