Introdução
O ensino de temas em Ciências contemporâneas tem sido reforçado e valorizado no campo nacional e internacional nas últimas décadas. Em particular, a temática da Cosmologia (origem e evolução do próprio Universo) está contemplada em documentos nacionais, como os Parâmetros Curriculares Nacionais (BRASIL, 1998, 2000, 2002) e a Base Nacional Comum Curricular - BNCC. (BRASIL, 2017).
Desde a publicação dos Parâmetros, havia propostas para iniciar discussões a respeito da Cosmologia ainda nos últimos anos do Ensino Fundamental. O estudo deve começar no meio local, com a busca e organização de informações sobre cometas, planetas e satélites do Sistema Solar e outros corpos celestes para elaborar, finalmente, uma concepção de Universo. Isso se mantém e se amplia com a BNCC, com abordagens mais complexas para o Ensino Médio.
No cenário internacional, existe uma crítica importante à maior abordagem educacional em torno de temas como o Sistema Sol-Terra-Lua e o Sistema Solar, sem avançar em questões relacionadas a tópicos mais modernos, o que inclui conteúdos de Cosmologia (PASACHOFF, 2002). Para este autor, aprender sobre a origem e evolução do Universo é enriquecedor para a vida dos estudantes. Esta última visão prevaleceu na atualidade, e esses temas ganharam espaço e destaque, principalmente nos EUA.
Kragh (2011) destaca as questões de natureza filosófica que integram a Cosmologia e são importantes para fazer parte dos processos de ensino. Novotny e Svobodova (2015) consideram a Cosmologia um elo para a comprovação das modernas teorias da Física e um tópico central para o desenvolvimento intelectual de professores e alunos. Também apontam várias dificuldades para construir um curso moderno, mas acessível, a esse respeito.
No caso do Brasil, Barbosa e Leite (2019) indicam algumas possíveis contribuições da inserção dos conteúdos de Cosmologia para a Educação Básica. Entre elas, estão: a localização na escala cósmica, a potencialidade de abordagem de aspectos da Natureza da Ciência, a perspectiva tecnológica da Ciência, além da possibilidade de interdisciplinaridade e da inclusão de temas em Física Moderna.
A Cosmologia tem um potencial de diálogo com diversas outras disciplinas além da Física, embora essa vertente seja menos explorada. Questões a respeito da mensurabilidade do mundo físico, da concepção do funcionamento do maior sistema natural conhecido (o próprio Universo), dos objetivos e limites do conhecimento do Universo, entre outros assuntos, são pontos de contato profícuos com a História, a Filosofia e outros campos do saber.
Este trabalho pretende desenvolver uma visão do Estado da Arte sobre pesquisas relacionadas ao ensino de Cosmologia no país, contextualizando o material analisado. A organização desse material, além de contribuir com o panorama para pesquisadores, tem o objetivo de servir como ponto de referência para os educadores. Descreveremos a seguir a metodologia para, depois, apresentar os resultados.
Metodologia
Para desenvolver este trabalho, utilizamos como referencial o Estado da Arte, entendido como metodologia de pesquisa documental para inventariar, descrever e analisar estudos, com o objetivo de desenvolver balanços da produção, construindo um panorama de determinado conjunto de investigações, com possibilidade de verificar tendências e lacunas (FERREIRA, 2002; HOYOS BOTERO, 2000; MEGID NETO; CARVALHO, 2018; ROMANOVSKI; ENS, 2006). Como ferramenta de análise, utilizamos as técnicas da Análise de Conteúdo (BARDIN, 2011), de acordo com os três polos cronológicos, que compreendem: a pré-análise, a exploração do material bem como o tratamento dos resultados, a inferência e a interpretação.
Para o levantamento de teses e dissertações, utilizamos o Banco de Teses e Dissertações sobre Educação em Astronomia (BTDEA), compreendendo o período de 1973 até 2018. Localizamos 34 pesquisas, sendo 33 dissertações e 1 tese. Utilizamos esse repositório, pois seus mantenedores o alimentam com pesquisas realizadas no banco da Capes e na BTDT. Nas buscas em periódicos e atas ou anais, selecionamos as revistas e os eventos descritos no quadro 1, que apresenta também o número de investigações encontradas sobre o tema. As revistas e eventos selecionados foram escolhidos por proximidade ao tema.
Título | Tipo | Período | No |
---|---|---|---|
Caderno Catarinense de Ensino de Física | Periódico | 1984-2001 | 14 |
Caderno Brasileiro de Ensino de Física | Periódico | 2002-2020 | 20 |
Cadernos de Astronomia da UFES | Periódico | 2020 | 5 |
Ciência & Educação | Periódico | 1998-2020 | 4 |
Ensaio | Periódico | 1999-2020 | 1 |
Experiências em Ensino de Ciências | Periódico | 2006-2020 | 2 |
Física na Escola, A | Periódico | 2000-2020 | 5 |
Revista Brasileira de Ensino de Física (RBEF) | Periódico | 1979-2020 | 36 |
Revista Brasileira de Pesquisa em Educação em Ciências (RBPEC) | Periódico | 2001-2020 | 3 |
Revista Electrónica de Enseñanza de las Ciencias (Reec) | Periódico | 2002-2020 | 3 |
Revista Investigações em Ensino de Ciências (Ienci). | Periódico | 1996-2020 | 2 |
Revista Latino-Americana de Educação em Astronomia (Relea) | Periódico | 2004-2020 | 4 |
Encontro Nacional de Pesquisa em Ensino de Ciências (Enpec) | Evento | 1997-2019 | 17 |
Simpósios Nacionais de Educação em Astronomia (Snea) | Evento | 2011-2018 | 9 |
Simpósio Nacional de Ensino de Física (Snef) | Evento | 1970-2019 | 40 |
Fonte: elaborado pelos autores.
Após inventariar os trabalhos, classificamos as pesquisas de acordo com o ano de publicação e com o tipo de material. Além disso, utilizamos três descritores centrais, com o objetivo de compreender sobre o que versam as investigações encontradas. Os descritores (explicitados no quadro 2 e no quadro 3) foram: Conteúdo de Cosmologia, Foco Temático Educacional e Níveis Educacionais. Eles podem ser entendidos no contexto desta pesquisa como categorias eleitas para a análise dos documentos. O Foco Temático Educacional foi desenvolvido e adaptado a partir dos trabalhos de Megid Neto (1999) e Bretones e Megid Neto (2005). Cada categoria identificada é descrita no quadro 3. Os Níveis Educacionais selecionados para a classificação foram Ensino Fundamental (EF), Ensino Médio (EM), Ensino Superior (ES) e Ensino Não Formal (ENF).
Cód. | Conteúdo de Cosmologia |
---|---|
C1 | Processos cosmológicos: bariogênese, nucleossíntese primordial e Recombinação (CMBR) e formação de galáxias |
C2 | Matéria Escura e Energia Escura e Universo acelerado |
C3 | Evolução do Universo; Inflação, expansão de Hubble |
C4 | Estrutura em larga escala (quasares, buracos negros primordiais, aglomerados de galáxias) |
C5 | Origem do Universo e Cosmogonias (incluindo as abordagens étnicas), aspectos históricos, filosóficos e socioculturais da Cosmologia |
C6 | Relatividade Geral, Gravitação e outros desenvolvimentos relacionados (Relatividade Restrita etc.) |
Fonte: elaborado pelos autores.
Cód. | Focos Temáticos Educacionais |
---|---|
D1 | Currículos e Programas: pesquisa sobre princípios, parâmetros, diretrizes e fundamentos teórico-metodológicos convencionalmente atribuídos ao desenho curricular. |
D2 | Formação e Características de Professores: Pesquisas sobre a formação inicial, continuada e/ou permanente de professores, monitores e divulgadores. Estudos que abordem os modelos de pensamento e concepções. |
D3 | Conteúdo e Método: Estudos que se dedicam à relação conteúdo-método. |
D4 | Recursos Didáticos: Estudos de avaliação de materiais ou recursos didáticos. |
D5 | Características do Aprendente: Diagnóstico dos aprendentes, sejam alunos ou público não-escolar. Identificação do conhecimento prévio, de sua estrutura intelectual, modelos de pensamento, concepções ou ainda atitudes. |
D6 | História, Filosofia e Natureza da Ciência: Pesquisas com abordagens de fatos históricos. Com aspectos relativos à filosofia ou epistemologia da ciência, tais como: concepção de ciência, de cientista, de método(s) científico(s), formulação e desenvolvimento de teorias científicas, paradigmas e modelos científicos. |
D7 | Conteúdo específico: pesquisas que buscam discorrer sobre conteúdos específicos e conceitos da área para tornar ao leitor determinado tema mais acessível. |
Fonte: elaborado pelos autores.
Convém frisar que as pesquisas que se dedicam a mais de um item dos descritores foram classificadas em todos que abrangia; assim, se tratavam de mais de um tema em Cosmologia, Foco Temático ou Nível Educacional, foram classificadas mais de uma vez. Com isso, a soma das classificações ultrapassa o total de 100% em relação aos 199 trabalhos encontrados.
Um panorama das pesquisas sobre o Ensino de Cosmologia
Localizamos 199 pesquisas, a partir de buscas extensivas entre teses e dissertações, artigos de periódicos e atas de eventos. Foram considerados apenas trabalhos completos, e o levantamento foi desenvolvido pela análise dos títulos, um a um, nas bases de consulta para conferência. Após selecionar as pesquisas que tratavam de ensino de Cosmologia e classificá-las utilizando os descritores, obtivemos alguns resultados gerais. Discorremos sobre eles nesta seção.
Em relação ao ano de publicação das pesquisas sobre ensino de Cosmologia, apresentamos a figura 1.
Podemos ver, de imediato, que as pesquisas abordando o ensino de Cosmologia não são algo recente no cenário nacional, sendo o primeiro trabalho encontrado nas bases consultadas de 1979. Nas primeiras décadas, a produção sobre o tema é bastante tímida e pouco frequente. Depois do final dos anos 1990, esse cenário muda, com presença anual progressivamente maior. A partir de 2005, há um crescimento considerável no número de publicações, com notáveis aumento e estabilização, iniciados em 2015. É importante lembrar que, em função do tempo de disponibilidade das teses e dissertações nas plataformas, nossa pesquisa verificou dados postados até 2018, o que pode resultar em números menores em 2019 e 2020, em relação aos anos anteriores.
Esse mesmo crescimento de trabalhos no final da década de 1990 e nos anos 2000 também é indicado na pesquisa de Teixeira (2008), para investigações em pós-graduação na área de Ensino de Biologia, e na de Salem (2012), em relação às teses e dissertações na área de Ensino de Física. Isso é resultado da expansão da pós-graduação, não necessariamente reflete um maior interesse intrínseco em torno da Cosmologia. Bretones, Megid Neto e Canalle (2006) investigam os trabalhos apresentados nas Reuniões Anuais da Sociedade Astronômica Brasileira (SAB) e conferem um crescimento de pesquisas na área a partir dos anos 2000.
Em termos de contextualização histórica, um fato que poderíamos relacionar ao aumento de pesquisas sobre o tema, a partir dos anos 2000, é a criação da área 46 de Ensino de Ciências e Matemática da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes). Megid Neto (2014) aponta um crescimento nos programas de pós-graduação a partir desse período na grande área de Ensino de Ciências Naturais, o que pode se associar ao aumento da produção de pesquisas na área de Cosmologia. Salem (2012) indica ainda, nesse sentido, as novas possibilidades de apoio, incentivo e financiamento que esse campo recebeu a partir da criação dessa área específica. Outro fator histórico que pode ter incentivado o crescimento em 2009 é o Ano Internacional da Astronomia, iniciativa da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) e da União Astronômica Internacional (IAU), com o objetivo de fomentar o interesse pela área. Aqui no Brasil, ocorreu uma série de ações nesse sentido, que se estenderam no tempo, por exemplo, a manutenção do Simpósio Nacional de Educação em Astronomia (SNEA) com regularidade, desde 2011.
Em relação ao crescimento a partir de 2015, podemos relacioná-lo à criação e à expansão dos Mestrados Profissionais, ocorrida desde 2013. Como exemplos, temos a criação dos Mestrados Profissionais em Ensino de Astronomia da Universidade de São Paulo (USP) e da Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS), entre outras iniciativas. Além desses, bastante específicos para a área analisada, temos o crescimento do Mestrado Nacional Profissional em Ensino de Física (MNPEF) em polos distribuídos por vários estados do país. Barbosa e Leite (2019) também afirmam que a maior parte das pesquisas sobre Ensino de Cosmologia inicia-se a partir de 2014, corroborando os dados que encontramos.
A distribuição das pesquisas sobre Ensino de Cosmologia por tipo de publicação deu origem à tabela 1.
Tipo de publicação | No | % |
---|---|---|
Artigos | 99 | 49,7 |
Atas de eventos | 66 | 33,1 |
Dissertações | 33 | 16,6 |
Tese | 1 | 0,5 |
Fonte: elaborado pelos autores.
Em relação ao tipo de publicação, os trabalhos sobre ensino de Cosmologia têm sido produzidos majoritariamente em artigos (99 - 49,7%), seguido por atas de eventos (66 - 33,1%) e dissertações (33 - 16,6%). Encontramos apenas 1 tese (0,5%).
Em nosso levantamento, no tocante às teses e dissertações, localizamos 34 pesquisas dessa natureza a partir de um conjunto de 490 trabalhos, o que nos indica um percentual de 6,9% do total da Astronomia de pesquisas dedicadas ao ensino de Cosmologia. Bazetto e Bretones (2011) analisam 67 teses e dissertações de Educação em Astronomia e localizam 11 (16,4%) pesquisas sobre Cosmologia para o período de 1973 a 2010.
Analisando 87 teses e dissertações desde 1972 até 2015 sobre práticas pedagógicas de Física Moderna e Contemporânea para o Ensino Médio, Rodrigues (2019) indica que existem poucos trabalhos sobre Cosmologia (8%). A observação quantifica a produção relativa ao total pesquisado em Rodrigues (2019). Iachel e Nardi (2010) verificaram artigos sobre Educação em Astronomia no Caderno Brasileiro de Ensino de Física e na Revista Brasileira de Ensino de Física. Os autores localizam 58 pesquisas, com 9 (15,5%) sobre ensino de Cosmologia. Por sua vez, Bretones e Ortelan (2012) observam 70 investigações sobre Educação em Astronomia de 1973 a 2010 e encontram a Cosmologia sendo abordada em 12 (7,6%) trabalhos apresentados nas Reuniões Anuais da SAB.
Esses trabalhos mostram porcentagens que variam de 7 a 15% no que se refere à presença de investigações a respeito de Cosmologia, a depender do universo de publicações analisadas e do tempo. Dialogam, assim, com os dados que encontramos.
Para observar a distribuição das pesquisas por tipo de publicação ao longo dos anos, desenvolvemos a figura 2, que nos mostra que os diferentes tipos de publicação que compõem nosso corpus de análise não se distribuem de forma homogênea ao longo dos anos. Os artigos são os pioneiros na abordagem dos conteúdos de Cosmologia, iniciando no final dos anos 1970. Na sequência, temos o surgimento de atas de eventos nas fontes consultadas apenas a partir de 1995 e de teses e dissertações em 1996. Mas podemos notar um crescimento em cada tipo, como mostra a figura apresentada. Acompanhando a tendência observada em Iachel e Nardi (2010), o número de trabalhos em artigos é percentualmente maior.
O ano de 2005 se destaca em termos de trabalhos apresentados em eventos e pode estar relacionado ao V Encontro Nacional de Pesquisa em Educação em Ciências (Enpec), realizado na Universidade Estadual Paulista (Unesp) de Bauru, uma instituição que apresenta um histórico de pesquisas vinculadas a temas e conteúdos sobre Astronomia. Em 2010, o destaque está nos artigos, o que pode ser resultado das comemorações relacionadas ao Ano Internacional da Astronomia, em 2009, que movimentou muitos projetos sobre a temática. Por fim, a partir de 2013, temos um acréscimo nas teses e dissertações, o que pode ser fruto da expansão dos Mestrados Profissionais, já citados. Vale lembrar que não realizamos o levantamento desse tipo de publicação para 2019 e 2020; devido à recente publicação, nem todas as pesquisas estão disponíveis até o momento.
Para exibir a distribuição das pesquisas por Conteúdo de Cosmologia, construímos a tabela 2.
Categoria | No | % |
---|---|---|
C1 | 19 | 9,5 |
C2 | 12 | 6 |
C3 | 50 | 25,1 |
C4 | 17 | 8,5 |
C5 | 91 | 45,7 |
C6 | 96 | 48,2 |
Fonte: elaborado pelos autores.
A maior parte das pesquisas localizadas dedicam-se aos temas C6 (96 - 48,2%), Relatividade Geral, Gravitação e outros desenvolvimentos relacionados (Relatividade Restrita etc.), e C5 (91 - 45,7%), que aborda a origem do Universo e as Cosmogonias (incluindo as abordagens étnicas), os aspectos históricos, filosóficos e socioculturais da Cosmologia. Na sequência, o terceiro tema em número de abordagem é o C3 (50 - 25,1%), sobre Evolução do Universo, Inflação e expansão de Hubble.
A maior parte das pesquisas localizadas dedicam-se aos temas C6 (96 - 48,2%), Relatividade Geral, Gravitação e outros desenvolvimentos relacionados (Relatividade Restrita etc.), e C5 (91 - 45,7%), que aborda a origem do Universo e as Cosmogonias (incluindo as abordagens étnicas), os aspectos históricos, filosóficos e socioculturais da Cosmologia. Na sequência, o terceiro tema em número de abordagem é o C3 (50 - 25,1%), sobre Evolução do Universo, Inflação e expansão de Hubble.
Verificamos, assim, que ainda são pouco abordados nas pesquisas os temas: C1 (19 - 9,5%), sobre processos cosmológicos de bariogênese, nucleossíntese primordial e Recombinação (CMBR) e formação de galáxias; C2 (12 - 6%), sobre Matéria e Energia Escura e Universo acelerado; e, por fim, C4 (17 - 8,5%), a respeito das estruturas em larga escala (quasares, buracos negros primordiais, aglomerados de galáxias). Os temas menos abordados requerem um grau considerável de conhecimento e preparo na Física envolvida, provavelmente por isso ficam preteridos, embora sejam os mais presentes na pesquisa científica atual.
A distribuição dos trabalhos por tipo de publicação e sua relação com os Conteúdos em Cosmologia são apresentadas na figura 3.
É notável a presença de pesquisas relacionadas ao tema C1 em artigos. Mas isso é pouco visto em atas de eventos. Além disso, são ausentes trabalhos dessa natureza defendidos em programas de pós-graduação, situação parecida com a classificação C4, com apenas um trabalho em teses e dissertações.
Notamos que, de alguma forma, essa constatação aponta para uma 'perda' do elo da Física com a Cosmologia, contrariando as expectativas de Novotny e Svobodova (2015) e outros autores. Com efeito, o problema da fundamentação física dos assuntos cosmológicos, mesmo nos níveis mais básicos, encontra uma dificuldade muito grande no preparo dos próprios docentes e na desatualização dos currículos utilizados nesses quesitos. Estamos em presença de um problema que se realimenta: os obstáculos induzem uma menor atenção, e esta, uma marginalização progressiva. Podemos apontar que sobrevivem nos currículos retalhos dos grandes problemas da evolução temporal do Universo e sua comprovação observacional.
Assim, de certa forma, a Cosmologia perde seu caráter tangível, como apontávamos anteriormente, e fica aos olhos dos estudantes como 'um outro assunto', diferente da Química ou da Física ensinada. Restituir a unidade das Ciências como ponto central é uma tarefa maior, que merece uma discussão à parte.
A distribuição das pesquisas pelos Níveis Educacionais está apresentada na tabela 3, que nos indica que a maior ocorrência está no EM (133 - 66,8%), seguido pelo ES (94 - 47,2%), pelo ENF (42 - 21,1%) e pelo EF (15 - 7,5%). A tendência de haver mais casos no Ensino Médio nas pesquisas sobre Cosmologia também é corroborada por Bazetto e Bretones (2011), que constatam 6 estudos, 54,5% das investigações que analisam.
Nível | No | % |
---|---|---|
EF | 15 | 7,5 |
EM | 133 | 66,8 |
ES | 94 | 47,2 |
ENF | 42 | 21,1 |
EF: Ensino Fundamental, EM: Ensino Médio, ES: Ensino Superior; ENF: Ensino Não Formal.
Fonte: elaborado pelos autores.
Essa mesma situação de predominância de investigações dedicadas ao Ensino Médio é verificada por Megid Neto (1999) para teses e dissertações sobre Ensino na área de Ciências e por Teixeira (2008) em relação ao Ensino de Biologia. Também afirmam essa situação Siemsen e Lorenzetti (2017), que analisam teses e dissertações sobre Educação em Astronomia.
Ortelan e Bretones (2012) verificam 196 trabalhos apresentados nas Reuniões Anuais da SAB de 2004 até 2010 e encontram essa tendência de maior dedicação das investigações para o Ensino Médio (20 - 33,9%). Rodrigues e Langhi (2018) observam a mesma propensão analisando 407 pesquisas nas atas do SNEA. Por sua vez, Bretones e Megid Neto (2005) verificam um olhar mais voltado para os Anos Finais do Ensino Fundamental (10 - 62,5%) em seu levantamento de teses e dissertações sobre Educação em Astronomia.
Bussi e Bretones (2013) investigam 75 estudos sobre Educação em Astronomia no Enpec, de 1997 até 2011. Os autores localizam uma predominância de pesquisas voltadas para o Ensino Superior, seguida pelo Ensino Médio. Bretones, Jafelice e Horvath (2016) também encontram essa tendência para a Relea.
Observando o ensino de Lua e suas fases em teses e dissertações, artigos de periódicos e anais de eventos, Gonçalves e Bretones (2020) notam uma situação diferente: esse tipo de temática predomina em pesquisas dedicadas ao Ensino Fundamental. Essa circunstância entra em consonância com a abordagem curricular dos temas e com as dificuldades já apontadas.
Dessa maneira, nossos resultados se aproximam de outras pesquisas do tipo Estado da Arte relacionadas à Educação em Astronomia e a outras áreas dentro da grande área de Ensino de Ciências da Natureza. Também divergem de alguns estudos. Mas, de alguma forma, dialogam com a incidência desses temas nos currículos.
Com relação ao currículo, mais especificamente sobre a abordagem de conteúdos referentes à Cosmologia no Ensino Fundamental e no Médio, temos um cenário em que o tema está presente. Nos conteúdos dos PCN referentes ao Ensino Fundamental, encontramos "[...] um modelo do Universo em expansão a partir de uma grande explosão, o Big Bang." (BRASIL, 1998, p. 39). Além disso, lemos: "[...] algumas informações além de seu nível de compreensão podem ser retomadas em outros níveis de escolaridade, sem que isso signifique proibir sua discussão, às vezes motivada pelos próprios alunos que ouvem falar do Big Bang." (BRASIL, 1998, p. 65).
Por sua vez, os PCN para o Ensino Médio (BRASIL, 2000, p. 26) indicam que um efetivo aprendizado "[...] depende do desenvolvimento da teoria da gravitação, assim como de noções sobre a constituição elementar da matéria e energética estelar." Dessa maneira, sinalizam a atualização dos conteúdos para uma Física contemporânea.
Além disso, os PCN+ também recomendam que é importante propiciar aos jovens uma visão cosmológica das Ciências, considerando que ela é parte frequente das preocupações dessa faixa etária e possibilita aos alunos se situarem na escala de tempo do Universo (BRASIL, 2002, p. 78). Desse modo, espera-se que, ao final da Educação Básica, o estudante tenha uma compreensão atual de hipóteses, modelos, métodos de investigação a respeito da origem e evolução do Universo, a partir do tema estruturador Universo, Terra e Vida (BRASIL, 2002).
Também notamos a presença da Cosmologia na Proposta Curricular de Física do estado de São Paulo (SÃO PAULO, 2008) referente à primeira série do Ensino Médio, sobre "a origem, constituição e evolução do Universo", "modelo cosmológico atual - espaço curvo, inflação e Big Bang". Contudo, devido às mudanças curriculares mais recentes, verificamos que, na BNCC, apenas se menciona, enquanto competência específica, "[...] realizar previsões sobre o funcionamento e a evolução dos seres vivos e do Universo" (BRASIL, 2017, p. 553) e, na habilidade EM13CNT209, aborda-se a "[...] origem e distribuição dos elementos químicos no Universo" (BRASIL, 2017, p. 557). Ou seja, não existem menções mais específicas na BNCC de conteúdos sobre Cosmologia.
As pesquisas distribuídas por tipo de publicação e Nível Educacional abordado se encontram na figura 4. Nela, podemos observar que os diferentes tipos de publicação apresentam uma dinâmica própria relacionada aos níveis educacionais abordados: as teses e dissertações, bem como os trabalhos apresentados em eventos tendem a se dedicar ao Ensino Médio, enquanto os artigos se direcionam mais ao Ensino Superior. Os artigos também são consideravelmente responsáveis pela abordagem do assunto no Ensino Não Formal ou não escolarizado.
De acordo com Seabra, Bagdonas e Maciel (2017), em levantamento sobre Cosmologia nos artigos de revistas de Ensino de Física, foram encontrados poucos artigos na área, e nenhum era dedicado ao Ensino Médio, de forma contrastante aos dados encontrados nesta pesquisa. Apesar de existirem poucos trabalhos abordando o Ensino Fundamental, alguns discorrem sobre a Cosmologia nesse nível, como Compiani (1996), Morais et al. (2005) e Silva e Costa (2019).
Verificamos ainda como essas pesquisas se distribuem em relação ao Nível Educacional e ao tema em Cosmologia abordado, em análise conjunta, na tabela 4.
Nível | C1 | C2 | C3 | C4 | C5 | C6 |
---|---|---|---|---|---|---|
EF | 2 | 1 | 2 | 4 | 10 | 1 |
EM | 13 | 11 | 33 | 14 | 60 | 69 |
ES | 11 | 5 | 25 | 10 | 39 | 47 |
ENF | 6 | 2 | 2 | 5 | 27 | 20 |
EF: Ensino Fundamental, EM: Ensino Médio, ES: Ensino Superior; ENF: Ensino Não Formal.
Fonte: elaborado pelos autores.
Quando observamos a distribuição dos temas em Cosmologia pelos diferentes níveis, é possível notar que existem variáveis em relação aos temas predominantes. Para o EF e o ENF, o tema predominante é o C5; por sua vez, para o EM e o ES, o tema com maior incidência é o C6. No caso do EM, há quase a mesma quantidade de pesquisas sobre C6 e C5. Mais uma vez, podemos relacionar essas abordagens com os documentos de natureza curricular para esses níveis escolares.
No que diz respeito ao Foco Temático Educacional, apresentamos a tabela 5, em que é possível notar que existe uma diversidade de focos com pesos semelhantes. O Foco Temático Educacional mais abordado é o D3 (74 - 37,2%), referente ao Conteúdo e Método, seguido pelo D6 e pelo D7 (42 - 21,1%), relacionados à História, Filosofia e Natureza da Ciência e ao Conteúdo Específico, respectivamente.
Foco | No | % |
---|---|---|
D3 | 74 | 37,2 |
D6 | 42 | 21,1 |
D7 | 42 | 21,1 |
D4 | 23 | 11,5 |
D5 | 19 | 9,5 |
D2 | 14 | 7 |
D1 | 3 | 1,5 |
Fonte: elaborado pelos autores.
É possível notar ainda que existe uma diversidade de focos com pesos semelhantes. O Foco Temático Educacional mais abordado é o D3 (74 - 37,2%), vinculado ao Conteúdo e Método, seguido pelo D6 e pelo D7 (42 - 21,1%), associados à História, Filosofia e Natureza da Ciência e ao Conteúdo Específico, respectivamente.
Em menor incidência, temos o D4 (23 - 11,5%), sobre Recursos Didáticos, o D5 (19 - 9,5%), sobre Características do Aprendente, o D2 (14 - 7%), relacionado à Formação e Características de Professores. Localizamos apenas 3 pesquisas sobre o foco D1 (1,5%), que trata de Currículos e Programas, sendo essa uma lacuna encontrada.
Em consonância com esta pesquisa, Bazetto e Bretones (2011) também encontraram uma maior incidência do foco Conteúdo e Método em seu levantamento de teses e dissertações sobre Ensino de Cosmologia. Bussi e Bretones (2013), estudando trabalhos sobre Educação em Astronomia nas edições do Enpec de 1997 a 2011, localizaram 75 pesquisas; dessas, 19 (25,3%) tinham como foco Conteúdo e Método. Isso também foi observado em Fernandes e Nardi (2015), que expandiram o levantamento até 2015. Os autores localizaram 108 pesquisas. Delas, o foco de maior incidência também foi Conteúdo e Método (22 - 20,4%).
O fato de a maioria dos estudos se dedicarem à relação entre Conteúdo e Método pode indicar uma tendência da área, visto o apontamento de diferentes pesquisas sobre Educação em Astronomia de forma geral, assim como sobre Ensino de Cosmologia. Apesar disso, fazendo uma análise sobre Relatividade Restrita, Silva e Errobidart (2017) indicam que, mesmo encontrando muitos artigos que envolvem sequências didáticas sobre o tema, poucos de fato foram utilizados e avaliados em sala de aula. Já Greca e Moreira (2001), Madruga e Cappelleto (2011), Ostermann e Moreira (2002), Pantoja et al. (2011), Pereira e Ostermann (2009), Rodrigues (2011) e Rodrigues, Sauerwein e Sauerwein (2014) assinalam que faltam pesquisas que investiguem os mecanismos envolvidos na construção de conhecimentos relativo a temas de Física Moderna e Contemporânea (FMC) em condições reais de sala de aula. Assim, haver muitos trabalhos dedicados ao Conteúdo e Método não significa necessariamente que eles foram desenvolvidos em sala de aula e podem afetar a qualidade do ensino na Educação Básica, por exemplo.
Para observar a distribuição das pesquisas por tipo de publicação e Foco Temático, desenvolvemos a figura 5.
Em relação aos Focos Temáticos D1 e D7, sua produção está concentrada nos artigos. Assim, podemos concluir que não está sendo discutido o currículo (D1) relacionado aos temas em Cosmologia, apesar de ser grande a abordagem sobre Conteúdo e Método (D3) nas pesquisas desenvolvidas em programas de pós-graduação. D3 é bastante abordado por teses e dissertações e trabalhos em eventos, enquanto os artigos estão mais relacionados ao D6 e ao D7.
Em soma, temos constatado que o ensino de Cosmologia é uma discussão bastante presente nos últimos 40 anos. Há potencial para explorar muitas coisas mais nesse percurso, especialmente com a preocupação de que os estudos alcancem os professores e as salas de aula do Ensino Básico.
Considerações finais
Verificamos com esta pesquisa de Estado da Arte sobre ensino de Cosmologia, que os trabalhos que tratam desse tema se iniciam na década de 1970; portanto, não se trata de preocupação recente, apesar de se concentrar em publicações, em sua maioria, da última década. A maior parte das pesquisas produzidas advém de artigos publicados em periódicos. Poderíamos afirmar que essa cronologia reflete a emergência e consolidação da Cosmologia como ciência empírica ‘dura’. A evolução dessa área mostra que, somente a partir de década de 1970, mais precisamente com a descoberta dos quasares e primeiros levantamentos de galáxia em larga escala, a Cosmologia conseguiu sair de seu caráter mais especulativo e matemático para testar e refinar os processos primordiais e a própria evolução do Cosmo. Como exatamente isso é repassado para os aprendentes é uma discussão separada.
Os conteúdos mais abordados nas pesquisas analisadas sobre Ensino de Cosmologia são a Relatividade e temas ligados a esta, bem como a origem do Universo. Os Níveis Educacionais mais abordados são o Ensino Médio e o Ensino Superior, e o Foco Temático Educacional mais explorado é Conteúdo e Método.
Com isso, podemos concluir que existe uma preocupação que se relaciona com o ensino indicado nos documentos curriculares, especialmente para o Ensino Médio, e que a maior parte dessas pesquisas busca investigar melhores formas de desenvolver o conteúdo em sala de aula. Apesar disso, não temos uma garantia de que essas pesquisas de fato tenham sido desenvolvidas com estudantes nas escolas ou alcancem os professores de forma a contribuir com o ensino nessa área.
Existem questões pouco abordadas nos trabalhos, que podem ser estimuladas. Citamos como exemplo o ensino desses temas nos espaços não-formais de ensino - como museus, planetários, observatórios - e a abordagem no Ensino Fundamental.
Já dissemos que há lacunas de pesquisas que investigam o Ensino de Cosmologia para os temas ligados a processos cosmológicos: bariogênese, nucleossíntese primordial e Recombinação (CMBR) e formação de galáxias; Matéria e Energia Escuras e o Universo acelerado; e Estrutura em larga escala (quasares, buracos negros primordiais, aglomerados de galáxias). Além disso, existe pouca discussão curricular sobre Cosmologia e escassas pesquisas que abordem concepções de professores e sua formação nessa área, que é um tema potencialmente relevante, uma vez que são eles os protagonistas do trabalho em sala de aula. Mas essa tarefa esbarra em alguns empecilhos importantes. O primeiro é a natureza da Cosmologia em si, um assunto que fica na fronteira dos tópicos aos quais os docentes são expostos e que, raras vezes, resulta facilmente assimilado. Com efeito, existem alguns trabalhos que mostram que tanto os alunos quanto seus professores praticam uma concepção do movimento e a dinâmica pré-Galileana (TEIXEIRA; FREIRE JR., 1999). A visão relativística de um Universo em expansão (tema básico) é um passo muito largo para a maioria, e as confusões advindas são comuns. Há um longo caminho para formar minimamente os professores nessa visão sem que caiam em erros conceituais que pregam a literatura (HORVATH, 2006, 2020).
Com esse problema pela frente, o que segue é ainda muito complicado: embora o Foco Temático dominante mostre que há uma tendência de tentar aproximar os alunos da 'Cosmologia dos cosmólogos', sem que isso implique em uma tentativa no Brasil de enveredar pela tendência do problem-solving (PROBLEM..., 20--), é muito clara a orientação curricular para ampliar estudos cosmológicos numa espécie de formação geral, interdisciplinar, que existe no corpo de publicações, mas poucas vezes se observa nos trabalhos especializados e certamente jamais naqueles desenvolvidos por cientistas. Caímos, assim, em uma espécie de dualidade educacional no tema, sem solução ou desfecho óbvio. Além disso, os documentos de natureza curricular mostram uma redução da presença da Cosmologia nesse tipo de material.
Finalmente, apontamos também a importância da abordagem da Cosmologia mais ligada aos aspectos culturais e à diversidade que o Brasil detém. Não há dúvidas de que toda as ciências têm uma forte base empírica e racionalista, o que nos coloca em problemas sérios perante os alunos, e duplamente perante os discentes de grupos étnicos (índios, quilombolas etc.). Em geral, a Cosmologia é uma disciplina empírica somente se os estudantes acreditam no que é ensinado. Ou seja, não é do mesmo valor epistemológico uma afirmação do tipo "o Sol sai pelo Leste" do que esta: "as galáxias se formaram a partir de buracos negros supermassivos nos centros". A Cosmologia é quase integralmente composta de afirmações e evidências que não podem ser diretamente experimentadas pelos alunos. Estes precisam delegar o processamento e a interpretação de dados intangíveis para eles nos cientistas e, mais perto deles, em seus professores. Por último, o significado real para os alunos, e mais particularmente para os de grupos e minorias étnicos, pode ser nulo. Essa possibilidade pode ser exacerbada pelo tipo de critério de verdade aceito pelo grupo, que bem pode incluir elementos místicos e religiosos opostos ao racionalismo científico. Já temos constatado em vários casos, por experiências pessoais, uma forte colisão entre o relato religioso e as afirmações científicas em cursos para professores; assim, podemos acreditar que os alunos estão sujeitos à mesma situação. Temos por certo que a atitude 'missionária' da Ciência não resolve esses problemas e que não basta, em absoluto, ter uma série de prescrições comuns ("conhecer a cultura com a qual lidamos" etc.), porque a atitude de fazer tábula rasa com a visão alternativa e impor, sem diálogo, o que a Ciência conhece do Cosmo como verdade, é a praxe. Os autores não oferecem sugestão para lidar com esse problema de grandes proporções, somente queremos salientar sua existência. A proposta do pluralismo epistêmico existe na literatura (FONSÊCA, 2020) e equivale a ampliar em equidade outros sistemas epistêmicos para achar respostas, tese que não é compartilhada com a atitude que paira na BNCC e na Educação em geral, em relação a este e a outros temas.
Com isso, esperamos contribuir apontando tendências e lacunas para o estímulo às pesquisas e às discussões na área. Almejamos que seja fomentado o desenvolvimento do Ensino de Cosmologia na Educação Básica, na Superior e em espaços não escolares.