1 INTRODUÇÃO
Esporte e masculinidade parecem caminhar lado a lado. Desde seu desenvolvimento no seio da pacificada Inglaterra vitoriana, o esporte coloca-se como um equivalente moral para a violência (ELIAS; DUNNING, 1992), tendo por intuito combater o perigo de transformação daquela sociedade tradicionalmente belicosa, em afeminada e autocomplacente por conta da falta do combate (GAY, 1995). Este dispositivo civilizador que substitui a guerra ao encená-la (ELIAS; DUNNING, 1992), mantém a validade dos ideais de sacrifício de si e virilidade, constituindo-se em importante formador do etos masculino inglês no século XIX. O esporte promove, com isso, uma deliberada educação do corpo.
Mas a vinculação das práticas esportivas ao mundo viril e masculino não se restringiu apenas à Inglaterra oitocentista. Suas nuances são vistas e sentidas ao longo do século seguinte, repleto de avanços e retrocessos no que diz respeito aos lugares ocupados pelas mulheres no mundo esportivo. Exemplar nesse sentido é a proibição da participação feminina em competições esportivas, algo que perdurou por longo tempo em modalidades específicas, como no caso do salto triplo, que teve sua primeira disputa olímpica entre mulheres apenas no ano de 1996. Esta prova do atletismo era a elas vetada por conta do alto impacto sofrido pelos membros inferiores e quadril, acreditando-se que sua prática poderia prejudicar a saúde do aparelho reprodutor. Em outro plano, não é incomum ouvir entre crianças em momentos de jogo elogios às meninas mais habilidosas dizendo que elas jogam como meninos. Já os meninos menos habilidosos são comparados às meninas, em tom jocoso, o que parece apontar que o modelo de esportista segue sendo o masculino, mesmo estando as mulheres presentes em todas as modalidades olímpicas. Essas perspectivas expressam expectativas para os corpos de moças e de rapazes, destinando a elas e eles exercícios e práticas que lhes seriam adequados. Educa-se os corpos, portanto, para serem masculinos ou femininos. É nesse quadro que se coloca o paradoxo que o presente texto investiga.
Entre 2010 e 2013 realizamos pesquisa em uma equipe feminina de rúgbi de Florianópolis/SC. Nosso objetivo foi compreender aspectos estéticos do esporte a partir da experiência das praticantes. Desta pesquisa maior depreende-se o objeto do presente texto: entender como as mulheres se inserem num esporte fortemente vinculado ao arquétipo masculino, permeado pela tradição forjada nas public schools inglesas do século XIX, de formação dos novos líderes por meio da prática esportiva. Como bem mostra Collins (2015), o football jogado em escolas como Rugby (que deu nome ao esporte) não era apenas um jogo, mas um “guia de vida” que ensinava aos homens, entre outros, disciplina, liderança, força, caráter e respeito, elementos que se materializariam na própria forma de jogo que valoriza o contato físico, a força e a virilidade.
Dois questionamentos guiam nossa pesquisa: como se dá a presença feminina em um clube de rúgbi de Florianópolis e quais as representações dessas mulheres em relação aos lugares que ocupam e funções que exercem no contexto desse esporte. A fim de responder a essas questões, realizamos trabalho de campo que contou com (1) a participação como observadores da seletiva feminina realizada pela Confederação Brasileira de Rugby (CBRu) no início de 2011 e, (2) observações sistemáticas do cotidiano de treinamento (mas também de viagens e jogos, reuniões e confraternizações) do time feminino do Dínamo3 Rugby Clube, de Florianópolis. Tais observações, registradas em diário de campo, ocorreram entre julho e outubro de 2011. Permanecemos no convívio com a equipe até o final daquele ano, já que a pesquisadora atuava, desde agosto de 2011, também como praticante da modalidade. Esta foi uma importante mudança metodológica no percurso da pesquisa, na medida em que pudemos olhar o campo não apenas mais de perto, mas desde seu interior, o que possibilitou uma ampliação do arcabouço empírico – devido à proximidade ainda maior com as jogadoras e com o clube de maneira geral –, além de estabelecer um novo movimento de aproximação e afastamento do objeto, na medida em que a pesquisadora foi também se forjando um pouco nativa. Em relação ao registro, é importante destacar que inicialmente as anotações eram feitas no caderno de campo durante os eventos observados (treinos e outras atividades), mas, rapidamente a coleta de dados foi alterada, passando a ser elaborada ao término dos eventos. Diante disso, a memória também precisou ser mobilizada nesse processo, considerando seus limites. Destacamos que essa não é uma novidade no contexto de etnografias esportivas, a pesquisa de Loïc Wacquant (2002) com pugilistas nos EUA serviu-nos de inspiração e base. Além disso, assinalamos o diálogo com o trabalho de Thaís Almeida (2008), ao traçarmos um percurso metodológico muito próximo ao de sua investigação com jogadoras de rúgbi na cidade de Porto Alegre.
Completando o conjunto do material empírico, realizamos 4 entrevistas semiestruturadas com jogadoras do Dínamo no ano de 2013. A escolha das entrevistadas foi determinada por sua participação ativa não apenas no clube, mas também no selecionado nacional, pois consideramos que tais jogadoras teriam uma experiência mais profunda com o esporte, inclusive internacionalmente, o que poderia oferecer uma gama maior de elementos para análise. O roteiro utilizado versava sobre inserção no esporte (tempo de prática, motivos que levaram à prática do rúgbi, histórico na modalidade), rotina de treinamento (frequência semanal, descrição das atividades, preparação do corpo e dos materiais para o treino, relevância ocupada pelo rúgbi no cotidiano), competições (quantidade, preparação, rituais, sentimentos), relações interpessoais mediadas pelo esporte (com jogadoras, com treinadores, com colegas de clube, com familiares), expectativas esportivas (projetos e desejos em relação à prática do rúgbi), inserção das mulheres no esporte (quantidade de clubes no contexto catarinense e brasileiro, incentivos, preconceitos, dificuldades) e percepções estéticas da modalidade (sentimentos experienciados ao jogar e assistir uma partida de rúgbi, preferências ou desprezos de quais estratégias a fim de serem eficientes).
Assim, chegamos às seguintes personagens: Joana, Talita, Viviane e Marcela4. Elas tinham entre 22 e 32 anos no momento da entrevista e seu tempo de prática de rúgbi era de 2 (Talita), 9 (Joana), 13 (Viviane) e 16 anos (Marcela)5.
Os dados foram analisados em categorias formuladas a partir da circunscrição em eixos pelos quais as nativas organizavam suas falas. Levando-as aos limites das próprias contradições, o esporte foi pensado como forma de entendimento sobre o corpo e suas expressões em uma experiência de educação. É importante salientar que, como não se trata de um estudo estritamente de gênero, a vasta literatura correspondente a ele não foi mobilizada por nós, antes, porém, aquela relacionada, principalmente, com abordagens das Humanidades sobre o esporte.
Ao longo de nossa experiência de pesquisa (e de convívio) junto às jogadoras do Dínamo, fomos conhecendo uma dinâmica específica de busca de reconhecimento e de espaço dentro de um esporte tradicionalmente dominado por machos (RIAL, 1998), mas que vem, gradativamente, ganhando mais e mais adeptas. As mulheres que invadem o mundo do rúgbi não o fazem mais somente na posição de mães ou esposas – conforme Saouter (2003) sobre o caso da França –, mas também de jogadoras e árbitras, fazendo-se presentes nos campos, vestiários e terceiros tempos6, corroborando a tendência contemporânea de “decréscimo dos espaços de homossociabilidade masculina, com a participação crescente das mulheres em todos os esportes” (RIAL, 1998, p. 251). Por todo o mundo há registros da prática do rúgbi feminino – mesmo em países com maior tradição neste esporte, como a França ou Inglaterra –, ainda que as informações sobre esta presença sejam imprecisas e escassas, o que diz algo sobre o lugar ocupado pelas mulheres nesta modalidade. No Brasil, é visível o crescimento do número de equipes femininas. Esta evolução se materializa no fato de a seleção feminina de rúgbi sevens7 já ter sido, até 2019, dezesseis vezes campeã do Campeonato Sul-Americano da modalidade, estando invicta nesta competição, o que proporcionou ao selecionado brasileiro ser o representante da América do Sul nas disputas do circuito mundial. Neste mesmo ano as Yaras (nome dado à seleção brasileira feminina de rúgbi) se qualificaram também para os Jogos Olímpicos de Tóquio 20208.
As mulheres frequentemente penetraram nas práticas esportivas por meio de reivindicações e resistências. Goellner (2006) mostra que no Brasil desde o final do século XIX já havia mulheres no mundo esportivo e que tal presença se amplia a partir das décadas iniciais da centúria seguinte. Esta expansão resultaria do novo status de país independente que “se preocupa em ser reconhecido pelas grandes nações do mundo e, atento aos avanços europeus, incentiva o consumo de bens e costumes importados” (GOELLNER, 2006, p. 88), dentre eles, o esporte. Tal abertura não teria vindo sem interdição. Em 1941 o Conselho Nacional de Desportos elaborou documento regulador das práticas esportivas femininas, com intuito de delimitar em quais esportes as mulheres poderiam ou não tomar parte. Modalidades como futebol, rúgbi, polo e polo aquático eram terminantemente proibidas por serem violentas demais e não condizentes com o sexo feminino (GOELLNER, 2006).
Passados mais de 70 anos vemos mulheres praticando os mais diversos esportes, o que não significa a ausência de tensões nestes espaços. Em nossa pesquisa encontramos, em meio aos relatos das entrevistadas e das anotações do caderno de campo, problemáticas que configuram a presença de mulheres neste esporte e a busca de legitimidade da prática feminina do rúgbi. Nas próximas páginas, mostramos algumas adversidades institucionais do rúgbi feminino, em especial no que concerne ao reduzido número de equipes e de praticantes. Em seguida, chegamos à questão da administração esportiva e da ainda pouca representatividade feminina nesse cenário. Entretanto, encontramos também experiências de mulheres no comando do clube pesquisado, o que demonstra formas de protagonismos por elas conquistados. Por fim, tecemos algumas considerações sobre os remodelamentos da tradição deste esporte e como tais negociações podem conferir legitimidade para a prática feminina de uma modalidade tradicionalmente de machos.
2 EM BUSCA DE UM ESPAÇO INSTITUCIONAL E DE (RE)CONHECIMENTO
Uma primeira questão a ser destacada no que concerne às singularidades e dificuldades do rúgbi feminino brasileiro é a baixa regularidade de confrontos entre os times. No ano de 2011, por exemplo, havia uma grande insatisfação por parte das jogadoras do Dínamo derivada da redução do Campeonato Brasileiro de Sevens (que funcionava anteriormente no formato de circuito) para apenas uma etapa, o que significava diminuir as oportunidades de jogos entre os times femininos (algo que foi revisto, no ano de 2012, com a criação do Super Sevens, competição com seis etapas). Ao longo de nossas observações, a escassez de jogos foi constante. Quase todas as tentativas de organização de disputas amistosas fracassaram.
Até o ano de 2012, os torneios femininos em âmbito nacional eram escassos em comparação aos masculinos9. Além disso, os times femininos precisavam custear inteiramente sua participação na competição nacional, ao passo que os masculinos, participantes do então Super 1010, já eram parcialmente apoiados (com passagens aéreas) pela CBRu, algo que passou também a acontecer com as mulheres no ano de 2012, incrementando ainda mais as possibilidades de disputas. Havia ainda poucas equipes femininas no próprio estado de Santa Catarina, e apesar de termos encontrado o registro de 9 times catarinenses em 2013, eles pareciam não existir de fato, devido à falta de competitividade caracterizada, principalmente, por não alcançar a quantidade regulamentar de jogadoras para os amistosos ou campeonatos. Exemplar foi o Campeonato Catarinense de Sevens feminino de 2013. Em conversa informal com jogadoras do Dínamo, soubemos que a competição não ocorreu porque nenhuma equipe, além do próprio Dínamo, tinha jogadoras suficientes para a disputa, o que levou à classificação automática do time de Florianópolis para a competição nacional. O cancelamento de jogos derivado da escassez de competidoras gerava, por vezes, frustração entre as praticantes observadas, que ansiavam por disputar com outros clubes.
M. [capitã] conversa com P. [técnico], num canto, sobre a viagem para Lages. Ficamos por ali pela beira do campo, conversando. Depois que P. sai, M. avisa às que ficaram que, muito provavelmente, não haverá o torneio em Lages no final de semana, por conta da falta de inscritos (o campeonato era apenas feminino, sendo que há, no estado, 4 times: 2 em Floripa – mas um deles nunca participa –, 1 em Brusque e 1 em Lages), já que Brusque não poderá participar. [...] J. [veterana] sai com o material, como de costume. Pego carona com ela e, no caminho, J. reclama muito porque não haverá mais jogo no final de semana. “Que esporte horrível esse que escolhemos!”, diz J. se referindo à falta de times e campeonatos.
(Diário de campo, 28/09/2011)
Este não é um contexto exclusivamente catarinense, algo muito semelhante pôde ser observado em pesquisa na cidade de Porto Alegre. Almeida (2008) verificou que na época de seu trabalho etnográfico junto às jogadoras do Charrua (clube de rúgbi da capital gaúcha), não havia outras equipes femininas em todo o estado do Rio Grande do Sul, fato que que limitava as possibilidades de realização de jogos – gerando descontentamentos semelhantes entre as jogadoras. A principal reclamação das gaúchas era não conseguir jogar o “‘verdadeiro rugby’, aquele vivenciado nos confrontos com outras adversárias” (ALMEIDA, 2008, p. 109), já que os exercícios experimentados nos momentos de treinamento tinham um caráter fragmentado e adaptado em relação a uma partida regular.
A limitada quantidade de times femininos parece ser expressão da então baixa popularidade do esporte, em especial entre as mulheres. Na tentativa de encontrar novas interessadas em tornarem-se jogadoras de rúgbi, o Dínamo organizou em março de 2011 um evento denominado “Dia da amiga”. Este encontro, do qual participamos a convite de uma das jogadoras, tinha por objetivo difundir o esporte entre o maior número possível de mulheres. Cada jogadora tinha a incumbência de convidar pelo menos uma amiga a participar do treino coletivo, seguido de um piquenique e apresentação do clube às convidadas, tudo devidamente arranjado pelas anfitriãs. A avaliação da iniciativa, segundo as jogadoras, foi muito positiva, pois superou as expectativas com relação ao número de participantes. Durante a seletiva da CBRu em São Paulo, da qual também participamos realizando observações, o evento foi citado por uma das jogadoras do Dínamo como alternativa para o aumento do número de praticantes em outros clubes.
Durante o almoço sento à mesa com R. (de Floripa) e duas meninas de Belo Horizonte. Elas conversam e R. pergunta porque não veio mais gente do time delas para fazer a seletiva. Resposta: “São tudo franga (sic). Ficaram com medo de passar vergonha.”. R. comenta então sobre o dia da amiga, evento promovido pelas jogadoras do Dínamo para angariar novas jogadoras. As meninas de BH dizem que lá isso é difícil, pois, segundo elas, é só saírem com algum arranhão do treino que as garotas nunca mais aparecem para jogar.
(Diário de campo, 20/03/2011)
A fala das jogadoras mineiras indica uma possível razão da pouca popularidade do rúgbi entre as mulheres: esporte de contato que deixa marcas, arranhões e hematomas pelo corpo, algo que deve ser evitado, pois não condiz com o corpo feminino hegemônico, que precisa ser mantido belo e limpo, preservado em sua integridade física. Como afirma Sant’Anna (1995, p. 121), “A insistência em associar a feminilidade à beleza não é nova. A ideia de que a beleza está para o feminino assim como a força está para o masculino, atravessa os séculos e as culturas”. No rúgbi a força é fundamental para a prática, e passa, quase sempre, por uma abdicação parcial dos modelos de beleza vigentes (o que não significa o descuido com o corpo e seu embelezamento): unhas curtas, dedos tortos, narizes quebrados (e vez ou outra também dentes), olhos roxos, pele marcada pela aspereza do campo ou pelas travas das chuteiras adversárias são comuns. É preciso deixar a suposta fragilidade feminina de lado e encarar o árduo cotidiano de treinamento, bem como a dureza dos jogos.
Algumas vezes essa capacidade de abdicação, por parte das jogadoras, de um estereótipo feminino, é posta em dúvida, em especial, pelos homens. No Dínamo, a necessidade de mudança de técnico no início do ano de 2013 revelou uma dificuldade em encontrar um substituto para P. por conta do preconceito com relação ao suposto modo de ser das mulheres:
Na verdade o D. [...] não queria assumir o feminino. [...] Ele fala [que] a gente não tem uma fama muito boa. Dar treino para o feminino não é uma coisa muito fácil. [...] Mulher já é diferente. A gente chora, a gente fica magoada... [...] E tem muita gente que tem muita experiência. Tipo eu, eu jogo rúgbi praticamente o mesmo tempo que o D., ele joga há um pouco mais que eu. E eu tenho muito mais experiência de sevens do que ele. [...] Tem meninas muito experientes no sevens. [...] A gente tem que se controlar para não falar.
(Viviane)
É interessante observar a leitura que se faz das mulheres, apresentada por si mesmas: frágeis, manhosas, faladeiras e insolentes, que choram, se magoam e se atritam facilmente. Quer dizer, as próprias jogadoras reproduzem o “modo como são vistas, identificadas” pelos homens com características que não dizem respeito à “maneira de praticar um esporte” (PIO, 2016, p. 140), mas sim, a estereótipos de gênero vinculados à ideia de que haveria uma essência feminina (geralmente ligada à biologia), una e universal (todas as mulheres são delicadas, frágeis, não conseguem lidar com seus sentimentos etc.). Mas se o gênero não tem nada de essencial ou original, construindo-se como discurso e performance (corporal) no âmbito das relações sociais, como bem assinalou Butler (2017), notamos que as formas de representação do feminino no campo pesquisado por vezes reafirmam, ao menos no contexto discursivo, tal entendimento.
Além disso, destaca-se a autoridade do técnico, que nunca pode ser questionado, estando as jogadoras, mesmo aquelas com igual ou maior experiência que ele, subordinadas à sua figura que é duplamente de autoridade: por ser técnico, mas também, por ser homem. Nota-se que, em nenhum momento, cogitou-se a substituição de P. por uma mulher, o que mostra uma escolha também das próprias jogadoras em serem guiadas por homens, algo modificado apenas em 2014, quando a equipe passou a ser dirigida pela própria Viviane. À época, ela figurava como a única técnica mulher de um time feminino de rúgbi com destaque no campeonato nacional.
O exemplo da escolha do técnico – realizada pelo próprio time, sem sofrer qualquer interferência da diretoria do clube, segundo nossas informantes, o que aponta alguma autonomia do grupo – parece corroborar com a ideia de que este é um cargo geralmente vinculado à figura masculina (MELO; RUBIO, 2017), entendido como profissão de homens, assim como ocorre na arbitragem ou gerência esportiva, como apontam Fasting e Pfister (2000). Entretanto, nossa pesquisa de campo mostrou resultados que sinalizam novas configurações nesse cenário, como veremos a seguir.
3 MULHERES NO PODER?
A questão do técnico é apenas uma pequena parte do panorama nacional no que diz respeito à equipe e à administração do rúgbi. De forma geral, o trabalho é feito pelos homens, inclusive no caso do feminino, o que resultaria em algum descuido (segundo fala de uma de nossas informantes11) por parte dos dirigentes com relação às necessidades dos times femininos, como organização de campeonatos e calendários, incentivos financeiros etc.
Em 2013 analisamos o organograma da CBRu. Naquele momento, das 15 funções principais da diretoria, somente 3 eram exercidas por mulheres: Coordenação Administrativo Financeiro, Compras e Prestação de Contas e Gestão Seleção Feminina (sendo que apenas essa última dizia respeito à Direção Técnica). Já no que concerne à Equipe Técnica, em 2011, quando de nossa observação junto à seletiva nacional, deparamo-nos com apenas 2 mulheres que ocupavam os seguintes cargos: fisioterapeuta e massagista da equipe. Técnico, preparador físico, médico e diretor da modalidade, que estavam também presentes, eram homens. Quer dizer, as funções mais importantes e de maior destaque eram desempenhadas por figuras masculinas.
Esta parece ser uma tendência internacional no campo esportivo. Pfister (2003) mostra a ainda reduzida presença de mulheres na administração do esporte de forma geral, pelo menos até alguns anos atrás. A autora analisou os dados de 4 países (Alemanha, Dinamarca, Estados Unidos e Austrália) com estruturas esportivas distintas, mas que mantêm algo em comum, “a hierarquia do sexo e o desequilíbrio de poder em organizações e instituições esportivas” (2003, p. 15), inclusive no que se refere à baixa representatividade feminina. No Brasil não parece ser muito diferente. As mulheres têm dificuldades para “conquistar cargos na gestão esportiva nos clubes, federações, confederações e comitês que organizam nosso esporte” (OLIVEIRA; TEIXEIRA, 2009, p. 103), como mostra pesquisa realizada com ex-atletas olímpicas que converteram suas carreiras profissionais migrando para a área da administração esportiva.
Se as mulheres já podem ser vistas tomando parte de todas as modalidades olímpicas isso não significa que elas usufruam da igualdade de chances, uma das premissas do esporte moderno, na área da gestão esportiva. Exemplar é o Comitê Olímpico Internacional (COI), entidade responsável pela legislação, organização e realização dos Jogos Olímpicos desde 1894, data de sua fundação. Nascido como um “clube de meninos”, como bem assinala Pfister, não reservava espaço para as mulheres. Algo disso vem se alterando paulatinamente, em grande parte devido a políticas oriundas do próprio COI que, desde a década de 1990, tem como meta incrementar o número de mulheres na organização esportiva. Importante exemplo é a Comissão Mulheres e Esporte, criada para assessorar o COI no que diz respeito às políticas de promoção da participação de mulheres no esporte. Atualmente, é a comissão que contém o maior número de mulheres, vinte e três de trinta e três membros, incluindo a presidente (THE INTERNATIONAL OLYMPIC COMMITTEE, s/d). No entanto, a maioria dos participantes do Comitê segue sendo homens (PFISTER, 2003). Melo e Rubio (2017, p. 113-4) também argumentam nessa direção, mostrando que esta não é uma característica apenas do COI, mas que se expressa em conformidade com o cenário nacional, na medida em que, embora haja um aumento do número de “vagas” no mercado do esporte, a demanda não compreende a uma maior participação das mulheres nos cargos de decisão.
O mercado esportivo é, assim como o mercado mundial, marcado por um “desequilíbrio de poder e status [...] por uma segregação vertical e horizontal que varia de acordo com o sexo” (PFISTER, 2003, p. 27). No rúgbi não é diferente, aliás, nele a questão parece se intensificar, se lembrarmos que continua sendo, em muitos lugares do mundo, um reduto quase que exclusivamente masculino. Apesar da gradual presença de mulheres no campo do (e de) rúgbi, ele segue como um esporte que celebra valores tradicionalmente masculinos, como o cavalheirismo, a força, a coragem. Entretanto, tais códigos são tensionados e reinventados pelas jogadoras do Dínamo, como se pode ver no exemplo a seguir, pois em meio ao “poderio masculino” do rúgbi, encontramos, durante a pesquisa de campo, um caso muito particular: a presença de uma mulher na presidência do clube. Marcela ocupou o cargo durante dois anos e meio. Seu longo tempo de prática da modalidade, bem como o bom relacionamento que mantém com jogadores, jogadoras, outros clubes e dirigentes, fez com que se legitimasse para o cargo.
Isso aí foi uma coisa bem diferente. Uma mulher como presidente. Os meninos é que fizeram, se reuniram e alguns conversaram: “Poxa, acho que para o marketing ia ser uma jogada diferente, chamar uma mulher para ser presidente”. E aí ficou naquela: “Ah, mas quem?”; “A Marcela está no rúgbi há um tempão, conhece bastante gente, se relaciona bem com todo mundo”; “Pô, é um nome interessante”. [...] E aí foi legal no início, diferente, pegar uma presidência de um esporte que é super masculino. Sempre homens e “ogros”, aquela coisa bem grotesca e aí uma mulher ali na frente.
(Marcela)
A fala de Marcela mostra um pequeno movimento de incluir as mulheres na gestão do rúgbi, porém, esta parece ser ainda uma iniciativa masculina, quando afirma que foram os “meninos que fizeram”, que pensaram em seu nome e a convenceram a realizar o trabalho de presidente do clube como “jogada de marketing”. Algo semelhante ocorreu na etnografia com jogadoras do Charrua de Porto Alegre, em que Thaís Almeida se deparou também com mulheres na gestão do clube, em 2005 ocupando os cargos de direção técnica e secretaria e em 2007 na secretaria e na vice-presidência. Destaca-se nesses casos, do Dínamo e do Charrua, que a presença feminina na administração se dá a partir do incentivo, convite e movimento dos homens para que elas ocupem tais postos, e não por “uma questão de luta das mulheres por espaço no clube, apesar do seu envolvimento em tarefas que extravasam as questões específicas do jogo” (ALMEIDA, 2008, p. 112). Talvez este seja um exemplo daquilo que Barata e Prat (2004, p.76) colocam como “valoración del quehacer femenino en el sector servicios en general (empatía, capacidad de trabajo en equipo, diálogo)” em um espaço tradicionalmente de homens. De qualquer forma, ter aceitado o desafio possibilitou uma nova experiência de administração do rúgbi, abrindo espaços para as mulheres nesse campo.
Nesse sentido, vale destacar que no Dínamo, no ano de 2019, a equipe masculina era comandada por uma mulher, sendo a grande exceção no cenário atual do rúgbi praticado por homens no Brasil, o que a imprensa nacional, inclusive, noticiou como uma “quebra de paradigma” (SOUZA, 2019). Não temos dados empíricos sobre como se deu o convite para que esta mulher, jogadora da equipe feminina, ocupasse tal função dentro da referida equipe, mas podemos inferir que é fruto das experiências anteriores desenvolvidas pelas jogadoras por nós pesquisadas.
4 MULHERES NO PODER
Como se pode ver, as mulheres vão se colocando, vagarosamente, no mundo do rúgbi, mas segundo nossas informantes, muito ainda é preciso fazer para que as equipes femininas tenham a mesma representatividade e estejam em pé de igualdade com as masculinas. Diferenciações ainda existem, apesar de todo o trabalho de incremento do rúgbi feminino. Elas estão materializadas, por um lado, pela desigualdade de incentivo recebido, mas também por outro, pelo discurso do campo sobre as mulheres no rúgbi. Sobre os incentivos, os depoimentos de Marcela e Viviane foram exemplares:
Não sei, eu não vejo nenhuma propaganda de: “venha jogar rúgbi”. De repente a gente pudesse fazer mais isso... Se tem, é pouco ainda. Agora, há pouco tempo, que a seleção, a confederação, tem patrocínios, então agora alguns patrocinadores fazem propaganda e tal. Essa parte de marketing, para atrair mais a galera. E tinha até a propaganda da Topper, de “isso ainda vai ser grande”. Acho que ali é geral. Apesar de aparecer homens jogando, ficava uma coisa geral. De repente devia fazer algo atraente para as meninas conhecerem porque acho que muitas vezes elas não vêm por falta de conhecimento mesmo.
(Marcela)
Olha, está crescendo, mas não tem muito, não. A gente é nove vezes campeã sul-americana e, acho que se fosse um país de primeiro mundo, talvez a gente estivesse em uma situação melhor. Não iria precisar acordar às 5h30 da manhã e estar dando jeito para conseguir treinar, se alimentar bem... Acho que não. Mas o fato de ter virado esporte olímpico de novo, ter voltado para as Olimpíadas, acho que está sendo um divisor de águas. Vai ter mais visibilidade, então com isso vai ter mais gente querendo investir. Nos clubes ainda está difícil. [...] Mas falta [...] A gente não tem campo. Acho que isso já diz muita coisa. A gente não tem campo para treinar. A gente aluga um campo para treinar. Uniforme, tem um jogo de uniforme bom. Todo mundo paga mensalidade. É um clube, um clube sem Sede [risos]. É, mas todo mundo paga mensalidade. E é uma realidade de todos os clubes.
(Viviane)
As falas de Marcela e Viviane apontam para dois entendimentos do que significaria incentivar o rúgbi feminino no Brasil. Num tem-se o discurso a favor da publicidade, do convite a novas possíveis jogadoras, da popularização do esporte ainda pouco conhecido no país, principalmente entre as mulheres. Noutro a preocupação relacionada às questões mais estruturais da modalidade, ligadas aos custos e gastos da prática, às condições de treinamento ainda insuficientes. Estes elementos foram também apontados por Marques e Cafeo (2014), em pesquisa realizada sobre a gestão esportiva da CBRu, concluindo que apesar do intenso planejamento voltado à seleção feminina (investimento na elite e não na base), a imagem vinculada à modalidade segue sendo a masculina, faltando estratégias de aproximação do público feminino ao rúgbi.
Retomando a análise de nossas entrevistadas parece colocar-se uma distinção entre rúgbi amador – aquele que está mais interessado na confraternização proporcionada pelo jogo, na disseminação de suas regras e seus valores, enfim, no aumento da comunidade de rugbiers12 – e outro mais profissionalizado – que almeja resultados, rendimento, que também objetiva uma popularização maior do esporte, mas de forma mais sistematizada e competitiva. As falas das duas jogadoras bem materializam o momento pelo qual o rúgbi tem passado, saindo de um estágio de completo amadorismo e seguindo para um gradativo profissionalismo (mas que pretende manter, paradoxalmente, o espírito amador, o fair play e a camaradagem). Talvez isto derive de uma questão geracional. Apesar de Marcela e Viviane terem pouca diferença de idade (apenas 1 ano), os 3 anos há mais de prática de rúgbi da primeira (16 anos, no total) parecem fazer diferença.
Marcela foi uma das fundadoras da equipe feminina do Dínamo, faz parte do grupo de primeiras jogadoras no Brasil, a do final da década de 1990. Ela é oriunda de uma geração que precisou lidar com o desconhecimento completo do esporte13, e com um elevado preconceito com relação à participação de mulheres, algo que ainda pode ser visto, a exemplo de pesquisa realizada em Maringá/PR com jogadoras de rúgbi que se dizem discriminadas “principalmente por questões de quebra de determinadas fronteiras de gênero” (MOURA et al, 2017, p. 21). A fala de Marcela está permeada pelo espírito do rúgbi14, pela valorização e respeito ao outro, pelo prazer de poder jogar. E é isso que ela quer: jogar rúgbi. Para tanto precisa de parceiras, de outras amantes do esporte. Viviane chegou na modalidade em 2000, quando o rúgbi ainda era muito incipiente, mas já tinha alguma estruturação. Assim como Marcela (que foi, inclusive, a primeira capitã), participou da primeira formação do selecionado brasileiro, em 2004, e até o momento da pesquisa, ainda estava vinculada ao grupo nacional, o que significa que vinha acompanhando todo o processo de especialização pelo qual a modalidade passava: mais treinamento, competições, bons resultados e também um pouco mais de recursos financeiros. Ela, assim como a companheira de equipe, é também uma entusiasta do espírito do rúgbi, valoriza os momentos de festa e congregação proporcionados pelo esporte, mas soma a isso uma postura mais profissionalizante em relação ao rúgbi. Ambas mostram a tensão presente no campo nesse momento, que se depara com a profissionalização de um esporte que se orgulha de ser amador.
Mas a despeito do lugar secundarizado, de toda a dificuldade estrutural, de incentivo, de patrocínios, e mesmo de maior adesão, tanto de adeptas do esporte, quanto público apreciador, a seleção feminina de rúgbi brasileira é doze vezes15 campeã do Campeonato Sul-Americano da modalidade. Diferentemente dos selecionados masculinos (tanto de sevens, quanto de XV), que têm pouca expressão no cenário internacional, as Yaras vêm despontando mundialmente, tornando-se, gradativamente, mais e mais competitivas. Tal fato parece gerar alguma inversão no que diz respeito ao tradicional lugar de homens e mulheres nesse esporte, ao menos no imaginário das jogadoras:
Para mim, o rúgbi é um esporte feminino também. Eu não vejo nenhuma diferença. E como o Brasil é nove vezes campeão sul-americano feminino e nenhuma vez masculino, eu acho que no Brasil o rúgbi é feminino. É coisa de mulher.
(Joana)
Aqui eu acho que o rúgbi vai ser mais feminino do que masculino, porque a gente é referência. [...] A gente vai para mundial, faz bons jogos [...] está crescendo muito.
(Viviane)
Aqui surge uma legitimidade da presença das mulheres no rúgbi por meio do rendimento que o selecionado nacional feminino tem apresentado. Ele seria uma espécie de mola propulsora que alçaria as brasileiras jogadoras de rúgbi à popularidade dificilmente alcançada pelos jogadores, exatamente porque eles não têm essa efetividade. Com isso, se engendraria uma inversão na posição do masculino e do feminino neste esporte no Brasil, segundo a visão das jogadoras. O rúgbi seria de mulheres, ou seja, uma modalidade feminina (assim como o soccer o é nos Estados Unidos ou o hóquei na Argentina16), apesar de sua tradição masculina.
5 BREVE NOTA: SOBRE SEXUALIDADE E PRECONCEITO
Mas se afastar de uma postura complacente, frágil e delicada pode gerar posturas preconceituosas em relação às praticantes de rúgbi que rompem fronteiras de gênero. A heterossexualidade passa a ser contestada quase que de imediato, como mostram Moura e colaboradores (2017) em pesquisa sobre preconceito com jogadoras de rúgbi no estado do Paraná/Brasil. Também em nosso trabalho de campo essa questão apareceu, mesmo não sendo foco da investigação. Nos relatos das jogadoras, o tema da sexualidade e o possível preconceito em relação àquelas que jogam rúgbi surgiu de forma tímida, mas muito singular. Ao serem questionadas sobre a inserção das mulheres naquele esporte, falas que apontavam para a rotulação das praticantes como homossexuais surgiram – o que, dito de outra forma, significaria corpos femininos mal-educados. De uma forma geral, as respostas criticavam tais estereótipos. As jogadoras afirmavam que no rúgbi há uma heterogeneidade entre as praticantes, algo visível no próprio Dínamo, como assinalou Viviane: “A gente vê pelo nosso time. Está entrando um monte de menina no nosso time. De tudo quanto é tipo também. Não é aquela coisa rotulada, que menina que joga rúgbi, não-sei-o-quê. Não, nosso grupo é bem heterogêneo.” (Viviane). Ou seja, o time é composto por mulheres, independente da orientação sexual, como em qualquer esporte, mas que o rúgbi feminino, originalmente, era um esporte realmente de meninas.
O rúgbi feminino começou entre namoradas de jogadores e irmãs de jogadores que queriam jogar o esporte. Então ele começou como um esporte, realmente, de meninas [ênfase na voz] jogando. Depois que foi tendo toda a inserção no esporte de todas as pessoas. E aí tem... porque tem aquela coisa de... tem meninas que são homossexuais, como tem em qualquer esporte. Mas no esporte, as meninas se mostram mais do que num escritório, por exemplo. Que vai ter, talvez, a mesma porcentagem, só que no esporte as meninas se mostram e dentro do escritório elas não vão se mostrar.
(Joana)
O que significa, afinal, ser um esporte realmente de meninas? Segundo nossas interlocutoras, o rúgbi feminino teve início a partir da iniciativa das namoradas e irmãs dos jogadores que queriam se aventurar na modalidade, e que só posteriormente, com o crescimento do esporte, é que outras mulheres foram se inserindo, inclusive aquelas com distintas orientações sexuais – vale dizer que este é mais um mito fundador dentro do esporte, assim como a lenda que diz que o rúgbi nasceu a partir de uma jogada ilegal do inglês William Webb Ellis, fatos que não têm qualquer ancoragem histórica. Este dado está fortemente impregnado no discurso nativo, o que leva uma das fundadoras do time pesquisado a afirmar que não havia homossexuais na referida equipe quando de seu início.
O Dínamo mesmo, foi um time que começou sem nunca ter uma homossexual, na verdade, no feminino. A gente estava ali, eram as meninas hetero e tal. E depois, num certo momento, já começou a aparecer. Teve uma época que era até uma maioria. Daí agora vai balanceando de novo. Mas acho que isso é o de menos, porque é o mundo... O mundo todo tem homossexuais, hoje a gente encontra em tudo quanto é canto. Mas é interessante como isso aumentou também. É uma coisa que aumenta bastante. Eu lembro no início, essa era uma pergunta muito grande. E... bom, no Dínamo a gente não via, mas... “Ah, quem joga rúgbi é tudo machorra? Porque a gente olha lá fora, pelo menos o que passa na TV, as mulheres são enormes, parecem homens, não-sei-o-quê e tal”. E aí, pronto. Era uma coisa que a gente sempre dizia: “Não, não existe isso, olha para mim, sou toda feminina”.
(Marcela)
Há aqui, nos parece, uma tensão em relação ao tema. Por um lado, a presença de jogadoras homossexuais não aparentava ser um problema no time – algo especialmente observado no cotidiano da equipe composta por várias jogadoras e ex-jogadoras assumidamente lésbicas que, frequentemente, circulavam com suas companheiras nos momentos de confraternização não apenas do time feminino, mas também do clube – porém, por outro, há uma preocupação em defender certa pureza originária do rúgbi feminino, praticado realmente por mulheres (leia-se: heterossexuais). Interessante notar que este movimento de afirmação de estereótipos de feminilidade baseados na heterossexualidade compulsória – entendida aqui, no sentido conferido por Rich (2010), em que a orientação sexual heteronormativa se apresenta como imposição institucionalizada e naturalizada que diminui o poder das mulheres em sociedades identificadamente masculinas, subalternizando o feminino – aparece como dispositivo de normatização dos corpos dessas mulheres que, devido às características da própria modalidade, são vistas como desviantes de uma suposta essência feminina, una e universal. Assim, mulheres praticantes de um esporte que exige força e coragem, necessariamente não seriam femininas – ou são menos femininas – e, consequentemente, são homossexuais.
6 ALGUMAS CONSIDERAÇÕES
Ao pesquisarmos uma equipe feminina de rúgbi de Florianópolis/SC, deparamo-nos com tensões no que concerne ao lugar das mulheres em um esporte em que o macho é a figura central. A força simbólica do masculino no mundo do rúgbi apresenta a virilidade como exigência, não apenas nos momentos de treinamento e de jogo, mas também naqueles extracampos. A tradição do rúgbi exclui o acesso das mulheres a seus códigos internos e sua prática, mas, como destacamos, esta proibição vem sendo quebrada em diferentes lugares do mundo e no Brasil em especial, onde o selecionado feminino tem mais destaque que o masculino. Tal questão pode ser explicada, ao menos em parte, pela pouca vinculação que se tem no país com a tradição da modalidade. Por isso, é possível remodelar os ritos tradicionais, incluindo, por exemplo, a presença das mulheres no terceiro tempo, mas também nos campos de jogo, como árbitras, jogadoras e, inclusive, gestoras.
Podemos dizer que as jogadoras por nós pesquisadas constroem, a seu modo, uma cultura esportiva feminina, não se limitando a imitar o mundo masculino, mas criando o seu próprio (BARATA; PRAT, 2004), seja na forma de jogar, de se socializar ou mesmo de trabalhar com o esporte. Nesse contexto uma educação do corpo feminino vai sendo gestada e administrada, por meio de constantes negociações e ressignificações de valores de uma prática esportiva pautada em símbolos de masculinidade, como força, combatividade, coragem, virilidade. As jogadoras do Dínamo se tornam guerreiras17, segundo o próprio discurso nativo, que lutam, sangram e se sujam de lama, sendo ao mesmo tempo mães, esposas, empresárias, gestoras esportivas, atletas. Mostram diariamente que seus corpos podem ser fortes e prontos para empurrar e derrubar outros corpos femininos também dispostos a jogar uma partida de rúgbi.
Entretanto, reelaborar os ritos e práticas exige uma luta diária de conquista de espaço e de valorização no campo. As jogadoras de rúgbi exemplarmente aqui retratadas pelas nossas informantes, seguem em constante disputa para conseguir apoio, realizar jogos, angariar mais praticantes, incrementar o time e o esporte. Mesmo sendo o selecionado feminino mais efetivo do que o masculino no cenário mundial, isto não parece ser ainda suficiente para garantir a legitimidade e a popularidade do rúgbi feminino. Em contrapartida, as jogadoras têm procurado mostrar em campo que rúgbi é, sim, coisa de mulher. Ou melhor, de mulheres que criam formas de jogar, de socializar e trabalhar com esse esporte, subvertendo e ressignificando, cotidianamente, a lógica macho da
modalidade, delineando também distintas maneiras de se relacionar com seus corpos, o educando a partir de parâmetros outros que não aqueles convencionalmente associados ao mundo feminino.