1 INTRODUÇÃO
Este artigo discute a política educacional edificada pelos Institutos Federais (IFs), voltada ao ensino médio integrado, em especial o aspecto concernente a seu público-alvo, qual seja, “garantir a perenidade das ações que visem a incorporar, antes de tudo, setores sociais que historicamente foram alijados dos processos de desenvolvimento e modernização do Brasil” (BRASIL, 2010, p. 21). Assim, toma-se como hipótese que, mesmo com a adoção de políticas afirmativas, a instituição dá continuidade à trajetória das antigas escolas técnicas e, portanto, conta com alunos diferentes dos pretendidos nos documentos oficiais, pois adota mecanismos de seleção e permanência distantes da realidade dos estudantes de baixa renda.
Os resultados apresentados são parte de uma pesquisa quanti-qualitativa realizada em seis IFs e uma instituição semelhante na Alemanha3. Mil e novecentos estudantes do ensino médio integrado responderam a um questionário eletrônico, e professores e diretores foram entrevistados com base num roteiro semiestruturado.
O texto se organiza em três partes. Em primeiro lugar, resgatam-se aspectos históricos da educação profissional no Brasil com vistas a destacar a população privilegiada pelas diversas políticas implementadas; posteriormente, se apresentam os resultados da pesquisa quantitativa sobre a caracterização socioeconômica dos estudantes de um campus do IF no interior paulista; e, por fim, as considerações finais.
Precede a análise uma conceituação da educação profissional,4 aquela ancorada na divisão social do trabalho que, por sua vez, se concretiza pela distinção entre trabalho intelectual e manual e cuja inserção na produção gerará desigualdade social (MARX, 1982). Como modalidade de ensino, é voltada à formação de profissionais especializados para atender às demandas do setor produtivo, tendo sido estabelecida nos países centrais desde a Revolução Industrial, diante da necessidade de sistematizar o conhecimento técnico e científico aplicado à indústria.
No Brasil, a dualidade histórica e estrutural da educação escolar reflete o aviltamento do trabalho manual, realizado por escravos, e imprime profundas cicatrizes na formação cultural e social nacional. Segundo Cunha (2000a), no século XIX, o Colégio das Fábricas ensinava certos ofícios aos órfãos e serviria de modelo a outras instituições que abrigaram os “desvalidos da sorte” (BRASIL, 1909, [s.p.]), crianças de 6 a 12 anos, incorporando, além do ensino de trabalho manual, a obediência hierárquica e a disciplina historicamente requeridas para o trabalho.
Os marcos legais das políticas educacionais no Brasil perpetuam esse traço ao demarcar e acentuar a divisão de classes, estabelecendo para a classe dominante o direito e o acesso à educação propedêutica e, às camadas segregadas, uma formação voltada para o ingresso imediato no mercado de trabalho (CUNHA, 2000a; BRYAN, 2008).
2 DAS ESCOLAS DE APRENDIZES AOS INSTITUTOS FEDERAIS: QUE SEGMENTOS DA POPULAÇÃO SÃO ATENDIDOS?
As Escolas de Aprendizes Artífices criadas por Nilo Peçanha em 1909 nas capitais dos estados marcam o processo mais sistematizado de implementação do ensino profissional no Brasil, embrião das futuras escolas técnicas. Eram escolas gratuitas, destinadas à formação de aprendizes artífices e pretendiam formar “os filhos dos desfavorecidos da fortuna [...], como fazê-los adquirir hábitos de trabalho profícuo que os afastará da ociosidade ignorante, escola do vício e do crime” (BRASIL, 1909, [s.p.]).
No contexto da reforma do Estado Novo (1937-1945), as escolas técnicas federais adotaram a aplicação de testes para ingresso, o que a viria a romper a tradição de destinar o ensino profissionalizante à população mais pobre (CUNHA, 2000a).
Porém, em 1942, como resposta aos avanços da industrialização, cria-se o Serviço Nacional de Aprendizagem dos Industriários (SENAI), tributário da concepção do governo Nilo Peçanha e que, imbuído do espírito fordista, assume um papel para além da formação técnica. Destaque-se que Henry Ford atuou objetivamente na organização do trabalho racionalizando-o e, subjetivamente, vendeu à sociedade a felicidade baseada no consumo e pôs em ação um exército de assistentes sociais para orientar as famílias dos operários sobre organização e higienização das casas, orçamento familiar e escolarização, sobretudo aos imigrantes nos Estados Unidos (HARVEY, 1992).
Em seus documentos, o SENAI (1946) constata que atendia estudantes subnutridos e com alta carência de assistência familiar, de modo que os “desvalidos da sorte” permanecem na educação profissional.
É francamente desfavorável a impressão que, em regra geral, causam, ao médico e ao higienista, as condições de saúde dos operários menores que se candidatam aos cursos ordinários e extraordinários do SENAI [...] 80% são infestados por vermes e protozoários; 60% tem visão deficitária; encontram-se, em média 13 cáries por boca [...]. Os organismos quase sempre subnutridos e estafados, resistem mal às infestações e infecções a que permanecem constantemente expostos nas habitações modestas, porões e cortiços, cujas condenáveis condições de higiene preparam terreno fértil à propagação e ao contágio das endemias e epidemias.
(SENAI, 1945, p. 91 apud5 MARQUES, 2011, p. 2).
Paralelamente, por meio do Decreto n. 4.127, de 25 de fevereiro de 1942, o governo federal avança na construção das bases da organização da rede federal, constituída por escolas técnicas, industriais, artesanais e de aprendizagem. Assim, as escolas de aprendizes artífices são transformadas em escolas técnicas nos diferentes estados, estabelecendo em São Paulo a denominada Escola Técnica de São Paulo. Os cursos técnicos passam de primários a secundários, destinados exclusivamente a preparar força de trabalho, cunhando-se a partir de então o termo técnico para designar a formação do trabalhador especializado em nível secundário (MANFREDI, 2016).
Essa perspectiva é gradativamente fortalecida e, durante a ditadura civil-militar, aprova-se, pela Lei n. 5.692/1971 (BRASIL, 1971), o ensino profissionalizante compulsório para todo o nível médio.
A reforma proposta implicava “abandonar o ensino verbalístico e academizante para partir, vigorosamente, para um sistema educativo de 1º e 2º grau voltado às necessidades do desenvolvimento”, dizia a mensagem do ministro da Educação, Jarbas Passarinho, enviada com o projeto que daria origem à Lei n. 5.692.
Essa reforma poderia extinguir o dualismo estrutural vigente se, consoante à perspectiva marxista (MARX; ENGELS, 1983) o trabalho técnico mediasse o acesso a uma tríade não hierarquizada e articuladora das dimensões intelectual, corporal e tecnológica e, nesse movimento, se voltasse a reduzir a desigualdade de formação e de posicionamento na pirâmide social. Pelas características autoritárias e partidárias da agudização da divisão de classes no regime militar (MOTTA; REIS; RIDENTI, 2014) a medida associava a profissionalização ao emprego, longe da formação integral dos estudantes e da politecnia6 (CURY et al., 1982).
Se, dadas as convicções ideológicas vigentes, a proposta governamental nos anos 1970 nem sequer cogitava tal concepção, por outro lado, consolidou nas escolas técnicas federais a oferta do ensino médio integrado ao técnico profissionalizante (EMI) sustentado pela alta qualificação do corpo docente e por satisfatórias condições materiais e estruturais das escolas, ampliando as possibilidades de ingresso no mercado de trabalho e no ensino superior (FERRETTI, 1997; KUENZER, 2007; BANDERA, 2016), embora dando continuidade à seleção para ingresso.
O processo de redemocratização no país ensejou fortes debates e participação da comunidade científica nos rumos da educação nacional, culminando na Constituição Federal de 1988, mas foi igualmente marcado por seguidas crises política e econômica que inauguraram sucessivas medidas de caráter neoliberal, como o avanço das privatizações e a redução do papel do Estado, sobretudo nos anos 1990, quando uma reorganização produtiva levou à emergência de uma lógica de competição mundial entre as empresas, que passaram a exigir um “novo trabalhador”, agora mais flexível e polivalente, em oposição à rigidez fordista (HARVEY, 1992).
A educação profissional acompanhou esse movimento, e o governo federal promoveu a Reforma da Educação Profissional, por meio do Decreto n. 2.208/1997, que apartou a educação profissional da educação básica e permitiu oferecer à parte o ensino profissionalizante. Tal medida, compreende-se, dialogou diretamente com o contexto do pós-fordismo, regido pela polivalência, pela flexibilização das relações de trabalho e pela agilidade no atendimento das necessidades do mercado (FERRETTI, 1997).
Com base em Ferretti (1997) e Kuenzer (2007), constata-se o desmantelamento dos cursos EMI, que, a partir do referido Decreto, deixam de ser oferecidos, inclusive nas escolas federais. Entre os motivos alegados pelo governo, incluía-se “tornar as escolas da rede federal menos elitistas” (FERRETTI, 1997, p. 254), argumento sustentado na reconhecida qualidade dos cursos EMI dessas escolas, que, conforme Bandera (2016, p. 812), atraía um número significativo de filhos de “ocupantes dos empregos de colarinho branco”,7 em busca de melhores condições de aprovação em exames vestibulares, e não para ingresso imediato no mercado de trabalho na área do estudo técnico.
Só em 2004 a oferta do EMI seria recuperada, por meio do Decreto n. 5.154, e passaram a vigorar no Brasil três modalidades de curso técnico de nível médio (Quadro 1).
Ensino Médio Integrado | Currículo integrado e matrícula única, no qual se ministram conjuntamente e na mesma instituição as disciplinas profissionalizantes e do ensino geral. |
Subsequente ou pós-médio | Realizado após o término do ensino médio. |
Concomitante | Realizado de duas formas: (a) o estudante cursa o ensino profissionalizante e o médio na mesma escola, mas em cursos e períodos diferentes (concomitância interna), ou (b) faz os dois cursos em instituições diferentes e sem vinculação entre si (concomitância externa). |
Fonte: Brasil (2004).
Em 2008, tem início o processo de expansão da oferta pública de educação profissional, dada a transformação das escolas técnicas e de outras instituições federais8 em Institutos Federais, por meio da Lei n. 11.892, estabelecendo como uma de suas metas prioritárias a implantação do EMI na perspectiva de educação politécnica, tendo o trabalho, a ciência e a cultura como princípios educativos. Compreende-se que a filosofia expressa na política, qual seja, a formação do cidadão, visa extrapolar a ideia de educação voltada exclusivamente para a prática profissional, vislumbrando-se uma educação para a vida. Assim, os documentos oficiais que marcam a inauguração dessa nova instituição preconizam a democratização do acesso à educação de qualidade para os segmentos que “historicamente foram alijados dos processos de desenvolvimento e modernização do Brasil e viabilizar, desta forma, o pagamento da dívida social em relação a esse público” (BRASIL, 2010, p. 21).
Contudo, o movimento de expansão incluiu formas de seleção como o tradicional vestibulinho, com provas do conteúdo programático do ensino fundamental ou análise curricular dando prioridade às notas mais altas, o que acirrou a disputa pelas vagas e excluiu uma parcela dos interessados em ingressar nessas escolas, mesmo das adeptas ao sistema de cotas para oriundos de escolas públicas, raciais ou sociais. A permanência de processos seletivos pautados num suposto mérito aponta o caráter contraditório da política, que acaba, mais uma vez, preterindo os menos favorecidos.
No contexto mais amplo, a criação dos IFs convergiu com as demandas do empresariado de formação de profissionais qualificados para assumir certos postos de trabalho e também para estimular a pesquisa aplicada, com geração de patentes, de modo a concorrer para o desenvolvimento e o crescimento da economia nacional e favorecer a inserção do país no cenário competitivo global. Para lograr tais objetivos, os IFs foram estabelecidos para expandir a oferta de educação profissional e tecnológica em todos os níveis e modalidades, do ensino básico à pós-graduação. Outrossim, a Lei de criação dos IFs estabelece a proporção de 50% de cursos técnicos com prioridade ao EMI, 20% de licenciatura e os 30% restantes para os demais cursos: formação inicial e continuada (FIC), cursos superiores de tecnologia, bacharelado e pós-graduação stricto e lato sensu (PACHECO, 2010; DEITOS; LARA, 2016).
A criação dos IFs e a expansão da Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica (RFEPCT) são consideradas um avanço nas políticas públicas de educação profissional estabelecidas no período. Entre 2002 e 2016, verificou-se um aumento da ordem de 360% no número de escolas federais espalhadas pelo país, o qual deveria ser acompanhado do aumento de matrículas nesse segmento educacional, bem como da democratização do acesso aos cursos profissionalizantes, em especial, o EMI (PACHECO, 2010).
Conforme Oliveira (2017), a qualidade do ensino médio na maioria das escolas públicas brasileiras que atendem prioritariamente as camadas populares conduz parte importante dos estudantes a empregos precários ou ao desemprego. Além disso, existem no Brasil cerca de 1,7 milhão de jovens com idade para frequentar o ensino médio, entre 15 e 17 anos, que estão fora da escola (BRASIL, 2018).
Por outro lado, o número de matrículas no ensino médio em 2019 foi de 7,5 milhões, das quais cerca de 1,9 milhão no ensino profissionalizante, englobando os cursos EMI, concomitantes e subsequentes. A maior parte da matrícula em educação profissional (58,8%) concentrou-se na rede pública. Apesar da expansão, a rede federal responde por apenas 3% das matrículas de nível médio em todo o país (INEP, 2020).
Destaque-se que a meta 11 do Plano Nacional de Educação (PNE) 2014-2024 prevê o aumento das matrículas na educação profissional, chegando a 5 milhões em 2024, com 50% da oferta na rede pública.
2009 | 2010 | 2011 | 2012 | 2013 | 2014 | 2015 | 2016 | 2017 | 2018 | 2019 | |
---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|
Brasil | 1.257.291 | 1.376.824 | 1.483.643 | 1.605.608 | 1.667.685 | 1.945.006 | 1.917.192 | 1.859.940 | 1.831.003 | 1.903.230 | 1.914.749 |
Rede pública | 742.552 | 818.787 | 890.426 | 962.746 | 964.196 | 971.732 | 1.044.807 | 1.097.716 | 1.077.150 | 1.132.533 | 1.125.463 |
Rede privada | 514.739 | 558.037 | 593.217 | 642.862 | 703.489 | 973.274 | 872.385 | 762.224 | 753.853 | 770.697 | 789.286 |
Fonte: INEP (2015, 2018, 2020).
As políticas de expansão da RFEPCT garantiram um aumento de 34,3% na oferta de EMI entre 2009 e 2019, mas, segundo Melo e Moura (2017), o ritmo diminuiu em relação ao período 2001-2013, fruto dos cortes de verba observados a partir de 2015, com a promulgação da Emenda Constitucional n. 95/2016, que limita os gastos públicos por vinte anos, estagnando os investimentos em educação. Os autores afirmam que, se a tendência se confirmar, não será possível atingir a meta 11 até 2024, sobretudo porque a maior parte do investimento na área foi destinado ao setor privado (por meio do PRONATEC).
2.1 O Instituto Federal de São Paulo
É nesse contexto que se situa o Instituto Federal de São Paulo (IFSP), criado em 2008, pela transformação do então Centro Federal de Educação Profissional e Tecnológica (CEFET-SP), e seguiu o curso da expansão observada nacionalmente, passando de três unidades para 36 campi, todos em pleno funcionamento em 2019.
Constatou-se que, para início das atividades dos campi inaugurados a partir do processo de expansão no interior do estado de São Paulo, optou-se pela oferta inicial de cursos técnicos concomitantes e subsequentes, posto sua implantação demanda menos recursos e profissionais. Seguindo essa mesma lógica, a oferta de cursos EMI entre 2012 e 2015 foi realizada a partir de uma parceria entre o IFSP e a Secretaria de Estado da Educação de São Paulo (SEE-SP), em regime de colaboração, cabendo àquele o ensino profissionalizante e a esta, o ensino geral. A partir dessa experiência, concluiu-se que o curso proposto se assemelhou ao concomitante e, assim, não atingiu a principal meta dos IFs, de oferecer ensino integrado na perspectiva de politecnia (BRAZOROTTO, 2014).
Só em 2016 teve início a oferta de cursos EMI nos campi do interior, com currículo, professores e recursos do próprio IFSP. O processo de construção desses cursos transcorreu durante todo o ano de 2015, visando atender o disposto na legislação vigente: a prioridade de oferta do EMI, pautado no ideal de politecnia.
Ressalte-se que a educação profissional desenvolvida nas escolas da rede federal, em especial as de nível médio, tem sua excelência reconhecida tanto pela comunidade civil quanto pela acadêmica. Conforme Bandera (2016), em pesquisa realizada com estudantes do ensino médio no campus São Paulo do IFSP, tal reconhecimento se deve principalmente à qualificação do corpo docente, composto por mestres e doutores, ao processo de seleção do corpo discente, por meio de exames classificatórios e competitivos, e ao alto índice de colocação dos egressos no mercado de trabalho e em universidades mais concorridas.
Para o autor, este último aspecto é responsável por atrair à instituição parcela significativa de jovens oriundos de famílias com renda superior a dois salários-mínimos almejando ascensão social, e o ingresso em escolas como o IFSP representa essa possibilidade, pois “é um momento decisivo no jogo social e escolar, onde apostas socialmente determinadas ocorrem e têm consequências determinantes que delimitam o horizonte de futuros possíveis” (BANDERA, 2016, p. 810).
Vale ressaltar que no IFSP o EMI apresenta os índices mais baixos de evasão, em torno de 6,6% em 2018, contra uma média de 21,9% dos demais cursos técnicos (PLATAFORMA NILO PEÇANHA, 2019). Essa informação foi corroborada por pesquisa baseada em entrevistas com docentes da instituição, que confirmam a baixa evasão no EMI, o que pode ser justificado pelo fato de a modalidade a compor etapa final da educação básica obrigatória (BRAZOROTTO 2020).
3 CARACTERÍSTICAS SOCIOECONÔMICAS DOS ESTUDANTES DO EMI: ANÁLISE DE UM CAMPUS DO IFSP
Se muda a política educacional para os cursos profissionalizantes, permanece uma máxima desde sua criação: o dualismo que perpetua a divisão de classes e se distancia de ações para superá-la.
Realizada em sete escolas da RFEPCT, sendo seis delas IFs, a pesquisa quantitativa procurou fazer a caracterização socioeconômica dos estudantes para cotejar o intuito da política de incluir camadas populares da sociedade, historicamente excluídas da educação pública de qualidade, e sua efetiva concretização. Foram coletadas 1.901 respostas, concentrando-se a presente análise em um campus do IFSP.
Esse campus iniciou suas atividades em 2010, a partir da segunda fase de expansão das escolas da rede federal, num município cuja atividade econômica principal foi historicamente a indústria e a agropecuária, mas onde recentemente o setor de serviços passou a liderar (IBGE, 2017).
A unidade em tela oferece anualmente, desde 2016, duas áreas de formação para o EMI: informática e mecânica, com 80 vagas distribuídas equitativamente entre ambos. Os ingressantes são admitidos por processo seletivo público e, desses, 69 responderam à pesquisa: 33 do curso de informática e 36 de mecânica.
Observa-se que o IF atende majoritariamente a estudantes do próprio município (88%), e é importante verificar se o alto percentual se deve à política de divulgação local ou se há efetivamente problemas de transporte para receber estudantes de outras cidades. Os estudantes se concentram na idade esperada para ingresso no ensino médio: praticamente todos (91,3%) têm entre 14 e 15 anos (Gráfico 1).
A distribuição por sexo indica presença significativa de estudantes do sexo masculino (71%), a qual pode ser parcialmente explicada pelos cursos oferecidos (informática e mecânica), ocupações com participação majoritária de homens (CAMARGO, 2014).
A questão de gênero é um obstáculo a ser vencido pelas mulheres na formação profissional e na inserção igualitária no mercado de trabalho, posto que a existência de uma construção social atribuída aos sexos imputa à mulher uma “incompetência técnica” para atividades ligadas a ciência ou tecnologia (HIRATA, 2003, p. 148). Essa suposta inaptidão deriva do papel feminino na divisão sexual do trabalho, ligado intrinsecamente a atividades domésticas e de cuidado da família e, comumente, invisibilizado. Esse trabalho não é considerado produtor de técnicas, o que permite colocar as mulheres num plano inferior.
Pode-se afirmar que os estudantes do IF em tela são oriundos de famílias cujos pais têm escolaridade mais alta que a média da população brasileira (46,7%). Prevalece entre pais e mães o ensino médio completo (50% e 43,5% respectivamente), e entre a população brasileira com idade acima de 25 anos, 26,3%. Todavia, os percentuais verificados são congruentes aos coletados pelo IBGE na região Sudeste, onde 53,6% da população tinha o ensino médio completo em 2018 (IBGE, 2019).
Quanto ao ensino superior completo, os responsáveis pelos estudantes estão em patamares equivalentes aos da população brasileira (15,3%). Somando os números relativos às respostas referentes a esse nível de ensino aos que indicaram pós-graduação, 16,2% das mães estão nessa faixa de escolaridade e, ligeiramente abaixo, os pais, com 15,9%. Esse número aumenta sensivelmente se adicionados os percentuais do superior incompleto: 28% entre as mães e 18,8% entre os pais, reafirmando séries históricas que indicam maior escolarização das mulheres (HIRATA, 2003).
O levantamento sobre a renda mensal das famílias dos entrevistados indica que pouco mais de 1/4 (26,1%) coincide com o rendimento médio real domiciliar da população brasileira: R$ 1.373,00 (IBGE, 2018). Apenas, 3,9% das famílias dos estudantes têm renda inferior a um salário-mínimo (R$ 937,00) ou não têm renda.
Assim, verifica-se que a maior parte dos estudantes, quase 7 em cada 10, pertence a famílias com renda mensal acima da média nacional, concentrando-se na faixa entre 2 e 4 salários-mínimos (47,8%). De acordo com o delineamento da política, os IFs deveriam atender prioritariamente estudantes de camadas populares, em condições de vulnerabilidade social, definidas pela Lei n. 12.711/2012 como aquelas com rendimento mensal abaixo de um salário-mínimo e meio. No caso investigado, observa-se que apenas 1/3 dos estudantes provém de família com rendimento de até 2 salários-mínimos.
A análise da situação socioeconômica dos estudantes visou articular outros aspectos complementares, entre eles, o desemprego entre suas famílias. O percentual aproxima-se do referente aos mais baixos níveis de renda: 20,3% dos respondentes apontaram ao menos um membro da família desempregado. Em 2017, a taxa de desemprego no Brasil foi de 12,7%, a maior da série histórica iniciada pelo IBGE em 2012. Em 2014, quando as políticas para a educação profissional e expansão dos IFs estava em pleno desenvolvimento, a taxa média de desemprego era de 6,8% (IBGE, 2020).
Com relação às políticas afirmativas, a Lei n. 12.711/2012 determina que ao menos 50% das vagas no EMI, por turno e curso, sejam reservadas para estudantes provenientes de escolas públicas. Entre essas, a metade deve atender famílias em situação de vulnerabilidade social e metade, pessoas que se autodeclaram de cor/raça preta, parda ou indígena e também portadoras de necessidades especiais, observando-se a proporção dessas populações no estado, conforme dados do IBGE (2020).
Esta pesquisa constata que 42% dos estudantes do IFSP declararam ingresso por meio de cotas para a escola pública, 5,3% de cotas sociais (baixa renda) e 4,9% raciais. Quanto à autodeclaração de cor, 64,6% da amostra se identifica como de cor branca, 5,1% preta, 27,7% parda e 2,1% amarela, representando a distribuição no estado (BRAZOROTTO, 2020). Constatou-se que as políticas afirmativas representam um avanço importante na democratização do acesso a instituições federais, sobretudo da população negra/parda, em consonância com o divulgado no relatório sobre desigualdade racial no país do IBGE (2019).
Outro elemento importante indicativo da classe social é relativo à frequência do trabalho infantil ou muito jovem. Constatou-se que praticamente 9 em cada dez estudantes do IF (87%) nunca trabalhou, do que se inferem dedicação exclusiva aos estudos e, portanto, suporte financeiro da família. Cerca de 10,1% declararam estar procurando o primeiro emprego, e 2,9% trabalham atualmente, desenvolvendo função no setor industrial.
A maior parte dos respondentes reside em moradia própria e quitada (49,3%), seguida daqueles que têm casa própria financiada (24,6%). Cogita-se que tal dado pode ser fruto de programas sociais, a exemplo do Minha Casa, Minha Vida, lançado em 2009 pelo governo federal e que, desde 2017, subsidia financiamento habitacional a famílias com renda mensal de até R$ 7.000,00.
Uma parcela de 14,5% mora em casa cedida por amigo ou parente, e outros 11,6%, em casa alugada (Quadro 3). Além disso, 100% dos matriculados nos cursos integrados moram em região urbana, e a maioria (58,2%) tem de 4 a 5 cômodos na casa.
De acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio contínua (IBGE, 2020), 68,2% da população brasileira reside em casa própria quitada, enquanto 5,9% têm casa própria em pagamento; 17,5% pagam aluguel; 8,2% moram em residência cedida e outros 0,2% em outras condições.
Tipo de casa | percentual |
---|---|
Total | 100,0% |
Própria (quitada) | 49,3% |
Própria (financiada, ainda não quitada) | 24,6% |
Cedida (por amigo ou parente) | 14,5% |
Alugada | 11,6% |
Fonte: As autoras, coleta de dados.
Os dados desta pesquisa indicam que 98,6% dos estudantes têm acesso à internet em casa e, desses, 65,2% usam aparelhos celulares como seu principal meio de acesso. Esses números estão acima da média nacional, que é de 74,9%, dos quais 43,3% têm o celular como único equipamento para acesso à internet (IBGE, 2018).
Quanto ao meio de transporte, constata-se que a maioria (72,5%) dos matriculados vai à escola de ônibus, seguida dos que pegam carona (11,6%), e praticamente 6% vão com carro próprio. Uma pequena parcela dos respondentes vai a pé ou de bicicleta (4,3% cada) ou com moto própria (1,4%).
Aproximadamente metade dos matriculados (49,3%) conta com plano de saúde privado e 47,8% usam o Sistema Único de Saúde (SUS); apenas 2,9% usam serviços particulares. Conforme a Agência Nacional de Saúde (ANS), no Brasil, há 47.403.025 beneficiários de planos de saúde, com taxa de cobertura nacional de 24,44%, o que mostra que a maioria da população é usuária do SUS. No estado de São Paulo, contudo, a taxa de cobertura dos planos de saúde privados é de 38,8% (ANS, [s.d.]), indicando adesão dos paulistas ao sistema de saúde privado, o que explica, em parte, a opção da maioria das famílias dos estudantes do EMI pesquisados.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A recuperação histórica da educação profissional permite afirmar que essa modalidade foi nutrida desde a escravidão pela desvalorização do trabalho manual e seguiu a tradição de se destinar a crianças abandonadas e desafortunadas pela riqueza (BRASIL, 1909) como medida para evitar a marginalidade.
Essa tendência é alterada pelo estabelecimento da seleção para ingresso nas escolas federais a partir de 1937, mas permaneceu fortalecida no SENAI, que, dados os princípios fordistas de controle dos operários não só no âmbito da produção, mas também no reprodutivo, atuou de forma assistencialista nos cuidados à saúde e na escolarização de parte da população (CUNHA, 2000b).
A política educacional dos IFs elege como público-alvo os “alijados” socialmente, de modo a democratizar o acesso à educação profissional, a qual ocorreria principalmente por meio do EMI, e garantir educação de qualidade às camadas da população que historicamente tiveram esse e outros direitos negados (BRASIL, 2010, p. 21). No entanto, a análise das características socioeconômicas dos ingressantes nesses cursos em um campus do IFSP no interior de São Paulo revela que ele atrai prioritariamente a camada com rendimentos entre 2 e 4 salários-mínimos (47,8%), considerando os ingressantes cotistas.
O levantamento realizado permite afirmar que o estudante do Instituto Federal de um campus no interior paulista é jovem, de 14 a 18 anos, majoritariamente do sexo masculino, nunca vivenciou uma relação de emprego e reside em casa própria quitada ou em fase de financiamento.
São oriundos de famílias com escolaridade acima da média da população brasileira: enquanto praticamente 1/3 dessa população acima dos 25 anos têm ensino médio completo, metade dos pais dos estudantes do IF analisado completaram a educação obrigatória.
Observou-se que, no geral, mãe (50%) e pai (43,5%) têm ensino médio completo, seguidos daqueles que têm mãe com superior incompleto (11,8%) e pai com fundamental completo (14,5%). A renda familiar dos estudantes é de 2 a 4 salários-mínimos. A maioria (73,9%) mora em domicílio próprio quitado e 49,3% aderem ao plano de saúde privado.
Nesse quadro, destacam-se os avanços representados pela criação dos Institutos Federais, expansão da rede federal, bem como a implementação de políticas afirmativas, que mostram resultados positivos em direção à democracia racial.
Constata-se que, para incluir as camadas populares, historicamente alijadas da educação de qualidade, há que ampliar o investimento nessa modalidade de ensino e aprimorar as políticas de ingresso, implantando formas mais democráticas de acesso para além da tradicional prova de seleção (vestibulinho) e de permanência, por meio de apoio aos estudantes dos referidos segmentos previstos na documentação oficial da política dos Institutos Federais.