Introdução
A Educação Ciência-Tecnologia-Sociedade-Ambiente (CTSA) busca, a partir de maior contextualização, interdisciplinaridade e criticidade, alcançar um ensino mais humanitário e menos tecnocrático, ao estimular o interesse pelos conteúdos aprendidos a partir do reconhecimento de sua importância para a solução de problemas cotidianos (SANTOS, 2012). Para alcançar tais objetivos educacionais, muitos autores têm adotado o uso de Questões Sociocientíficas (QSC), inclusive como meio para que os estudantes avaliem criticamente valores e interesses envolvidos nas relações CTSA e se engajem em ações para a promoção de uma sociedade mais justa e ambientalmente mais sustentável, sendo esses objetivos educacionais compatíveis com os fundamentos do letramento científico crítico (CONRADO, 2017; CONRADO; NUNES NETO, 2018; HODSON, 2018; BENCZE et al., 2018).
Muitos são os problemas sociais e/ou ambientais que podem ser caracterizados como QSC, como a produção, a comercialização e o uso de agrotóxicos (ANDRADE; NUNES-NETO; ALMEIDA, 2018), a poluição hídrica (SANTOS; CONRADO; NUNES-NETO, 2018), o racismo científico (DIAS et al., 2018), o déficit de polinização por abelhas nativas (CONRADO et al., 2018), entre outros. Um desses problemas, com relevantes dimensões sociais, ambientais, éticas e políticas, é a Resistência Bacteriana a Antibióticos (RBA). Diante do aumento mundial dos casos de RBA e da necessidade de educar melhor a população sobre essa temática, para evitar agravar problemas de saúde humana e ambiental (CDC, 2015), parece proveitoso adotar estratégias de ensino baseadas em QSC. O tema RBA pode ser abordado como QSC, o que possibilita uma formação mais ampla dos estudantes, por integrar conhecimentos, habilidades e valores na discussão de problemas socioambientais que afetam humanos e natureza. A partir da discussão desse tema, em um contexto do cotidiano, é possível, além de estimular o interesse do estudante pelo conteúdo propriamente dito (normalmente associado, de modo restrito, aos conteúdos escolares microorganismos e citologia), mobilizar também conteúdos de outros campos, como ecologia, evolução, biologia molecular e celular, fisiologia humana e saúde, natureza da ciência, história, ética e política. Além disso, pode-se, com este tema, mobilizar não apenas a dimensão conceitual dos conteúdos, mas também as dimensões procedimental e atitudinal, conforme elaboraremos neste artigo.
Todavia, apesar de bem documentado que o uso de QSC contribui para a contextualização do conteúdo científico e o aprofundamento do entendimento acerca das relações CTSA (COLLUCCI-GRAY et al., 2006; SANTOS, 2009; HODSON, 2011; JONES et al., 2012; MARTÍNEZ PÉREZ; PARGA LOZANO, 2013; CONRADO; NUNES NETO, 2015; SADLER; FOULK; FRIEDRICHSEN, 2017), ainda é um desafio reconhecer quais conteúdos são mobilizados pelos estudantes na discussão das QSC, sobretudo pelo predomínio de estratégias de ensino transmissivas, com avaliação de aprendizagem baseada em memorização (CONRADO; NUNES NETO, 2018; MARTÍNEZ-PÉREZ, 2014), e pelos estudos sobre ensino com QSC ainda serem incipientes no Brasil (SANTOS; SILVA; SILVA, 2018).
Ainda, cabe um olhar acerca das dimensões dos conteúdos abordados, isto é, se um determinado conteúdo é mais mobilizado em sua dimensão conceitual, procedimental ou atitudinal; ou ainda, como estas diferentes dimensões são articuladas pelos estudantes nos conteúdos que mobilizam. Esse olhar é coerente com várias características das QSC (como apresentar uma controvérsia, ser interdisciplinar, fomentar a discussão de questões éticas, mobilizar conhecimentos de diversas áreas etc.), as quais permitem uma abordagem ampla dos conteúdos em sala de aula. Assim, alinhados com essa ideia, consideramos necessário, no ensino baseado em QSC, a explicitação e a discussão de, ao menos, três dimensões do conteúdo (conceituais, procedimentais e atitudinais), como temos discutido e aplicado em publicações prévias (CONRADO; NUNES NETO, 2018; CONRADO; NUNES NETO; EL-HANI, 2019). A dimensão conceitual está predominantemente relacionada a aspectos epistemológicos do conteúdo, enquanto que a dimensao procedimental a aspectos mais metodológicos e técnicos; e, por fim, a dimensão atitudinal relaciona-se mais a aspectos axiológicos ou ético-políticos (CONRADO; NUNES NETO, 2018). As dimensões conceituais, procedimentais e atitudinais dos conteúdos são objetos adequados para uma educação CTSA, e para uma formação mais integral dos estudantes, uma vez que facilitam a organização (por exemplo, no planejamento de ensino e na avaliação de aprendizagem) de aspectos dos conteúdos que estão presentes nas atividades em sala de aula. Essa concepção multidimensional do conteúdo é coerente, ainda, com o fato de que os atores sociais envolvidos com os processos educativos são múltiplos (por exemplo, estudantes, professores, gestores, familiares etc.), bem como com o fato de que educar significa criar condições adequadas para o desenvolvimento não somente de conhecimentos, mas também de habilidades (como o pensamento crítico), emissão de juízos morais e engajamento e participação social por parte do educando.
Nesse sentido, no ensino de ciências, levar em conta essas três dimensões dos conteúdos nas práticas pedagógicas auxilia no reconhecimento da diversidade de interesses e capacidades dos estudantes, que não podem ser reduzidos a uma dimensão puramente conceitual e/ou procedimental (ZABALA, 1998); em uma mais completa e sofisticada compreensão da atividade científica, ressaltando a influência de valores e do momento histórico no desenvolvimento científico e tecnológico (SADLER, 2004; LACEY, 2010); na percepção de pertencimento a uma comunidade e na assunção de responsabilidade individual e social (MARTÍN, 2006); no desenvolvimento de um pensamento crítico reflexivo sobre a importância e o compromisso de cada cidadão na construção de uma sociedade capaz de promover benefícios a indivíduos, sociedades e ambientes, de maneira geral (BENCZE et al., 2018).
Nesse trabalho, partindo do pressuposto de que há poucos trabalhos que discutem conteúdos mobilizados por estudantes no ensino de ciências, sobretudo no contexto da educação em saúde, a partir de QSC, avaliamos as dimensões dos conteúdos presentes nos argumentos elaborados por estudantes de uma licenciatura em biologia, a partir da aplicação, em sala de aula, de uma QSC sobre RBA. Para isso, adotamos a metodologia de pesquisa de design educacional, que envolveu 40 estudantes de graduação em biologia e 2 professores do ensino superior, além de professores e pesquisadores que auxiliaram no processo de validação da Sequência Didática (CONRADO, 2017).
Contextualização teórica
Autores como Hodson (2011, 2018), Bencze et al. (2018) e Conrado (2013, 2017) apontam que, devido ao agravamento dos problemas socioambientais atuais e à necessidade de abordá-los na educação científica a partir de uma perspectiva mais ampla e contextualizada, o ensino de ciências deve priorizar uma integração entre conhecimentos, habilidades, valores e atitudes, de modo a facilitar o envolvimento dos estudantes na compreensão da ciência e em seu emprego no cotidiano para a transformação da sociedade em direção à maior justiça e ao maior bem-estar de indivíduos, sociedades e ambientes.
Vários modelos teóricos para o ensino com QSC têm sido propostos para promover a formação de cidadãos para tomada de decisão e ações sociopolíticas responsáveis (CONRADO; NUNES NETO, 2018; BENCZE; ALSOP, 2009; CHANG RUNDGREN; RUNDGREN, 2010; JONES et al., 2012; LEVINSON, 2006; SANTOS, 2009; SADLER; FOULK; FRIEDRICHSEN, 2017; SIMONNEAUX; SIMONNEAUX, 2012). A seguir, apresentamos o modelo teórico que utilizamos para este estudo.
Um modelo teórico para a educação baseada em QSC
O modelo teórico que adotamos para o uso de QSC em sala de aula, desenvolvido em trabalho anterior por Conrado (2017); Conrado; Nunes Neto (2018), é composto, em sua unidade básica, por três componentes: um caso (narrativa) sobre uma QSC; algumas questões norteadoras (que orientam a investigação, o desenvolvimento de argumentos e a tomada de decisão pelos estudantes); e, por fim, objetivos de aprendizagem considerando dimensões conceituais, procedimentais e atitudinais dos conteúdos.
Esse modelo resultou da tese de doutorado da primeira autora deste texto e sua construção foi motivada, sobretudo, por uma carência de modelos teóricos que embasassem o uso de QSC em ambientes educacionais, sobretudo modelos provenientes de uma perspectiva latinoamericana sobre as relações entre CTSA. Muito brevemente, o modelo pode ter sua estrutura explicada como segue. Os objetivos de aprendizagem, nas suas dimensões CPA, são fixados como resultados ou metas esperados, para serem alcançados, ou ao menos, aproximados, pelos estudantes. Esses são os pontos de chegada – mesmo que aproximados – da proposta de ensino implementada conforme o modelo. A proposta de ensino ou sequência didática busca alcançar os objetivos CPA de aprendizagem; para isso, ela inicia com um caso ou narrativa que expõe uma QSC aos estudantes, de modo indireto e desafiador (isto é, com controvérsias, lacunas etc.), mas também estabelecendo vínculos com elementos de seu cotidiano. Nesse sentido, o caso particular apresentado aos estudantes é uma instanciação de uma QSC mais geral e complexa, e é o resultado de uma recontextualização didática para o ambiente de aprendizagem e o nível cognitivo dos estudantes. A QSC exposta como um caso controverso solicita uma tomada de decisão e é, portanto, um ponto de partida para a proposta de ensino ou sequência didática. A mediação ou intermediação entre o ponto de chegada (os objetivos CPA de aprendizagem) e o ponto de partida (a QSC como um caso) é algo fundamental no modelo e reside nas interações entre professores e estudantes, em torno às questões norteadoras. As questões norteadoras são perguntas ou instruções aos estudantes, que têm o papel de orientar ou direcionar, de modo mais ou menos direto, o alcance dos objetivos de aprendizagem, a partir de análise e reflexão sobre o caso. Para mais detalhes sobre o modelo teórico, seus fundamentos filosóficos, aspectos metodológicos e possibilidades de aplicação, ver Conrado (2017) e Conrado; Nunes Neto (2018). A Figura 1 esquematiza a unidade básica desse modelo.
Resistência bacteriana a antibióticos como uma QSC
A RBA é um tema que pode ser proveitosamente abordado a partir de uma educação baseada em QSC. Ensinar RBA por meio da discussão em torno de uma QSC pode promover mobilização de conteúdos com base em relações CTSA, como mostraremos melhor abaixo. O reconhecimento e a construção de um modelo dos elementos que podem compor os diferentes domínios CTSA da QSC possibilitam uma visão geral e mais abrangente do tema abordado, permitindo acessar, por exemplo, aspectos sociais (questões de saúde pública), éticos (ética médica, uso de animais em testes) e políticos (valores hegemônicos sobre bem-estar e saúde, poder econômico e financeiro da indústria farmacêutica), (os quais são frequentemente negligenciados em discussões sobre o tema), em comparação com uma atenção apenas aos conceitos, fatos e princípios científicos relacionados ao tema. Uma forma de representar relações CTSA é por meio de um mapa contendo termos que representam esses elementos (CONRADO, 2017). Para o tema da RBA, elaboramos um mapa (Figura 2), que foi usado para delimitar e planejar conteúdos a serem discutidos em sala de aula. A construção de um modelo dessas relações CTSA é considerado o primeiro passo para o desenvolvimento do letramento científico crítico (HODSON, 2011; 2018), que discutiremos a seguir.
Legenda: C: conhecimentos científicos; T: técnicas e tecnologias; S: conhecimentos, valores e práticas sociais; A: condições e condicionantes ambientais.
Fonte: Conrado (2017, p. 153).
Cabe ressaltar que esse mapeamento é uma forma de identificar elementos de cada domínio CTSA e suas relações, considerando, inicialmente, os conteúdos científicos a serem trabalhados pelo professor em sua disciplina. Essa configuração foi desenvolvida com base nos estudos de Bencze (2017), que sugere a organização de mapas ator-rede no processo de discussão de QSC. Acreditamos que esse mapeamento facilita a organização dos conteúdos científicos e possíveis relações desses entre os outros elementos dos domínios, no contexto da perspectiva CTSA.
Letramento científico crítico
Para Hodson (2011), a expressão letramento científico crítico carrega um extenso significado, mas, sobretudo, indica a ideia de que a função mais importante do letramento científico é a de desenvolver a independência intelectual e autonomia pessoal do sujeito, de modo que seja capaz de avaliar diferentes posicionamentos, ideologias e valores envolvidos nas práticas sociais, com destaque para aquelas relacionadas com ciência e tecnologia. O autor menciona características relacionadas com o letramento científico crítico, como: a capacidade para agir de modo independente de discursos e práticas autoritários; a habilidade de percepção aprofundada sobre as relações entre ciência, tecnologia, sociedade, economia e política, para além do que está aparente, na superfície, de modo a reconhecer que determinados pontos de vista podem excluir certos grupos; a sensibilidade para interagir considerando diferentes gêneros do discurso, linguagens, conhecimentos etc.; a disposição para tomar decisões e agir conforme a consciência sobre seus princípios e valores; o hábito de posicionar-se criticamente e de refletir e avaliar os próprios conhecimentos, crenças, atitudes e valores.
O letramento científico crítico pode ser alcançado a partir do desenvolvimento do estudante em quatro níveis de sofisticação, segundo Hodson: a) identificar impactos sociais da ciência e da tecnologia e a influência cultural sobre elas; b) reconhecer que o desenvolvimento científico e tecnológico relaciona-se à distribuição de riqueza e poder, e que os benefícios para alguns podem ocorrer às custas de prejuízos a outros; c) avaliar e estabelecer pontos de vista e posições de valor próprias; d) tomar decisões, preparar-se e agir sobre problemas socioambientais (HODSON, 2004; 2018).
No caso da discussão de uma QSC sobre RBA, esperamos que esses níveis sejam alcançados a partir de: a) o reconhecimento da influência e das interações entre os elementos que se encontram nas dimensões C,T, S e A (alguns dos quais podem ser visualizados no modelo apresentado na Figura 1); b) a compreensão de valores, interesses, fatos históricos que influenciam informações e atitudes que mantêm o status quo (isto é, uma sociedade que enfatiza a produção e o uso de antibióticos, mesmo quando há outros meios para a promoção da saúde, podendo haver ocultamento daqueles que são prejudicados com as decisões que membros da sociedade fazem para a saúde de parte da população); c) a reflexão sobre a consideração moral e o valor daqueles envolvidos com a QSC, de modo a emitir juízos de valor e realizar um posicionamento ético; e d) a tomada de decisão sobre a QSC, o planejamento e a implementação de ações capazes de promover mudanças em direção a uma maior justiça social e sustentabilidade ambiental.
Métodos
A presente pesquisa empírica qualitativa parte da tese de doutorado da primeira autora. Foi fundamentada na abordagem da pesquisa de design educacional (design research, PLOMP; NIEVEEN, 2009), que tem como base um conjunto de conhecimentos multidisciplinares gerados por planejamento, implementação, teste e avaliação de teorias, artefatos, inovações e práticas pedagógicas, a partir de um trabalho colaborativo envolvendo professores e pesquisadores (BARAB; SQUIRE, 2004).
Os estudantes participantes da pesquisa leram e assinaram um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), procedimento que salvaguardou a identidade dos participantes e a confidencialidade dos dados, de acordo com normas éticas que se aplicam a esta modalidade de pesquisa. A sequência didática foi aplicada em uma aula de cem minutos, envolvendo duas turmas do primeiro semestre de um curso superior de Licenciatura em Biologia. No Quadro 1, a seguir, podemos observar algumas informações de cada etapa da sequência didática.
Fonte: Modificado de Conrado (2017).
A fim de avaliar a mobilização dos conteúdos em suas dimensões CPA, apresentamos uma QSC em forma de um caso, assim como algumas questões norteadoras, conforme o modelo teórico descrito acima (ver Figura 1). Foi solicitado aos estudantes que construíssem argumentos, no modelo de argumentação de Toulmin. Os produtos, os argumentos construídos pelas equipes, foram submetidos à análise. Apresentamos um caso denominado antibióticos e saúde, juntamente com questões norteadoras para discutir aspectos das relações CTSA e demandando dos estudantes uma tomada de uma decisão sobre o caso, conforme Quadro 2 (CONRADO, 2013; 2017). Participaram quarenta estudantes, que discutiram o caso em 9 grupos, utilizando materiais de apoio (livros de nível superior). Foram distribuídos livros de Ecologia, Evolução, Fisiologia Humana, Genética e Microbiologia que auxiliaram os estudantes na mobilização dos conteúdos científicos que eles julgaram pertinentes para a compreensão e a resolução do caso e para a construção do argumento fundamentando a decisão tomada. A decisão das equipes foi justificada em um argumento por equipe, elaborado conforme o modelo de argumentação de Toulmin (2006).
Fonte: modificado de Conrado (2017).
Os dados foram coletados a partir do argumento apresentado pelos estudantes. A análise considerou três aspectos: 1) a mobilização de três dimensões dos conteúdos, conceituais, procedimentais e atitudinais (CONRADO, 2017; CONRADO; NUNES NETO, 2018); 2) a presença de elementos estruturais do argumento (Dado, Garantia, Apoio, Conclusão, Qualificador, Refutação), conforme Toulmin (2006) e, por fim, 3) a relação entre os conteúdos presentes nos domínios CTSA (com base no modelo apresentado na Figura 2).
Resultados e discussão
De modo geral, a dimensão conceitual dos conteúdos, sobre formas de reprodução bacteriana, seleção natural, variabilidade genética, resistência bacteriana a antibióticos, microbiota gastrintestinal humana e uso inadequado de antibióticos foram utilizados pelos estudantes para justificar as decisões tomadas sobre o caso. Nesse sentido, houve muito maior ênfase no domínio Ciência e pouca mobilização de conteúdos presentes nos domínios Tecnologia, Sociedade e Ambiente, assim como pouco estabelecimento de relações entre esses domínios.
Após a exposição pelos estudantes dos conhecimentos científicos e tecnológicos e condicionantes sociais e ambientais sobre o caso, discutimos os conteúdos planejados com base no modelo de relações CTSA relativas ao caso (Figura 2). Nesse momento, conteúdos não previstos, como, por exemplo, a influência de orientação ideológica e valores na tomada de decisão dos cidadãos, a contaminação ambiental resultante do descarte inadequado de medicamentos, em geral, e os interesses e valores envolvidos nos testes com animais também foram mobilizados durante a discussão geral da QSC, principalmente a partir de questionamentos de alguns dos estudantes, após a apresentação dos argumentos das equipes.
Não foram mobilizados conteúdos nas suas dimensões conceituais de outras áreas do conhecimento, que não fossem Ciências Biológicas, por exemplo, conhecimentos tradicionais sobre antibióticos naturais (GULUBE; PATEL, 2016; KURU, 2014); modelos de saúde; bioética; consequências da contaminação ambiental específica por antibióticos (POWER; EMERY; GILLINGS, 2013; MARTINS et al., 2016); uso de antibióticos no gado (MATHEW; CISSELL; LIAMTHONG, 2007; CDC, 2015); e ética. Esse padrão de mobilização de conteúdos sugere uma concepção cientificista de ciência (para mais detalhes sobre cientificismo, ver Conrado; Conrado, 2016) e tecnologia, uma vez que poderia representar a negligência (intencional ou não) de conhecimentos, valores e práticas que não são aqueles das ciências naturais. Por isso, recomendamos, além da discussão sobre cientificismo, priorizar a inserção de atividades para o desenvolvimento de habilidades investigativas visando a um maior aprofundamento sobre uma QSC. Nesse sentido, questões norteadoras mais específicas poderiam contribuir para esse direcionamento dos estudantes em relação a conteúdos de outras áreas do conhecimento e, ainda, poderiam favorecer a mobilização de dimensões dos conteúdos subvalorizadas, como frequentemente ocorre com as dimensões procedimental e atitudinal dos conteúdos.
O principal elemento da dimensão procedimental mobilizado foi relativo à argumentação, um procedimento mais localizado no extremo cognitivo de um eixo cognitivo-motor (confira Zabala, 1998; ver também Conrado; Nunes-Neto, 2018; e ver argumentos dos estudantes na Figura 3). Os argumentos das equipes apresentaram, de forma geral, dados, garantias, apoios (todas as equipes), qualificadores modais da conclusão (três equipes), condições de refutação do argumento (uma equipe) e conclusão (todas as equipes). Desse modo, os estudantes foram capazes de se apropriar do modelo de argumentação de Toulmin, ao menos para a organização de suas ideias e das informações e conceitos que mobilizaram. Esse avanço foi considerado (tanto pelos estudantes quanto pelos professores) importante para o desenvolvimento de habilidades argumentativas, uma vez que os estudantes afirmaram desconhecimento prévio acerca do modelo de Toulmin para elaboração de argumentos. O conhecimento limitado acerca de estratégias de argumentação pode prejudicar o aprendizado dos estudantes, devido às poucas oportunidades de formação sobre argumento ao longo de suas experiencias escolares. Os argumentos, quando bem organizados, conseguem esclarecer a mensagem principal e indicar a relevância das informações que justificam a ideia defendida pelo argumento e, por isso, consideramos fundamental o desenvolvimento de habilidades argumentativas na educação em ciências (CONRADO; NUNES-NETO; EL-HANI, 2015). Nossos achados no presente estudo indicam que o ensino usando QSC, quando associado a um modelo de argumentação, pode contribuir para o desenvolvimento de tais habilidades.
Legenda: D: Dado; G: Garantia; A: Apoio; C: Conclusão; Q: Qualificador; R: Refutação.
Fonte: Conrado (2017).
A atividade de buscar informações em livros, realizada em sala de aula, foi por nós considerada relevante para uma fundamentação teórica mais consistente, possibilitando uma melhor qualidade do argumento relacionado à decisão solicitada no caso. Já com relação às atividades de busca de informações, mais especificamente, de evidências para suportar as conclusões dos argumentos, concordamos com Bortoletto; Carvalho (2012, p. 255) para quem os estudantes devem, no ensino de ciências, reconhecer a importância das evidências (que trazem informações relevantes para a construção de um argumento, normalmente associadas à categoria lógica das premissas; para uma concepção de evidência estreitamente relacionada à ação, ver Simons et al. 2003). Parece-nos que esse reconhecimento é de central importância durante a resolução de QSC. Nesse sentido, vale destacar que mesmo informações fornecidas pela literatura estão sujeitas a erros e ocultamentos, pois são selecionadas aquelas coerentes com o discurso e os interesses de quem defende o argumento (em detrimento de evidências que não são selecionadas), indicando a influência de valores e a importância de virtudes intelectuais no julgamento e na apreciação dos argumentos durante a compreensão de situações controversas.
Em relação às dimensões atitudinais dos conteúdos, foram citadas questões relativas à formação e atuação de médicos (quando não mobilizam conhecimentos sobre resistência bacteriana em suas decisões) e de formação acrítica de cidadãos, que ocorre, por exemplo, quando esses confiam sua saúde somente a médicos e fármacos, sem agir considerando hábitos individuais e coletivos saudáveis e valores para promoção da saúde (CARVALHO et al., 2008). Responsabilizar a autoridade médica sobre toda a saúde do indivíduo pode ser considerado compatível com uma forma de tecnocracia. Apenas em uma equipe foram indicados hábitos de uso exagerado de medicamentos pela população, enquanto as outras equipes assumiram o modelo biomédico de saúde como base para o argumento, sem questionar práticas sociais limitadas a esse modelo, como, por exemplo, a dependência de tecnologias de diagnóstico e tratamento, ignorando, por exemplo, dimensões socioculturais dos problemas de saúde. Aceita-se, assim, o modelo biomédico, que, simplificadamente, fundamenta-se em uma concepção de saúde como ausência de doença. Nesses termos, considera-se um sujeito saudável aquele que manifesta um funcionamento normal do seu organismo, ou seja, aquele que tem suas funções biológicas dentro da curva normal estatística para o padrão de sua idade (BOORSE, 1975, 1977).
Comumente, o modelo biomédico de saúde tem uma perspectiva mais biologizante e focada na autoridade médica (MARTINS; SANTOS; EL-HANI, 2012). O modelo biomédico de saúde, apesar de ser útil e importante para várias situações (por exemplo, em casos de fraturas ósseas, hemorragias decorrentes de acidentes etc.), apresenta limitações para a promoção da saúde de um modo geral, uma vez que os problemas de saúde que afetam indivíduos, sociedades e ambientes decorrem de uma variedade de fatores imbricados, devendo-se considerar, por exemplo, componentes psicológicos, alimentação, estresse, saneamento, destruição de habitats naturais, poluição de águas e solo etc. (LI, 2015; MYERS et al., 2013; MARTINS; SANTOS; EL-HANI, 2012; CONRADO et al., 2016).
Não considerar possibilidades alternativas à responsabilização de médicos e cientistas pela promoção da saúde, nesse caso, para reduzir a frequência de bactérias resistentes aos antibióticos, é, em certa medida, reforçar sociedades tecnocráticas. A manutenção desse modelo, hegemônico no Ocidente, como única alternativa para a saúde, é também associada a aspectos cientificistas, como a supervalorização da ciência e da tecnologia (FRANKFORD, 1994; BELKIN, 1997; WADE; HALLIGAN, 2004; AL-AZRI, 2012). Além disso, esse modelo geralmente está alinhado a atitudes consumistas, à mercantilização da saúde e a estratégias de ensino meramente transmissivas, com foco na doença, na medicina científica (também referida como alopatia) e na responsabilização de instituições médicas e tecnológicas, reduzindo a possibilidade de preparo de cidadãos para ações sociopolíticas que visem à promoção da saúde (BARROS, 2002; CARVALHO, 2012; MARTINS et al., 2016).
Um modelo de saúde mais abrangente, interdisciplinar e apropriado para o uso de QSC é o modelo socioecológico (MARTINS et al., 2015; CONRADO et al., 2016). Esse modelo relaciona a saúde não somente à dimensão biológica do indivíduo, mas também, e de modo importante, às relações entre aspectos biológicos e psicológicos, internos aos sujeito (tanto aqueles da fisiologia e anatomia quanto aqueles relacionados a aspectos emocionais e subjetivos), bem como aspectos sociais e ecológicos, externos a ele (como relacionamentos com a família, o mundo do trabalho, a natureza etc.). (CARVALHO, 2012).
Nesse sentido, o modelo enfatiza o protagonismo do sujeito na manutenção de sua saúde, a partir de condutas relacionadas a condicionantes socioambientais que interferem no bem-estar individual e social. Essas condicionantes estão relacionadas aos domínios de C&T, e também aos domínios Sociedade e Ambiente, diferentemente da ênfase do modelo biomédico, que é mais limitada à C&T. Durante a discussão acerca das decisões das equipes sobre o caso, foram abordados os interesses e valores das indústrias farmacêuticas na produção e na comercialização de medicamentos, assim como diferentes interpretações com base em teorias éticas e modelos de saúde, levando a conclusões semelhantes acerca do uso de antibióticos (com base em diferentes modelos de saúde, teorias éticas e tendências de ontologia moral).
Uma vez que a dimensão atitudinal dos conteúdos relaciona-se também aos valores e à ética, avaliamos as perspectivas éticas assumidas pelas equipes. Examinamos o posicionamento ético dos estudantes com relação à consideração moral dos envolvidos nas decisões tomadas (um dos eixos para avaliar posicionamentos éticos que temos assumido em nosso grupo de pesquisa (para mais detalhes, ver Conrado, 2017; Conrado; Nunes-Neto, 2018).
Esse eixo contempla tendências de ontologia moral. Entendem-se os diferentes escopos de consideração moral dos envolvidos nas ações humanas. De modo geral, as ações humanas podem levar em conta apenas alguns humanos (antropocentrismo seletivo), todos os humanos (antropocentrismo), os seres sencientes (senciocentrismo), os seres vivos (biocentrismo) ou entidades e processos ecológicos como um todo (ecocentrismo). Para mais detalhes sobre esses conceitos e categorias, inclusive com aplicações para o ensino, ver Conrado (2013, 2017) e Conrado; Nunes-Neto (2018). Assim, quanto à ontologia moral, o raciocínio ético predominante de todas as equipes foi de natureza antropocêntrica (CONRADO, 2013, 2017; SANTOS; CONRADO; NUNES-NETO, 2018), dado que consideraram a saúde humana como prioridade para a decisão tomada, sem mencionar outros possíveis grupos envolvidos na QSC, como, por exemplo, animais não-humanos que apresentam resistência bacteriana a antibióticos devido ao uso de antibióticos em animais de criação, ao contato com resíduos do processo de produção de medicamentos ou pelo descarte inadequado de antibióticos (ZIMERMAN, 2010; CARROLL et al., 2015).
Com a sequência didática, os estudantes puderam perceber relações concernentes a: valores e ideologias que influenciam o desenvolvimento científico e tecnológico; conhecimentos científicos acerca de antibióticos naturais; diferentes fundamentos éticos que justificam o uso adequado de antibióticos; mitos cientificistas associados a modelos de saúde.
Na medida em que, nos argumentos apresentados pelos estudantes, percebemos sobretudo a mobilização da dimensão conceitual dos conteúdos, pensamos que, para uma argumentação mais aprofundada nas três dimensões dos conteúdos (e percepção da importância de reconhecer as relações CTSA), seria um caminho promissor discutir os elementos do argumento organizados em aspectos científicos e tecnológicos predominantes, e condicionantes sociais e ambientais predominantes, associados à QSC (conforme, por exemplo, o Quadro 4).
Dados | Garantias | Apoios | |
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Fonte: Modificado de Conrado (2017).
Legenda: D: Dado; G: Garantia; A: Apoio; C: Conclusão; Q: Qualificador; R: Refutação.
Nesse sentido, além de conceitos predominantemente científicos, como seleção natural, reprodução bacteriana, resistência bacteriana a antibióticos, ação de fármacos no organismo, tecnologias e técnicas de cultivo de microrganismos e detecção de bactérias resistentes, os estudantes poderiam discutir e refletir, ainda, acerca dos interesses da indústria farmacêutica, a autoridade médica e científica, os modelos biomédico e socioecológico de saúde, a neutralidade científica e o salvacionismo tecnológico, a legislação sobre o uso de antibióticos, a consideração moral dos envolvidos em um problema socioambiental. Essa discussão mais ampla, considerando diferentes domínios CTSA e suas relações, quando ocorre, contribui para o desenvolvimento do letramento científico crítico.
Tal discussão mais ampla, provavelmente, demandará disponibilizar maior tempo no currículo para a discussão dos elementos que compõem os domínios CTSA e suas relações (conforme, por exemplo, a Figura 2), enfatizando, em um primeiro momento, conhecimentos científicos e tecnológicos e, em um segundo momento, conhecimentos não científicos e tecnológicos, mas relevantes para uma compreensão mais ampla da QSC em seu contexto socioambiental. Em um terceiro momento, visando ao desenvolvimento do letramento científico crítico, é importante investigar e discutir valores e interesses dos envolvidos na QSC, refletir acerca do posicionamento de cada estudante ou equipe e planejar (e implementar) ações sociopolíticas a partir da tomada de decisão fundamentada dos estudantes. Ações sociopolíticas possíveis de serem implementadas a partir da discussão dessa QSC são, por exemplo: produção e divulgação de vídeos ou panfletos com uma síntese sobre o tema; organização de palestras para comunidades relevantes; planejamento de campanhas para o uso racional e adequado de antibióticos e análise sobre a legislação relacionada ao descarte adequado de antibióticos (e seu cumprimento).
Conclusões
De um modo geral, os estudantes obtiveram êxito em se organizar para o desenvolvimento dos argumentos, utilizando apoio da literatura para justificar suas decisões em relação ao caso. Todas as equipes tomaram a decisão de esperar pelo resultado do teste em vez de tomar um antibiótico de amplo espectro, o que consideramos uma tomada de decisão socioambientalmente responsável, alinhada com parte do processo de letramento científico crítico dos estudantes. Houve mobilização sobretudo de conteúdos científicos esperados, em dimensões conceituais (conhecimentos de biologia) e procedimentais (predominantemente no que diz respeito a habilidades argumentativas).
Contudo, os argumentos apresentados fizeram pouca conexão entre os domínios CTSA, não explicitaram valores e interesses envolvidos na atividade científica e tecnológica, além de não questionarem controvérsias, valores e pontos de vista envolvidos na QSC. Portanto, com apenas essa atividade, não foi possível alcançar um nível avançado de letramento científico crítico (para mais detalhes sobre os níveis de letramento científico crítico, ver Conrado; Nunes-Neto, 2018; Hodson, 2011). Apesar de as quatro questões norteadoras permitirem direcionar, em parte, a busca de informações pelos estudantes, houve pouco tempo para a investigação e um maior aprofundamento sobre o tema da QSC. Portanto, para que os estudantes possam ter mais sucesso na mobilização dos conteúdos planejados em suas dimensões conceituais, procedimentais e atitudinais, sugerimos, em próximas implementações, planejar um tempo maior para a atividade e uma maior especificação das questões norteadoras, de modo a orientar os estudantes no processo de reconhecimento da complexidade do tema e das relações dos conhecimentos científicos e tecnológicos com os condicionantes sociais e ambientais. Questões norteadoras adicionais, mais especificas, podem levar à mobilização de conteúdos de outras áreas, que não somente à biologia, assim como demais aspectos das dimensões procedimentais e atitudinais.
Por fim, fazemos uma última recomendação para aplicações futuras desta proposta de ensino (ou de alguma versão similar). Considerando a mobilização de conteúdos no contexto do letramento científico crítico, recomendamos planejar e disponibilizar maior tempo para: discutir conteúdos dos domínios CTSA e suas relações; identificar os aspectos envolvidos na QSC e as questões de interesse e valor associadas; refletir sobre consideração moral e emitir juízo de valor; tomar decisões e organizar ações que contribuam para a resolução da QSC.