1 AFINIDADES AFETIVAS ENTRE A BIENAL E A PEDAGOGIA
Este artigo tem como objetivo a análise do campo de atuação do Pedagogo em espaços de atuação não-formal, com foco na função de Mediador Cultural, que requer interação, diálogo e troca, tendo como pressuposto a função social e política da Educação. Nesse cenário, é preciso ampliar sua competência teórica, mas também a relacional, de modo a abranger circuitos em potencial para o desenvolvimento de relações de afeto e atitudes ético-estéticas, esperadas no campo educacional e da mediação cultural.
A escolha dessa temática possui relação com nossa formação inicial e continuada e, também, com nossas trajetórias profissionais, professoras-pesquisadoras envolvidas no campo da arte. Assim, sentimo-nos instigadas a realizar esta pesquisa com ênfase no tema Afinidades afetivas que a 33ª Bienal de São Paulo, no período de setembro a dezembro de 2018, deflagrou. Para tanto, optamos por uma metodologia de caráter qualitativo e documental, por se tratar de pesquisa “cuja fonte de coleta de dados restringe-se a documentos, que podem ser escritos e não escritos tais como: documentos oficiais, jurídicos, publicações administrativas, registros, entre outros” (LUNA, 2000, p. 54).
O objeto para coleta de dados foi a publicação administrativa com os critérios utilizados pela 33ª Bienal de São Paulo 2018 – Afinidades afetivas, para a contratação de Mediadores Culturais, nesse caso específico, a contratação de pedagogos para atuação como mediadores culturais em espaços não escolares. O título da 33ª Bienal de São Paulo está relacionado ao romance intitulado Afinidades eletivas, de Goethe (1909) e também à tese Da natureza afetiva da forma na obra de arte, defendida por Mário Pedrosa, em 1949, a qual se transformou no livro Arte, forma e personalidade (PEDROSA, 1979).
Pereira (2016) realizou um importante estudo sobre a Bienal de São Paulo; em sua pesquisa evidencia-se um minucioso levantamento na relação de Bienais existentes no mundo e menciona as mostras brasileiras que se encontram cadastradas no Biennial Foundation, sendo estas: Bienal de São Paulo, Bienal da Bahia, Bienal de Curitiba e Bienal do Mercosul. Em 2016, quando Pereira realizou o estudo, havia 173 mostras cadastradas a nível mundial, atualmente existem 237 na plataforma.3 O Biennial Foundation é uma entidade independente, a qual está registrada em domínio holandês na pessoa física de Marieke van Hal, o espaço é profícuo na captura de informações e boletins acerca das bienais contemporâneas de arte.
A Bienal de São Paulo é o maior evento de arte realizado no Brasil; suas raízes estão assentadas no ano de 1947, quando foi criado o Museu de Arte de São Paulo – MASP, e no ano de 1948, o Museu de Arte Moderna – MAM/SP. De acordo com Beuttenmuller (2002, p. 75), “o empresário ítalo-paulista Francisco Matarazzo Sobrinho, mais conhecido como Ciccillo, foi quem idealizou a criação de uma Bienal em São Paulo semelhante à de Veneza”. Sendo assim, a I Bienal de São Paulo ocorreu no ano de 1951. Com efeito, outro marco importante, foi a criação da Fundação Bienal, no ano de 1962, pois a partir dela, a 7ª edição (1963) do evento passa a contar com esse aparato institucional para realizar propostas voltadas à área educativa e social. De acordo com Pereira:
Entender a importância do setor Educativo na Bienal perpassa o entendimento do ensino da arte no Brasil. A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei n. 5.692/1971), que tornava obrigatória a inclusão do ensino de Educação Artística nos currículos plenos das escolas de 1º e 2º graus, somente foi promulgada em 11 de agosto de 1971. Sendo assim, a oficialização do ensino de arte nas escolas de formação básica é algo relativamente recente, o que cria a necessidade de processos de mediação cultural para viabilizar a difusão eficaz do conhecimento artístico. A Bienal se insere nesse contexto, como instrumento de promoção da educação através da arte.
(2016, p. 173)
Com relação à 33ª edição, foco de nossa pesquisa, percebemos que a curadoria da Bienal propôs um modelo alternativo no uso de temáticas, de forma a privilegiar o olhar dos artistas sobre seus próprios contextos criativos. Isso sugere que o processo de mediação cultural já ocorre no momento em que o artista pensa sua produção, escolhe a materialidade que dará sustentação à sua ideia, em conexão com seu contexto.
Portanto, esta pesquisa inicia com uma aproximação do conceito de Mediação Cultural (MARTINS; PICOSQUE, 2012), com uma área estudada em alguns cursos de Pedagogia denominada “Fundamentos da Pedagogia em Espaços não escolares”. Compartilhamos da premissa de que processos educativos podem ser efetivados em outros locais além da escola, nesse caso, espaços culturais podem ser grandes mobilizadores de ações educativas, criativas e emancipadoras, ou, como sugere o tema da 33ª Bienal, espaços para afinidades afetivas.
Sobre a atuação do Pedagogo em espaços não-formais, observa-se que as Diretrizes Curriculares Nacionais para o Curso de Pedagogia indicam que o egresso do curso deverá:
atuar com ética e compromisso com vistas à construção de uma sociedade justa, equânime, igualitária; trabalhar, em espaços escolares e não-escolares, na promoção da aprendizagem de sujeitos em diferentes fases do desenvolvimento humano, em diversos níveis e modalidades do processo educativo; identificar problemas socioculturais e educacionais com postura investigativa, integrativa e propositiva em face de realidades complexas, com vistas a contribuir para superação de exclusões sociais, étnico-raciais, econômicas, culturais, religiosas, políticas e outras.
(BRASIL, 2006, p. 2, grifos nossos)
A partir desse excerto, é possível justificar a inserção do pedagogo em diferentes espaços. Entretanto, torna-se necessário identificar os seus desafios, tema sobre o qual nos dispusemos a refletir. A problemática de pesquisa centra-se em compreender como funciona a contratação de Mediadores Culturais em uma grande exposição no Brasil e qual pode ser a contribuição de Pedagogos nesse espaço de acordo com estudiosos da Educação.
Este artigo trata do conceito de mediação cultural, assim como das possibilidades de formação de mediadores culturais pedagogos, em virtude de serem eles também indicados na descrição da vaga para a contratação de Mediadores Culturais da 33ª Bienal de São Paulo – Afinidades afetivas. O projeto educativo da exposição pretende proporcionar uma estética da atenção, portanto, questões como a comunicação se tornam um desafio nesse processo, pois incitam uma renovação no campo de estudos da educação – que se revele múltipla na observação dos fatores étnico-raciais, gênero, sexualidade, deficiência, entre outras. São questões para as quais a Fundação Bienal tem se mostrado atenta.
2 MEDIAÇÃO CULTURAL EM FOCO
Não há uma única forma nem um único modelo de educação; a escola não é o único lugar em que ela acontece e talvez nem seja o melhor.
(BRANDÃO, 1991, p. 9)
Pensar em processos educacionais para além dos espaços escolarizados é um desafio, e nesse campo situam-se os museus, as galerias, os centros culturais e, também, os bens culturais e patrimoniais. O espaço educativo é múltiplo e não está fixado em horizontes pré-determinados, nesse sentido, uma praça pública pode ser alvo de uma ação educativa endereçada.
A função de Mediador Cultural para a 33ª Bienal de São Paulo – Afinidades afetivas pode ser exercida por um leque de profissionais – desde graduandos em cursos de Ciências Humanas, nas áreas de Artes Visuais, Pedagogia, Museologia, Música, Dança, Teatro, História, Biblioteconomia, etc., até graduados. Esses profissionais, também chamados de agentes de cultura, poderão atuar em exposições artísticas, institutos culturais, museus e universidades, desde que tenham uma preparação para essa importante tarefa mediadora. Para Martins (2012a), a principal função de um mediador é instigar jogos de percepção em encontros sensíveis, assim sendo, esses profissionais precisam desenvolver atitudes pedagógicas intencionais. Tais atitudes constituem-se a partir de um processo, que tem início com o seu contato introdutório com o acervo, de forma a permitir a sua estesia, o estudo desse acervo e a organização de estratégias para acessar diferentes públicos.
Destacamos, porém, que o fato de atuar no setor educativo, seja em instituições culturais ou escolares, não faz desse profissional um mediador. “O que identifica o mediador cultural são as ações por ele promovidas, com ênfase na potência dos encontros com a arte, gerando contaminações estéticas, as quais capturam o outro para a obra de arte” (URIARTE, 2017, p. 87). Esse movimento de contaminação estética volta-se à promoção de encontros com a arte, que provocam os sentidos, convocam a cognição e instigam percepções individuais.
O clima gerado no espaço cultural por nossa presença se expande ainda mais na medida em que trocamos ideias com os que estão conosco nessa viagem estética. Nesse momento, a presença do mediador (professor ou monitor) é fundamental, pois eles podem instigar, com questões provocadoras e jogos de percepção, a troca das impressões sensoriais, de interpretações, da socialização de perguntas que as próprias obras nos fazem.
(MARTINS, 2012a, p. 13)
É importante, por conseguinte, mencionar que juízos de valor não fazem parte de uma ação mediadora, e opiniões sobre gosto devem ser deixadas de lado. A mediação deve ter o propósito de estesiar; o corpo necessita ser visto como um escavador de sentidos (MARTINS, 2012a); e o Mediador Cultural, capaz de multiplicar as interpretações, com o intuito de colaborar para ampliar o repertório do público. Sua atitude consiste em uma ação que procura aguçar experiências estéticas e estésicas (MARTINS, 2012a).
Rancière (2013) também nos ajuda a compreender essa função mediadora, quando define claramente a diferença entre o mestre explicador e o emancipador: “O explicador impõe e abole a distância, que a desdobra e a reabsorve no seio de sua palavra” (RANCIÈRE, 2013, p. 22). Já o emancipador troca, conversa, ouve, cria espaços para o diálogo aberto e convida para entrar no campo estético:
o sentido do termo estético: não a teoria da arte em geral ou uma teoria da arte que remeteria a seus efeitos sobre a sensibilidade, mas um regime específico de identificação e pensamento das artes: um modo de articulação entre maneiras de fazer, formas de visibilidade dessas maneiras de fazer e modos de pensabilidade de suas relações, implicando uma determinada ideia da afetividade do pensamento.
(RANCIÈRE, 2012a, p. 13)
O mesmo autor ainda nos diz que estética é um “modo de pensamento que se desenvolve sobre as coisas da arte” (RANCIÈRE, 2012b, p. 11), arte esta que revela o modo de ver e pensar do artista, e este por sua vez, é o que adentra nos diferentes espaços sociais dando vida às questões triviais e cotidianas, fortalecendo os detalhes e potencializando o que por vezes nos parece insignificante: uma fachada, uma fisionomia, um objeto, um espaço, um lugar, uma palavra.
A ideia de um mediador cultural não é, portanto, ensinar sobre arte, mas dar acesso às obras de forma emancipadora; nesse caso, às obras da Bienal de São Paulo 2018, de forma a oportunizar diálogos e aprender com eles, pensar em modos de provocar encontros com pessoas, conceitos e experiências. Rancière (2013, p. 57) ainda nos diz que o emancipador pesquisa continuamente: “Quem busca, sempre encontra. Não encontra necessariamente aquilo que buscava, [...] mas encontra alguma coisa nova, a relacionar à coisa que já conhece. O essencial é essa contínua vigilância, essa atenção que jamais se relaxa”.
Rancière (2013) nos mobiliza a pensar na mediação cultural como um processo de busca constante, de valorização das impressões particulares e coletivas, de oportunidade para que diferentes vozes se manifestem sobre uma mesma obra de arte, sem o compromisso de estesiar-se de acordo com os fatos instituídos.
Para que a mediação possa promover uma experiência estética, Canton (2009, p. 12) diz-nos que, é preciso “desaprender os princípios das obviedades que são atribuídas aos objetos, às coisas”. A autora chama atenção para algo muito importante, que, novamente, nos remete à emancipação intelectual: mediar não é veicular pela palavra o que é a obra de arte, ou o que ela contém, ou, ainda, usar padrões facilitadores para sua compreensão, muitas vezes retirando a provocação inerente aos objetos artísticos. Mediar é andar junto, estimular encontros com a arte e a cultura, promover encantamento ou estranhamento, descobrir outras funções e usos dos objetos – o que a arte faz com excelência.
A arte, para Deleuze (2012, p. 193), é “um bloco de sensações, isto é, um composto de percepções e afetos”. A partir dessa compreensão, a obra de arte faz-se na interação com o público. Na troca das percepções, criam-se significados próprios; aquilo que não é dito pela obra se manifesta no ato do encontro, a partir das memórias e das sensações que o público irá inferir. Nesse interim, a atitude mediadora não irá conduzir o público à busca por um significado originário, mas irá proporcionar um pensamento que poderá ter um caráter provisório, porque deseja produzir uma reação outsider – no lado de fora, com e para esse coletivo.
O crítico de arte Bourriaud (2009) diz que a produção artística das últimas duas décadas busca criar, em museus, galerias e instituições culturais, modelos de sociabilidade nos quais o fruidor deve participar ativamente. O autor menciona que “em breve, as relações humanas não conseguirão se manter fora dos espaços mercantis” (BOURRIAUD, 2009, p. 12).
A possibilidade de uma arte relacional (uma arte que toma como horizonte teórico a esfera das interações humanas e seu contexto social mais do que a afirmação de um espaço simbólico autônomo e privado) atesta uma inversão radical dos objetivos estéticos, culturais e políticos postulados pela arte moderna.
(BOURRIAUD, 2009, p. 7, grifos do autor)
Ao subverter e alargar o espaço da arte, o autor elucida que o sujeito contemporâneo pode se relacionar com arte como um espaço aberto, a obra deve revelar-se como espaço multiplicador de sentidos, de sensações, de memórias e, assim, passa a ser um intervalo no tempo a ser experimentado, com vias de provocar diálogos ilimitados.
3 A EDUCAÇÃO NÃO-FORMAL E SEUS PROCESSOS DE APRENDIZAGEM
Acreditamos que o profissional graduado em Pedagogia pode contribuir efetivamente como Mediador Cultural no espaço de educação não-formal. Para Gohn (2014), a educação não-formal é um processo sociopolítico que possui relação intrínseca com o conceito de educação-cidadã, pois a autora entende o político como a formação do indivíduo para interagir com os outros pares em sociedade. Para ela, a educação não-formal
designa um conjunto de práticas socioculturais de aprendizagem e produção de saberes, que envolve organizações/instituições, atividades, meios e formas variadas, assim como uma multiplicidade de programas e projetos sociais. A educação não-formal não é nativa, ela é construída por escolhas ou sob certas condicionalidades, há intencionalidades no seu desenvolvimento, o aprendizado não é espontâneo, não é dado por características da natureza, não é algo naturalizado. O aprendizado gerado e compartilhado na educação não-formal não é espontâneo porque os processos que o produz têm intencionalidades e propostas.
(GOHN, 2014, p. 40)
A 33ª Bienal de São Paulo foi organizada no espaço Fundação Bienal, denominado OCA, tratando-se de espaço educativo não formal. Por esse motivo, não acontece em ambientes escolarizados, mas se vale de estratégias da educação não-formal para a aproximação com a escola e o público a que a Bienal também se destina. O uso da terminologia educação não-formal tem origem no Brasil por volta dos anos 2000, que, segundo Gohn, pode ocorrer
tanto em espaços urbanos como rurais; tanto em espaços institucionalizados (no interior de um conselho gestor, por exemplo), como no interior de um movimento social, entre aqueles que lá estão participando e reivindicando, e vão aprender algo sobre um dado tema – quem são os opositores, os encaminhamentos necessários, como poderá ocorrer ainda em outros espaços sociopolíticos, como nas ONGs, nos museus, etc. Ou seja, a educação não-formal é um processo de aprendizagem, não uma estrutura simbólica edificada e corporificada em um prédio ou uma instituição; ela ocorre via diálogo tematizado.
(2014, p. 44)
A partir da conceituação de educação não-formal, é possível identificar quais são os processos que sustentam sua existência, sendo importante mencionar que são necessários investimentos e políticas voltadas à ampliação dessa modalidade educativa.
O Brasil possui importantes marcos que constituem e constituíram a regulação das Políticas Públicas com ênfase na Educação, são estes: Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei n. 9.394, de 20 de dezembro de 1996); Parâmetros Curriculares Nacionais – PCN (1997); Plano Nacional de Educação (Lei n. 10.172, de 9 de janeiro de 2001); Criação da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão – SECADI (Decreto n. 5.159, de 28 de julho de 2004); Diretrizes Nacionais para a Educação em Direitos Humanos (Resolução CNE/CP n. 1, de 30 de maio de 2012); Plano Nacional de Educação (Lei n. 13.005, de 25 de junho de 2014); e Base Nacional Comum Curricular – BNCC.
Ainda sobre marcos regulatórios, é importante apontar que, na Classificação Brasileira de Ocupações4, a função de Mediador Cultural não está prevista. Esse dado demonstra a necessidade de mobilização das categorias interessadas em regulamentar essa função. Martinez (2014, p. 28) chama atenção para esse fator: “enquanto não houver mobilização pelos profissionais ligados à arte/educação para a regulamentação de suas funções, continuaremos sendo submetidos a concordar com os contratos temporários na área”.
No Brasil, é comum ver mediadores atuando como estagiários ou em contratos temporários. Assim sendo, é preciso valorizar a função de Mediador Cultural, pois este faz parte da profusão dos circuitos de cultura. “na história da produção e recepção de objetos culturais, os mediadores tendem a designar o conjunto de intermediários pelos quais as obras ou objetos poderiam se tornar conhecidos, compreendidos, recebidos” (COSTA, 2009, p. 3). Entretanto, não é sempre que o mediador realiza uma mediação. Em alguns lugares pelo mundo, o público é tratado como receptáculo de informações, e o mediador não passa de um informador. Alencar relata, por exemplo, sobre uma visitação ao British Museum:
Era uma visita para o público espontâneo, não escolar, uma atividade que o museu oferece que se chama Gallery Talks, são visitas de 45 minutos a uma hora, em partes específicas do acervo, normalmente acontece numa sala determinada, consta na programação do museu, é só chegar na sala, no horário marcado, você recebe um fone de ouvido, pois, o mediador (ou guide como eles se autodenominam) usa um microfone [...]. Apesar de sua tentativa de diálogo por meio de perguntas, as “buscas” eram dela, ela nos levava às suas “descobertas”.
(2015, p. 72)
Essa situação remete-nos ao que Hernández (2009, p. 207) conceitua como “Alfabetismo da cultura visual ou Alfabetização crítica da cultura visual”. Esse conceito defende diferentes práticas de interpretações críticas, a respeito de “posicionalidades subjetivas e das práticas sociais do olhar” (HERNÁNDEZ, 2009, p. 206). No cerne dessa proposição, está a atitude de mediação que, em vez de perguntar o que o espectador vê, pergunta como ele se representa ou se vê representado. Esse processo está relacionado à subjetividade, ao encontro sensível e poético com a obra de arte. Essa atitude relaciona a importância da alteridade, de como nos vemos no outro ou em determinado processo artístico. Essa questão incorre sobre a formação dos Mediadores Culturais, os quais precisam de aportes artísticos, teóricos e metodológicos cada vez mais atentos ao tempo contemporâneo.
Através da apropriação de metodologias alternativas, com a finalidade de produzir significados alternativos sobre representações visuais (que incluem as obras de arte), expande-se a atenção sobre temas que se mantinham ocultos na perspectiva da alfabetização visual, como as posicionalidades identitárias subjetivas, as relações de poder, as políticas de prazer, as ideologias do olhar, as narrativas hegemônicas.
(HERNÁNDEZ, 2009, p. 206)
Nesse contexto, mencionamos, igualmente, a importância de pensar e atuar com princípios ético-estéticos. De acordo com Duarte Jr. (2010), a ética tem origem do grego ethos, que significa “costume”. Em nossa sociedade, trata-se da ciência da conduta humana. Sobre a estética, o autor menciona:
Aisthesis: em grego, a capacidade humana de sentir o mundo, de senti-lo organizadamente, conferindo à realidade uma ordem primordial, um sentido – há muito sentido naquilo que é sentido por nós. Em português, aisthesis tornou-se estesia, com o mesmo significado dado pelos gregos (sendo anestesia a sua negação, a incapacidade de sentir). E desse termo originou-se também a palavra estética que, referindo-se hoje mais especificamente às questões artísticas, não deixa ainda de guardar o sentido geral de uma apreensão humana de harmonia e da beleza das coisas do mundo, que aos nossos órgãos do sentido permitem.
(DUARTE JR., 2010, p. 25)
É a partir dessas compreensões ético-estéticas que deve se desenvolver e promover a importância do trabalho em Mediação Cultural. Nessa perspectiva, evidenciamos as condicionantes para a contratação de Mediadores Culturais da 33ª Bienal de São Paulo – Afinidades Afetivas. A análise atenta do formulário faz parte das estratégias metodológicas de pesquisa utilizadas nesse artigo para a compreensão de como os profissionais são contratados como Mediadores Culturais. Analisar este documento é dar atenção para os trâmites iniciais de gestão de uma categoria aspirante à profissão, trata-se de lançar um olhar atento para as minúcias do recrutamento humano para uma determinada função relacionada ao universo artístico contemporâneo. Pereira (2016, p. 2012) menciona “a Bienal assume cada vez mais o caráter de megaexposição, fato que, apesar de seu apelo comercial, marca a tentativa de inserção da arte brasileira em um sistema cultural global e a intenção de rever seus parâmetros de gestão”.
Descrição da vaga A Fundação Bienal, instituição de natureza educacional e cultural cuja missão é apresentar e debater a arte contemporânea por meio de seus eventos, realizará a 33ª Bienal entre setembro e dezembro de 2018. O título da 33ª Bienal, Afinidades afetivas, proposto pelo curador Gabriel Pérez-Barreiro, é um convite ao visitante para mergulhar em diferentes maneiras de se relacionar com a arte, com base em suas próprias escolhas e afinidades. Em consonância com essa proposta, o projeto educativo da 33ª Bienal investiga em que medida o estado de atenção prolongada e intencional pode contribuir para um encontro significativo entre visitante e obra. As inscrições para o processo de seleção de mediadores do Programa Educativo da 33ª Bienal de São Paulo – Afinidades afetivas estão abertas entre 26 de fevereiro e 02 de março de 2018, até às 23h59 (horário de Brasília, DF). Serão selecionados 40 profissionais. Mediadores que se interessam pela arte contemporânea e pela diversidade de formas de se relacionar com a arte. O trabalho de mediação, nesse contexto, envolve duas linhas de pesquisa: uma que se inquieta em relação à diversidade afetiva e cognitiva dos públicos e outra que se interroga sobre o efeito e os afetos que o exercício da atenção mobiliza. |
Atribuições 1. Participar ativa e assiduamente, bem como comprometer-se com as 02 (duas) etapas do trabalho: formação para a 33ª Bienal e mediação no período da exposição; 2. Desenvolver pesquisa individual e em grupo e participar das atividades preparatórias para a atuação na exposição; 3. Desenvolver estratégias de mediação levando em conta o contexto da 33ª Bienal e realizar ações de mediação com os diversos públicos; 4. Participar e colaborar em ações propostas por artistas; 5. Produzir relatórios a fim de registrar, avaliar e refletir sobre os períodos de formação e de mediação na 33ª Bienal; 6. Ser pontual nas atividades. |
Requisitos 1. Graduação em Artes ou Ciências Humanas ou 02 (dois) anos de experiência em mediação em exposições de arte ou em instituições culturais; 2. Experiência em educação formal ou não-formal; 3. Boa comunicação oral; 4. Disponibilidade de horário, inclusive nos finais de semana; 5. Habilidade para trabalhar em grupo e comprometimento institucional. |
Critérios de seleção 1. Afinidade com as proposições do projeto educativo da 33ª Bienal; 2. Desejável a experiência/pesquisa em acessibilidade e/ou igualdade étnico-racial, sexual e de gênero; 3. Desejável a fluência em línguas (em especial, inglês, espanhol e Libras) Modalidade: CLT por prazo determinado Dedicação: 20 horas semanais (de terça a domingo) Duração do contrato: De 01 de junho a 14 de dezembro de 2018 Salário e Benefícios: Salário mensal bruto: R$ 2.000,00 (dois mil reais) Auxílio transporte e refeição. Etapas do processo de seleção de mediadores: inscrições, pré-seleção (avaliação dos formulários) e seleção final (entrevista). (BIENAL DE SÃO PAULO, 2018) |
No formulário de inscrição5, é solicitada uma produção textual em forma de memorial, na qual o candidato necessita descrever as suas intenções na função de Mediador Cultural. A primeira etapa da seleção acontece via escolha das experiências relatadas via formulário de inscrição. A experiência na área educacional – formal ou não-formal – é requisito para a contratação.
O critério de seleção 2 – Desejável a experiência/pesquisa em acessibilidade e/ou igualdade étnico-racial, sexual e de gênero – convoca-nos a pensar na necessidade de inserção do debate sobre esses temas desde a formação inicial das licenciaturas. Em nosso artigo ressaltamos a atuação do Pedagogo como Mediador Cultural, mas acreditamos ser importante enfatizar uma educação pela e para as diferenças que atravesse o currículo dos cursos que formam professores. Em algumas universidades brasileiras6, existem disciplinas nos currículos sobre esses três marcadores da diferença (SILVA, 2000). Na Universidade Federal do Rio Grande (FURG), há a disciplina Gênero e Sexualidade nos Espaços Educativos7, a qual, desde 2012, funciona em caráter optativo a todos os cursos de Graduação da universidade. A Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE) inaugurou, em 2013, a primeira disciplina obrigatória de Relações Étnico-Raciais do Brasil (BRASIL, 2013). Nos estudos sobre deficiência, a Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) tem destaque, pois oferta a disciplina “Estudos sobre Deficiência” (UFSC, 2015)8 para alunos da Graduação. Esta teve início no ano de 2015 como iniciativa do Departamento de Psicologia. Nesse sentido, é válida a contribuição de Tomaz Tadeu da Silva:
Um currículo e uma pedagogia da diferença deveriam ser capazes de abrir o campo da identidade para estratégias que tendem a colocar seu congelamento e sua estabilidade em xeque [...]. Estimular, em matéria de identidade, o impensado e o arriscado, o inexplorado e o ambíguo, em vez do consensual e do assegurado, do conhecido e do assentado. Favorecem, enfim, toda experimentação que torne difícil o retorno do eu e do nós ao idêntico.
(2014, p. 100)
Para o autor, é preciso renovar o campo de estudos da educação e construir uma pedagogia da diferença, uma pedagogia que pense no modo como as nossas identidades são fluídas e marcadas por múltiplos fatores, étnico-raciais, geracionais, de gênero e sexualidade, deficiência etc. Nesse contexto, a Fundação Bienal mostra-se atenta a essas importantes questões.
Outro ponto importante diz respeito ao interesse do projeto educativo em proporcionar uma estética que mobilize o exercício da atenção. Na página da Bienal de São Paulo (2017), encontra-se o seguinte fragmento:
As práticas de mediação do projeto educativo se dedicarão à economia da atenção, procurando contrabalancear a dispersão causada pelo imenso volume de informação e imagens a que somos submetidos diariamente. Por meio de exercícios que provocam um estranhamento entre o público visitante e a situação expositiva, a abordagem busca enfatizar a qualidade e a potência do olhar atento.
Em nossa sociedade contemporânea, temos reivindicado o espaço para tais exercícios de atenção – mindfulness (atenção plena). Esse movimento, cada vez mais requerido, ganha força e consistência em uma sociedade dispersa por estímulos das mais variadas ordens. Nesse sentido, o trabalho do Mediador Cultural requer interação, diálogo, troca, algo cada vez mais difícil na sociedade, denominada por Bauman (2001) como modernidade líquida. O autor menciona que parecemos viver uma supressão do tempo e do espaço. Desse modo, a metáfora serve para enxergarmos com clareza as mudanças socioculturais do tempo presente, pois, assim como os líquidos escorrem, os significados também não permanecem sólidos por muito tempo.
Nesse contexto, a comunicação torna-se um desafio, pois os sujeitos se repelem cada vez mais das ações humanas e migram para dispositivos móveis para manterem contato. Não se trata de expressar opinião negativa sobre as interações virtuais, mas de reconhecer que muitos indivíduos tomam a “decisão de evitar a necessidade de comunicação, negociação e compromisso mútuo” (BAUMAN, 2001, p. 126).
Esse contexto é resultado de uma crise descrita por Han (2014, p. 83) como sociedade do cansaço, uma análise afinada com a crítica de Bauman. O sujeito deixa de observar e dar atenção ao outro, pois está preocupado em empreender em si mesmo, “assim, ele se desvincula da negatividade das ordens do outro”. Para o autor, essa racionalidade leva a um desprendimento do que é da ordem da gratificação, da gentileza.
O mundo digital é pobre em alteridade e em sua resistência. Nos círculos virtuais, o eu pode mover-se praticamente desprovido de princípio de realidade, que seria um princípio do outro e da resistência. Ali, o eu narcísico encontra-se sobretudo consigo mesmo. A virtualização e digitalização estão levando cada vez mais ao desaparecimento da realidade que nos oferece resistência. O sujeito do desempenho pós-moderno, que dispõe de uma quantidade exagerada de opções, não é capaz de estabelecer relações intensas.
(HAN, 2014, p. 92)
Frente a esse cenário, a educação estética revela-se como um caminho para enfrentar essa dispersão. A estesia, da ordem do sentir e da fruição, é uma possibilidade, que talvez possa nos oferecer terreno abundante para proporcionar relações de afeto em interlocução com as possibilidades artísticas na educação não-formal.
Nada foge aos cinco sentidos, pois são eles que nos possibilitam a acolhida das coisas do mundo ou de suas impressões óticas, acústicas, gustativas, olfativas, de temperatura, textura, volume, direção. São os cinco sentidos que podem, passo a passo, abrir para nós o caminho pelo estésico. É pela apreensão estésica, pelo modo como nosso corpo é afetado e se deixa afetar que nossa sensibilidade é ativada.
(MARTINS, 2012b, p. 23)
Nesse complexo dilema interacional, está posicionado o trabalho de atitude da mediação, a partir da qual, espera-se uma melhor recepção do público aos Mediadores Culturais. Consideramos que esta reflexão merece atenção aos campos da Pedagogia, das Artes Visuais, da Museologia, entre outros.
4 CONSIDERAÇÕES SOBRE CAMINHOS PARA A MEDIAÇÃO CULTURAL
Este artigo buscou refletir acerca dos horizontes da Mediação Cultural como parte integrante da área da Educação não-formal. Consideramos de extrema importância que a função de Mediador Cultural seja profissionalizada e integre a Classificação Brasileira de Ocupações. Isso porque é função dos mediadores promover encontros com a arte, ampliar as formas de ver o mundo, o que ocorre por meio do conhecimento, mas também das relações humanas que se estabelecem no percurso. Ao acessar uma determinada forma ou objeto, diálogos internos são provocados, de modo a gerar, quase sempre, descobertas. É nesse processo que a mediação cultural pode favorecer encontros, capazes de alcançar outros pontos de vista e novas significações.
Ao analisarmos os termos de contratação de Mediadores Culturais da Fundação Bienal de São Paulo, percebemos que essa instituição poderia ter uma equipe fixa de Mediadores, os quais estudariam o extenso repertório artístico com mais tempo, bem como participariam dos trâmites de negociação de artistas, identidade visual, curadoria, entre outros. Dessa forma, os mediadores acompanhariam todo o processo de acolhimento da obra, e, a partir desse acesso, é que seriam mediados pelas obras. Por conseguinte, eles poderiam preparar-se para serem seus mediadores, com o intuito de acessar diferentes grupos de pessoas, cada um com o seu interesse específico.
Pedagogia e Arte inter-relacionam-se, pois estão na mesma matriz das humanidades. Na Pedagogia, aprendemos a planejar, a selecionar, a estruturar, a avaliar, a pensar nas melhores maneiras de abordar determinado conteúdo. Na Mediação Cultural, aprendemos a apresentar, a informar, a interpretar, a experimentar e a mediar. Nesse sentido, compreender sobre a concepção de que trazemos marcas de pertencimentos que podem nos colocar em relação ou nos distanciar de determinadas manifestações de arte é crucial para um processo didático-pedagógico-mediador que envolve a arte e a educação. Assim, é preciso ver potência nas relações humanas e nutrir-se esteticamente (MARTINS; PICOSQUE, 2012).
O trabalho da Mediador Cultural intenta enfrentar essa seara na qual as relações escorrem como líquido. Portanto, a sua existência na sociedade é de suma relevância para a formação de uma sociedade que tenha a educação estética como ferramenta para alcançar a educação das sensibilidades. Consideramos que a educação não formal se constitui um espaço privilegiado para a formação de princípios ético-estéticos, principalmente por dois fatores: a) sua lógica não tem a disciplina dos corpos como baliza; e b) não existe uma hierarquização promovida por avaliações e provas.
A Educação tem uma função social e política, em vista disso, na qualidade de professores, precisamos afastar a inércia e a frieza relacional. O processo educacional precisa de relações de afeto, de identidade e de pertencimento por meio de atitudes ético-estéticas. Tal trabalho de sensibilização estética deveria ser empreendido desde os primeiros anos escolares, o que pode ser realizado por meio da audição de CDs ou vídeos, apresentação de obras visuais, cinematográficas, textos literários, entre outros, de modo a beneficiar os diferentes grupos, especialmente aqueles que não possuem um ambiente familiar favorável à sensibilização estética.