Considerações iniciais: currículo e práticas cotidianas
Este trabalho integra um projeto que investiga relações entre processos identitários docentes, reformas curriculares em nível de Ensino Médio e a noção de disciplina escolar. Assume-se que a configuração das disciplinas escolares está também fortemente ligada a processos identitários docentes, visto que há mais de cinquenta anos, no Brasil, programas de formação de professores licenciam profissionais da educação para atuarem em disciplinas escolares específicas correspondentes ao conjunto das atividades curriculares a serem desenvolvidas na escola básica. Nesse sentido, se acaso ou deliberadamente, programas de formação docente transformarem as marcas identitárias profissionais de seus egressos, novos arranjos disciplinares poderão também ser dinamizados no currículo da escola básica.
Na configuração do currículo do Ensino Médio brasileiro, há disciplinas que se estabeleceram, como é o caso de: Língua Portuguesa, História, Geografia, Física, Química, Biologia, Matemática e Educação Física. Todas estas já estão presentes há bastante tempo no currículo do Ensino Médio Brasileiro, sendo que algumas delas passaram por uma sequência de estágios. De acordo com a hipótese formulada por Goodson (1995), elas partem de um momento de marginalidade com um status inferior no currículo, passam para um estágio utilitário e, finalmente, alcançam uma definição como disciplina, que se configura a partir de um conjunto exato e rigoroso de conhecimentos. No período dos últimos oitenta anos, considerando como ponto de partida a Reforma Francisco Campos, realizada em 1931, outras disciplinas oscilaram sua permanência no currículo do Ensino Médio, como: Artes, Filosofia, Sociologia, Religião e Inglês, ou, pelo menos, tiveram flutuações importantes em sua carga horária.
Para autores que se inspiram em Goodson (1995), os fatores que interferem nas mudanças curriculares podem ser classificados em internos e externos. Os fatores internos dizem respeito às condições de trabalho na própria área, tais como: o surgimento de diferentes grupos de liderança intelectual, a criação de centros acadêmicos de prestígio atuando na formação de seus profissionais, a organização de associações profissionais, e a política editorial na área. Já os fatores externos estariam relacionados à política educacional e aos contextos econômico, social e político mais amplos. Moreira e Ferreira (2001) explicam que o peso de todos esses fatores depende da tradição da disciplina - prestígio acadêmico e tempo de existência - e do nível de organização de seus profissionais. Tal organização se expressa tanto nas associações acadêmicas quanto nas publicações e política editorial da área. Depende, também, das condições objetivas do lugar ou país, tais como o seu regime político e a estrutura de seu sistema educacional. Assim, é possível inferir que, quanto maior a maturidade de uma disciplina, maior o peso dos fatores internos. Esse peso também aumenta em proporção direta com a descentralização do sistema educacional. Por outro lado, o peso dos fatores externos pode ser mais significativo em países que passam por processos acelerados de transformações.
Há, no entanto, disciplinas escolares cujas carreiras científicas estão presentes no interior das universidades, que parecem sobreviver, permanentemente, nos currículos escolares, o que faz com que: "As disciplinas escolares acabam sendo vistas como disciplinas científicas adaptadas para fins de ensino, não se considerando o processo de recontextualização do conhecimento escolar" (MOREIRA; FERREIRA, 2001, p. 3).
O estudo das disciplinas e dos saberes escolares tem sido considerado fundamental para se compreender o papel dos contextos culturais na definição daquilo que deve ser ensinado na escola; e, por outro lado, o papel da escola na produção e na reelaboração do conhecimento, sobretudo, por meio dos processos de didatização.
Para Forquin (1992), esse campo de pesquisa possibilita obter informações acerca da seleção cultural que faz a escola, identificando o que é, em determinada época, compreendido como o que deve ser ensinado. Captar elementos que, em um conflituoso percurso de conquista de legitimidade de uma ou de outra disciplina curricular, mostrem a conquista de um estatuto, a briga por recursos, as delimitações territoriais no interior do currículo escolar, os espaços nos horários, etc. (SOUZA JÚNIOR; GALVÃO, 2005, p. 393)
As disciplinas escolares não se estabelecem no currículo escolar de maneira pacífica, conformando-se às orientações oficiais, mas, ao contrário, guardam relações conflituosas com teorizações acadêmicas e recomendações oficiais, ora acatando-as, ora resistindo a elas, ora reformando-as ou deformando-as.
Para Goodson (1995), a História das Matérias Escolares, compondo a área da História do Currículo, propõe-se a penetrar em um campo que os historiadores se mostram inclinados a ignorar: os conteúdos escolares, os métodos de ensino e os percursos de estudo, buscando nos processos internos da escola (caixa-preta) pistas para analisar as complexas relações entre escola e a sociedade, inclusive enfatizando como as escolas tanto refletem como refratam as definições da sociedade acerca dos conhecimentos culturalmente válidos. (SOUZA JÚNIOR; GALVÃO, 2005, p. 394)
Lopes (2005), com base em princípios foucaultianos e em contribuições de Stephen Ball e Basil Bernstein (1996, 1998 apud LOPES, 2005, p. 264), desenvolve uma análise acerca dos múltiplos discursos que se hibridizam na construção das disciplinas escolares. De acordo com as concepções teóricas, relativas às disciplinas escolares, a autora define as disciplinas, de forma geral, como saberes com bases epistemológicas mais ou menos explícitas, porém não são essas bases que definem a concepção de disciplina escolar. As disciplinas escolares atendem a finalidades sociais decorrentes do projeto social da escolarização, não se constituindo em simples reprodução de divisões de saberes do campo científico.
Os grupos sociais, entre eles os grupos disciplinares, atuam no sentido de construir novos sentidos para os textos oficiais e/ou reforçar sentidos estabelecidos previamente, acentuando o caráter híbrido das propostas curriculares. Compreender os sentidos que são produzidos por esses grupos nas políticas curriculares e os processos de legitimação associados a essas políticas permite entender alguns dos mecanismos que efetivamente condicionam a constituição do conhecimento escolar. (LOPES, 2005, p. 275)
Entende-se aqui, também, a disciplina escolar como uma tecnologia de organização curricular constituída a partir de discursos híbridos e recontextualizados (LOPES, 2005), o que vem ao encontro daquilo que pode ser chamado de currículo loteamento (PETRUCCI-ROSA, 2007).
As políticas curriculares para Ensino Médio, no período pós-anos 1990, poderiam surtir efeitos de circularidade, desestabilizando o currículo loteamento, no contexto dos fazeres cotidianos escolares, à medida que defendem a interdisciplinaridade como um dos eixos didáticos-metodológicos da ação pedagógica. Para essa proposição, a imagem de um currículo diáspora, vivenciado pelos professores que se "aventuram" em experiências interdisciplinares, é proposta por Petrucci-Rosa (2007).
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