1 EDUCAR PARA LER: O DESAFIO DINÂMICO DE NOS FORMARMOS
Questão árida, a formação de leitores tem sido discutida a partir de pontos de vista nem sempre convergentes. E embora o alcance democrático do tema não possa ser refutado, às vezes, enfoques rasos sobre o assunto o banalizam. Afinal, quando tudo é relevante para consolidar práticas leitoras, pouco se pode projetar. Para favorecer a inserção de crianças no universo da leitura, seguidamente, embaralham-se motivos educacionais, políticos, sociais, econômicos, entre outros. Na área de Letras, com razão, a leitura partilhada, desde a infância, é reconhecida como um dos modos de estímulo ao fortalecimento do círculo virtuoso da leitura (MORAIS, 2013). O êxito dos processos de sua aprendizagem gera sensação de satisfação que conduz a mais e mais leitura; espiral positiva em tudo divergente, segundo o mesmo autor, a do círculo contrário, vicioso, em que pouca participação na leitura e desenvolvimento linguístico pobre acarreta leitura má, infrequente e desinteresse.
No entanto, o convívio entre adultos e crianças para incrementar ações de leitura nem sempre questiona as vantagens da adoção de determinadas práticas, instrumentos ou da qualidade em si dos meios empregados para esse fim. É significativa a insegurança que muitos adultos (pais, familiares, professores etc.) sentem ao tentar responder às necessidades da demanda. A criança pode descobrir o prazer da leitura muito antes de aprender a ler. O problema se antecipa ao período da alfabetização, pois sendo a voz adulta – do familiar ou do professor – a única a realizar leituras para crianças ainda não alfabetizadas ou nos primeiros anos do fundamental, sua concepção de infância determinará a seleção e a espécie de leitura realizada, além de conformar a abordagem pós-leitura que vai ofertar.
No sentido da leitura que se antecipa à alfabetização formal, seguidamente encontramos, em nossas pesquisas, crianças envolvidas em rotinas de partilha leitora que evidenciam objetivos excessivamente utilitários, pois a prática de leitura que as instituições (famílias e escolas) julgam que devem proporcionar às crianças, ou fazê-las conhecer, está atravessada por dois principais direcionamentos: a) o que os adultos responsáveis ou professores conhecem e compreendem como sendo o bom texto, literário ou não; b) o que conhecem e compreendem como sendo a boa realização da ação de ler.
Entretanto, a escolha pelo bom texto e pela boa leitura, no mais das vezes, se restringe a uma seleção escolar! Com finalidade formativa, textos medíocres e pouca variedade de gêneros são levados ao convívio educativo; publicações cuja miséria imaginária se mostra na construção rasa de enredos e imagens e nas abordagens de mediação, obrigando as novas gerações à “experiência de uma língua sem substância, reduzida a uma mecânica de letras e de combinações artificiais” (DUBORGEL, [19--?], p. 35). E assim como se escolarizam textos em diferentes instâncias e gêneros, se escolarizam as ações de contá-los através de recursos como fantoches e fantasias, tão comuns ao universo escolar da infância. O uso de tais expedientes importa menos do que o julgamento equívoco de que serão eles que darão a ver o conteúdo intencional do texto. Em relação à leitura, pesquisas apontam, muito seguidamente, grande distanciamento físico e emocional dos adultos em relação às crianças até mesmo no momento da roda, quando poderiam propiciar diálogos significativos, mas que, na prática, não conseguem garantir interlocução, dando a ideia de que “pouco [ouvem] das argumentações das crianças, não se [colocando] por inteiro no diálogo, indagando ou expressando pontos de vista” (KRAMER; NUNES; CORSINO, 2011, p. 77).
Ainda, para alcançar o alfabetismo4 suficiente e melhorar o desempenho em leitura e escrita, lançam-se exasperadas críticas à formação dos professores da Educação Infantil, que não deveriam subestimar “o interesse e o empenho das crianças em tornarem a escrita parte integrante das interações estabelecidas em sala de aula” (CASTANHEIRA; NEVES; GOUVÊA, 2013, p. 105). Não contradizemos o direito de acesso às habilidades essenciais para a escolarização já na infância, tema que tem ocupado a centralidade dos estudos da ciência da leitura. Quando o adulto consegue correlacionar grafemas e fonemas, explicitando letras e sons, a questão da instrução fônica, auxilia a necessária aprendizagem da leitura e da escrita e promove significativa ampliação na cognição das crianças (SCLIAR-CABRAL, 2013), uma delas a compreensão de como funciona o sistema alfabético com consequente avanço linguístico para elas. Esta revelação se torna mais expressiva quando entendemos que as crianças de baixo nível socioeconômico, por volta dos 3 anos de idade, foram expostas a 30 milhões de palavras a menos do que as filhas de pais com formação superior, o que redunda em decréscimo na amplitude de seu vocabulário oral, prejudicando o processo de escolarização e o transcurso de suas vidas. (SARGIANI & MALUF, 2018).
Contudo, reconhecer o vínculo existente entre vulnerabilidade social, deficiência linguística e insucesso escolar não nos faz menos críticos à superficialidade do entendimento acerca de como devem se dar as boas práticas docentes de incentivo à leitura. Como dissemos, além de determinar o bom texto, as boas realizações de leitura sugeridas aos professores da infância são, nos últimos anos, apenas aquelas que, nomeando letras e números, explicitam a relação entre o oral e o escrito, rumo à alfabetização. Além disso, certas análises, inclusive confundem os que atuam com a pequena infância, pois justificam o papel fulcral da Educação Infantil na formação leitora para que “as crianças possam aprender a gostar de ouvir a leitura, que tenham acesso à literatura, que desejem se tornar leitores, confiando nas próprias possibilidades de se desenvolver e aprender” e, simultaneamente, sublinham, como objetivo do período “garantir os direitos das crianças à cultura oral e escrita, convivendo com gêneros discursivos diversos orais e escritos (em especial a narrativa de histórias)” (KRAMER; NUNES; CORSINO, 2011, p. 79).
Embora haja justificativas teóricas para preferir a narração, não convém negligenciar o poema, ou o texto dramático no letramento pleno a que as crianças têm direito e que poderia fazê-las encontrar a maior variedade de gêneros possível, inclusive aqueles que, como o poema, adensam a consciência linguística e auxiliam na posterior alfabetização. O espaço poético da infância tem imensurável projeção no adensamento do imaginário e, consequentemente, da linguagem de crianças e jovens. A preocupação com a “centralidade da escrita na construção de identidades e suas relações com formas variadas de inserção e participação na vida cultural e social” (CASTANHEIRA; NEVES; GOUVÊA, 2013, p. 92-93) inquieta àqueles que, como nós, advogamos contra a “assepsia do conteúdo sociocultural do letramento”, certificado no “zelo exacerbado em relação à vinculação do fenômeno aos atos de ‘ler’ e ‘escrever’ em seu sentido estrito” (CERRUTTI-RIZZATTI, 2012, p. 295).
A escrita não deveria ser conteúdo central da Educação Infantil, momento fecundo da etapa de formação da Educação Básica, sob pena de reduzirmos ainda mais a experiência de relação do corpo com o mundo na educação da infância. Não estamos dizendo que a escrita não deva ou não possa aparecer como um dos aspectos fundamentais da convivência em linguagem, principalmente nas escolas, mas, nessa fase, tal atenção não é medular, pois a ação educativa não se circunscreve apenas ao ensino da leitura. Staccioli (2013) argumenta em prol do acolhimento das crianças em sentido pleno, como modo de perceber aquilo que é necessário e possível mostrar e realizar com elas, sem contradizer a ação educativa. Para ele, no diálogo com a infância, tendo o acolhimento como método, é possível inverter o sentido do termo ensinar, que traz a ideia de deixar uma marca, e perceber as marcas que as crianças deixam nos adultos; tais sinais, se lidos, podem enriquecer a partilha de experiências. Perceber a criança e seu mundo pode evitar o
risco de um espontaneísmo difundido e de um ativismo equivocado. Acolher não é submissão aos eventos casuais, mas [...] reconhecer que a vida real também é cultural [...], reafirmar que ‘dentro’ do cotidiano amadurecem os diversos campos da experiência; é redescobrir que a diferença entre a experiência da criança e a experiência disciplinar é apenas uma diferença de grau e não uma diferença de natureza.
(STACCIOLI, 2013, p. 28-29).
A ressalva é justa, pois a pressão para a realização da leitura deleite5 ou partilhada leva jovens profissionais e com ainda frágil formação teórica a esquecer do significado da pedagogia, qualquer pedagogia e não apenas aquela que é imputada ao educador da infância. Seu sentido é o de uma prática teórica de ação transformativa dinâmica dos sentidos atribuídos ao conhecimento e à vida e não o de uma prescrição interpretativa, e por isso redutora da realidade. Alfabetizar é responsabilidade conjunta e implicada, sem dúvida. Apesar disso, talvez devamos insistir nesse compromisso, rememorando a todos os adultos a seriedade de um processo que envolve conhecimento técnico e sensibilidade.
2 FORMAR A HUMANIDADE: A PROMESSA DA INFÂNCIA
Por reivindicarmos o direito à formação para a leitura desde a infância, julgamos essencial demarcar um ponto inicial para a argumentação. Na impossibilidade de examinar desde a gênese o conceito de infância, adotamos como perspectiva uma das características da modernidade: tê-lo tornado central para os adultos. O filósofo Walter Kohan (2004) mostra que o cuidado intelectual com a infância se firmou a partir das áreas da psicologia e da história. Esse domínio confirma-se na dificuldade de ler, durante anos, trabalhos acadêmicos sobre a infância – inclusive de literatura infantil e infantojuvenil – que não mencionassem Philippe Ariès6 e sua tese da invenção do sentimento da infância. A tese naturalizou-se como verdade: a infância passou a ser uma invenção moderna.
Até então seu estudo se dava, principalmente, pelo viés das categorizações desenvolvimentistas – ou etapistas. Essa publicação possibilitou debater a infância numa disposição distinta da dos comportamentos infantis. O trabalho de cunho histórico de Ariès contribuiu para rejeitar afirmações prescritivas e universalistas que demarcavam a infância como categoria previamente formulada e acabavam por enquadrar as crianças em fases e prognósticos. Em seu entender, a infância foi um conceito forjado a partir do século XVIII, no Iluminismo da Idade Moderna e sua gênese adveio de um sentimento de infância não igualável a uma afeição pela criança, pois correspondia à “consciência da particularidade infantil, essa particularidade que distingue essencialmente a criança do adulto, mesmo jovem” (ARIÈS, 1981, p. 156) e que não era perceptível durante a Idade Média.
Em 2001, o historiador Colin Heywood reviu as posições de Ariès, questionando a fragilidade dos métodos de análise, que examinavam representações iconográficas da arte medieval. Heywood argumentou que, mesmo com falhas lógicas, o livro de Ariès foi lido como relato histórico e supôs como resposta à dificuldade de setores acadêmicos notarem a controvérsia das teses de Ariès o caráter contraintuitivo dos seus argumentos, que fez os leitores reconhecerem que suas ideias sobre a infância eram baseadas em hipóteses naturalizadas. E, percebida a infância como culturalmente construída, “abrem-se campos de estudo inteiramente novos aos pesquisadores e se torna mais fácil elaborar uma crítica radical do pensamento sobre as crianças em sua sociedade” (HEYWOOD, 2004, p. 24). O raciocínio de Heywood pode nos fazer ver que as transformações dos conhecimentos sobre as crianças determinam modificações no modo como são vistas e descritas na sociedade.
Então, dada a aceitação dessa verificação diacrônica [que as transformações dos conhecimentos sobre as crianças modificam o modo como são caracterizadas e descritas na sociedade], é possível inferir proveito educacional – e pedagógico – em reconhecer que as transformações dos conhecimentos sobre o modo como as crianças e os jovens conhecem e compreendem pode modificar o modo como são ‘ensinados’. Assim, pesquisar a formação leitora de crianças e jovens significa não apenas investigar aquilo que se faz para eles (os produtos reais ou simbólicos) e as metodologias que se usa, mas o processo através do qual os adultos exteriorizam o que reconhecem essencial em termos de leitura.
A viabilidade de inferir e desejar cumplicidade entre as gerações com vista ao letramento pleno na Educação Básica, também pode sensibilizar o professor pesquisador e formador a questionar seu construto imaginário sobre a ação de ler com o propósito de agregar qualificação – ou capital cultural – àqueles que, depois, ocuparão como docentes os espaços escolares. Se ler e escrever encerram, como condição de existência, o fato de serem vivências de processos únicos, partilhar (e por isso ensinar) seu regozijo (algo que se revela em intimidade) exige valorar percursos singulares para além da reprodução do que configura nossos conhecidos caminhos de leitores e escritores. Ao refutamos a excessiva escolarização dos temas literários oferecidos para crianças e jovens, também repudiamos sua ocorrência em outras dimensões formativas. Não será porque o livro fala de amor e de justiça que ficaremos amorosos e justos. Um enredo não inculca qualidades. A literatura não é densa por ter temáticas densas, mas por permitir que nos modifiquemos perante sua palavra-força, muito mais quando vocalizada, pois, conforme Paul Zumthor (2007), há distinção entre as dimensões oral e vocal da leitura, o que abordaremos na seção seguinte.
Antes, advertimos o que entendemos por compartilhar. Na esteira das reflexões de Staccioli (2013), o verbo em si não se refere a procedimento inquestionável ou acertado apenas porque o prefixo com agrega à ação da partilha noção de simultaneidade acompanhada. A partilha não é metodologia. Quando um mediador partilha um livro com uma criança – que o acompanha em corpo e voz – além de auxiliá-la no desabrochar do interesse leitor, ele lê com ela e a educa, inclusive fazendo ou não referência explícita às tecnologias da escrita. Segundo Hanna Arendt, não é por imposição que buscamos estar entre os homens, mas por uma vontade que decorre do nascimento e nos faz recomeçar. (ARENDT, 2010). Infelizmente, com a modernidade, o compartilhar – gesto de proximidade – pouco nos tem dito sobre educação. Kohan (2007) denuncia que, no pensamento educacional no Ocidente, a infância foi vista como fundamento político ou alicerce utópico para instigar um caráter mais justo para a vida social. Mostra, ainda, que o estrangeiro e o ignorante não entram no espaço educativo, a não ser como obstáculo a ser superado.
E agindo exatamente como adultos, compartilhamos com as novas gerações – estrangeiras e ignorantes – explicações de como agir para manter o que julgamos legítimo: seja para afirmar o êxito, ou superar o fracasso. Os adultos (humanos que já viveram mais) não se sentem implicados na educação dos jovens e, como falta à criança o consentimento da voz, a infância acaba por se constituir a despeito de sua ausência (da voz) e como mera reprodutora de uma fala espúria. Mas poderíamos admitir a infância desde outra marca, a partir do que ela “tem e não do que lhe falta: como ‘presença’ e não como ausência; como ‘afirmação’ e não como negação, como ‘força’ e não como incapacidade” (KOHAN, 2007, p 101 – grifos do autor). Ela pode ser o modo único e múltiplo de todo o acontecimento.
Na lógica desse pensar, levar a sério a novidade de cada nascimento seria uma possibilidade de impedir que ele se acabasse em si mesmo. Ao tornar múltipla sua novidade, o nascimento se estenderia à vida e não apenas ao acontecimento biológico do parto. Se nos colocarmos diante da infância com o propósito de que seu estrangeirismo e ignorância não sejam faltas em virtude do vínculo a uma etapa, um tempo, mas condição da experiência humana, confrontamos o valor amoroso de viver e acompanhar a vida que insiste em começar, com cuidado, respeito e disponibilidade. Ao concebemos essa humana via, somos convidados a admitir que “o mundo pode nascer novamente e ser outro, completamente distinto daquele que está sendo” (KOHAN, 2007, p. 112).
3 O VALOR POÉTICO E A VOCALIDADE
Ao agir mediados pelo recomeçar dessa novidade originária, constituímos saberes ao longo do viver. Ensaiando aprender e ensinar, escutar e falar, compreender e ignorar, adentramos o estado poético (VALÉRY, 1999, p. 196), a alegria e o vigor compartilhados. O termo poético7, na acepção que o usamos, não se refere ao conceito de poema, composição literária, mas ao que nos convida à pergunta, ao diálogo e ao exercício de aprender a pensar, pois a “Poética não pode ser modelo ou conjunto de regras através das quais se avaliam e definem os gêneros” (CASTRO, 2010, p. 110). O problema da relação entre Poética e gêneros literários, concerne ao que é ensinado “nas faculdades a propósito da literatura não [passar] de uma Sofística emoldurada pela Retórica e formada por conceitos metafísicos” (CASTRO, 2010, p. 110).
O próprio da Poética são questões acerca da realidade, da verdade e do conhecimento, não redutíveis a conceitos. Para questionar não basta conhecer, pois uma questão só se impõe na inseparabilidade entre o que somos (e o que pensamos) e o que fazemos (e questionamos) no mundo. Ao contrário, o conceito traz uma ideia geral “permanente, atemporal, aplicável à realidade mutável ou, no caso do gênero, a diferentes obras, que teriam em comum algumas características enunciadas pelos conceitos. Nada mais falso. Isso só existe conceitualmente” (CASTRO, 2010, p. 112). A dimensão poética a que referimos envolve tomada de posição guiada pelo agir, no sentido vital que “se diz originária e criativamente ‘poietizar’” (CASTRO, 2009, p.16). A Poética e o pensamento originário não se movem no caminho das proposições que fundam conceitos, mas na sabedoria do ético e do poético, que não “são passíveis de aprendizagem e ensino. Só de aprendizagem” (CASTRO, 2010, p. 111). Aprendizagem que não conceitua, mas encerra uma questão que se torna verdadeira a quem, questionando, se envolve, pois quem “questiona só pode questionar se no questionar se questiona” (CASTRO, 2010, p. 110).
Paul Valéry argumenta que “não existe teoria que não seja um fragmento cuidadosamente preparado de alguma autobiografia” (VALÉRY, 1999, p. 196). Nossa própria vida “se espanta” e, dentro de sua existência, fornece, se conseguir, nossas “respostas, pois é somente nas reações de nossa vida que pode residir toda a força e como que a necessidade de nossa verdade” (VALÉRY, 1999, p. 196). Em relação à leitura, na mesma direção, Chartier (1994, p. 16) observa que ela “não é somente uma operação abstrata de intelecção; ela é engajamento do corpo, inscrição num espaço, relação consigo e com os outros.” A escrita, igualmente, obedece ao mesmo preceito. Enquanto sujeitos da escritura, não podemos aprisionar o momento da leitura, pois “ao ‘dar a ler’, o escritor dá o que não tem, o que não sabe, o que não quer, o que não pode... nada que dependa do seu saber, do seu poder ou de sua vontade... nada que lhe seja próprio” (LARROSA, 2004, p. 24).
Desse modo, o conhecimento não é, mas se dá nos limites impostos pelo ser em linguagem. Segundo Bachelard (1985), os homens poderiam classificar melhor os valores de explicação e os de expressão, os valores espontâneos e os cultivados. Mesmo
falando, temos necessidade de uma ‘literatura’. A literatura – que será necessário um dia resgatar de um injusto desprezo – está ligada à nossa própria vida, à mais bela das vidas, à vida ‘falada’, falada para tudo dizer, falada para nada dizer, falada para melhor dizer. Sim, nossa fala deve ter, como nossos escritos, a preocupação com um Valor, com um valor direto que só pertence a ela, que devemos, portanto exprimir por uma taulologia: ‘a palavra é um valor falado’, ela valoriza o ser que fala, ‘o ser falado’.
(BACHELARD, 1985, p. 144 – grifos do autor).
Mas Bachelard soube mensurar a agrura terrível a que remete essa palavra valor, pois, numa clara referência às fenomenologias de Husserl e Sartre, afirmou que “quando se fala de valores, todos se creem mestres, todos se acreditam no direito de julgar. Há até mesmo filósofos que definem o valor como uma essência de apreensão imediata” (BACHELARD, 1985, p. 145). Em nome de um valor, mentores, críticos e professores, através de seus julgamentos de valor a priori, “esmagam as tentativas da cultura” para manter as “interdições retoriqueiras”. Ao proibir as flores, “impedem qualquer floração”. E buscam a Língua, esquecendo “a língua primeira que devolveria à vegetação do ‘falar’ a seiva de suas profundas raízes” e prescrevem certezas ensurdecidas diante da “língua viva que se forma – que poderia formar-se se [...] estivessem desarmados” (BACHELARD, 1985, p. 145).
Na escola, a seriedade de conhecer se iguala à ausência de alegria, e às interdições retoriqueiras de que fala Bachelard, mesmo que, no avesso das certezas, sintamos a felicidade infantil no acontecimento de cada nova palavra ou imagem conquistada. Infelizmente, as crianças pequenas, ninhos da alegria, adentram a cultura escolar cada vez mais cedo8; na Educação Infantil, sendo recebidas a partir da forma escolar, o que implica outro tempo-espaço para suas infâncias. Nem pior, nem melhor, mas outro, que gostaríamos de assegurar que fosse gerador de espaços simbólicos, imaginários, constituidores de repertórios e que pudessem contribuir para garantir a idiossincrasia humana das crianças, incluindo o exercício da liberdade linguística oral e escrita.
A formação leitora – cuja relevância nem deveríamos ter que reiterar e escrever a respeito – pode se beneficiar, assim que as crianças iniciam sua caminhada rumo à alfabetização, da partilha de um repertório de textos que considerem o que há de humano no encontro de gerações. Desejaríamos que os adultos garantissem aos mais jovens, na organicidade da sua ação poética, as ações de ler, compreender e interpretar aderidas às experiências corpóreas que os pequenos assumem durante a audição de textos, um modo ficcional de vivenciar um processo, simulando uma invenção não linear e criadora. (FRONCKOWIAK, 2011). A redundância de adjetivar a ação como poética é intencional, pois como dissemos, discordamos que o poético seja tomado enquanto gênero literário ou representado por certa modalidade de textos, ora aproximado do poema ou da poesia.
Como afirma Todorov (2009), o texto literário tem o papel vital de contribuir para o alargamento da potência linguística, pois a leitura das obras remete a “círculos concêntricos cada vez mais amplos”, os escritos de um mesmo autor, as obras da literatura nacional, as da mundial, mas o mais importante de todos, é “efetivamente dado pela própria existência humana”, pois as obras que reconhecemos ou que são reconhecidas como diferenciadas convergem na “reflexão dessa dimensão” (p. 90). Enquanto revelação do mundo, a “realidade que a literatura aspira compreender é, simplesmente (mas, ao mesmo tempo nada é tão complexo), a experiência humana” (TODOROV, 2009, p. 77). Garantir a permanência da voz das crianças – suas falas espontâneas – e a amplitude de seus repertórios nos encontros promovidos com a palavra poética pode auxiliar na construção do discurso autoral de cada indivíduo, sem negligenciar espaço à alegria e ao corpo.
Nesse sentido, são produtivas as ponderações do medievalista Paul Zumthor (1915-1985), que atribuiu ao termo poesia a noção do poético (o fazer afirmado pelo termo grego) presente na linguagem literária, independente do gênero em que se manifeste, mas tributário dos efeitos de emanação da voz, inclusive no texto escrito. Para ele, a performance da voz irradia e emana uma “energia propriamente poética” (ZUMTHOR, 2007, p. 39), e a palavra poesia engloba a noção atual de literatura, pois se refere ao poético da linguagem literária sem eliminar a voz – ou o que dela resta – na página escrita:
A noção de ‘literatura’ é historicamente demarcada, de pertinência limitada no espaço e no tempo: ela se refere à civilização europeia, entre os séculos XVII e XVIII e hoje. Eu a distingo claramente da ideia de poesia, [...] arte da linguagem humana, independente de seus modos de concretização e fundamentada nas estruturas antropológicas mais profundas.
(ZUMTHOR, 2007, p. 12).
Zumthor (1993) fez ver que o texto recitado ou cantado, de memória ou de improviso, ganhava autoridade única e exclusivamente pela voz.9 Ao ser lido, ao contrário, transferia a autoridade da voz para o livro, objeto visualmente percebido pelo público. Textos medievais, antes de escritos, eram mais teatrais, deixando a ação leitora mais livre, fato que fez Zumthor substituir a palavra oralidade por vocalidade. “Vocalidade é a historicidade de uma voz: seu uso. Uma longa tradição de pensamento, é verdade, considera e valoriza a voz como portadora da linguagem, já que na voz e pela voz se articulam as sonoridades significantes” (ZUMTHOR, 1993, p. 21). A vocalidade adulta – ou sua performance vocal, (ZUMTHOR, 2007) – ancorará a dinâmica da voz, conduzindo adulto e criança a viverem a amplitude potencial dos textos. A escuta de textos compartilhados, principalmente os literários, que propõem o encadeamento de estruturas linguísticas e semânticas complexas (ritmos, imagens, intrigas, inferências, etc.) revelam o elo entre a experiência oral de textos e o ‘valor’ da escuta para adensar a imaginação.
Para nós, não é equívoco resgatar a força da dimensão poética da voz. A elocução de um texto, sua realização potencializada na vocalidade do contador – educador, ou qualquer adulto familiar – talvez alcance aquele valor da qualidade, que está em nós verticalmente (BACHELARD, 1990b, p. 62) mesmo em um corpo não teatral. A voz é o corpo, pois nesse corpo (do qual ela emana) mostra-se, esconde-se, oferece-se e evade-se, potência firme, suave, enérgica, sutil, segura, veemente, débil desse mistério indizível de dizer o mundo. A força singular dos textos literários não se localiza apenas nos recursos enunciativos, tampouco na escolha de um cânone surdo, sagrado e autorreferencial (BAJOUR, 2012).
Observar crianças em seus processos de inserção no ambiente educacional e reconhecer a ação poética da palavra gera desconforto em relação às práticas de partilha da leitura literária desde a Educação Infantil. As crianças, suas palavras curiosas em relação à vida e às oportunidades que viver encerra, nos fazem registrar que a eliminação do encanto, compartilhado entre adultos e crianças a fundamentar os processos de letramento, direcionando a leitura categoricamente para uma prática silenciosa, era (e ainda é) tomada na escola como signo indubitável de sua eficiência.
4 A IMAGINAÇÃO
Aproximar Bachelard e infância é complexo, embora possível à medida que sua obra reivindica a imaginação enquanto experiência da novidade, aberta e evasiva. A metáfora educacional imposta à imaginação, ao contrário, tem propensão a tornar tudo explicável. O modo educativo de abordar a imaginação a mostra atrelada ao signo da “infantilidade-inferioridade, inserida numa ‘lei de crescimento’ da racionalidade que a predestina à dissolução”, refém de uma “evolução que a educação apenas ratifica” (DUBORGEL, [19--?], p. 282-283). A imaginação para Bachelard reúne os universos da poética e da epistemologia, pois ao postular a descontinuidade e constante retificação da razão, ele viu que cabia à filosofia unir poesia e ciência como contrários complementares.
E isso foi possível porque o filósofo erigiu seu pensamento sobre a imaginação criadora sem enrijecê-lo em um sistema, como parte da filosofia ocidental. Pessanha (1985) mostra que, ao contrário da tradição, que aborda a imaginação enquanto explicação sobre a origem e os níveis do “conhecimento (relação imagem/ideia, possibilidade de um pensamento sem imagem etc.), Bachelard a investiga a partir de textos (imagens literais/literárias) ou obras de arte (imagens pintadas, gravadas, esculpidas)” (p. xiii). O enfoque estético substituiu o da origem, natureza e limites do conhecimento humano, sendo, por isso, a imagem “apreendida não como construção subjetiva sensório-intelectual, como representação mental, fantasmática, mas como acontecimento objetivo, integrante de uma imagética, evento de linguagem” (p. xiii).
Com efeito, Bachelard atribui à imaginação um caráter aberto, julgando-a não como a faculdade de ‘formar’ imagens, mas como a de “´deformar’ as imagens fornecidas pela percepção, [...] de libertar-nos das imagens primeiras, de ‘mudar’ as imagens. Se não há mudança de imagens, união inesperada das imagens, não há imaginação, ação imaginante” (BACHELARD, 1990a, p. 1). A mesma potência com que, alegando a força da infância, disse que é “preciso viver, por vezes é muito bom viver com a criança que fomos. Isso nos dá uma consciência de raiz. Toda a árvore do ser se reconforta” (BACHELARD, 1988, p. 21).
Para ele um núcleo de infância permanece em nós, infância que, embora surja como história quando a contamos, só se configura realidade se a iluminamos através de sua existência poética. Tal movimento “tem raízes mais profundas que as nossas simples lembranças. Nossa infância testemunha a infância do homem, do ser tocado pela glória de viver” (BACHELARD, 1988, p. 119). Dessa perspectiva (e dessa memória) concebemos, com Bachelard, uma ética mais humana a influenciar as mediações de leitura pelos adultos. Uma lógica que supere o vício de ocularidade10, que, desde os gregos, vincula pensar e ver. Alegra-nos que Bachelard se negue a aceitar a predominância das metáforas visuais do vocabulário do pensamento ocidental. Uma filosofia que vê “com os olhos” está presa à contemplação do mundo, que não passa de uma metáfora. Daí a luta de Bachelard contra a forma. O espírito não se deve formar, mas reformar, por isso o mérito de uma filosofia que admite obstáculos e dificuldades, sustentando uma ciência que não pode ser apreendida pelo olhar. Será a ‘fenomenotécnica’ que desvinculará a noção de erro da ociosidade do espetáculo.
Com Elyana Barbosa (1996) divisamos a identificação do sujeito com o objeto (a imagem) como método fenomenológico em Bachelard. Ou seja, para que o sujeito compreenda a criação, ele não precisa ser o criador, é suficiente participar da sua intenção. Ao nos envolvermos na ação poética da leitura partilhada com uma criança, empregando a vocalidade de um adulto que já experimentou a palavra, impregnamos o texto com imagens – não figuras – potências de um valor falado e, por isso – e somente assim – compartilhado. Voltamos, então, a proposição, já anunciada anteriormente, de que a qualidade da interação afeta a partilha da leitura entre adultos e crianças, mas ela não é explicativa, visto que o processo de compartilhar linguagem é um valor, um valor poético.
Bachelard, assim, defende um estado da consciência desperta no ser que se deixa envolver pela imagem poética. Para ele, isso é o devaneio, que não é sonho, pois se associa às “tentativas de individualização que animam o homem desperto, o homem que as ideias acordam, o homem que a imaginação convida à sutileza.” (BACHELARD, 1988, p. 144). O sonhador de devaneio no centro do seu eu sonhador, formula “um ‘cogito’. Noutras palavras, o devaneio é uma atividade onírica na qual subsiste uma clareza de consciência. O sonhador de devaneio está presente no seu devaneio” (BACHELARD, 1988, p. 144).
Então, divergente ao sonho noturno, o devaneio possibilita ao leitor e/ou ouvinte aprofundar sua própria existência pela ‘repercussão’, fenômeno que “opera uma inversão do ser. Parece que o ser do poeta11 é o nosso ser” (BACHELARD, 1993, p. 7). O poeta, através de sua imaginação criadora – concretizada nas imagens que emprega –, aprofunda um “súbito realce do psiquismo, realce mal estudado em causalidades psicológicas subalternas” (BACHELARD, 1993, p. 1). Não há, para ele a possibilidade de chegarmos a uma noção de princípio, como, em geral, o faz a psicologia, pois as imagens ‘poéticas’ surgem de uma atualidade essencial, uma novidade psíquica. Atualidade que é ‘do leitor’, pois somente ele atualiza o que é ‘essencial para ele’ e que se projeta a partir da imaginação, agora não só a imaginação do poeta, mas as duas, do escritor e do leitor.
Não tem, então, nada a ver com essências, pois é relativa à ‘ação’ de cada um: escrever, ler e, para as crianças não alfabetizadas, escutar. Entretanto, as ações são diferentes, mas, como bem argumenta Bulcão (2008), da perspectiva da força material que explode da imagem, “não há mais diferença, por exemplo, entre o leitor da poesia e o poeta que a criou” (p. 29). Da unidade da ‘repercussão’ surge a imagem nova e inesperada que, através das ‘ressonâncias’, se dispersa nos diferentes planos da vida do leitor.
Bachelard rompe com longa tradição filosófica de abordar a imagem. Primeiro, porque nega que seja “uma atividade auxiliar e subalterna, uma atividade que depende da percepção e que é sempre depreciada em relação à razão” (BULCÃO, 2008, p. 21), como sugere a teoria do conhecimento com base em Descartes. Segundo, porque discorda de Sartre (que se baseou na fenomenologia de Husserl, a quem seguia) de que se devam buscar as possibilidades da imagem na consciência, doadora do sentido. Ao contrário, é o “mundo material que, apreendido como resistência, torna-se portador de imagens, pois constitui uma provocação ao imaginário” (BULCÃO, 2008, p. 28), já que a “imagem poética não está sujeita a um impulso. Não é o eco de um passado. É antes o inverso: com a explosão de uma imagem, o passado longínquo ressoa de ecos e já não vemos em que profundezas esses ecos vão repercutir e morrer” (BACHELARD, 1988, p. 2).
O homem que lê, e que por isso é lido, ousa entregar-se ao devaneio e, habitando seu espaço, acha-se num dentro sem fora, fica “‘imerso’ no seu devaneio. O mundo já não está diante dele. O eu não se opõe mais ao mundo. No devaneio já não existe não-eu. No devaneio o ‘não’ já não tem função: tudo é acolhimento. (BACHELARD, 1988, p. 161). A Bachelard surpreende a impossibilidade de dar explicação crível ao caráter inesperado da imagem nova, assim como à sua adesão pelo leitor, ou seja, “numa alma alheia ao processo de sua criação [...]. O poeta não me confere o passado de sua imagem e, no entanto, ela se enraíza em mim. A comunicabilidade de uma imagem [...] é um fato de grande significação ontológica” (BACHELARD, 1993, p. 2). É nesse sentido que o devaneio é operante.
Duas premissas são essenciais para a compreensão desse conceito. Primeira, Bachelard alega que “tudo o que é especificamente humano no homem é ‘logos’”, sem “meditar numa região que estaria antes da linguagem” (BACHELARD, 1993, p. 8). Assim, ele circunscreve a imaginação poética ao exercício da palavra, especificando o nível de ontologia com a qual trabalha. Segunda, já referida, elimina a possibilidade de que a imagem se traduza na ideia equívoca de figura, decalque visual ou fantasma de evocação, já que ela não reproduz fielmente as sensações. Para ele, é absurdo supor a imagem atrelada à mera reprodução de uma qualidade sensível (gosto, odor, sonoridade, cor, polimento, forma etc.). O problema das qualidades das substâncias não se resolve, como o fazem psicólogos e metafísicos, no plano do conhecer, pois até quando “delineiam temas existencialistas, a qualidade conserva o ser de um ‘conhecido’, de um ‘experimentado’, de um ‘vivido’” (BACHELARD, 1990b, p. 61 – grifos do autor). Em suma, para ele, a imaginação,
inteiramente positiva e primária, deve, quanto ao tema das qualidades, defender o existencialismo de suas ilusões, o realismo de suas imagens, a própria novidade de suas variações. Assim, [...] devemos colocar o ‘valor’ imaginário da qualidade. Em outras palavras, a qualidade para nós é a ocasião de tão grandes valorizações que o ‘valor passional’ da qualidade não tarda a suplantar o ‘conhecimento’ da qualidade [...] Assim, ao abordar o problema do ‘valor subjetivo’ das imagens da qualidade, devemos nos convencer de que o problema de sua ‘significação’ deixa de ser o problema principal. O ‘valor da qualidade’ está em nós verticalmente; ao contrário, a ‘significação’ da qualidade está no contexto das sensações objetivas – horizontalmente.
(BACHELARD, 1990b, p. 62 – grifos do autor–).
A extensa citação embasa a ideia de que a imagem não está atrelada à percepção, pois ela “não é, como sugere a etimologia, a faculdade de formar imagens da realidade; é a faculdade de formar imagens que ultrapassam a realidade, que ‘cantam’ a realidade. É uma faculdade de sobre humanidade” (BACHELARD, 1989, p. 17-18). Um grande entrave pedagógico relacionado à criação, ou criatividade (ou emancipação linguística, dizemos) surge pela dificuldade em compreender a autonomia da imaginação criadora em relação à percepção (a visual principalmente). Bachelard avaliou a questão asseverando que, através da imaginação, abandonamos o curso ordinário das coisas. “Perceber e imaginar são tão antitéticos quanto presença e ausência. Imaginar é ausentar-se, é lançar-se a uma vida nova” (BACHELARD, 1990a, p. 3) e ele almeja a vida pujante, disposta ao homem pelo imaginário apesar da vida ordinária, acerca da qual nada podemos dizer. É a imaginação que inventa vida e mente novas: “Abre olhos que têm novos tipos de visão. Verá se tiver ‘visões’. Terá visões se se educar com devaneios antes de educar-se com experiências, se as experiências vierem depois como provas de seus devaneios” (BACHELARD, 1989, p. 18). O homem adensa sua humanidade na proporção em que ultrapassa a humana condição; a leitura e a escrita compartilhadas têm possibilidade de contribuir para isso.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Na busca pela plena formação leitora desde a infância, abordamos o risco de firmar empreender círculos de atividades tediosas de leitura, pois o intento de fazer aflorar a leitura deleite e o círculo virtuoso (MORAES, 2013) da leitura, muitas vezes, não vem acompanhado do acolhimento das crianças, como modo de perceber o que é possível partilhar e realizar com elas. Por vezes, conceitos educacionais teóricos, ao se fundamentarem, constituem-se enquanto ideias permanentes, atemporais, aplicáveis e, por isso, contraditórias à ação educativa, que percebemos poética, por implicar uma tomada de posição guiada pelo agir. Esse agir dinâmico impulsiona e é impulsionado pelo vigor ético e poético do adulto que faz, vocaliza e escuta. Pesquisar tal formação implica investigar o processo através do qual pais, cuidadores, professores, bibliotecários etc. se comprometem com a educação das proclamadas novas gerações, motivados pelo desejo de nascer, começar e recomeçar com elas.
As fenomenologias da voz, a partir de Paul Zumthor, e da imagem, com Gaston Bachelard, inspiram tal compartilhamento, já que evidenciam, como método fenomenológico, a identificação do sujeito com o objeto (nas ações poéticas da vocalidade e do devaneio). Para compreender a criação, basta participar da sua intenção. Quanto à leitura na infância, isso se dá qualificando os valores de expressão, entre eles a palavra e a escuta, para que cada nova palavra ou imagem conquistada amplie a percepção, inclusive a dos grafemas marcados na página. Quando a linguagem partilhada se transforma, tudo se transforma e germina na alegria ética e estética do acontecimento, gestando imagens novas. Com efeito, ter a consciência da criança (e do jovem) que fomos faz renascer o desejo de compartilhar a amplitude de nossa arguta potência em linguagem, aquilo que Bachelard chamou de consciência de raiz para a árvore do ser.
Esses outros sentidos construímos ouvindo as crianças, lendo seus discursos e as expressões que buscam empregar ao encontrar as vozes que lhes falam, por escrito e oralmente. Mais, ao encontrar suas próprias vozes falando-se oralmente; sentido que constituímos porque, na docência e na pesquisa, nos percebemos, numa consciência de devaneio, escutando (e não escutando); vendo (e não vendo); lendo (e não lendo) e protagonizamos o que, a princípio, julgávamos importante as crianças experimentarem. Assim, reivindicamos: a) a necessidade de espaço para os corpos/vozes vivos das crianças nas interações que fizeram, fazem e farão com outras crianças e adultos (outros corpos), com o legado cultural e com a oralidade nas escolas e b) a relevância de investigarmos a cultura literária e as experiências com a palavra verbal oral e escrita, oferecidas às crianças na escola, na contramão da lógica de socialização dominante, cuja ênfase cega aos fenômenos de ler e escrever exaurem em complexidade e amplitude as suas experiências.
A virtude paradoxal da leitura é afastar-nos do mundo para lhe emprestar sentidos, pois, ao nos libertar do tempo-espaço, ela nos aproxima de nossa solidão leitora, garantindo o silêncio da intimidade. Ao ler, da repercussão do texto que passa à consciência, configuram-se ressonâncias que não têm lógica causal. Não há uma causa, no passado, na história do homem ou na da própria literatura, que possa afirmar – na interioridade do ser que lê – a justificação para as escolhas e os compromissos que a leitura configura. Contudo, não há comprometimento sem desejo, algo de que pouco falamos: “É preciso desejar ler muito, ler mais, ler sempre” (BACHELARD, 1988, p. 26).
Ao contrário do que o senso comum diz e a escola explica não há prazer imediato na leitura, pois a abertura das suas experiências só ocorre no íntimo do leitor sob o domínio consciente de sua liberdade. Os benefícios da leitura – principalmente a literária – por mais complexos que sejam os temas abordados, advêm da alegria estética que temos ao exercitar duas funções psíquicas: a imaginação e a vontade, pois “não se quer bem senão àquilo que se imagina ricamente” (BACHELARD, 1991, p. 20). O humano pode “respirar livremente” e suportar a especificidade do livro, “ao mesmo tempo uma realidade do virtual e uma virtualidade do real” (BACHELARD, 1988, p. 25), inebriado pelas imagens surgidas na leitura. Como não sentir a alegria de ser, também, ao mesmo tempo, leitor-criador?
Supomos ter evidenciado que não pretendemos dar voz às crianças, na medida em que elas seguramente já a tem. O que buscamos é a possibilidade de que a docência de crianças e jovens – e de jovens que serão docentes de crianças e jovens – quando envolve leitura e estudo de textos literários (principal, mas não exclusivamente), supere o impasse da excessiva escolarização e que, em virtude dessa superação, se realize fazendo soar a poética voz autoral das crianças em relação ao que a leitura e a escrita demandam.