1 Introdução
O uso de instrumentos específicos da Terapia Ocupacional no Brasil faz-se essencial, visto que a utilização de avaliações pelos terapeutas ocupacionais é primordial para uma intervenção que identifque e favoreça a participação em ocupações significativas para os sujeitos-alvo (Cruz et al., 2019; Mazak, 2021).
Há ainda uma necessidade de mudança de paradigma em que as avaliações não se restrinjam ao foco nas deficiências, mas na ampliação sobre as competências do sujeito e nas variáveis ambientais que oferecem suporte à participação ocupacional, contribuindo para melhores possibilidades de produção de vida (Mazak, 2021; Tedesco, 2000). Dessa forma, os instrumentos de avaliação baseados no Modelo de Ocupação Humana (MOHO) têm buscado avançar nesse sentido (Cruz, 2018; Kielhofner, 1985; Mazak, 2021; Mendes, 2020; Taylor & Kielhofner, 2017).
O MOHO trata de um Modelo de Prática focado na ocupação e baseado em evidências. A partir de uma compreensão de modelos de sistemas dinâmicos, o MOHO considera quatro elementos que interagem dinamicamente: a volição7, a habituação8, a capacidade de desempenho e o ambiente. Seus referenciais teóricos, de avaliação e de intervenção objetivam a facilitação da participação e a adaptação ocupacional de pessoas que, por alguma restrição, têm a sua participação ocupacional afetada (Cruz, 2012; Kielhofner, 1985; Mazak, 2021; Taylor & Kielhofner, 2017).
A literatura aponta que o MOHO tem sido utilizado em todos os campos de atuação da Terapia Ocupacional e com pessoas de todas as idades, evidenciando a fexibilidade e a versatilidade como suas características principais, visando compreender a relação do sujeito e seus contextos de vida, de acordo com as possibilidades e a restrição nas ocupações (Kielhofner et al., 1980; Mazak, 2021; Mendes, 2020).
Ao utilizar um modelo de prática na Terapia Ocupacional, como o MOHO, há possibilidades de melhor embasar a avaliação e a intervenção com as pessoas, incluindo as crianças e os adolescentes. Assim, o SCOPE é um instrumento de avaliação que tem por objetivo avaliar como a volição, a habituação, as habilidades e o ambiente facilitam ou restringem a participação de crianças e adolescentes nas ocupações (Bowyer et al., 2008; Mazak, 2021).
O SCOPE pode ser aplicado com bebês, crianças e jovens (abrangendo do nascimento aos 21 anos), e em diversos contextos de prática da Terapia Ocupacional, em que possivelmente exista algum prejuízo na participação ocupacional, por exemplo, na escola, em casa ou em outros ambientes, independentemente de sintomas, diagnóstico, deficiência, idade ou situação de tratamento (Bowyer et al., 2008; Mazak, 2021). Ressalta-se que o instrumento não é autoaplicável; assim, é necessário ser aplicado pelo terapeuta ocupacional.
O SCOPE consiste em 25 itens organizados em seis seções baseadas nos conceitos do MOHO: 1- Volição, 2- Habituação, 3- Habilidades de Comunicação e Interação, 4-Habilidades Processuais, 5- Habilidades Motoras e 6- Ambiente (Bowyer et al., 2008, Mazak, 2021). As primeiras cinco seções tratam dos fatores pessoais da criança/adolescente e o impacto deles na participação e no desempenho. Nessas seções, é a criança/adolescente que está sendo avaliada. A última seção explora como o ambiente afeta a capacidade da criança/adolescente de participar e desempenhar ocupações. Nessa seção, é o contexto que está sendo avaliado (Bowyer et al., 2008).
A pontuação é feita por meio de quatro categorias que avaliam se determinado item facilita (F), permite (P), inibe (I) ou restringe (R) a participação ocupacional da criança/adolescente (“F” vale quatro pontos, “P” vale três, “I” vale dois e “R” vale um ponto). A pontuação mínima do SCOPE é de 25 pontos e a máxima é de 100 pontos. Quanto mais alta a pontuação, maior é a participação ocupacional da criança ou adolescente; enquanto escores mais baixos mostram se a inibição ou restrição estão relacionadas ao cliente ou ao ambiente, indicando o foco da intervenção. Nesse instrumento, a criança nunca zera a pontuação, algo que é extremamente significativo, principalmente para a visão das famílias (Mazak, 2021).
O SCOPE já foi traduzido para os idiomas finlandês, alemão e esloveno (Model of Human Occupation Website [MOHO WEB], 2021), e o presente estudo acrescenta o português brasileiro, sendo este o primeiro estudo de adaptação transcultural do SCOPE da América do Sul.
As pesquisas realizadas com o SCOPE apontam que o instrumento apresenta boas propriedades psicométricas, medindo com precisão o constructo da participação ocupacional. Os profissionais aplicadores interpretam os itens de maneira consistente, semelhante e válida (Bowyer et al., 2007; Kramer et al., 2009). O SCOPE é de fácil administração e possui uma abordagem top-down9, favorecendo que o terapeuta selecione metas que enfocam a participação ocupacional da criança e do adolescente, além de permitir que a família veja as potencialidades de seu filho (Bowyer et al., 2007; Bowyer et al., 2012).
A literatura aponta que os terapeutas ocupacionais podem aliar a utilização do SCOPE com outros instrumentos, visto que essa combinação ajuda a compor o perfil ocupacional10 da criança e do adolescente, fornecendo fexibilidade a fim de obter melhores resultados nas intervenções (Bowyer et al., 2008; Canadian Association of Occupational Therapists [CAOT], 1996; Cruz, 2018; Mazak, 2021; Taylor & Kielhofner, 2017).
As avaliações focadas na participação ocupacional fornecem grande contribuição no processo de inclusão, na medida em que oferecem informações que permitem a compreensão dos aspectos que infuenciam na participação de crianças e adolescentes, gerando dados para intervenções objetivas e na produção de pesquisas que permitam mapear as necessidades e propor soluções efetivas. Nessa direção, o SCOPE pode trazer contribuições para ações do terapeuta ocupacional em interface com a Educação Especial tanto com ações preventivas, protetivas e de educação (Cruz et al., 2019). Diante disso, o objetivo do presente artigo foi descrever o estudo metodológico da adaptação transcultural do SCOPE para o português brasileiro.
2 Método
Nesta seção, discorre-se sobre os trâmites éticos desta pesquisa, o tipo de estudo, os procedimentos, os quais envolveram seis etapas, e a análise de dados.
2.1 Considerações éticas
Este estudo foi submetido e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) em Seres Humanos de uma Universidade Pública Federal. Todos os participantes (responsáveis pelas crianças e adolescentes atendidos por terapeutas ocupacionais) autorizaram sua participação na pesquisa, assinando o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).
2.2 Tipo de estudo
Os resultados detalhados neste artigo são de um estudo metodológico de adaptação transcultural, de corte transversal e de abordagem quantitativa (Sampieri et al., 2013). Esse processo baseou-se nas etapas do método proposto por Beaton et al. (2000), visando alcançar a equivalência entre o idioma original e a versão adaptada (idioma desejado) do instrumento. O estudo foi desenvolvido em uma Universidade Pública do Estado de São Paulo, Brasil. Os dados foram coletados via e-mail com terapeutas ocupacionais que compuseram o Comitê de Especialistas, e via entrevistas online com famílias de crianças e adolescentes que estavam sendo atendidos por terapeutas ocupacionais da referida Universidade.
2.3 Procedimentos
Os procedimentos envolveram seis etapas descritas na sequência.
Etapa I – Tradução inicial: Conforme sugerido por Wild et al. (2005), a primeira autora deste estudo contatou a equipe responsável pelas autorizações de traduções de instrumentos de avialiação na Model of Human Occupation Clearinghouse (localizado no Department of Occupational Therapy, College of Applied Health Science – University of Illinois Chicago, Estados Unidos). Após a aprovação, dois tradutores independentes (T1 e T2) iniciaram a tradução do SCOPE de seu idioma original (inglês) para o idioma “alvo” (português). O tradutor 1 (T1) foi uma terapeuta ocupacional fuente em inglês, com conhecimento sobre a temática do instrumento, enquanto o tradutor 2 (T2) foi um tradutor profissional de línguas, que, portanto, desconhecia os conceitos do instrumento, conforme recomendação das Diretrizes (Beaton et al., 2000).
Etapa II – Síntese das traduções: Depois de produzidas as duas versões da tradução, os tradutores T1 e T2 se reuniram presencialmente para discutir as discrepâncias, sendo criada em conjunto a síntese da tradução em comum – versão T12 (Beaton et al., 2000).
Etapa III – Retrotradução: Nessa etapa, outros três tradutores (um deles nativo da língua inglesa), que não conheciam o instrumento original, fzeram individualmente a retrotradução da versão T12, isto é, traduziram essa síntese de volta para o idioma original. Essa etapa teve o objetivo de garantir que a versão traduzida refetisse o mesmo conteúdo dos itens da versão original do SCOPE (Beaton et al., 2000).
Após a solução de discrepâncias entre as retrotraduções (realizada pela principal autora deste estudo junto aos retrotradutores), obteve-se uma versão síntese, denominada RT12. Essa síntese foi enviada à principal autora do SCOPE via correio eletrônico, para que pudesse ser feita uma comparação da retrotradução com o instrumento original, verificando se refetiam o mesmo conteúdo. Desse processo, emergiu a versão RT12 revisada.
Etapa IV – Comitê de especialistas: Um Comitê, composto por uma amostra de conveniência de dez especialistas, foi criado com o objetivo de validar a versão preliminar do instrumento e habilitá-la para o pré-teste (Beaton et al., 2000). Todos esses dez especialistas eram terapeutas ocupacionais e foram convidados por atuarem em diversos campos da Terapia Ocupacional em infância e adolescência e/ou por terem conhecimento aprofundado no MOHO e em pesquisas de adaptação transcultural. Uma tabela foi criada para análise comparativa, com o instrumento desmembrado em 179 frases independentes para que o Comitê de Especialistas verificasse se a versão traduzida em português era compatível com a versão original do SCOPE em relação às equivalências11: semântica (ES), idiomática (EI), experiencial (EE) e conceitual (EC).
Etapa V – Validade de face: A versão preliminar do SCOPE traduzido para o português do Brasil foi aplicada com 20 responsáveis pelas crianças e pelos adolescentes atendidos por terapeutas ocupacionais, vinculados a uma instituição do tipo clínica-escola de uma universidade pública. Em virtude da Pandemia da COVID-19 (Organização Pan-Americana de Saúde & Organização Mundial da Saúde [OPAS & OMS], 2020), diante da impossibilidade do contato presencial, essa etapa foi executada em formato virtual (online), por meio de entrevista por videochamada. Os critérios de inclusão para participar dessa fase do estudo foram: ser responsável por uma criança/adolescente com idade entre 0 e 18 anos, atendido(a) pela Terapia Ocupacional no referido serviço, independentemente do diagnóstico. Os critérios de exclusão no estudo foram crianças/adolescentes que moravam em abrigos, responsáveis que não tinham o português como primeiro idioma, cuja capacidade cognitiva fosse insuficiente para o entendimento das questões do instrumento de avaliação, identificada por intermédio da aplicação do teste de rastreamento cognitivo Mini Exame do Estado Mental (MEEM)12 (Folstein et al., 1975).
Em relação aos instrumentos de coleta de dados, inicialmente foi enviado via online um formulário para preenchimento de alguns dados para caracterização da amostra. As entrevistas foram realizadas em um encontro único, sendo aplicado o MEEM e, em seguida, a versão preliminar do instrumento. Cada um dos participantes do pré-teste respondeu ao SCOPE e foi entrevistado referente ao seu entendimento sobre cada item e à resposta dada. De acordo com Mendes (2020), esse processo garante que a versão preliminar possua equivalência em uma situação real de avaliação.
Ao final de cada coleta de dados, os participantes responderam a um questionário elaborado pelos autores com o objetivo de avaliar sua compreensão sobre o conteúdo do instrumento e, também, identificar aspectos em que ele pudesse ser melhorado para se adequar ao contexto brasileiro.
Etapa VI – Revisão final: Essa última etapa foi realizada via correio eletrônico e consistiu na revisão feita pela autora do instrumento original, quando lhe foi apresentado o relatório final de todo o processo de adaptação transcultural do SCOPE, a fim de verificar o êxito dos registros de todas as etapas. Esse processo buscou garantir a precisão e a minuciosidade da adaptação transcultural, mantendo as características mais importantes da versão original e justificando as alterações para o contexto sociocultural brasileiro.
2.4 Análise de dados
A análise dos dados obtidos na tradução, a reconciliação das versões e a verificação das equivalências entre as versões foi realizada por meio de estatística descritiva simples, apresentando distribuição de frequências e percentuais. Além disso, os dados qualitativos de todos os documentos foram organizados em quadros, com uma análise feita a partir de descrições referentes a cada etapa. Um índice de concordância <80%, obtido pela fórmula IC= (n de concordâncias × 100)/n concordâncias + discordâncias, foi o critério adotado para reformular os itens do SCOPE durante a etapa de Comitê de Especialistas.
3 Resultados
Os resultados apresentados na sequência são referentes a cada etapa dos procedimentos.
Etapa I e II – Tradução e Síntese das traduções: Foram encontradas divergências entre as traduções T1 e T2 no que se refere aos termos sinônimos: suporte – apoio; alegria – contentamento; solícito – disposto; antecipar – premeditar; dicas – sinais; espaço – ambiente; sendo esses termos facilmente substituídos um pelo outro a partir do acordo entre os tradutores. Contudo, um termo era próprio da Terapia Ocupacional, como o termo engaja (em vez de envolve), pois engajamento refete uma participação ativa e com significado, diferentemente de apenas “envolvimento”, sendo importante mantê-lo.
Assim, os tradutores analisaram as divergências, sendo em parte adaptadas as expressões mais utilizadas pela área da Terapia Ocupacional, e, também, sendo escolhidos termos mais comuns e literais em inglês, favorecendo o sentido das frases em português, sem se esquivar do significado original. Além disso, optou-se por manter a sigla do instrumento original, visando preservar sua identidade e fácil reconhecimento pela comunidade internacional para efeitos de publicações futuras de estudos conduzidos no Brasil.
Etapa III – Retrotradução: A versão retrotraduzida foi comparada com a versão original do SCOPE em inglês para verificar a compatibilidade dos itens. Nessa etapa, foram encontradas divergências entre as retrotraduções no que se refere aos termos a seguir, optando-se por manter o termo skills em vez de abilities; gross and fine motor movements em vez de thick and thin physical movement, household em vez de residence, e, ainda, cues em vez de tips. As alterações e a decisão final foram feitas pela principal autora deste estudo com os retrotradutores, a partir do sentido mais compatível aos termos do instrumento original. Observou-se que as considerações da autora principal foram majoritariamente sobre a verificação de palavras que se distinguiam do significado proposto originalmente, como, por exemplo, substituir Spacial Orientation por Orientation to Enviroment.
Etapa IV – Comitê de especialistas: Dentre os dez terapeutas participantes dessa etapa, dois possuíam pós-doutorado, seis eram doutores e dez, mestres. Nessa etapa, o comitê comparou o SCOPE original e a versão brasileira para verificar as equivalências semântica, idiomática, cultural e conceitual dos itens. Considerando o Índice de Concordância de Pasquali, devendo haver uma concordância de ao menos 80% entre os especialistas sobre os itens, os resultados mostraram que, em 31 das 179 frases do instrumento, houve um índice de concordância menor que 80%. A fim de potencializar a análise sobre as sugestões dos especialistas, não só as frases com menor índice de concordância foram analisadas, mas, sim, todas as sugestões foram levadas em consideração, o que fez com que se pudesse obter um maior panorama de ajustamentos do instrumento.
Os ajustes pautaram-se nos termos mais utilizados na Terapia Ocupacional brasileira, bem como os termos característicos do MOHO, como engaja (engages) em vez de envolve, alcançar/realizar (to achieve) em vez de conseguir, desempenhar (to perform) em vez de realizar. Nessa etapa, também se iniciou o processo de mudança no nome do instrumento para Perfil Ocupacional Infantojuvenil Breve (SCOPE-Brasil), juntamente ao acréscimo da palavra adolescente acompanhado de criança em todo o instrumento.
Etapa V – Validade de face: A partir dos resultados do MEEM, todos os participantes foram cognitivamente13 capazes de avaliar a versão brasileira do SCOPE (com obtenção de uma pontuação média de 27,6). A Tabela 1 ilustra a caracterização e as informações fornecidas por essa amostra.
Característica | Quantidade (n) | |
---|---|---|
Parentesco com a criança/Adolescente | Mãe | 17 |
Madrinha | 2 | |
Pai | 1 | |
Escolaridade | Ensino Médio concluído | 11 |
Pós-Graduação concluída | 4 | |
Ensino Superior não concluído | 3 | |
Ensino Superior concluído | 1 | |
Ensino Fundamental não concluído | 1 | |
Idades das crianças/adolescentes filhos dos participantes | 3 a 6 anos | 8 |
7 a 11 anos | 6 | |
12 a 17 anos | 6 | |
Diagnóstico15 das crianças/adolescentes filhos dos participantes | Transtorno do Espectro Autista (TEA) | 8 |
Paralisia Cerebral | 3 | |
TDAH | 2 | |
Síndrome de Down | 2 | |
Anoxia Leve | 1 | |
Transtorno do Processamento Sensorial | 1 | |
Dermatite atópica de fundo emocional e Depressão | 1 | |
Fibrose hepática | 1 | |
Sem diagnóstico | 1 | |
Total | 20 |
A Tabela 2 mostra a frequência das respostas obtidas pelos 20 participantes referentes à compreensão das frases de cada item das seis seções do SCOPE, sendo possível verificar que os respondentes apresentaram níveis bons ou ótimos de compreensão dos enunciados do instrumento.
De forma geral, referente à compreensão das frases do instrumento, como você avalia? | ||
---|---|---|
Quantidade (n) | Porcentagem (%) | |
Ótima | 12 | 60% |
Boa | 8 | 40% |
Regular | 0 | 0% |
Ruim | 0 | 0% |
Péssima | 0 | 0% |
Em relação aos itens que apresentaram menos clareza para alguns participantes, enfatiza-se que foram dados os exemplos que o próprio manual14 do instrumento SCOPE oferece. Esses exemplos são claros, bem direcionados e adequados para cada item, porém foram dados sempre os mesmos para os participantes que tiveram dúvidas, para que não houvesse nenhum viés. Todos os participantes que pediram exemplos apontaram que a partir deles houve maior facilidade e compreensão do item do instrumento. A partir de todos os apontamentos coletados nessa fase de pré-teste, foi possível adequar melhor os termos, simplificar as frases e diminuir as repetições. A Tabela 1 apresenta as principais alterações realizadas após a etapa de Pré-Teste.
Destaca-se que os termos do instrumento que se referem à linguagem cultural foram modificados e substituídos por sinônimos sem qualquer prejuízo no sentido a fim de simplificar e melhor adaptar ao contexto brasileiro (como: substancial por grande; regularmente por frequentemente; verbalizar por falar; selecionar por escolher, entre outros).
Optou-se por não alterar os termos de linguagem técnica, como modular, coordenação motora fina e grossa e papéis, bem como não inserir exemplos entre parênteses no instrumento, considerando que o manual do instrumento oferece os exemplos esclarecendo possíveis dúvidas relacionadas aos itens. Além disso, trata-se de termos primordiais tanto para a Terapia Ocupacional quando para o MOHO. Justifica-se essa escolha pelo fato de que o SCOPE não é autoaplicável, ou seja, é necessária a presença do profissional para aplicar o instrumento com o cliente ou seu responsável e esclarecer as dúvidas técnicas por meio dos exemplos ofertados no manual, assim como ocorreu na coleta de dados.
Etapa VI – Revisão final: Foi entregue o relatório final para apreciação feita pela principal autora do instrumento SCOPE, Dra. Patricia Bowyer. As principais mudanças que deveriam ser avaliadas pela autora foram: a inserção do termo adolescente ao lado de criança em todo o instrumento, inclusive no título; substituições de palavras como identidade no lugar de ID (em inglês); e a opção de deixar em aberto a resposta para gênero da criança/adolescente, ao invés de masculino ou feminino.
A autora realizou a apreciação do documento, respondeu a todas as dúvidas, autorizou todas as modificações e aprovou a versão final do instrumento adaptado para o contexto brasileiro atualmente intitulado Perfil Ocupacional Inicial da Criança e do Adolescente (SCOPE-Brasil).
Seção | Item | Antes do pré-teste | Após o pré-teste |
---|---|---|---|
Volição | Exploração | A criança/o(a) adolescente requer apoio substancial, dicas ou incentivo para iniciar e sustentar comportamentos exploratórios. | A criança/o(a) adolescente requer grande apoio, dicas ou incentivo para iniciar e sustentar comportamentos exploratórios. |
Habituação | Atividades de vida diária | A criança/o(a) adolescente regularmente precisa de orientações e dicas para saber como fazer atividades diárias corriqueiras de autocuidado e participar no desempenho delas. | A criança/o(a) adolescente frequentemente precisa de orientações e dicas para saber como fazer atividades diárias de autocuidado e participar no desempenho delas. |
Papéis | A criança/o(a) adolescente constantemente demonstra comportamentos relacionados ao seu papel; consegue verbalizar as expectativas relacionadas ao seu papel ou seleciona e desempenha atividades relacionadas ao seu papel. | A criança/o(a) adolescente constantemente demonstra comportamentos relacionados ao seu papel; consegue falar sobre as expectativas relacionadas a ela/a ele ou escolhe e desempenha atividades relacionadas a ela/a ele. | |
Ambiente | Espaço físico | A organização do ambiente físico oferece um leque limitado de oportunidades com acessibilidade e suporte limitados para a participação ocupacional nos papéis valorizados pela criança/pelo(a) adolescente. | A organização do ambiente físico oferece uma variedade limitada de oportunidades com pouca acessibilidade e suporte limitados à participação ocupacional nos papéis valorizados pela criança/ pelo(a) adolescente. |
Grupos sociais | O ambiente social é apto, disposto ou capaz de oferecer ações ideais e apropriadas para dar suporte à participação ocupacional da criança/do(a) adolescente. | O ambiente social é adequado, disposto ou capaz de oferecer atitudes ideais e apropriadas para dar suporte à participação ocupacional da criança/do(a) adolescente. | |
Demandas ocupacionais | As demandas ocupacionais frequentemente afetam o engajamento ocupacional da criança/do(a) adolescente devido a incompatibilidades com as habilidades, interesse, energia ou tempo disponível da criança. | As demandas ocupacionais frequentemente afetam o engajamento da criança/do(a) adolescente nas ocupações porque elas não são compatíveis com as habilidades, interesse, energia ou tempo disponível da criança/do(a) adolescente. | |
Dados pessoais | Identificação | Identidade |
4 Discussão
O presente estudo consistiu na adaptação transcultural do instrumento de avaliação The Short Child Occupational Profile (SCOPE) para o português brasileiro.
Foi possível observar que os resultados decorrentes das primeiras etapas de tradução, sínteses e retrotradução, indicaram dez modificações no instrumento, as quais foram pontuais e de fácil resolução entre os tradutores e retrotradutores. Mais especificamente em relação à Etapa III (Retrotradução), pode-se afirmar que, para o presente estudo, essa etapa foi fundamental para a melhora do processo de tradução, pois contou com a análise criteriosa da principal autora do instrumento original.
Atualmente existe uma discussão acerca da necessidade da retrotradução em estudos de adaptação transcultural. Por meio de evidência experimental, os achados do estudo de Epstein et al. (2015) indicam que a retrotradução tem impacto moderado no processo de tradução de instrumentos de avaliação. Isso é dito, pois, ao compararem três tipos de procedimento de adaptação transcultural de um mesmo instrumento (1- apenas retrotradução; 2- ambas retrotradução e comitê de especialistas; e 3- apenas comitê de especialistas), concluiu-se que o estudo no qual foi feito apenas a retrotradução não teve uma tradução adequada, enquanto o que utilizou ambas, teve a melhor tradução. Mesmo assim, as diferenças entre o estudo de ambas com o de apenas comitê de especialistas não foram suficientes para justificar o procedimento de retrotradução naquele cenário específico (Epstein et al., 2015). Nesse sentido, os autores afirmam que somente o comitê de especialistas já contribui com melhorias substanciais para o processo de adaptação cultural.
Contudo, como destacado previamente, os resultados do presente estudo apontam para outra direção. A relevância dos ajustes feitos pelos retrotradutores e a articulação com a principal autora do instrumento original trouxeram benefícios e mais rigor ao processo, pois favoreceram a resolução de problemáticas das traduções, uma vez que a informação obtida a partir do contato com a autoria original pôde ajudar a pesquisadora a determinar a tradução mais apropriada, aspecto também apontado no estudo anterior (Cruz et al., 2020).
As etapas seguintes foram as que sofreram maiores modificações. Na etapa de Comitê de Especialistas, foi necessária uma análise comparativa dos termos em português e inglês, pautada no referencial teórico do MOHO e, também, na cultura brasileira e língua portuguesa oficial, além da inserção do termo adolescente no instrumento. Na análise comparativa entre os termos em português e em inglês, a maior quantidade de sugestões pelo comitê foi em relação à equivalência semântica; assim, o significado das palavras pode indicar a importância do estudo dos conceitos do MOHO, o que está de acordo com o estudo recentemente publicado por Bugajska e Brooks (2020).
Esses autores apontam que, apesar de o MOHO e seus conceitos serem amplamente utilizados, ainda há dificuldades identificadas, como a falta de conhecimento e confiança dos terapeutas ocupacionais com esses conceitos, principalmente em relação à comunicação com a equipe multidisciplinar ou com os pacientes quando se trata de resultados advindos de avaliações do MOHO (Bugajska & Brooks, 2020). Nesse caminho, a principal autora do instrumento de avaliação MOHOST (versão adulta do SCOPE) reconheceu essa questão e mudou algumas das terminologias para facilitar a tradução para outras pessoas. Por exemplo, volição tornou-se motivação para ocupação. No entanto, isso é algo delicado, pois adaptar em demasia esses conceitos pode levar à perda da especificidade da terminologia da Terapia Ocupacional (Bugajska & Brooks, 2020).
Dessa forma, o estudo de Bugajska e Brooks (2020) concluiu que, após a superação de barreiras iniciais, a utilização dos conceitos do MOHO apoia a prática focada na ocupação, estimula a refexão profissional e aprimora o perfil profissional do terapeuta ocupacional. Ademais, as intervenções que utilizam conceitos dos modelos de prática, como o MOHO e seus instrumentos de avaliação, podem ter resultados significativamente melhores no desempenho ocupacional e na qualidade de vida dos sujeitos em comparação com a não utilização de quaisquer modelos ocupacionais na prática (Bugajska & Brooks, 2020). Assim, de acordo com os autores, o mínimo de treinamento pode ser uma alternativa bem-vinda para os terapeutas que querem utilizar os instrumentos do MOHO para trabalhar com as diversas populações, incluindo crianças e adolescentes. Nessa perspectiva, ressalta-se a importância de compreender-se os conceitos do MOHO para administração de instrumentos como o SCOPE-Brasil e, assim, fomentar maior embasamento e profundidade do raciocínio terapêutico visando a participação ocupacional.
Ainda sobre as principais modificações no instrumento, durante a Etapa IV e a Etapa V destaca-se a inserção do termo adolescente ao lado de criança em todo o corpo do instrumento, e também no título: Perfil Ocupacional Inicial da Criança e do Adolescente (SCOPE-Brasil). Essa alteração ressoou positivamente para os participantes durante o Pré-teste e, além do mais, teve aprovação da autoria original do SCOPE na Etapa VI, de Revisão Final. Essa modificação pontual, que refetiu a necessidade de adequação cultural ao contexto brasileiro, foi baseada no cenário nacional atual que busca e luta para dar maior visibilidade à população adolescente.
Diferentemente do cenário dos Estados Unidos, que costumadamente tende a classificar criança e adolescente como Child (termo apresentado na versão original do SCOPE), no Brasil, cada vez mais têm se discutido as singularidades e as especificidades da adolescência, principalmente no campo da Terapia Ocupacional, de acordo com os estudos de Silva et al. (2018) e Rossi et al. (2019). A partir disso, compreende-se que o conceito de adolescência tem relação, obviamente, com as transformações corporais advindas da puberdade, mas, principalmente, com as significações sociais e culturais que essas transformações disparam, demandando estratégias de readaptação contínua, que acontecem de forma única para cada sujeito e que resultam na aquisição de características da condição adulta (Rossi et al., 2019; Silva et al., 2018).
Assim, levando em consideração o contexto brasileiro, adotou-se o referencial do Estatuto da Criança e do Adolescente16 (ECA) para definir a faixa etária que o instrumento SCOPE-Brasil contempla, compreendendo como criança o indivíduo até 12 anos de idade incompletos e adolescente, aquele entre 12 e 18 anos de idade, podendo se estender para 21 anos de idade em alguns casos (ECA, 2015). Dessa forma, fica a critério do profissional escolher avaliar essa faixa etária pelo SCOPE-Brasil.
Em relação à Etapa V de Pré-Teste, pode-se afirmar que os principais desafios enfrentados foram em relação ao cenário pandêmico atual, em que a coleta de dados para a análise da compreensão da versão preliminar do instrumento teve de ser modificada, respeitando as recomendações de biossegurança e distanciamento social, impostas pela OPAS e OMS (2020). Assim, devido à inviabilização de entrevistas presenciais, optou-se pela ampliação de coleta de dados para contemplar adaptações, utilizando novos recursos que permitissem a continuidade das pesquisas, lançando mão das entrevistas online (Schmidt et al., 2020).
Segundo Schmidt et al. (2020), apesar dos desafos, há inúmeras vantagens das entrevistas online, como, por exemplo: (1) economia de recursos financeiros e redução de tempo da coleta, pois não existe a necessidade de grandes deslocamentos; (2) maior segurança dos participantes e pesquisadores, frente ao cenário de pandemia; (3) possibilidade de investigação de tópicos sensíveis, pois os participantes não estão frente a frente com o pesquisador, nem em locais públicos, como as universidades e hospitais; (4) as pessoas podem se mostrar mais à vontade em participar do estudo pela conveniência de estar em sua própria casa, ou até mesmo se sentirem mais à vontade para desistir da entrevista online, se assim quiserem, em comparação à entrevista presencial; e (5) no geral, aspectos éticos e cuidados referentes às entrevistas online são os mesmos das entrevistas presenciais. Além do mais, o nível de conexão entre pesquisador e participante nas entrevistas online por videoconferência é bastante semelhante às entrevistas presenciais, devido ao uso de recursos de áudio e vídeo (Schmidt et al., 2020).
A coleta de dados no formato de entrevistas online também pode possibilitar a investigação de diversos temas presentes na vida das famílias em distanciamento social (Schmidt et al., 2020), principalmente levando em conta famílias de crianças e adolescentes que apresentam questões de sofrimento psíquico ou mesmo deficiência física/intelectual. Ainda, este estudo atesta e amplia as possibilidades futuras de se realizar avaliações de crianças e adolescentes por teleatendimentos, compreendendo que uma avaliação remota possibilita o acesso de pessoas de qualquer lugar do Brasil a uma intervenção de qualidade, resultando em um acompanhamento contínuo e com menos desgaste de deslocamento para as famílias e para os próprios sujeitos, sendo esta uma prática autorizada pelo Conselho Federal de Fisioterapia e Terapia Ocupacional (Conselho Federal de Fisioterapia e Terapia Ocupacional [COFFITO], 2020).
5 Conclusões
De forma geral, a análise descritiva de todas as etapas do processo de adaptação transcultural permitiu evidenciar uma boa ou ótima compreensão do instrumento adaptado para o contexto brasileiro segundo a avaliação de todos os participantes do presente estudo (Tabela 2). Os ajustes necessários foram realizados, obtendo-se, assim, a aprovação da versão final do SCOPE-Brasil pela principal autora do instrumento original.
Ressalta-se que todas as etapas do procedimento orientado pelo documento Guidelines for the Process of Cross-Cultural Adaptation of SelfReport (Beaton et al., 2000) foram rigorosamente seguidas, sendo a sistematização da tradução e adaptação transcultural do SCOPE para o português brasileiro beneficiada pela garantia de que a adaptação fosse realizada com qualidade metodológica reconhecida internacionalmente.
Recomenda-se que novos estudos sejam realizados futuramente para obtenção de medidas psicométricas de validação do SCOPE-Brasil com a população brasileira. Ademais, vale apontar que uma das limitações do estudo foi a não realização da tradução e adaptação transcultural do manual do SCOPE, o qual é fundamental para a aplicação do instrumento em contexto nacional, destacando que esse não é um processo exigido nos estudos de adaptação transcultural.
De qualquer forma, os objetivos do processo de adaptação transcultural do estudo foram atingidos e espera-se que a disponibilização desse instrumento no Brasil possa beneficiar processos de intervenção de Terapia Ocupacional com crianças e adolescentes, mais fundamentados na participação ocupacional desses sujeitos nos diferentes contextos nos quais agem e pelos quais transitam. Além do mais, há a intenção de que a utilização do SCOPE-Brasil também favoreça a relação com outros atores envolvidos no processo de cuidado em infância e adolescência, tais como famílias, equipe multidisciplinar, escolas e territórios, possibilitando traçar metas ocupacionais e que apresentem uma abordagem holística e colaborativa.