Historicamente, a constituição cultural, social e política da criança e do bebê enquanto sujeitos históricos e de direitos passou a se dar de forma mais consolidada de modo paralelo à construção e ao fortalecimento de uma proposta de educação infantil pública, estruturada e regulada segundo diretrizes estatais. No cenário brasileiro, isso se deu no curso transformador de um processo histórico e político altamente complexo. Algumas das transformações indicadas consistem em mudanças na organização e convivência familiar; processos imigratórios; transformações nas leis e relações trabalhistas; o reconhecimento da criança de 0 a 6 anos como sujeito de direitos a quem deve ser garantido amparo e proteção prioritários; o esforço de superação de uma tradição filantrópica e assistencialista herdada de instituições de cuidados infantis coletivos; e a inserção da educação infantil como parte do sistema de educação pública, responsabilizando o Estado pela garantia do acesso e da qualidade de atendimento (Brasil, 1988; Brasil, 1996; Amorim e Rossetti-Ferreira, 1999; Amorim, 2013; Kuhlmann Jr., 2015).
Nesse complexo panorama, novas condições de cuidado e educação de crianças ao longo de seus primeiros anos de vida passaram gradativamente a ser construídas, estruturadas e consolidadas (Amorim e Rossetti-Ferreira, 1999; Barbosa, 2010; Rosemberg, 2015). Repercutindo em transformações culturais e sociais, instaurou-se uma crescente procura por serviços de educação infantil, inclusive aqueles voltados para bebês (Haddad, 2002; Brasil, 2020), através dos quais o cuidado e a educação passaram a ser mais amplamente compartilhados entre instituição e famílias. Esse movimento colocou em pauta o desafio de se estruturarem diretrizes, indicadores de qualidade, propostas de prática funcional e o planejamento de um contexto adequado para o desenvolvimento do bebê (Brasil, 1996; Campos e Rosemberg, 2009; Gobbato e Barbosa, 2017; Cestaro e Santos, 2018). Colocou-se também em pauta o desafio de receber e integrar o bebê a um cotidiano institucional e coletivo, o que tem incentivado mais investimentos em pesquisas para compreender o processo de ingresso e frequência inicial de bebês nessas instituições, ao que tem se chamado de transição.
Buscando superar a conotação de “adaptação” individual, a noção de transição tem sido empregada no sentido de considerar a situação em sua complexidade e pluralidade, indo além das transformações do bebê e incluindo também a família, as professoras e a própria instituição (Amorim et al., 2004; Coelho et al., 2015; Dentz et al., no prelo). Como fenômeno cultural e social, a integração de bebês à educação infantil tem sido indicada como um processo de pavimentação entre as esferas pública e privada, que retira a criança de uma condição de isolamento da vida social e a posiciona em meio a um cenário mais amplo de socialização e formação cultural (Kernan, 2010; Hedegaard e Ødegaard, 2020; Costa, Rossetti-Ferreira e Mello, 2021).
Nesse sentido, a transição é constituída através de um movimento transacional que ocasiona o encontro entre diferentes pessoas (familiares, bebês, professores e funcionários) e contextos (casa, creche, mercado de trabalho, etc.) que passam a construir um cotidiano comum a partir do compartilhamento de tempos e espaços (Barbosa, 2013; Dentz et al., no prelo). O estabelecimento desse novo cotidiano passa a exigir o estabelecimento de novos tempos e ritmos, interligar experiências passadas e expectativas futuras, prever e estruturar cenários de rotinas e demandar planejamento de ações quanto às estratégias de recepção do bebê.
Tratando-se do aspecto temporal da transição, alguns trabalhos enfatizam os diferentes momentos que compõem um processo de transição à creche: aquele anterior ao ingresso (primeiros contatos da família com a instituição), quando o bebê inicia a sua frequência e a sequência dessa frequência (Dentz et al., no prelo). Dentre esses momentos que englobam o processo, aquele sobre o qual mais se argumenta na literatura é o início da frequência, particularmente a primeira semana, para a qual se propõe: menor tempo de estadia no primeiro dia seguindo-se de aumento gradativo nos seguintes, flexibilização em relação aos horários (Vitória e Rossetti-Ferreira, 1993/2013; Peixoto et al., 2015; Grande et al., 2017) e maior atenção aos momentos de encontros e despedidas dos pais na entrada e saída (Comotti e Varin, 1988; Rapoport, Bossi e Piccinini, 2018). Especificamente em relação à rotina no início da frequência, autores sugerem dar aos bebês sinais de previsibilidade, podendo envolver rituais de música e ludicidade (Mauvais, 2003), buscando estreitar relações entre educadores e pares (Picchio e Mayer, 2019). Prática de especial importância, de acordo com Peixoto et al. (2015), é que, no início da frequência, os educadores incorporem à rotina do bebê na creche a mesma rotina de cuidados desenvolvida pela família em casa.
O foco da literatura frequentemente tem recaído sobre estratégias que buscam minimizar impactos negativos da separação do bebê e seus familiares (Bossi et al., 2014; Klette e Killén, 2018; Martins et al., 2014; NICHD, 1997/2006; Vercelli e Negrão, 2019), particularmente a mãe, e como o educador deve fazer para ir construindo vínculo com esse bebê. Nesse sentido, tem-se dedicado especial atenção aos primeiros dias e enfatizado a importância de que o processo seja conduzido em tempo gradativo. Nos diferentes tempos dentro do período em que o bebê fica na creche, chamam a atenção para a importância da entrada e saída por conta da separação/encontro com a mãe. Sendo assim, estudos acerca da transição tendem a considerar tempos que orbitam em torno do processo de separação dos bebês e seus familiares, de modo que mesmo a questão de aceitação ou rejeição do bebê à rotina institucional acaba sendo mais atribuída à ótica de ajustamento socioemocional (ou não) frente ao tempo da separação (Martins et al., 2014; Bossi, Brites e Piccinini, 2017).
É importante enfatizar, porém, que a transição também passa pelo desafio de integrar o bebê e sua família ao funcionamento institucional e que o processo exige a reorganização de seu fluxo de vida (Amorim et al., 2004). No estabelecimento desse novo cotidiano, torna-se necessário lidar com cenários, rotinas, horários e pessoas que podem ser bem diferentes daqueles dantes conhecidos e vivenciados (Rossetti-Ferreira et al., 2008). Além disso, o bebê passa a ser inserido em um contexto que opera sob um nexo coletivo que impregna e modifica substancialmente os modos de organização de tempos e espaços (Pairman, 2018).
Portanto, em termos de transição como a construção de um cotidiano e de uma transação sociocultural, a questão da constituição de práticas temporais, como o estabelecimento de ritmos e rotinas, costuma ser tema que não é explorado nem problematizado o quanto deveria. É apontado que essa falta de problematização pode incorrer no risco de que tais práticas passem a ser fragmentadas e mecanizadas, sem o olhar devido às trajetórias do bebê e às condições institucionais e sociais mais amplas que se inscrevem nas práticas de regulação temporal na creche (Barbosa, 2000; 2010; 2013; Birkeland, 2019). Ainda perde-se a dinâmica relacional entre os múltiplos interlocutores (White et al., 2020) que participam dentro e fora da creche e do fluxo transacional entre as diferentes partes que possibilita a negociação ou mesmo a reformulação das proposições.
Nesse sentido, o fluxo do trânsito diário entre diferentes localidades, temporalidades e estruturação das ações cotidianas ao longo do trânsito do bebê entre o contexto domiciliar e a creche coloca em relevo a temática do estabelecimento de diferentes rotinas e ritmos como prisma de análise do processo de transição. Portanto, este artigo busca discutir como os arranjos temporais constituem o processo de transição do bebê à creche através do encontro e da negociação de diferentes tempos que se materializam na rotina e dão visibilidade ao contraste de tempos e ritmos das famílias, da criança e da instituição.
METODOLOGIA
Este trabalho é derivado de pesquisas de doutorado (Costa, 2021; Dentz, 2022) interligadas a um projeto maior (Amorim, 2016) que, através de estudo de casos múltiplos (Yin, 2005), buscaram acompanhar algumas das múltiplas dimensões atreladas ao processo de transição de bebês que passavam do cuidado exclusivo doméstico àquele mais compartilhado com instituições coletivas do tipo creche.
O projeto principal obteve aprovação na Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (nº 60076516.9.0000.5407) e os projetos de doutorado supracitados tiveram aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa segundo preceitos da Resolução nº 466/12 do Conselho Nacional de Saúde (Certificados de Apresentação de Apreciação Ética - CAAE nº 68655317.9.0000.5407 e nº 60077616.9.0000.5407). Com o consentimento das instituições e dos participantes da pesquisa, os dados foram organizados e armazenados como banco de dados, compondo um material empírico comum a ser analisado sob diferentes questões investigativas relacionadas ao tema de transição. Foi obtida autorização dos participantes (a autorização de participação dos bebês concedida pelos responsáveis) para o uso dos dados que serão aqui apresentados, incluindo a apresentação de imagens. Os nomes são todos fictícios.
Os dados foram gerados a partir do acompanhamento longitudinal de bebês-focais que estavam em processo de ingresso à creche. A coleta consistiu na condução de videogravações e observações não diretivas do sujeito-pivô em diferentes datas ao longo de seu primeiro ano letivo em uma instituição de educação infantil do tipo creche.
Os registros de cada sessão de coleta contêm gravações (cerca de duas horas por coleta) de momentos de rotina (chegada, sono, troca, banho, alimentação, saída), interações (entre bebês, professoras, familiares e outras pessoas presentes) e momentos atribuídos à brincadeira. Os formulários de observação contêm a descrição do fluxo das ações e interações do bebê e a rotina vivenciada naquele dia de estadia, com os horários dos acontecimentos. Além desses registros, a transcrição da primeira entrevista com os pais também foi consultada.
Neste artigo, destacamos os registros das três primeiras datas de coleta de um único caso, que correspondem, respectivamente, ao primeiro dia, à segunda semana e ao término do primeiro mês de frequência de um bebê que chamaremos de Sofia.
PARTICIPANTE FOCAL E CONTEXTO
Sofia era um bebê (6 meses e 13 dias) que morava com seus pais e irmã mais velha e ingressou em uma creche filantrópica localizada em um município no estado de São Paulo. A busca pela creche foi motivada pela necessidade de a mãe trabalhar. A instituição tinha parceria com a prefeitura local e, dada a sua localização próxima a um distrito industrial, atendia um contingente significativo de famílias de trabalhadores desse setor. O grupo de bebês dessa creche era composto de 20 bebês e três professoras que permaneciam em período integral.
REFERENCIAL TEÓRICO-METODOLÓGICO
Este trabalho é baseado na perspectiva teórico-metodológica da Rede de Significações (RedSig) de fundamentação histórico-cultural (Werebe e Nadell-Brulfert, 1986; Valsiner, 1987; Vigostki, 1991; 1993). Essa perspectiva foi elaborada a partir do diálogo entre teoria, pesquisa e práxis desdobrado através de um empreendimento coletivo de suas autoras com profissionais da educação infantil para construírem conhecimento acerca do desenvolvimento de crianças pequenas e bebês em instituições de educação infantil (Rosetti-Ferreira et al., 2008).
A RedSig compreende que o desenvolvimento humano se dá nas e através das múltiplas relações travadas dentro de uma malha de elementos semióticos que se interrelacionam dialeticamente e permeiam as diversas práticas e concepções que constelam os mais básicos processos constitutivos da pessoa. Isso implica que o desenvolvimento sempre se dá dentro de contextos culturalmente organizados e socialmente regulados (Rosetti-Ferreira, Amorim e Silva, 2000).
Nesses contextos, os fluxos de ações possíveis são estruturados, potencializados ou limitados a partir da ação do/com o outro, através da articulação de elementos de ordens diversas (orgânica, física, material, interativa, simbólica, etc.), articulação esta que, do ponto de vista da circunscrição, pode vir a favorecer ou dificultar determinados modos e processos de (co)constituição (Rosetti-Ferreira, Amorim e Silva, 2004; Silva, Rossetti-Ferreira e Carvalho, 2004). Todos esses processos encontram-se imersos numa matriz de caráter sócio-histórico que interliga dimensões micro e macrossociais dos processos. Essa matriz se concretiza no aqui-agora das diversas situações e acontecimentos se manifestando em seus componentes contextuais, pessoais e interativos que se entrelaçam em constituição mútua que engendra a contínua produção e transação de significados (Rossetti-Ferreira, Amorim e Silva, 2004).
Os processos de desenvolvimento sempre se dão situados dentro de contextos espaço-temporais, de modo que tempo e espaço constituem binômio indissociável. O tempo é indicado como se manifestando através de múltiplas dimensões temporais que se inscrevem simultaneamente no aqui-agora dos acontecimentos, nas propostas de organização espaço-temporal, nos modos de relação e nas práticas institucionais, evocando, atualizando e projetando elementos de tempo presente, tempo vivido, tempo histórico e tempo prospectivo (Rossetti-Ferreira, Amorim e Silva, 2004). Nesse sentido, a visibilidade das situações do aqui-agora abarcam uma plenitude temporal, na qual se é possível identificar o entrelaçamento de sinais de um tempo histórico, das transformações das experiências vividas e de expectativas/metas coletivas e individuais em diálogo com as práticas interpessoais que ocorrem em tempo e lugar presentes (Rossetti-Ferreira, Amorim e Silva, 2004).
Portanto, nossa compreensão é de que a transição envolve diversas escalas temporais e se mantém em transformação constante a partir da sucessão de acontecimentos, do desenvolvimento de novas habilidades, da persistência ou ruptura de determinados modos relacionais. Nesse movimento, o processo transicional e seus múltiplos componentes podem vir a ser ressignificados e reestruturados, “[...] conduzindo-se à disponibilização/construção de novas significações/habilidades/relações das pessoas envolvidas [...].” (Amorim et al., 2004, p. 155).
Reconhecendo-se o desafio do pesquisador para contemplar essa imensidão de elementos em sua complexidade, o foco de análise deverá contemplar um recorte temático. A partir desse recorte, os instrumentos e as ferramentas de pesquisa deverão ser empregados no sentido de dar visibilidade à constituição múltipla e dinâmica dos processos em sua complexidade (Rossetti-Ferreira et al., 2008). Portanto, a construção do corpus de análise se estruturou a partir desse olhar e pressupostos teórico-metodológicos.
CONSTRUÇÃO DO CORPUS E PROCEDIMENTO DE ANÁLISE
Em vista da familiaridade das pesquisadoras com o caso da bebê-focal, para este trabalho elegemos as rotinas de sono como recorte de análise, dada sua ligação com experiências pregressas do bebê e a estruturação do tempo contextual da creche. A partir desse recorte temático, trazemos questões anteriores ao ingresso e, a partir do início da frequência, caracterizamos e mapeamos as diferentes rotinas de sono da manhã em termos de proposição institucional de sono ou vigília dentro da cronologia desse período do dia.
Para tanto, com inspiração na metodologia empregada por Silva e Muller (2017), indicamos os usos do tempo de sono tanto pela instituição quanto pelo bebê focal ao longo das coletas do primeiro mês de frequência. A partir desse mapeamento, buscamos compreender como o bebê agia em função dessa proposição de rotina e as implicações interativas que se desdobravam. Com isso, buscamos identificar como o aqui-agora das rotinas de sono-vigília propostas pela instituição e os ritmos particulares de Sofia carregavam evidências multitemporais e como a regulação espaço-temporal, enquanto “significados temporais”, revelava-se no fluxo da transição de Sofia ao longo de seu primeiro mês.
RESULTADOS/ANÁLISE
A FAMÍLIA E TEMPO ANTERIOR AO INGRESSO
Na entrevista inicial, os pais relataram que, em casa, Sofia havia passado por longos períodos de dormência, por ter sido um bebê prematuro, e, no dia a dia, costumava permanecer no berço e no carrinho. Também relataram ter a expectativa de que a creche contribuísse com o desenvolvimento de Sofia, em vistas das experiências positivas que tiveram com a filha mais velha nessa mesma instituição. Um dos modos como acreditam que a creche iria contribuir seria através do estabelecimento de rotinas. O tema é destacado na entrevista, que computa 17 usos dessa palavra. Em um dos trechos, que reproduzimos abaixo, a mãe indica que, em casa sozinha com a criança, é mais difícil manter a constância das rotinas, enquanto tem a expectativa de que, na creche, isso seja mais provável de ser implementado:
Mãe: E lá na creche, as rotinas, né, porque em casa a gente num tem rotina, né. E pra Berenice (irmã mais velha) ficou muito bom e eu acredito que pra Sofia também, as rotinas. Eu tento colocar rotina, mas eles tiram a gente da rotina [risos].
Pesquisadora: No sentido de ter horários pra fazer cada coisa?
Mãe: É, né, porque aí a gente tá sozinha e aí a gente não consegue manter aquela rotina para cada coisa [...] Então, eu acho que, pra elas, é bom ter uma rotina. Eu acredito que ir pra lá seja melhor do que ficar em casa [...].
A mãe ainda relata que acredita que para a filha será mais fácil se acostumar com a nova rotina da creche por ainda ser um bebê:
Mãe: [...] eu acho que é um pouco mais tranquilo, né, porque eles ainda são muito pequenos. Pra mim, eu prefiro [...] pôr agora, porque pra eles é um pouco mais fácil, porque eles ainda estão aprendendo o desenvolvimento deles, do que depois que eles já aprenderam as rotinas diferentes da casa. [...] Porque agora eles acostumam mais fácil com a rotina do que um pouquinho maior.
As expectativas referentes à transição incluem uma antecipação imaginativa de cenários do que o bebê poderá precisar e vivenciar atrelada a expectativas de como o funcionamento institucional se relacionará com aquela criança e atenderá às suas necessidades (White et al., 2020; Winther-Lindqvist, 2021). Através das expectativas, concepções semioticamente geradas, culturalmente compartilhadas e socialmente valorizadas emergem e se materializam na constituição de um tempo presente contextualizado que passam a circunscrever a construção de trocas sociais ao longo do tempo (Scorsolini-Comin e Amorim, 2008).
Nesse sentido, desde o tempo anterior ao ingresso, a relação entre transição e rotina já é indicada como sendo um aspecto distintivo no contraste entre os contextos doméstico e institucional. A particularidade do contexto coletivo e uma maior divisão de tarefas entre adultos são aspectos antecipados pela mãe como algo que possibilitará que rotinas mais estáveis sejam estruturadas, o que é compreendido, inclusive no corpo social, como algo desejável no desenvolvimento do bebê. Além disso, a expectativa de que o bebê mais novo consiga se acostumar com maior facilidade à mudança de rotinas de certo modo canaliza o momento/a idade no qual a mãe realiza a decisão de matricular a filha na instituição.
Em vista desses elementos que já emergem anteriormente ao ingresso, passamos a olhar a caracterização da instituição e sua estruturação do momento de ingresso, atendo-se ao recorte da rotina matinal.
O ENCONTRO BEBÊ-INSTITUIÇÃO E OS TEMPOS DO INGRESSO E FREQUÊNCIA INICIAL
A instituição onde Sofia foi matriculada destinava ao grupo de bebês um espaço de cômodo único amplo e arejado que era subdividido internamente compondo duas grandes áreas distintas, uma voltada para banho, troca e alimentação e outra mais ampla equipada com tatame de EVA para permanência dos bebês (que costumavam ficar no chão). Como estratégia de transição, a entrada dos bebês era escalonada ao longo da primeira semana, havendo o ingresso de poucos bebês por semana e sua estadia sendo progressivamente aumentada. Os pais não adentravam a sala desse grupo nem mesmo na semana de recepção. As conversas entre pais e professores acerca de rotinas e hábitos do bebê geralmente ocorriam nos momentos de chegada e saída e geralmente se davam de modo espontâneo a partir de acontecimentos específicos do dia.
O horário de funcionamento dessa instituição era integral: o atendimento era iniciado às 07h e encerrado às 16h30. Porém, conforme recorte deste artigo, discutiremos apenas a rotina do período da manhã, que é esquematizado no Quadro 1, e nos ateremos a uma caracterização mais detalhada das rotinas de sono a seguir. Tão logo os bebês chegavam, eram colocados em aparatos de bebê conforto para dormirem - esse sono mais breve durava das 07h às 08h. É indicado que um dos motivos por que a creche previa esse primeiro sono logo na chegada era o horário de trabalho dos pais, que exigia que os bebês acordassem muito cedo antes de irem à creche. Passada essa soneca, os bebês acordavam - ou eram acordados - às 08h, quando tinham o horário da mamadeira e depois o horário para brincar. Nesses períodos, as professoras se dividiam entre ficar com os bebês brincando no salão e conduzir os banhos e as trocas de fraldas. Às 10h, as professoras colocavam os bebês nas cadeirinhas de bebê conforto, enfileiravam os aparatos próximos à cerquinha e ofereciam o almoço. Terminado o almoço, o salão era reorganizado, com colchonetes sendo dispostos no chão, para o horário de sono dos bebês, que durava cerca de duas horas - das 11h às 13h.
Rotina | ||
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Manhã | 07h-08h | Sono breve |
08h-10h | Mamadeira/brincadeira/banho e trocas | |
10h-10h30 | Almoço | |
Manhã/tarde | 11h-13h | Sono prolongado |
Fonte: Elaboração das autoras.
A Figura 1 esquematiza a contabilização dos períodos de sono de Sofia no curso das três primeiras datas de coleta, indicando-se o tempo que era atribuído pela instituição para as rotinas que antecipavam o sono ou a vigília do bebê, e os momentos em que ela teve sonos mais breves e picados (que indicamos como soneca) ou mais prolongados (que indicamos como sono).
Por meio da Figura 1, identificamos que, em relação às proposições de rotinas de sono, no período do mês inicial, Sofia não adormeceu plenamente no primeiro horário proposto de sono em nenhum dos dias de coleta (apenas tirou uma breve soneca no primeiro dia bem no fim do período). Na sequência da rotina que inaugurava o período da vigília, quando as professoras posicionavam os bebês no chão e lhes ofereciam brinquedos ou organizavam atividades mais estruturadas, observou-se que Sofia comumente demonstrava sinais de sono (bocejos, coçar os olhos, expressão de cansaço, etc.) e frequentemente passava a chorar. O sono parecia também afetar seu humor e sua disposição para brincar a ponto de Sofia ter o choro intensificado, recusar as atividades propostas e não se mostrar disposta a interagir com adultos e outros bebês nesses momentos.
Em vista da persistência do choro, as professoras passaram a pegá-la no colo, buscar consolá-la e eventualmente niná-la até que dormisse. Nesse momento, ela era colocada em um dos berços e era permitido que ela dormisse por um tempo, apesar de a maioria do grupo estar acordada. Assim, em todas as datas de coleta do primeiro mês, Sofia teve sonecas “fora de horário” no período da manhã. Nota-se, pela Figura 1, que, mesmo quando mais intermitente, as sonecas e os sonos “fora de hora” totalizavam cerca de uma hora, tal qual o período proposto pela instituição, porém em momento deslocado da cronologia atribuída por ela para os ciclos de sono e vigília do bebê.
Geralmente, após essa soneca de Sofia, ela era acordada para a troca de fralda ou o almoço. Nesses momentos, Sofia comumente já apresentava melhor humor e maior engajamento com as atividades e com os outros. Como exemplo, logo no primeiro dia, após sua soneca, apresentou episódios de olhar atento e sorriso voltado a outro bebê. Esse processo é ilustrado e exemplificado pela Figura 2.
Por fim, quanto ao horário de sono prolongado, este passa a ser estabelecido na rotina de Sofia mais a partir da segunda e terceira coletas, momento em que o bebê-focal já permanecia em período integral. Esse segundo horário de sono já passa a gradativamente incidir maior coincidência entre os ritmos do bebê-focal e a instituição, conforme indicado pela Figura 1, apesar de que, possivelmente por conta da soneca da manhã, Sofia tende a demorar um pouco mais para adormecer em relação ao grupo (conforme verificado através das videogravações). Desse modo, os horários de sono mostraram-se como bastante significativos em sua experiência de transição, conforme será discutido a seguir.
DISCUSSÃO
Os resultados apresentados indicam que a (re)constituição do cotidiano do bebê ingressante em seu processo de transição pode se dar a partir de um contraste significativo entre ritmos e proposições de rotinas, exemplificados pelo recorte do sono. No caso, esse contraste se mostra persistente ao longo do primeiro mês, notadamente no que se refere ao primeiro horário de sono proposto pela instituição. O contraste sinaliza uma espécie de descompasso entre os tempos herdados do bebê focal do contexto domiciliar e os tempos herdados pela instituição, sua estruturação e relação com uma de suas comunidades externas.
Em relação à complexidade temporal que se manifesta em e através de práticas institucionais, é indicado que o processo de transição abarca diversas escalas de tempo e temporalidades. Tais dimensões de temporalidade podem se constituir de modo mais linear ou circular, se manifestando simultaneamente em sequências de eventos e ciclos diários, semanais, mensais ou mesmo anuais, e, portanto, não se reduzindo a séries padronizadas de tempo reguladas pela cronologia do relógio (Pacini-Ketchabaw, 2012; Bollig, 2018).
Porém, é importante não se perder de vista que o tempo é central na contabilização de persistência de práticas da vida social e que os ritmos e as rotinas institucionalmente propostos carregam ideais culturais e mesmo ideológicos (Rossetti-Ferreira, Amorim e Silva, 2004; Blue, 2019; Herold et al., 2022) que se materializam e são negociados no aqui-agora do tempo presente das relações sociais. Até mesmo o sono, entendido como uma simples necessidade orgânica, passa a ser regulado de modo coletivo, sendo circunscrito por rotinas, ritmos e tempos que “[...] configuram o ethos da situação social.” (Silva e Muller, 2017, p. 87).
Nesse sentido, o caso indica que a transição é atravessada pela negociação de tempos orgânicos do bebê em relação a uma construção histórica do tempo da instituição (Pairman, 2018; Herold et al., 2022) que, por exemplo, através da estruturação de rotinas de sono, se remetem e buscam atender a demandas de ordem trabalhista, tanto externas (por exemplo, o horário industrial refletindo no primeiro sono) quanto internas (por exemplo, o sono mais longo que permitia às professoras terem seu horário de almoço). Nessa transação temporal, o corpo é “[...] marcado e afetado pelas práticas historicamente construídas [...]”, tais marcas e efeitos se reproduzindo e impactando os sujeitos em relação (Smolka, 2004, p. 43) e os diferentes ritmos se interconectam uns com os outros, tensionando interesses e processos individuais e coletivos no contexto institucional (Pairman, 2018; Birkerland, 2019; Blue, 2019). Frente a essa complexidade de elementos que constituem essa dimensão da transição, as tensões podem ser lidadas com uma postura de menor ou maior flexibilidade pela instituição.
Dessa forma, a organização institucional buscando viabilizar a flexibilidade nas práticas diversas é indicada como elemento central na transição (Peixoto et al., 2017). No caso discutido, a flexibilidade das professoras em permitirem e auxiliarem Sofia a adormecer em horários fora da rotina repercutiu de forma significativa em seu processo, evidenciado pela clara mudança de humor e engajamento após sonecas curtas. Cumpre também apontar que a disponibilidade física de um lugar para a soneca fora de hora (por exemplo, um berço) representa como elementos do espaço podem favorecer que ritmos diferentes coexistam no grupo e as crianças tenham o contraste de seus tempos acolhidos (Pairman, 2018; Blue, 2019).
Do ponto de vista das professoras, elas também precisaram de tempo e interações com o bebê para aprenderem a reconhecer suas manifestações e proporem práticas alternativas. É apontado que a transição pode ser beneficiada por uma maior diversificação das práticas conduzidas por autores e entidades diversos e que a parceria instituição-família é fundamental para que as discrepâncias sejam compreendidas a partir dos respectivos contextos que constituem determinados hábitos do bebê (Coelho et al., 2015; Peixoto et al., 2017). Portanto, também central no quesito de ritmos contrastantes ao longo da transição é que seja mantida a comunicação entre famílias e professoras de modo que o fluxo temporal do bebê em curso através do entrecruzamento dos contextos seja apreendido e tratado de modo mais integrado e compartilhado (Grande et al., 2017; Coelho et al., 2018).
Por fim, no que se refere à questão da rotina coletiva, é indicado que, do ponto de vista prática educacional, ela pode configurar uma ferramenta pedagógica na estruturação do cotidiano da criança ingressante (Barbosa, 2010). A recorrência de eventos atrelados a marcadores de referência temporal e espacial podem vir a contribuir para tornar o cotidiano mais previsível, sendo um eixo organizador da memória, história e identidade social do bebê (Barbosa, 2013; Behar, 2015; Dentz et al., no prelo). No entanto, apesar do ideal social de ajustamento síncrono através do estabelecimento de rotinas, concepção aqui materializada discursivamente (Rossetti-Ferreira et al., 2004), é importante que haja abertura para se reconhecer o contraste, o descompasso, os percursos divergentes e o seu significado para o processo do bebê (Amorim et al., 2004; Vuorisalo, Raittila e Rutanen, 2018). Tal postura se mostra fundamental para que a transição não configure a subjugação do sujeito aos tempos coletivos (Barbosa, 2000; Pacini-Ketchabaw, 2012), mas que seja legitimada dentro de sua trajetória relacional que as negociações sejam possíveis e as que as práticas possam ser devidamente (re)pensadas, (re)avaliadas ou reforçadas a partir dos processos que se desdobram.