Introdução
No começo da década de 1970, a Nova Sociologia da Educação (NSE), no contexto europeu, assim como o movimento de reconceptualização do currículo nos Estados Unidos, trouxeram para o campo da educação importantes mudanças na forma de discutir o potencial e os limites da escola na geração de transformações nas trajetórias individuais e sociais. Especificamente no que se refere ao currículo, se desde a primeira década do século XX ele era associado quase que exclusivamente a questões de ordem organizacional ou ao “como fazer” para responder às expectativas sociais sobre a escola, os autores ligados aos movimentos antes mencionados, partindo de diferentes concepções e modos de investigação, explicitaram em seus estudos outra inquietação, centrada no que é definido para ser ensinado na escola e por quê. Em síntese, pode-se dizer que suas indagações se sustentavam na clareza que paulatinamente foi se construindo sobre o caráter político das escolhas curriculares.
Entre os autores da NSE encontra-se Basil Bernstein, sociólogo da educação que desenvolveu ao longo de sua trajetória intelectual todo um arcabouço teórico para o estudo da comunicação pedagógica – mais especificamente para descrever e analisar as formas pelas quais as relações de poder e controle vigentes na sociedade são reproduzidas não só pelo conteúdo selecionado para ser ensinado nas escolas – aspecto salientado pela teoria da reprodução cultural –, mas também pela forma de comunicação estabelecida na relação pedagógica.
Sua teoria constitui uma das principais referências para muitos(as) pesquisadores(as) em todo o mundo (MOORE, 2006; MULLER, 2000; YOUNG, 2008; MORAIS; NEVES, 2001; MATON, 2006; WHEELAHAN, 2010; entre outros(as)3). Nesse grupo encontra-se Ursula Hoadley, que atua na Faculdade de Educação da Universidade da Cidade do Cabo, na África do Sul. Em seu livro, intitulado Pedagogia na pobreza: lições de vinte anos de reformas curriculares na África do Sul, publicado em 2018, articula a teoria de Bernstein a outras perspectivas (DOWLING, 1998; PEDRO, 1981) para descrever e analisar as práticas docentes desenvolvidas por professoras dos anos iniciais da educação básica (primeiro segmento do Ensino Fundamental, no Brasil) diante de vinte anos de reformas curriculares sul-africanas, no contexto anterior e posterior ao apartheid4.
Na entrevista concedida à Educação e Pesquisa, ela trata desse cenário das reformas em seu país e de como ele se relaciona a um movimento mais amplo de reformas em países “em desenvolvimento”, da potência descritiva e analítica do arcabouço teórico que mobiliza em suas pesquisas e do interessante conceito que, juntamente com Muller, consolidou e denominou de pedagogia zero, com base na análise de seus achados de pesquisa à luz da teoria de Bernstein. Para além de constituir um interessante exemplo da potência dessa teoria para o desenvolvimento de análises de textos curriculares e de práticas docentes, a entrevista instiga a pensar sobre possíveis aproximações entre a realidade educacional sul-africana e a brasileira, guardadas, claro, as especificidades históricas, sociais e políticas dos dois países.
Entrevista
1. Em 2018 você publicou Pedagogy in poverty: lessons from twenty years of curriculum reform in South Africa. Nesse livro, trata da pedagogia5 nas escolas sul-africanas no período de transição entre o regime do apartheid6 e o democrático, tendo como objeto as reformas curriculares então desenvolvidas e seus possíveis impactos sobre as práticas docentes. Em linhas gerais, o que mudou nos documentos curriculares sul-africanos nesse período e como essas mudanças se relacionam com a transformação do cenário político?
O currículo no período do apartheid era conteudista, “tradicional”, e carregava uma bagagem ideológica própria de um sistema opressivo e racista. Então, o primeiro currículo pós-apartheid7 foi uma ruptura radical com isso – na direção de um currículo baseado em resultados, que estabelecia aprendizagens de forma mais geral e genérica, com a proposição de um regime pedagógico radicalmente construtivista. As disciplinas escolares foram substituídas por áreas transdisciplinares e conteúdos foram largamente removidos.
O sistema educacional, e os professores em particular, estavam totalmente despreparados para as mudanças pretendidas. Notadamente, o estabelecimento de aprendizagens em termos de resultados e competências amplas deixou a maioria dos professores sem orientação sobre o que ensinar, quando e por quanto tempo.
Depois de dois breves anos de implementação, o currículo foi revisado. Ao longo dos 11 anos seguintes, ele foi revisado duas vezes e implicou uma mudança gradual no sentido de conferir centralidade ao conhecimento, ou no sentido de um modelo de currículo por resultados, o que levou à publicação do documento Políticas de Currículo e Avaliação (Curriculum and Assessment Policy Statement – CAPS), em 20118.
O CAPS representou um retorno a um currículo baseado nas disciplinas escolares, com especificação clara de conteúdos e rígidos controles sobre a sequência e o compassamento9 a ser imprimido no desenvolvimento do currículo. Esse movimento foi considerado por alguns segmentos como uma virada neoliberal em direção a um currículo tradicional – dadas algumas similaridades estruturais com o currículo vigente durante o apartheid. Sob a influência do CAPS houve alguma melhora gradual dos resultados dos estudantes, embora em níveis muito baixos.
2. A despeito dessas mudanças no nível das prescrições curriculares, suas pesquisas vêm sinalizando a permanência de uma pedagogia que, em suas palavras, constitui “uma forma de marcar o tempo, um ritual de memorização”. Como entende a força dessa pedagogia que tão intensamente marca a constituição do discurso pedagógico nas escolas, especialmente naquelas que recebem os alunos mais pobres, na África do Sul?
Esta pedagogia – ou, as práticas pedagógicas comuns no contexto de países em desenvolvimento – envolve aprendizagens mecânicas, repetições em coro, e cópias e exercícios de fixação. É também caracterizada por um compassamento excepcionalmente lento, um nível muito baixo de complexidade cognitiva na abordagem do conhecimento, pouco espaço para a avaliação das produções individuais dos estudantes e o uso de práticas de instrução visando a uma série de habilidades e necessidades.
Há diferentes formas de entender a persistência dessa pedagogia na literatura. Alguns pesquisadores a relacionam a práticas culturais, especialmente de cunho religioso e missionário, que têm influenciado a natureza da interação na sala de aula. Por isso, essa pedagogia é descrita como ritualizada ou catequética – do tipo “chamada e resposta”. Outros, têm associado esse caráter ritualístico a formas de controle, especialmente voltadas a professores que atuam com turmas numerosas e com recursos mínimos. Ter a turma respondendo em uníssono ao professor asseguraria que todos estão participando da mesma forma e ao mesmo tempo. Uma explicação adicional é que este tipo de resposta coletiva mascara o déficit de conhecimentos, da parte do professor e dos estudantes. A turma e o professor estabeleceriam um contrato implícito, que esconde a lacuna de transmissão e compreensão reais.
Eu diria que há elementos de verdade em todas essas explicações. Certamente a pedagogia tem inflexões culturais, traz as marcas de uma compreensão do processo de aprendizagem ligada à atividade religiosa e à reprodução da Escritura. Mas as considerações que enfatizam o controle e a falta de conhecimentos da parte de professores e estudantes representam argumentos convincentes para explicar por que esta pedagogia tem persistido. Creio, também, que com o tempo ela se tornou ritualizada graças à falta de sentido do que se oferece para o professor diante do contexto particular em que atua, o que não contribui para demovê-lo dessas práticas.
3. No livro, você traça um panorama de reformas curriculares de produção recente em países em desenvolvimento, com o intuito de ressaltar traços comuns nesses movimentos, sem perder de vista o que é específico de cada contexto. O que lhe chamou a atenção nesse panorama e como isso contribuiu para a análise dos resultados da pesquisa de que trata no livro?
Considerando a literatura sobre as formas assumidas para o currículo e a pedagogia nos países em desenvolvimento, foi notável a similaridade nos tipos de reformas curriculares que foram desenvolvidas nos diferentes contextos. O primeiro aspecto que identifiquei em meu livro é que as reformas ao longo dos anos 1990 e do começo dos anos 2000 focalizaram a promoção de pedagogias centradas nos aprendizes (ou nas crianças/nos estudantes) e os métodos e currículos construtivistas. Foi dada ênfase à relevância e à inclusão do conhecimento e das formas de compreensão locais, e houve o impulso na direção do currículo integrado e de abordagens temáticas. Isso foi fortemente apoiado por organizações não governamentais e financiadores internacionais, incluindo o Banco Mundial e a Unesco.
Os aspectos progressistas dessas reformas permaneceram populares até mais recentemente, especialmente na medida em que frequentemente se articulam com agendas políticas progressistas em países em desenvolvimento: foi assumido (e afirmou-se) que ser politicamente progressista significa ser educacionalmente progressista, e que questionar um destes polos, significaria questionar o outro – por exemplo, as reformas curriculares centradas nos alegados interesses e/ou necessidades dos estudantes têm sido recebidas como mais democráticas; refletir sobre possíveis prejuízos associados a este tipo de reforma vem sendo entendido automaticamente como uma posição politicamente não-progressista. Essa é uma ideia difícil de ser demovida em ambientes pós-coloniais. Um número de publicações tem mostrado a não efetividade dessa associação direta, apesar de sua persistente afirmação. A configuração aludida acima – a forma pedagógica que prevalece nesses contextos, caracterizada pela aprendizagem mecânica e pela repetição em coro –, tem permanecido como a forma dominante nesses contextos.
A outra tendência de reforma tem sido em direção a currículos baseados em competências; estes, parecem ter passado por duas etapas (e são reciclados continuamente). A primeira foi a adoção de sistemas baseados em resultados, às vezes vinculados às Estruturas de Qualificação Nacionais10. A integração estava no topo da agenda, com o “currículo temático” sendo adotado em vários países. A segunda etapa, mais recente, se concentra em estruturas baseadas em competências e numa ênfase nas habilidades necessárias para o século XXI. Isso envolve um redirecionamento do currículo em termos da especificação genérica de uma gama de habilidades. Essa segunda etapa não demoveu inteiramente o currículo baseado nas disciplinas, mas representa, sim, uma ameaça à prioridade dada ao conhecimento no currículo. O que ambas essas formas curriculares baseadas em resultados genéricos fazem é colocar o conhecimento das disciplinas em segundo plano. Elas dependem centralmente da qualidade dos professores – seu conhecimento dos conteúdos, sua facilidade com diferentes métodos de ensino e seu acesso a materiais de ensino apropriados. Quando habilidades genéricas substituem o conhecimento formal, as regras do jogo escolar são ocultadas daqueles professores e aprendizes que mais precisariam acessá-las.
4. A sua trajetória de pesquisa encontra na teoria de Bernstein sua principal referência teórica. Como esse referencial contribui, com seus elementos teóricos e metodológicos, para o desenvolvimento de seus estudos?
Há uma série de razões pelas quais a teoria de Bernstein me auxilia na abordagem dos tipos de questões em que estou interessada, acerca do currículo e da pedagogia. A primeira é que ela oferece uma teorização precisa e delicada dos processos educacionais, dando acesso a uma “anatomia” da pedagogia e a um amplo entendimento sobre as formas curriculares dominantes. Ela também permite que tais formas sejam conectadas às suas lógicas e implicações sociais. Em outras palavras, quais são as implicações dessas formas dominantes para a reprodução social das desigualdades, e para a sua possível interrupção. Em segundo lugar, é uma das poucas teorias do currículo que colocam o conhecimento e a sua investigação no seu centro. Enquanto grande parte da teoria do currículo se concentra em questões de identidade e representação, a teoria de Bernstein conecta esses aspectos às formas de conhecimento e à sua transmissão.
5. Ao analisar as dinâmicas entre conhecimento, currículo e pedagogia ao longo do tempo, você se utiliza da estimulante imagem dos “horizontes cognitivos” dos professores, afirmando que “provavelmente nenhuma reforma terá sucesso sem uma mudança significativa nos horizontes cognitivos daqueles que ensinam em nossas escolas”. Em termos gerais, o que essa imagem envolve? Como esses “horizontes cognitivos” articulam o aprimoramento curricular e a alteração em práticas arraigadas nas escolas?
É uma máxima amplamente aceita na educação dizer que os professores ensinam do jeito que eles foram ensinados [no período em que foram estudantes na educação básica]. Isso tem implicações para a forma como a educação, e a pedagogia especificamente, reproduz desigualdades sociais. Em sistemas altamente estratificados, tal como o da África do Sul (e penso que do Brasil também), os professores começam a ensinar sem acessarem prontamente diferentes formas de abordar a pedagogia, e a sua socialização profissional é geralmente muito fraca para interromper os doze anos de aprendizagem sobre o ato de ensinar que os professores desenvolveram ao longo da sua própria escolarização. A ideia de horizontes cognitivos sugere uma ampliação dos repertórios dos professores, uma espécie de aprendizagem sobre como ensinar em relação ao seu próprio contexto, aos alunos e às demandas pedagógicas particulares que estão para além do que já sabem fazer – e que frequentemente não vem funcionando. É cognitivo porque se refere a entendimentos específicos sobre como os professores dão sentido àquilo que fazem.
6. Para finalizar esta entrevista, gostaríamos que discorresse sobre o conceito de “pedagogia zero”. Tratando, no campo empírico, de descrever a comunicação pedagógica, você desenvolveu a categoria de enquadramento zero, para caracterizar uma determinada configuração das relações de controle estabelecidas entre professores e alunos. Entendemos que essa questão se relaciona ao que Bernstein aponta sobre o fato de, em certas condições, o discurso pedagógico11 ser reduzido ao discurso regulador, esvaziando-se a sua dimensão instrucional. Esta nos parece uma ideia muito potente para as pesquisas sobre práticas docentes em países como o Brasil, o que pode ser um modo instigante de terminar esta nossa conversa.
Eu vou te dar uma resposta longa a esta pergunta. A noção de “pedagogia zero” emergiu de uma pesquisa que conduzi, na qual encontrei uma ausência de critérios de avaliação12 no discurso instrucional nas aulas que eu havia observado. Embora todas as características da prática pedagógica fossem evidentes (o discurso regulador), não havia qualquer evidência de critérios de avaliação sendo transmitidos. Sugeri, assim, uma possível codificação zero para o enquadramento das regras de critério de avaliação na sala de aula, na qual a pedagogia não é nem fracamente nem fortemente enquadrada13. A questão que eu fiz foi: se num encontro pedagógico não há qualquer evidência de aprendizagem, ou de uma mudança pretendida ou real no aprendiz, então isso é pedagogia?
Hugo e Wedekind14 retomaram a discussão, argumentando que a ausência de discurso instrucional na pedagogia se traduz na ausência de pedagogia, ou “pedagogia zero” (termo definido por eles). Eles retomam o termo “zero”, por mim atribuído aos critérios de avaliação, generalizando-o à pedagogia como um todo. Eles não tratam da distinção entre discurso instrucional e regulador, aplicando o termo “zero” às relações sociais, normas etc.
Zipin15 entra no debate, e a sua preocupação na crítica que faz a Hugo e Wedekind refere-se à forma como eles mobilizam o meu argumento para fazer afirmações generalizantes acerca da pedagogia. Ele está correto ao dizer que minhas afirmações limitam-se aos critérios de avaliação, e eu resisto em fazer generalizações com base em um único caso. Mas Zipin está preocupado principalmente com o privilégio concedido por Hugo e Wedekind, e por mim, ao conhecimento especializado sobre o conhecimento cotidiano na relação pedagógica. Ele identifica o privilégio dado ao conhecimento especializado como sendo uma expressão do “imperialismo euro-cultural”, que suprime o debate sobre de quem é o conhecimento que está sendo representado.
Zipin está falando sobre o discurso regulador. Ele está apontando para a necessidade de que o background social dos alunos seja afirmado, e de que estejamos atentos aos propósitos ético-sociais do ensino. Mas esse enfoque não deveria substituir a necessidade de dar às crianças, especialmente àquelas provenientes de meios sociais desfavorecidos, acesso a conhecimentos escolares formais e especializados. Conhecimento cotidiano e conhecimento especializado deveriam ser vistos de forma relacional em vez de dicotômica, e, dado o contexto escolar, eu argumentaria que a meta final diz respeito crucialmente ao segundo. O debate refere-se centralmente aos princípios de ordenação da pedagogia – no sentido da especialização [dos conhecimentos das disciplinas escolares] ou do aprofundamento dos conhecimentos cotidianos de uma comunidade.
A ênfase nos conhecimentos cotidianos [nas aulas], com a exclusão de conhecimentos especializados, codificados, é algo que tem caracterizado há muito tempo o contexto da África do Sul e de muitos outros países em desenvolvimento, derivando frequentemente de reformas curriculares “centradas no aluno”. Na África do Sul, a ausência de critérios de avaliação – ou de clareza sobre o que é relevante em termos de conhecimentos e de forma de comunicação – denota um desmoronamento pedagógico fundamental, cujas raízes estão num sistema falido, no empobrecimento histórico daquilo que a escolarização implica, sob o regime do apartheid, em um corpo docente insuficientemente preparado e numa falta de parâmetros profissionais claros guiando a sua prática.
Não se trata de valorização das culturas acumuladas, das comunidades locais ou outras, mas, sim, de exclusão da iniciação dentro de uma cultura de escolarização que leve à aprendizagem. A questão para mim é como nós pensamos sobre esse discurso regulador em relação ao discurso instrucional, e como trabalhamos para entender o conhecimento cotidiano enquanto provedor de uma via para o conhecimento especializado, em contextos particulares.